Louis Claude de Saint Martin
O NOVO HOMEM



50

É uma verdade, já muitas vezes dita, que embora o homem tenha nascido para o espírito, ele não pode, contudo, gozar da serenidade e das luzes do espírito, até que tenha começado a se fazer espírito. Heis por que a sabedoria ativa e invisível faz descer continuamente seu poder sobre o homem, a fim de que ele reuna as forças e os princípios da vida espiritual. Além disso, essa sabedoria ativa e invisível não faz descer seu poder sobre o homem, sem antes verter no coração dele algumas dessas influências vivas das quais ela é o órgão e o ministro e entre as quais ele faz eternamente a sua morada.

Depois de ter preparado o homem - e se ele não a contrariou em seus desígnios -, então ela conduz o espírito do homem à morada dessa luz que o originou, e aí o homem bebe com grandes goles as doçuras que são próprias da sua existência. Bebe sem perturbações e sem inquietude, como a própria sabedoria, pois, pelos cuidados que ela lhe dispensou, seu coração tornou-se puro como ela e livre dos movimentos tão incertos da frágil roda do tempo. O superior e o inferior apresentam-se para ele numa perfeita analogia; ele sente que a paz que descobre nessas regiões invisíveis encontra-se nele mesmo. Não sabe se o seu interior está no exterior divino ou se o exterior divino está no seu interior. Sente que todas essas coisas são uma só, e que ele é um com todas elas.

Heis por que, depois de ter desfrutado essas maravilhosas consolações superiores, ele não teme, de modo algum, voltar ao seu interior, pois sente que aí encontrará consolações semelhantes. Heis por que também, não teme elevar-se de seu interior até essas regiões sublimes, pois sabe antecipadamente quais consolações o esperam aí.

Mas ele não pode percorrer essas regiões sejam interiores ou exteriores sem experimentar um desejo que compartilha com a própria sabedoria, pois ela o experimentou primeiro em relação a ele. É o desejo de ver seus semelhantes desfrutarem da mesma felicidade. E é nesse desejo secreto, bebido em nossa própria fonte, purgado de suas sujeiras e suas trevas, que descobrimos o verdadeiro destino do Novo Homem e, por conseqüência, do homem primitivo.

Se os homens não tivessem fechado os olhos para a simples lei das compensações, não teriam tido necessidade de elevar-se tão alto para perceber essa destinação primitiva. Com efeito, considerando as únicas noções naturais da nossa razão não desencaminhada pelo vício e pela corrupção, não podemos discernir o objetivo do nosso ser nos dons e nos meios que estão ao alcance de todos os homens? Posso dizer, então, aos meus semelhantes: Nasceste forte? Não será para protegeres o fraco?

Nasceste rico? Não será para dares benefícios aos indigentes? Nasceste com as luzes? Não será para clareares aquele que esta nas trevas? Nasceste virtuoso? Não será para apoiares, pelo teu exemplo, o homem sem força, ou para atemorizares a fazeres temer o homem mau? Ascende, então, por esses degraus até a tua lei original. Se tiveres a atenção de comparar cuidadosamente todos os degraus dessa grande escada, chegarás a reconhecer que nasceste primitivamente para uma grande compensação.

Mas, quantos esforços não serão necessários para evitar que sua visão se obscureça em relação a verdades tão simples e tão naturais em meio às inúmeras nuvens que a envolvem? Enquanto esses esforços do homem não devem aumentar ainda para atingir essa sublime destinação, supondo que ele tenha sido bastante feliz para não perder a visão? Porque não podemos dissimular o fato de que estamos cercados de dificuldades tão numerosas, e de obstáculos tão poderosos, que é como se tivéssemos cavado para nós uma prisão profunda no meio de um grande rochedo, tendo ao nosso redor apenas muralhas de rocha viva, talhada a pique e a perder de vista.

Não, não é difícil ver que os homens, neste mundo, são como prisioneiros privados de toda comunicação com as criaturas vivas, vivendo, por assim dizer, em segredo. Nessa situação não podemos gozar do auxílio nem do consolo de ninguém. Um carcereiro severo e cruel joga-nos alimento grosseiro e retira-se sem se dignar a nos endereçar uma palavra sequer de consolo.

Algumas vezes, é verdade, depois de longos dias passados nessa situação desoladora, concedem-nos embora, foi um breve instante, o rápido alívio de vermos algumas pessoas mais próximas e alguns dos nossos amigos.

Depois devolvem-nos a nossa solidão medonha. Enfim, algumas vezes, após essas provas cruéis, abrem as portas da nossa prisão, colocando-nos em liberdade. Mas como é pequeno o número daqueles para quem brilha, finalmente, o dia da libertação! Quantos outros, ao contrário, vêem multiplicarem-se seus ferros e são condenados a jamais conhecer o menor alívio! Quantos deles devem passar seus dias nas masmorras, sem nenhum intervalo entre os horrores da sua prisão e os horrores da sua tumba!

Qual é então o triste estado da posteridade humana, em que o próprio Homem de Desejo está destinado a chorar em vão e a ver os seus irmãos acorrentados por fortes grilhões em tenebrosas masmorras ou conduzidos para os sepulcros da morte e da putrefação! E isso sem que lhe seja possível agir para libertá-los ou fazer qualquer coisa por eles! É verdade, homem infeliz, que o tempo e a morte são os reis deste mundo. Tu tens desejos puros, tens desejos divinos, tens desejos que concorrem com aqueles que preenchem o coração e a sabedoria do próprio Deus. E contudo esses desejos não são satisfeitos! E contudo a obra verdadeira se vê como que forçada a ceder à obra ilusória! E contudo o nosso próprio Deus esconde a sua glória e parece obrigado a adiar, até um outro tempo, para manifestar os triunfos!

Senhor, Senhor, é verdade então que precisas do homem para cumprir tua obra neste mundo! Sim, precisa dele, porque a tua obra consiste na reunião do homem contigo. Senhor, Senhor, será verdade que precisa do homem neste mundo e, contudo, esse infeliz se recusa a cumprir teus desejos e tuas necessidades! Oh! Não, nada pode igualar-se à horrível insensibilidade e à ímpia crueldade do homem. Nada é tão pungente como a idéia da sua vontade medonha. Bate nele, Senhor, com o açoite do tempo, para que ele saiba que o tempo o engana todos os dias. Bata nele com o açoite do tempo, para que ele deixe de acreditar no tempo. Então o próprio tempo o açoitará, ficará cheio de remorsos e de vergonha por haver encontrado um fim aos seus desígnios. Foi ao tempo, à morte e aos reis da terra que endereçaste tantas censuras pela boca do teu profeta Davi (Salmo 2).

Também disse em sua dor: "Por que razão as nações se amotinam com tão grande estrépito e os povos maquinam planos vãos? Os reis da terra sublevam-se e os príncipes se unem contra o Senhor e contra o seu Messias. Rompamos disseram os seus laços e libertemo-nos do seu jugo. Aquele que mora nos céus se rirá deles, e o Senhor os ridicularizará. Ele lhes falará em sua cólera, e os encherá de perturbações e de fúria. Mas quanto a mim, fui feito rei por ele sobre Sión, sua montanha santa, para que anuncie os seus preceitos. O Senhor me disse: vós sois o meu Filho, eu vos gerei hoje. Pedi a mim e eu vos darei as nações em herança e estenderei vossos domínios até as extremidades da terra. Vós os governareis com açoite de ferro, e os quebrareis como a um vaso do oleiro. E vós agora, ó reis, abri vosso coração à inteligência: instruí-vos, vós que julgai a terra".

Novo homem, considera-te como esse rei constituído sobre Sión, a montanha santa do Senhor, a fim de que anuncies os seus preceitos. Pede a Deus tuas próprias nações em herança e ele estenderá teus domínios até as extremidades da terra e até as almas dos teus semelhantes. Porque sua sabedoria ativa e invisível busca somente fazer penetrar em ti suas doces influências e te apoiar do alto do seu trono, nos combates, para que saias vitorioso.

