É uma
verdade, já muitas vezes dita, que embora o homem tenha nascido para
o espírito, ele não pode, contudo, gozar da serenidade e das
luzes do espírito, até que tenha começado a se fazer
espírito. Heis por que a sabedoria ativa e invisível faz descer
continuamente seu poder sobre o homem, a fim de que ele reuna as forças
e os princípios da vida espiritual. Além disso, essa sabedoria
ativa e invisível não faz descer seu poder sobre o homem,
sem antes verter no coração dele algumas dessas influências
vivas das quais ela é o órgão e o ministro e entre
as quais ele faz eternamente a sua morada.
Depois de ter preparado o homem - e se ele não a contrariou em seus
desígnios -, então ela conduz o espírito do homem à
morada dessa luz que o originou, e aí o homem bebe com grandes goles
as doçuras que são próprias da sua existência.
Bebe sem perturbações e sem inquietude, como a própria
sabedoria, pois, pelos cuidados que ela lhe dispensou, seu coração
tornou-se puro como ela e livre dos movimentos tão incertos da frágil
roda do tempo. O superior e o inferior apresentam-se para ele numa perfeita
analogia; ele sente que a paz que descobre nessas regiões invisíveis
encontra-se nele mesmo. Não sabe se o seu interior está no
exterior divino ou se o exterior divino está no seu interior. Sente
que todas essas coisas são uma só, e que ele é um com
todas elas.
Heis por que, depois de ter desfrutado essas maravilhosas consolações
superiores, ele não teme, de modo algum, voltar ao seu interior,
pois sente que aí encontrará consolações semelhantes.
Heis por que também, não teme elevar-se de seu interior até
essas regiões sublimes, pois sabe antecipadamente quais consolações
o esperam aí.
Mas ele não pode percorrer essas regiões sejam interiores
ou exteriores sem experimentar um desejo que compartilha com a própria
sabedoria, pois ela o experimentou primeiro em relação a ele.
É o desejo de ver seus semelhantes desfrutarem da mesma felicidade.
E é nesse desejo secreto, bebido em nossa própria fonte, purgado
de suas sujeiras e suas trevas, que descobrimos o verdadeiro destino do
Novo Homem e, por conseqüência, do homem primitivo.
Se os homens não tivessem fechado os olhos para a simples lei das
compensações, não teriam tido necessidade de elevar-se
tão alto para perceber essa destinação primitiva. Com
efeito, considerando as únicas noções naturais da nossa
razão não desencaminhada pelo vício e pela corrupção,
não podemos discernir o objetivo do nosso ser nos dons e nos meios
que estão ao alcance de todos os homens? Posso dizer, então,
aos meus semelhantes: Nasceste forte? Não será para protegeres
o fraco?
Nasceste rico? Não será para dares benefícios aos indigentes?
Nasceste com as luzes? Não será para clareares aquele que
esta nas trevas? Nasceste virtuoso? Não será para apoiares,
pelo teu exemplo, o homem sem força, ou para atemorizares a fazeres
temer o homem mau? Ascende, então, por esses degraus até a
tua lei original. Se tiveres a atenção de comparar cuidadosamente
todos os degraus dessa grande escada, chegarás a reconhecer que nasceste
primitivamente para uma grande compensação.
Mas, quantos esforços não serão necessários
para evitar que sua visão se obscureça em relação
a verdades tão simples e tão naturais em meio às inúmeras
nuvens que a envolvem? Enquanto esses esforços do homem não
devem aumentar ainda para atingir essa sublime destinação,
supondo que ele tenha sido bastante feliz para não perder a visão?
Porque não podemos dissimular o fato de que estamos cercados de dificuldades
tão numerosas, e de obstáculos tão poderosos, que é
como se tivéssemos cavado para nós uma prisão profunda
no meio de um grande rochedo, tendo ao nosso redor apenas muralhas de rocha
viva, talhada a pique e a perder de vista.
Não, não é difícil ver que os homens, neste
mundo, são como prisioneiros privados de toda comunicação
com as criaturas vivas, vivendo, por assim dizer, em segredo. Nessa situação
não podemos gozar do auxílio nem do consolo de ninguém.
Um carcereiro severo e cruel joga-nos alimento grosseiro e retira-se sem
se dignar a nos endereçar uma palavra sequer de consolo.
Algumas vezes, é verdade, depois de longos dias passados nessa situação
desoladora, concedem-nos embora, foi um breve instante, o rápido
alívio de vermos algumas pessoas mais próximas e alguns dos
nossos amigos.
Depois devolvem-nos a nossa solidão medonha. Enfim, algumas vezes,
após essas provas cruéis, abrem as portas da nossa prisão,
colocando-nos em liberdade. Mas como é pequeno o número daqueles
para quem brilha, finalmente, o dia da libertação! Quantos
outros, ao contrário, vêem multiplicarem-se seus ferros e são
condenados a jamais conhecer o menor alívio! Quantos deles devem
passar seus dias nas masmorras, sem nenhum intervalo entre os horrores da
sua prisão e os horrores da sua tumba!
Qual é então o triste estado da posteridade humana, em que
o próprio Homem de Desejo está destinado a chorar em vão
e a ver os seus irmãos acorrentados por fortes grilhões em
tenebrosas masmorras ou conduzidos para os sepulcros da morte e da putrefação!
E isso sem que lhe seja possível agir para libertá-los ou
fazer qualquer coisa por eles! É verdade, homem infeliz, que o tempo
e a morte são os reis deste mundo. Tu tens desejos puros, tens desejos
divinos, tens desejos que concorrem com aqueles que preenchem o coração
e a sabedoria do próprio Deus. E contudo esses desejos não
são satisfeitos! E contudo a obra verdadeira se vê como que
forçada a ceder à obra ilusória! E contudo o nosso
próprio Deus esconde a sua glória e parece obrigado a adiar,
até um outro tempo, para manifestar os triunfos!
Senhor, Senhor, é verdade então que precisas do homem para
cumprir tua obra neste mundo! Sim, precisa dele, porque a tua obra consiste
na reunião do homem contigo. Senhor, Senhor, será verdade
que precisa do homem neste mundo e, contudo, esse infeliz se recusa a cumprir
teus desejos e tuas necessidades! Oh! Não, nada pode igualar-se à
horrível insensibilidade e à ímpia crueldade do homem.
Nada é tão pungente como a idéia da sua vontade medonha.
Bate nele, Senhor, com o açoite do tempo, para que ele saiba que
o tempo o engana todos os dias. Bata nele com o açoite do tempo,
para que ele deixe de acreditar no tempo. Então o próprio
tempo o açoitará, ficará cheio de remorsos e de vergonha
por haver encontrado um fim aos seus desígnios. Foi ao tempo, à
morte e aos reis da terra que endereçaste tantas censuras pela boca
do teu