Em seguida, conduzirá atrás dela o teu espírito triunfante, até essas regiões calmas onde ela faz eternamente a sua morada, e onde o homem deveria ter habitado eternamente com ela, se não tivesse tido a fraqueza de abandoná-las. Verdades que poderiam ser rebatidas em todas as páginas de todos os livros, sem deverem por isso experimentar a censura de serem muito repetitivas. Pois como se poderiam acusar os escritores de dizerem demasiadamente uma coisa que é a única coisa que se deveria dizer?

51

O salvador tomou consigo três dos seus discípulos e os conduziu a uma alta montanha, e transfigurou-se diante deles. Seu rosto ficou refulgente como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a neve. E heis que viram aparecer Moisés e Elias falando com ele.

Quando o homem reúne e concentra suas forças, sente que a própria Vida Divina não se furta a influir ativamente sobre ele e a reanimá-lo com seu fogo brando e vivificador. Essa Vida Divina que o formou não teme formá-lo novamente. Após tê-lo formado de novo, ela não teme estabelecer-se nele e sustentá-lo por suas santas influências; e após ter-se estabelecido nele e o haver sustentado por suas santas influências, não teme transmitir-lhe a alegria da qual ela é a fonte e da qual ela própria se nutre perpetuamente. Nessa operação, o homem toma realmente uma nova característica, pois é de tal maneira penetrado pela Luz Divina, que o seu interior se torna resplandecente, originando-se aí como que um sol vivo e brilhante que o seu corpo material não pode conhecer. Esse é um dos sentidos da passagem de São João: a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam; ele veio até os seus domínios, e os seus não o receberam.

Se o homem dirigisse mais cuidadosamente seu olhar para seu ser interior, certamente descobriria em si esse sol radiante e o veria fisicamente com os olhos do seu espírito, da mesma forma que pode ver num espelho a beleza do seu rosto com seus olhos materiais. Porque ele tem sempre, diante do seu ser interior, um espelho vivo que refletirá seu esplendor naturalmente. Ele se verá acompanhado, à direita e à esquerda, por Deus, que não cessa de preservá-lo e defendê-lo e que foi operante temporariamente nas duas alianças, ou iniciações espiritual e divina, tendo sido representado em corpo aos três discípulos do salvador pelos precursores dessas iniciações Moisés, que conduzirá o povo até as portas da terra prometida, e Elias, que viera preparar os caminhos para a aliança eterna da paz e da santidade. Pois o salvador revelou nessa transfiguração os caminhos que o homem deveria seguir para retornar ao reino da vida.

Mas o homem interior acompanhado à direita e esquerda por Deus, ouve ainda, acima dele, a voz divina pronunciando estas palavras consoladoras: é o meu Filho bem-amado, no qual depositei toda a minha afeição. Escutai-o. Assim, ao encontrar-se entre o ternário divino e superior - do qual é o Filho de onde provém o ternário espiritual das suas próprias faculdades, ou de seus três discípulos, ele descobre em si mesmo o quadro universal de todas as regiões, das leis de ação e reação que agiram para a emanação do homem e que agem diariamente para sua santificação e sua glorificação. E heis os tesouros que se desvelam aos olhos do Novo Homem.

Não é de surpreender que os três discípulos do Novo Homem, ao vê-lo assim todo radiante de glória, fiquem fora de si e que um deles lhe diga: Senhor, estamos bem aqui. Fazei, se vos agradar, três tabernáculos: um para vós, um para Moisés e um para Elias. E quando a nuvem vem cobrir aos seus olhos esse ternário superior, e a voz que sai dessa nuvem se faz ouvir, não é de surpreender que os três discípulos sejam tomados de um grande temor e voltem seus olhos para o chão. Mas o Novo Homem se aproximará deles e, tocando-os, lhes dirá: Levantai-vos e não temais; então eles levantarão os olhos e verão apenas o Novo Homem, porque o ternário superior não pode habitar a terra.

Ordenará a eles que não falem dessa visão a ninguém, até que ele tenha ressuscitado entre os mortos. Porque se os seus olhos tiveram tanta dificuldade em suportar o brilho, eles que haviam sido preparados, como ouvidos impuros e grosseiros suportariam o discurso? É suficiente, depois dessa transfiguração, que os discípulos do Novo Homem o considerem como o Filho da divindade e que se dediquem ao seu serviço com tanto zelo como se estivessem na presença de um Deus. Instrução que o Novo Homem não pode imprimir fortemente neles para mantê-los na vigilância e para que, trabalhando em combinação com ele, empreguem continuamente seus esforços no sentido de conservar a moderação, a ordem, a atividade e o amor em todas as suas obras e em todos os seus movimentos a fim de que ele com eles, e eles com ele, manifestem cada vez mais, e numa representação sempre mais perfeita, essa unidade suprema, da qual o Novo Homem e suas três faculdades são a imagem.

Com efeito, sem essa transfiguração interior do Novo Homem, só pelas imagens da inteligência é que conhecemos a fonte de onde nos originamos, as ligações que tínhamos com ela primitivamente, as ligações que conservamos depois da queda fatal e as que são de novo restabelecidas através das duas alianças, e, por conseqüência, as maravilhosas esperanças que podem ainda nos preencher.

Mas uma vez que a nossa própria transfiguração nos tenha elevado acima da nuvem, a nuvem pode, em conseqüência, recobrir a montanha. Não perdemos a lembrança do que se realizou diante de nós. Tornamos a descer cheios de respeito pela essência que nos anima, cheios de amor e de adoração por aquele que fez aquilo que somos.

Guardamos nosso segredo na parte mais profunda do nosso coração, convencidos de que nessa solidão interior podemos honrar melhor o soberano do que se suas riquezas e seus tesouros fossem revelados a olhos indignos deles.

Dizemos a nós mesmos que se estivermos sós sobre essa montanha quando ele vier nos encontrar, para nos penetrar com as suas vivificantes influências, transfigurando todo o nosso ser com a sua atividade divina, ele poderá nos encontrar ainda em todos os lugares, mesmo que estejamos sozinhos, pois nossa existência, não sendo mais do que o fruto desse ternário eterno e criador, desde que existimos, é uma prova de que esse ternário está em ação em nós, sobre nós, ao redor de nós, ainda que não o conheçamos visivelmente. É então que começamos a ser inscritos no livro da vida, nesse livro do qual nosso próprio ser interior deve formar e produzir as letras, depositando-as nas mãos da sabedoria para que ela as empregue, segundo os seus planos e segundo os seus projetos, e para que lhes transmita a vida, os sentidos e a inteligência aos quais ele julga que possam ser suscetíveis para o progresso da obra.

Também, é só depois da transfiguração do salvador que o Novo Homem pode gozar sua transfiguração pessoal; e, da mesma maneira que não conhecemos nosso ser de um modo intuitivo, sem essa transfiguração pessoal não compreenderíamos se a transfiguração do salvador não nos tivesse dado a conhecê-la.

Sim, divino e exclusivo libertador dos homens em escravidão, seria preciso que fosses transfigurado para que os tesouros divinos se revelassem aos nossos olhos, enchendo-os com seu brilho imortal. Sem ti, não teríamos conhecido nossa origem, a obra, a caridade, a fonte de vida. Sê bendito para sempre, por todas as gerações e em todos os séculos! Que todas as vozes celebrem o salvador universal, o cordeiro sem mácula interior e exterior, aquele cuja natureza é animada pela própria vida, aquele que nos abriu os canais das duas alianças, os únicos pelos quais podemos recobrar a explicação do nosso ser.

A criança que acaba de nascer, quando poderá desfrutar da visão? Quando a luz souber se fazer dia nela e insinuar aos seus olhos uma porção dela própria, à qual vai reagir daí para frente. Até lá, ela ficará nas trevas. Acontece o mesmo com todos os outros sentidos, com relação ao poder que deve animá-los. Acontece o mesmo com todos os sentidos do nosso espírito e do nosso coração. Ficaríamos para sempre no entorpecimento de todas as faculdades do nosso ser espiritual, se o divino libertador que foi glorificado não tivesse dissolvido todos os vapores maléficos que obstruíam todos os nossos órgãos. Nada de inteligência, nada de tato, nada de movimento, nada de vida em nós, se esse supremo agente não tivesse lançado, em cada um dos nossos órgãos interiores ocultos, um dos seus raios vivificantes, sobre os quais quer dirigir constantemente sua ação, para nos manter, com ele nessa divina atividade, de que ele é a fonte e da qual fomos chamados a partilhar com ele.

52

Virtudes diversas e numerosas nos cercam e procuram penetrarnos. Cada uma delas dirige seu sopro salutar a um dos nossos órgãos, do mesmo modo que por nossa palavra transmitimos àqueles que nos escutam os diferentes impulsos que nos animam. Uma dessas virtudes, que é superior a todas as outras, dirige seu sopro divino ao próprio centro do nosso ser e, pelo órgão da palavra, do qual ela é o princípio, transmite para nós sua própria vida, seu próprio amor, sua própria luz: Felipe, aquele que me vê, vê a meu Pai. (João 14:9). Essa é a conversa que o Novo Homem pode ter com seus discípulos, a exemplo do salvador. Pois, como o salvador, ele busca transmitir sua própria vida, pelo sopro da sua boca e pelo órgão da sua palavra, a todas as faculdades do seu ser.

Mas esse Novo Homem deve multiplicar e variar inúmeras vezes sua ação e sua palavra, segundo as diferentes regenerações que precisa realizar em si próprio. Por isso, ora ele se mostra cercado de glória e de poder, enchendo os povos de admiração pelo seu nome e pela grandeza das suas obras, ora se mostra como uma vítima devotada a salvação do povo, e como um ser de reprovação exposto a todos os impulsos e todos os desprezos dos seus inimigos. Ora ele se mostra como o amigo, o sábio instrutor dos seus irmãos, a quem distribui os diversos preceitos que lhes convêm para se guiarem em sua jornada. Ora se mostra como o homem de dor, e mesmo como o homem de pecado, empregando suas lágrimas e seus lamentos para comover a misericórdia.

É isso o que torna tão mutáveis as características e as nuanças que devem manifestá-los aos olhos dos seus. E heis por que ele é irreconhecível aos olhos daqueles que são vivos apenas no exterior. Ele lhes escapa ou lhes parece contraditório, por não ter a monótona uniformidade dos seres materiais que têm uma única ação a realizar e que, por conseqüência, recebem uma única reação, deixando passar em vão, acima e ao redor deles, todas as outras reações que não pertencem, de modo algum, à uma classe inferior e das quais eles sequer se apercebem. Ao passo que o Novo Homem está exposto, ao mesmo tempo, a todas as reações destrutivas, das quais é preciso que ele se defenda, e a todas as reações regeneradoras, pelas quais é preciso que ele se deixe penetrar e às quais ele deve corresponder, e ainda cujos frutos e virtudes salutares ele deve transmitir a todo o circulo particular que o compõe.

É isso também que torna tão variados e tão imperceptíveis os caracteres dos escritos que anunciam o salvador e onde ele ora instrui, ora se oculta, ora se lamenta, ora se felicita por seus triunfos, ora se oferece como vítima, ora se dá como exemplo ao homem e às nações.

O homem de regeneração parece ter sido concebido sob o reino patriarcal. No berço, parece ter estado nos tempos de Davi, quando recebe um alimento adequado a sua idade. Na adolescência, parece ter estado sob os profetas, quando seu alimento se torna mais forte e os seus movimentos mais determinados. Na idade adulta, sob o salvador, que o liberta e o emancipa dos entraves da menoridade. É encargo da morte pô-lo na categoria dos anciãos e dos príncipes do povo, para obter deles a veneração e os respeitos que são devidos aos sábios idosos.

Foi por essa marcha sempre crescente que o salvador desenvolveu o curso das suas manifestações sobre a terra. A lei e os profetas duraram até João. Depois desse tempo o reino de Deus foi anunciado e ele permitiu que se o tomasse pela violência. O cordeiro sagrado havia sido descrito pelos sacrifícios da antiga lei. O eclesiástico e os profetas nos indicaram que ele deveria trazer a paz à terra. João foi o primeiro a reconhecer claramente o salvador como cordeiro que vinha tirar os pecados do mundo (como dissemos na seção 41). Foi por sua boca que se anunciou e assinalou as nações.

Esse mesmo João nos mostra, no Apocalipse, esse cordeiro sob um aspecto ainda mais vasto. Ele no-lo mostra imolado depois do começo do mundo; ele no-lo mostra abrindo os sete selos, sentando-se no trono de Deus, celebrando as bodas divinas e servindo de lâmpada e de luz ao templo do Senhor.

Homens curiosos e ávido de inteligência, segui nessa corrente a progressão da misericórdia, e vede em que abundância de paz e felicidade tudo deve terminar. Mas não esqueçais que aqueles que seguiram o modelo em seus sacrifícios, em suas humilhações e em sua penitência, serão os únicos que poderão seguí-lo um dia em sua glória.
Não temo assegurar-vos de que é nas escrituras que encontrareis o guia esclarecido que vos fará percorrer todos os caminhos dessas diversas progressões e todas as maravilhas que essas diversas épocas encerram. Conjugai, portanto, continuamente, vossos princípios imortais com as verdades das escrituras santas e vereis crescer, em vós e ao redor de vós, numerosas gerações.

Sois esse esposo beneficiado com todas as vantagens da fortuna, pois tem o ouvido e os favores do seu mestre, e a escritura é uma esposa sempre radiante das graças, da beleza e da juventude. Que delícias se comparam às que são reservadas à ternura dos vossos dois corações?

Podereis encontrar nas escrituras esse espelho interno no qual deveríamos estar constantemente nos olhando. Podereis encontrar uma representação fiel dessas regiões pacíficas que deveriam ter sido sempre vossa morada. Encontrareis aí essas fontes vivas que se juntam continuamente contra os obstáculos que a iniqüidade lhes opõe, derrubando-os e triunfando sobre eles. Encontrareis o maior segredo que pode ser comunicado ao homem neste vale de lágrimas: aprender a abrir vossas próprias faculdades a essas virtudes benéficas que vos cercam e vos procuram a todo instante e, assim, serdes penetrados mais profundamente, mais universalmente, de forma que, à medida que essa união se torna, mais habitual para vós, não abandonais mais a esfera dessas virtudes, construindo para vós uma morada celeste e durável sobre a terra.

Nelas aprendereis como serão tratados um dia vossos inimigos, ou essa Babilônia que, segundo Isaías, 47: não teve misericórdia para com seus cativos, que aumentou o seu jugo sobre o velho, e que disse: eu dominarei eternamente... não há quem me veja... Sou a única e depois de mim não haverá outra. Vereis que essa filha dos caldeus não será mais chamada a rainha do mundo, que os dois males dos quais ela se acreditava livre, a viuvez e a esterilidade, virão até ela ao mesmo tempo, num só dia, e ela não saberá de jeito nenhum de onde lhe vieram todos esses males. E será dito a ela: "Fica com os teus encantadores, com a multidão dos teus malefícios, em que tem trabalhado desde a tua juventude, verifica se acaso te servirão para alguma coisa e se podes te tornar mais forte... que se apresentem e te salvem esses agoureiros do céu, que contemplavam os astros e contavam os meses para poder te anunciarem as coisas que te deveriam acontecer. Eles tornaram-se como a palha, o fogo devorou-os, não livrarão mais teu espírito das chamas. Assim perecerão todas as artes em que empenhaste tanto trabalho. Aqueles que foram os teus agentes desde a juventude seguiram cada um o seu caminho. Não há ninguém que te possa salvar".

Mas vós, homens de desejo, que seguis os passos do Novo Homem, tereis o discernimento de preferir, aos encantadores, o caminho simples das escrituras, que ligam naturalmente o homem a Deus. Quem poderia dar conta dos feitos produzidos por operações forçadas? São concebidos pela violência, devem desaparecer quando o reino da paz vier se estabelecer. Mas, antes disso, será preciso um tempo para que desapareçam e para que os agentes possam entrar novamente na rota dos frutos naturais.
Essa espera será dolorosa porque manterá o homem na privação. Felizes ainda se esses frutos forem prematuros, viciados em seus elementos ou picados por insetos maléficos!

53

Se perguntares ao Novo Homem quando é que tu poderás, como ele desfrutar das consolações de que te fala incessantemente, ele te responderá: quando abrires teu ouvido aos gemidos daqueles que suspiram pelas veredas. As vozes de todos esses homens de desejo formarão uma longa cadeia de sons lúgubres e dolorosos, que é como o anúncio dos bons dias de Israel. Essa longa cadeia, o Novo Homem mediu-a em toda a sua extensão, e essa medida encontra-se no intervalo do sábado setenário ao sábado octonário ou dominical.

O Filho de Isaías era o modelo desse sábado, não somente porque ele era o último dos oito Filhos do seu Pai, mas ainda porque pôs cinco pedras em sua funda, atacou e venceu o gigante. Ele não queria servir-se de armas estrangeiras, pois elas embaraçariam sua marcha e seus movimentos, que deveriam ser livres como os do espírito e da santidade.

Homem de desejo, dizei então com o Novo Homem, sem cessar: Senhor, a palavra cujos sons se elevam até ti é a que revelas no homem, descendo ao fundo do seu ser. Bates e te insinuas nas bases do seu templo e fazes saírem dele os gritos de louvor, de júbilo ou de dor, de acordo com as substâncias que deixou acumularem-se ou desenvolverem-se nele e que se expõem à tua ação.

Ai, é preciso antes que o teu fogo seque o rio das palavras mortas e sem vida! Esse rio corre sobre um leito pestilento, do qual esconde o fundo aos nossos olhos, tornando-se assim ainda mais funesto. Flui sobre o leito das palavras mortais, cujos sons só se propagam em direção oposta à da verdade.

Por que as águas do rio das palavras mortais não absorvem ao menos os vapores das palavras mortais? Porque ele se deixa infectar, espalhando, em seguida, essa infeção na atmosfera. E é nesse triste e infeliz centro de horror e desgraça que o homem é, contudo, obrigado a pagar as retribuições legítimas que são devidas ao seu soberano.
Mas enchei-vos de confiança, vós todos, homens de espírito, lembrai que aquele que quis regenerar o Novo Homem pagou ele próprio essa retribuição ao príncipe, e pagou-a a todos os que se uniram a ele no espírito da justiça e da eqüidade do qual ele deu o exemplo. Pois não disse ele aos seus discípulos: Ide ao mar e lançai vossa linha; e o primeiro peixe que ela fisgar, recolhei-o e abri-lhe a boca. Encontrareis aí uma moeda de prata de quatro dracmas. Tomai-a e dai a eles por mim e por vós?

Que mar era esse? É esse abismo no qual o crime primitivo nos mergulhou a todos. Que linha era essa que se deveria lançar? É esse raio de misericórdia e amor, que a mão do pescador não teme, do alto da sua sede eterna, fazer descer até esse mar tão distante dele e tão tenebroso. Qual era esse primeiro peixe que se deveria recolher? Era o velho homem que trazia em suas entranhas o tesouro com o qual podemos pagar o tributo. Que moeda de prata era essa, de quatro dracmas, que se deveria encontrar na boca do peixe? É essa palavra eterna da qual o quaternário do homem é a imagem. A única que poderia regenerar a nossa e pagar, por ela como por nós, a César o que era devido a César.

Homem de paz, heis sobre o que deve repousar a vossa confiança. O dracma foi reencontrado. Não vos separeis de modo algum daquele que a fez sair do fundo do mar e estareis sempre pronto a cumprir as vossas obrigações, porque ele trouxe o valor e a vida ao que estava morto e sem virtude em vós. O Novo Homem também reencontrou esse dracma, agarrou avidamente a linha que se lhe apresentava, saiu do fundo do abismo, satisfez os direitos da justiça. Não hesiteis, de jeito nenhum, em seguir o seu exemplo.

Mas não façais, em seguida, como tantos infelizes que deixaram os sinais desse dracma se apagarem pelos poderes da lima contundente. Seu numerário não traz mais a efígie do príncipe. Esse numerário não pode mais circular e lança o homem na penúria mais insuportável. Procurai saber, ao menos, se não vos restam meios de escapar da morte. Escutai.

A efígie está apagada e o vosso numerário não tem valor. Mas o metal não permanece ainda? Confiai-o ao hábil artesão encarregado pelo soberano de inscrever nesse numerário todo o seu valor. Ele imprimirá de novo a efígie do príncipe e podereis, em seu nome, buscar vossa subsistência e pagar os legítimos tributos do Estado.
Podeis abreviar essa obra durante vossa vida terrestre. Após o seu término, sereis obrigados a esperar e suportar toda a duração do decreto, para que em vós a morte ou o numerário retomem sua vida, seu caráter e seu valor.

É uma água fecunda, que vos pode ajudar a prevenir essas infelicidades. Essa água está oculta em vossa terra, é necessário que caveis profundamente para descobri-la. Mas ela vos aliviará das vossas penas. Essa água não é corrosiva como a do vasto oceano. Não é insossa e insípida como as águas dos rios que fluem sobre o vosso globo. E mais límpida que o éter, mais doce que o mel, mais ativa que as águas mais espirituosas enfim, é mais inflamável que o enxofre e o óleo.

Por sua limpidez, deixa atravessar nela uma imensa quantidade de raios luminosos, que aproximam de vós os objetos mais afastados e vos esclarecem acerca da natureza e do destino de tudo o que vos cerca. Por sua doçura, transmite-vos as afeições mais deliciosas, às quais não podereis encontrar na terra nada semelhante. Por sua atividade, amolece em vós os humores mais espessos, permitindo-lhes a livre circulação, sem a qual vossos dias não vos podem prometer uma longa duração. Enfim, por sua propriedade inflamável, pode, instantaneamente, levar o fogo a todo o vosso ser e pôr em ação todas as vossas faculdades espirituais e todos os órgãos dessas faculdades.

Mas não é somente ao vosso âmbito individual e particular que se limitam as propriedades dessa água tão fecunda. Por sua qualidade inflamável, pode transmitir seu fogo a todas as regiões superiores, pois essa mesma água encontra-se aí em abundância ainda maior. Quando essa inefável união se efetua, a claridade fica ainda mais ofuscante para olhos que não estão acostumados, porque essa claridade torna-se sete vezes maior do que quando se mostrava apenas em vós e ao redor de vós, de acordo com esta profecia de Isaías (30:26): A luz da lua será como a luz do sol, e a luz do sol será sete vezes maior, como a luz de sete dias juntos quando o Senhor atar a ferida do seu povo e curar a chaga que recebeu.

Ide, portanto, cavar cuidadosamente vossa terra, pois ela contém essa água preciosa que vos trará grandes benefícios, pois ela é também o dracma que pode fazer de cada um de vós um Novo Homem.

Mas se ela tem o poder de abrir vossos olhos para os objetos que estão em vós, ao redor de vós e acima de vós, também tem o poder de abrir vossos olhos para os objetos que estão abaixo de vós. É aí que a dor se apodera do coração do Novo Homem.

Homens de Deus, consolai-me, consolai-me, o meu coração está cheio de aflição. Consolai-me, que ele está cheio de dores como o coração dos profetas. Porque ele compreende a vasta extensão do crime, e os abismos se abrem diante de mim. Veja neles as vítimas que aí são imoladas diariamente sobre o altar da iniqüidade. Vejo esses infames carrascos degolarem eles próprios as vítimas infelizes que seduziram com a isca dos maiores triunfos e das mais doces consolações. Vejo os auxiliares desses sacrificadores percorrerem todas as veredas da terra para surpreenderem novas presas e trancá-las na caverna do leão feroz, e não vejo ninguém que os defenda e os livre da morte. Homens de Deus, que sejam vossas lágrimas a correr em todas as minhas veias em lugar do meu sangue. Dai-me a vossa força e irei prender todos esses profetas de mentira que se apoderam do espírito dos reis de Israel, e, a exemplo de Elias, que sacrificou os falsos profetas de Baal e de Astarte, eu os precipitarei na torrente de Cison. Espezinharei os habitantes de Edom; pisarei neles como em um lagar, e o seu sangue esguichará sobre minhas vestes e tingirá de vermelho a fímbria das minhas roupas. (Isaías 63)

Príncipes da mentira, quando o profeta entra em fúria, para a glória e o serviço do seu mestre, dizeis que ele é insensato. Como poderia o profeta conservar seu sangue frio, sua calma e sua razão quando o seu coração está dilacerado pelas angústias que se acumulam nele como em uma torrente? Mas o delírio do profeta desconcerta a sabedoria dos príncipes da mentira. Eles não podem conseguir a homenagem dele. Não podem fazê-lo oferecer o incenso aos seus projetos ambiciosos e se retiram cheios de cólera e de confusão.

54

O Novo Homem é semelhante a uma árvore sobre a qual a pomba vem pousar com alegria, após ter voado até o limite de suas forças para buscar alimento aos seus Filhotes. O Novo Homem também se assemelha à trombeta que se faz soar nas praças e nos lugares elevados para chamar o povo à prece. Porque o Novo Homem é o lugar de repouso da verdade e está encarregado de exortar diariamente o seu próprio povo ao sacrifício; está encarregado da manutenção de todos os canais da cidade e de cuidar para que as águas vivas possam circular neles livremente. Está encarregado de advertir seus concidadãos de que a cidade que habitam é uma cidade santa, na qual não se admite nenhum mendigo, nenhum covarde, nenhum preguiçoso, pois não há ninguém que não possa encontrar legítima e abundantemente a sua subsistência.
Porque se um desses habitantes crê não ter as forças necessárias para, sozinho, cumprir sua tarefa e conseguir prover suas necessidades, pode se dirigir a um dos seus irmãos, pode se unir a ele, e essa união não lhe deixará nada a desejar, pois está escrito: eu vos digo ainda que se dois dentre vós se unirem sobre a terra, qualquer coisa que pedirem lhes será concedida por meu Pai que está no céu.

Ora, se o homem não precisa procurar mais longe do que nele próprio para encontrar a cidade santa com os seus habitantes, com mais forte razão poderá encontrar em si mesmo esse segundo, esse concidadão ao qual se pode unir em nome do Senhor, para lhe pedir tudo aquilo de que o seu espírito tem necessidade. Com freqüência, essa reunião será suficiente para lhes proporcionar auxílios inesperados, com os quais ficarão totalmente surpresos. Assim quando o seu barco for agitado por um grande vento, o salvador caminhará até eles sobre o mar e, ao ver o seu temor, lhes dirá: sou eu, não temais. E, ao entrar no barco, este se conduzirá sozinho ao lugar onde eles queriam ir.

Somente o homem mentiroso e covarde teme se lançar sobre a praia para dirigir-se às regiões longínquas. Ele diz a si mesmo o mar é tão grande! Os ventos provocam tormentas tão fortes! Ele está tão cheio de escolhos! Devo me arriscar a naufragar e me afogar? Devo me arriscar a ser vencido pela tempestade, a ponto de ser obrigado a me refugiar em algum porto inimigo? Não, esperarei prudentemente que os ventos se acalmem. Ficarei ancorado até que o tempo me permita uma navegação favorável.

Coração do homem, és tu mesmo esse mar tormentoso e coberto dos destroços de todos os naufrágios que os navegadores sofreram desde o princípio. Quantas riquezas não afogaste em teu seio! Quantos homens de desejo não encontraram em ti o seu sepulcro, em vez de um asilo e um lugar de consolação! Quantos animais vorazes não vagueiam incansavelmente em tuas paragens à espera de sua presa? Sim, enquanto ofereceres ao navio apenas um elemento tão pérfido e um destino tão funesto, será melhor que ele fique ancorado a que se exponha a uma perda certa.

Coração do homem, torna então o mar mais calmo e mais seguro. Destrui todos os escolhos e apressa-te a lançar o navio e a soltar as velas, porque as nações estrangeiras esperam impacientemente tua chegada para obter sua subsistência, e és tu que as manténs na privação e na miséria.

Mas o homem não se contentou em assustar-se com a empresa. Ele se negou a levantar âncora mesmo quando os ventos estiveram os mais favoráveis, permanecendo indiferente à indigência dos outros povos e ao que ameaçava a ele próprio se não cumprisse sua missão.

Quantas vezes, escravo infeliz e agrilhoado, quantas vezes não levaste contigo uma boa lima, com a qual terias podido romper os ferros e entrar novamente nas regiões da liberdade, para seres útil à tua pátria! Em vez de aproveitares esses recursos, te preocupaste unicamente em medir as dimensões dos teus grilhões e em fazer cuidadosas e sábias descrições dos metais que os compõem. E de tal maneira te encheste dessas análises fascinantes, que deixaste de acreditar que tinhas outra ocupação e, talvez mesmo, deixaste de acreditar que eras escravo.

Desvia-te dessas ocupações que te enganam. Toma da lima quando ela te for apresentada e não adia o instante de te servires dela, porque se todos os dias limares uma risca dos teus grilhões, isso será mais benéfico do que descrevê-los.

O que fez o Novo Homem? Ele se levantou todos os dias com o desejo e a resolução de erguer um altar a uma virtude e lhe oferecer assiduamente sacrifícios, até que tivesse recebido dela os testemunhos de seu interesse por ele. Não se deteve nesses testemunhos, perseverando em suas assiduidades até que essa virtude tivesse por assim dizer, se identificado com ele, e que ele próprio se tivesse aclimatado e casado com ela. Foi assim que fez germinar nele os frutos vivos da verdade, da misericórdia e da justiça, e que estabeleceu no centro do seu ser a consumação da santificação e da sua liberdade.

Porque ele não se desesperou em ver concluídos os seus trabalhos, e quando se apercebia de que lhe faltava uma virtude, punha-se em ação para se apoderar dela. Como um homem que percebe uma fenda em sua casa não se permite descanso até que essa fenda tenha sido fechada. Isto é, ele se ocupou apenas em reconstruir essa antiga casa que habitamos outrora e cujo recinto era formado pelas virtudes do espírito e do nome do Senhor, que nos mantinham protegidos de todos os ataques dos nossos inimigos. É também porque habitávamos outrora esse recinto formado pelas virtudes do espírito e do nome do Senhor, que éramos bastante espiritualizados, para ser cada um dos sinais do Senhor. Porque todos os raios do espírito e do nome do Senhor se reuniam em nós, fazendo-nos refletir a sua imagem.

Essa é ainda nossa lei, não obstante a nossa queda, e tal seria ainda a nossa esperança se, como o Novo Homem, nos levantássemos todos os dias com o desejo e a resolução de erguer um altar a uma virtude e de não abandonar a obra até que esse altar estivesse consagrado e as cerimônias santas estivessem em plena atividade.

Mas o adversário, pelos conselhos do qual caímos desse posto sublime, não esquece de nada que nos possa impedir de subir novamente até lá e de nos espiritualizar de maneira bastante característica para nos tornar um dos sinais do Senhor. Assim vemos que a tarefa mais consoladora desse adversário é opor-se a que os homens se tornem os indícios constantes e significativos da verdade. Cuida para que essa região ilusória na qual ele reina, tenha como característica dominante apenas o vago, a incerteza e o vazio. Mais que isso, ele se esforça para transformar todos os homens em sinais característicos da mentira, das trevas e da iniqüidade.

Pois quantos sinais adulterados, enganosos e abomináveis se apoderaram do homem! Quantos poderes falsos pensam nele, pensam por ele e o fazem pensar contra a sua vontade! Quantos poderes falsos falam nele, falam por ele e o fazem falar contra a sua vontade! Quantos poderes falsos agem nele, agem por ele e o fazem agir contra a sua vontade! E heis portanto esse ser que a divindade deveria atravessar por inteiro e da qual ele deveria ser, ao mesmo tempo, o pensamento, a palavra e a operação. Heis esse ser que é a pedra fundamental sobre a qual o Senhor disse que queria edificar sua igreja. Heis esse ser que, à semelhança do salvador, que é seu irmão, poderia dizer como ele: eu sou a luz do mundo. (João 8:12)

Em vez de cumprir um tão nobre destino seu espírito, seu coração, sua alma, toda a sua pessoa é continuamente o órgão e o escravo dos sinais estranhos que dirigem todos os seus movimentos. Ele é como esses reis cujas faculdades estão embotadas e enfraquecidas, que são apenas o joguete perpétuo das opiniões dos seus ministros passionais.

Mortal infeliz, não esquece então que a divindade deve atravessar-te por inteiro. Antes do teu crime ela passava somente com glória, ao passo que hoje só pode passar com humilhação. Aprende a reconhecer ao menos, por esse meio, a grandeza da tua origem e dos teus direitos. Aprende a reconhecer o teu valor, considerando que Deus tornou-se teu Filho a fim de se tornar o teu Pai uma segunda vez. Aprende a reconhecer a dignidade e a santidade das tuas alianças, e se não estiveres pleno de respeito por ti mesmo, por te desviares dos caminhos da justiça, volta a eles prontamente pela honra e pela veneração àqueles a quem pertences.

Trata de te tornares novamente um dos sinais do Senhor, nem que seja para derrubares as paredes da tua casa, como Ezequiel, e trazeres, como ele, o rosto coberto, para a instrução do rei e do teu povo prevaricador. Talvez esse sinal salve algumas almas. E mesmo que não salve nenhuma, receberás sempre a recompensa devida ao fiel servidor que buscou a glória do seu mestre.

Pensa ao menos na tua segurança. Convence-te de que um grande e súbito incêndio irá tomar tua casa; pensa que esse incêndio deve durar até que não reste o mínimo vestígio da tua habitação, pois ela foi construída pelo mesmo fogo que a queima. Faz então o que se costuma fazer nos incêndios dos edifícios construídos pelas mãos dos homens. Eles jogam os móveis imediatamente para fora, recolhem suas jóias, seu ouro e seus títulos importantes para evitar a miséria que os ameaça.

Joga então para fora, com vigilância e celeridade, teus tesouros mais preciosos, com receio de que se tornem o pasto das chamas. Não perde um só instante. A casa vai desmoronar e pode te esmagar, ou o fogo pode fechar de tal maneira as saídas, que não terás como escapar. É esse o momento de usar tua inteligência e tua coragem. E esse momento deve durar por toda a tua vida terrestre, pois o incêndio não cessará até que o fogo tenha consumido os últimos materiais do edifício.

55

Objetos mentirosos, poderes ilusórios, poderes destrutivos, em vão reunireis vossos esforços contra o Novo Homem. Seu pensamento crescerá apesar de vós. Sua virtude não estará sujeita, de modo algum, a declinar e a ser destruída, como a de todos os seres compostos; ela seguirá a linha do infinito. Quando nosso pensamento tiver decaído por causa do crime, ela terá reencontrado os limites. É onde a linha do infinito se rompe. Afortunados limites em nosso infortúnio! Feliz ruptura! Foi por amor que abreviaste a nossa permanência no abismo. As regiões do universo não são todas elas contíguas? A árvore cujas raízes se ocultam na terra participa, através dos seus ramos, de todas as ações da atmosfera. O pensamento do homem, sepultado nas trevas do seu corpo, por que não participaria de todas as ações da sua atmosfera?

Tristes rebentos da posteridade humana, vós sois todos solidários. As dores dos vossos irmãos não vos poderiam ser estranhas. Se eles estiverem na atmosfera corrompida, suas influências se transmitirão até vossa morada. E tendes, então, a dupla tarefa de vos defender da corrupção e de buscar o vosso crescimento.
Onde estão os que, do seio mesmo da sua prisão, conseguiram o poder de purificar a atmosfera e levar saúde aos seus irmãos? Onde estão os que têm os olhos abertos para o abismo e que usam a prece para arrancarem daí os infelizes?

Consolai-vos homens de paz, não estais mais separados daqueles vossos irmãos que habitam uma atmosfera pura. A morte somente separa os maus. Cabe a eles esperar que se lhe tragam auxílios. Porque ao lhes tirarem o invólucro de mentira, tiraram o que era tudo para eles. Lembrai-vos da parábola do rico mau. Ele desejou que Lázaro apenas mergulhasse o dedo nos seus abismos para temperar-lhe o ardor devorador esse alívio lhe foi recusado. Mas o homem justo não fica um instante sequer sem que o dedo de Deus mergulhe na sua atmosfera. Assim também com a espiga no meio do campo, que vê impassível a foice do segador tudo derrubar ao redor de si e se aproximar para derrubá-la também. Ela sabe que saindo dessa terra entrará na atmosfera da pureza, e que lá os olhos mais penetrantes, ainda que os do ímpio, a examinarão com cuidado, para preservá-la e ajudá-la sem ela saber.

A criança no berço não conhece a mão que lhe dispensa cuidados e o seio que a alimenta. Apesar da sua fragilidade e da sua ignorância, ela não está abandonada, nem sente falta de nada. Poderíamos estar mais abandonados do que ela? Ela não rejeita a mão que cuida dela, nem o seio que a alimenta. Não precisamos de outra ciência que a sua. Heis por que está escrito: "Se não vos tornardes como crianças pequenas, não entrareis no reino dos céus. Aquele que se humilhar e se tornar pequeno como essa criança será o maior no reino dos céus, e aquele que a receber em meu nome estará recebendo a mim".

É por isso que o Novo Homem mergulha sem cessar em sua humildade profunda e diz com Davi (salmo 43:16): "Tenho a minha confusão todo o dia diante dos meus olhos, e a vergonha que transparece em meu rosto cobre-me inteiramente... Nossa alma está humilhada até o pó, e o nosso ventre está como que colocado à terra. Levantai-vos, Senhor, em nosso auxílio e livrai-nos pela glória do vosso nome".

Ele lhe dirá em sua santa confiança: "Senhor, não permitais que os vossos inimigos nos tratem como trataram outrora a cidade de Sión. Essa cidade que chamavam de repudiada e acerca da qual diziam: é essa Sión que não tem mais quem a procure? "(Jeremias 30:17)

Vós dizeis ao povo escolhido: "Mas um dia todos aqueles que vos devoram serão devorados. Todos os vossos inimigos serão levados ao cativeiro; aqueles que vos destroem serão destruídos; e entregarei ao saque todos aqueles que vos saqueiam". Se prometestes tratar favoravelmente vosso povo e seu templo que a vossos olhos era apenas um templo temporal e figurativo; se prometestes fazer retornarem os cativos que habitavam as tendas de Jacó e ter compaixão das suas casas; se dissestes: a cidade será reconstruída sobre a colina e o templo será erguido novamente da forma como era antes, que esperança não deverá ter então a alma do homem, que é o vosso verdadeiro povo e o vosso verdadeiro templo?... Por isso esperarei sem inquietude e cheio de fé, como Davi (salmo 44:4): vós que sois poderosíssimo apertai vossa espada contra vossa coxa, assinalando vossa glória e vossa majestade.

Ele lhe dirá: não duvido de que consagreis a ação e as obras das minhas mãos, e que as minhas mãos fiquem cheias pela abundância da justiça e pelo zelo do vosso serviço. Não duvido de que consagreis a ação interior do meu desejo e do meu amor, e que eles se tornem semelhantes ao vosso desejo e ao vosso amor. Não duvido de que consagreis a minha inteligência e a minha concepção, e que os torneis próprios a receber em sua pureza os vivos raios da vossa luz e da vossa verdade, pois fizestes a alma do homem para ser o vosso caminho e o vosso órgão. E por mais suja e impura que ela possa ser, não evitastes mergulhar em suas sujeiras para purificá-la e após tê-la penetrado com vossa humilhação e vosso sofrimento para penetrá-la com vossa alegria e vossa glória.

E vós, homens cegos, homens desviados, se vos restasse o mínimo vestígio de sentimento pela natureza do vosso ser e pelo destino dele, não verteríeis lágrimas de sangue pelas vossas insensibilidades passadas? Não seríeis atormentados pela vergonha de haver acumulado na via do Senhor tantos escombros e tão grandes obstáculos, e não seríeis tomados pelo desejo de poupar ao Senhor essas terríveis e violentas provas às quais expusestes o seu amor?

Heis esses poderes ilusórios, esses poderes destrutivos do qual o Novo Homem se separou e dos quais também vos deveis separar, se quiserdes, como ele, tornar-vos os servidores e os amigos do Senhor, em vez de seus adversários. Aprontai-vos para a ação divina; ela só vos pede que não vos oponhais a ela, e por esse simples abandono da vossa parte, ela vai se entregar a vós inteiramente e deixar em vós os testemunhos vivos do seu zelo. Ela vai se estender a todos os canais do vosso ser e se mover em vosso espírito, como a natureza se coloca em vosso ser passageiro e sensível.

É esse movimento da ação divina que preparou o nascimento do Novo Homem, e é também esse movimento da ação divina que o realizou. Pois não há nada na ordem das coisas do espírito que o movimento da ação divina não deva governar. Esse nascimento do Novo Homem foi para ele como o dia que Abraão deseja ver com ardor, que ele teve a felicidade de ver e pelo qual se regozija (João 8:56), e é esse o significado desta palavra do salvador aos seus discípulos (Lucas 10:24): Eu vos afirmo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes e não viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram. Porque, da mesma forma que ninguém conhece o Filho a não ser o Pai; nem o Pai senão o Filho, ninguém conhece o Novo Homem a não ser a ação divina, nem a ação divina senão o Novo Homem, ou aquele a quem ele deu o poder de revelá-la.

Com efeito, essa ação divina e o Novo Homem estão unidos pelos laços mais indissolúveis. Ele não pode nada sem ela, pois ela é a plenitude universal, mas ela não pode nada sem ele, pois lhe é o seu agente predileto. É por isso que ele pode dizer: o meu Pai colocou todas as coisas nas minhas mãos. Mas se ele se regozija de que o seu Pai tenha colocado todas as coisas em suas mãos, é maior porque todos os espíritos se submetem a ele porque o seu nome está escrito no livro da vida. É porque aquele que o escutar, escutará ao seu Pai. É porque é tal o ardor do seu zelo pela glória do seu Pai celeste, que ele não percebe nenhuma perspectiva mais consoladora que a de manifestar as maravilhas desse Pai celeste que o criou e o cria continuamente. Por isso, pelo simples brilho da luz pela qual brilha esse Novo Homem, a morte e o nada desaparecem em suas trevas.

É então que ele explicará o nome do Senhor, fazendo brilharem as maravilhas. Pois essas maravilhas se concentraram no nome do Senhor depois do momento fatal em que esse realizou a concentração universal. Mas o nome do Senhor assim concentrado foi posto nas mãos do Novo Homem a fim de que o abrisse e espalhasse os seus perfumes nas regiões preparadas para recebê-los, e para que, pelo desenvolvimento desse nome, ele destruísse as barreiras do crime, substituindo-as pela ordem, pela moderação e pela perfeição.

O Novo Homem tem também o poder de explicar o nome do salvador, pois ele não pode explicar o nome do Pai sem explicar o nome do Filho. Além disso, abrindo esse nome, ele verterá as consolações em todo o seu ser e em sua própria terra, da mesma forma que esse nome verteu as consolações na terra universal.

O Novo Homem explicará também o nome do espírito, pois ele não pode explicar o nome do Pai e o nome do salvador sem explicar o nome daquele que é a sua verdadeira e essencial realização. E é pela explicação desse nome tríplice que se tornará o fiel servidor do senhor, pois ele jamais se dedicará à explicação ativa desse nome tríplice sem estar possuído por um temor santo de que os canais do seu ser não estejam suficientemente purificados para que a verdade passe através deles sem provocar tormento e dor.

56

Heis o quadro dos degraus que o Novo Homem pode subir em direção ao trono da glória. O seu ser corporal é mantido em harmonia e atividade por seus elementos, os elementos são operados por seus poderes, seus poderes são dirigidos pelos espíritos das regiões, os espíritos das regiões são estimulados à sua obra pela alma sensível e desejosa do Novo Homem, sua alma sensível e desejosa é ativada pelo espírito santo. A alma divina do Novo Homem recebe um forte impulso, que é o aguilhão do fogo e da verdade. Daí ela chega ao respeito e ao amor do Filho, de onde se eleva ao santo temor do Pai, que a mantém inteira na sabedoria, no zelo e na vigilante operação, até que seja reintegrada na unidade indivisa, onde conhecerá somente o amor, que é a característica essencial e universal daquele que é Deus.

O Novo Homem sobe esses degraus com um estremecimento contínuo, porque ele sabe que o fogo do espírito pode inflamar até nossas substâncias más, e que nada se compara às precauções que devemos tomar para evitar que Deus entre em nós antes de termos eliminado todas essas substâncias falsas e suscetíveis de se inflamarem para nossa destruição, em vez de se inflamarem para nosso verdadeiro aperfeiçoamento. Além disso, se não resultar sempre num funesto abrasamento, pode resultar ao menos num terrível perigo: o de não receber a ação do espírito em nós em sua abundância e plenitude. Se quiserdes ser perfeitos, disse o salvador ao jovem do evangelho, ide, vendei o que possuís e dai-o aos pobres, e tereis um tesouro nos céus; depois vinde e segui-me.

Essas palavras recaem, com efeito, sobre todas as substâncias estranhas ao nosso ser, que devemos vender se quisermos ser perfeitos, isto é, se quisermos que o espírito circule em nós em sua plenitude e em sua perfeita abundância. E então, sem sequer sair deste mundo, temos um tesouro nos céus, ou talvez os próprios céus suscitem seus tesouros em nós e nos tornem parte das suas riquezas vivas, fazendo-nos experimentar continuamente sua estimulante atividade.

Bem-aventurado aquele que comer o pão do reino de Deus!, disse um dos que se encontravam um dia à mesa com o salvador (Lucas 14:15). Mas o que respondeu o salvador para lhe mostrar quão poucos homens sabem não somente buscar o espírito em sua plenitude, mas mesmo deixar que ele os penetre quando se manifesta, e vender o que tem para dar-lhe lugar? Ele lhe conta a parábola do festim e da grande ceia para a qual um homem havia convidado várias pessoas. Relata como todas essas pessoas recusaram o convite sob os mais diversos pretextos. Um por uma casa que acabara de comprar, outro por uma mulher que acabara de desposar etc. Conta, então, como ordenou ao seu servidor que fizesse entrar os pobres, os estropiados, os cegos e todos aqueles que encontrasse pelos caminhos e cercados, porque ele queria que sua casa ficasse cheia.

Ele vai mesmo, uma outra vez, até elogiar a habilidade dos Filhos dos homens, para a vergonha dos Filhos da luz, que não sabem, como estes, aproveitar suas riquezas e fazer amigos para os tempos de penúria. Pois se essa economia fosse culpada por suas injustiças, ele seria notável por sua destreza e sua habilidade. E era tudo o que o salvador buscava revelar no espírito dos homens, a fim de que depois de terem feito uso dos dons que estavam à disposição deles, lhes fossem confiados dons mais consideráveis.

Ele nos dá, dessa forma, uma instrução luminosa sobre a conduta que o inimigo geralmente tem com relação a todos os homens. Ele se tornou o ecônomo das nossas faculdades e, em vez de dirigir sua administração para o proveito e a utilidade do mestre, pensa apenas na sua própria utilidade e proveito. Quando então prevê que o mestre vai-lhe exigir prestação de contas e tirá-lo do seu posto, busca se relacionar com pessoas que o recebam em suas casas. Manda vir cada um dos devedores que estão em nós e diz ao primeiro: "Quando deveis ao mestre? Cem barris de óleo? Resgatai vossa dívida, sentai-vos e fazei vivamente uma de cinqüenta". E diz a um outro: "Quanto deveis? Cem medidas de frumento? Resgatai vossa dívida e fazei uma de oitenta".

É assim que esse hábil inimigo se conduz conosco, procurando diminuir nossas dívidas aos nossos próprios olhos, buscando diminuir nossa confiança com benefícios injustos e uma indulgência criminosa e ligar-nos a ele pela nossa fraqueza e pela arte com que cuida de abrandar nossas obrigações. Mas se a justiça é imprescritível, nem ele nem nós podemos jamais fraudar os direitos do mestre, e de acordo com as palavras desse mestre é mais fácil passarem o céu e a terra, do que uma única letra da lei perder o seu efeito. (Lucas 16:17)

Igualmente nos será dito: Infelizes de vós fariseus, que vos assemelhais a sepulcros que não se mostram e que os homens que caminham sobre eles não conhecem. Porque se escutarmos o inimigo, ele cuidará para que mantenhamos, limpo o exterior do copo e do prato, enquanto o interior dos nossos corações estará cheio de rapina e iniqüidade. Ser-nos-á dito: Infelizes de vós, doutores da lei, que dais aos homens fardos insuportáveis e não permitis que recebam qualquer ajuda. Pois pior do que aquele servo a quem o senhor havia perdoado a dívida e que, saindo de lá, estrangulou seu devedor para fazê-lo pagar, cometemos a injustiça de pagar a nós próprios o que não nos era devido e de não pagarmos o que devíamos.

Ser-nos-á dito: Infelizes de vós que construís tumbas para os profetas, e são os vossos Pais que os mataram. Assim testemunhais que consentis no que vossos Pais fizeram, pois eles mataram os profetas e vós construístes sua tumba. Porque nós mesmos serviremos de tumbas para esses profetas, sufocando a voz que eles tentam fazer-nos compreender, e nós mesmos lhes serviremos de assassinos e homicidas.

Ser-nos-á dito: Infelizes de vós que vos apoderastes da chave da ciência e que, não tendo entrado vós próprios, a haveis fechado aqueles que queriam entrar. Porque, semelhantes aos falsos doutores, percorremos mar e terra para procurar em nós aprovadores, sob o pretexto de fazer prosélitos, e quando os tivermos feito, torná-los-emos cem vezes mais culpados do que antes. Porque não apenas não entraremos com eles no espírito da verdade, como os impediremos de entrar em nós, não obstante todas as solicitações que nos fazem.

Novo Homem, vem dissipar essas nuvens sombrias. Nós te vimos há pouco explicar o nome do Pai, explicar o nome do Filho, explicar o nome do espírito, ou seja, desenvolver ativamente todas as maravilhas contidas nesses ricos tesouros. Porque não explicaste ou desenvolveste todos esses tesouros? É que esses tesouros se desenvolveram ou se explicaram por si mesmos em ti, é que fizeram brilhar sobre tua cabeça o sinal luminoso da sua luz, e abrasaram com o seu fogo todo o teu ser; é que eles explicaram e desenvolveram o germe sagrado que te constitui, e trouxeram voz a essa pedra fundamental que está em ti e sobre a qual o eterno Deus dos seres prometeu edificar sua igreja; é que eles trouxeram a voz a tudo o que te compõe, a fim de que tudo o que te compõe possa celebrar a glória do Senhor, à imagem da criatura universal que, em cada um dos seus movimentos, em cada um dos atos da sua existência, manifesta o poder e a gloriosa dominação do eterno soberano dos seres.

O que é que poderia manter a contemplação da majestade do homem, se ele se mostrasse assim explicado e desenvolvido pela ativa influência dos poderosos tesouros dos quais nasceu para ser a fiel expressão e do qual ele está constantemente rodeado? O que é que poderia manter o brilho da majestade de Deus, que estaria nele e que o tornaria como uma palavra universal, espalhando-se perpetuamente desde o oriente até o ocidente, e desde o ocidente até o oriente, a fim de que tudo esteja pleno do nome do Senhor e de que todos os caminhos da vida e da justiça estejam sempre iluminados pela luz e pela verdade, no temor de que aqueles que se apresentem para caminhar por esses caminhos não fiquem expostos às armadilhas e emboscadas do inimigo, que tende apenas a retardar o passo do exército de Israel em direção à cidade santa?

Não mais esqueçamos que essa é a tarefa da posteridade humana e é para isso que o Novo Homem se chama também o Filho de Deus. Porque seria necessário, para que ele se tornasse um Novo Homem, que os poderes supremos se reunissem, se concentrassem em sua força e em sua unidade e resolvessem pronunciar em voz alta o seu nome sobre ele.

Sim, Senhor, é pronunciando o vosso nome sobre o Homem de Desejo que renovareis todo o seu ser, e é pronunciando o vosso nome sobre ele que o tornais de novo vossa imagem, vossa semelhança e vossa propriedade, como essas substâncias nas quais colocamos nosso selo e nossos sinais para que se reconheça aquele a quem pertencem. O homem se torna assim vossa imagem e vossa semelhança porque, ao pronunciar vosso nome sobre ele, reunis também o seu próprio nome em sua essência e em sua unidade, e assim o tornais suscetível de realizar em seu domínio a manifestação das maravilhas que operais na universalidade de todos os reinos e de todas as regiões.

Por isso não fiquem surpresos que o Novo Homem não permita mais um único movimento de acordo com a sua vontade, pois ele é o pensamento do Senhor e não se crê no direito de dispor do pensamento do Senhor.

Não fiquem admirados que a ilusão e as trevas não tenham nenhum acesso a ele, pois ele lhes responde sempre: eu sou um pensamento do Senhor, não posso escutar-vos, não posso entregar-me a vós, porque pertenço aquele do qual sou o pensamento, e se eu dispusesse de mim não seria mais o pensamento dele e, por conseqüência, não seria mais nada.

Não fiquem admirados que todo o seu ser não somente se torne brilhante e luminoso como os astros do firmamento, mas mesmo que fique todo cheio de olhos, como as rodas de Ezequiel, pois deve vigiar tudo o que se aproxima dele, como maus propósitos e aclarar tudo o que chega perto dele com a sede da luz.

Não fiquemos de modo algum admirados, digo eu, que ele tenha um olho sobre cada um dos seus olhos, cada um dos seus ouvidos, cada uma das suas mãos, cada um dos seus pés, sobre o seu coração e a sua língua. Esse é o sinal da sua atividade, da sua vigilância e da sua penetração, é enfim o sal que ele deve, segundo a lei de Moisés, espalhar e misturar em todos os seus sacrifícios.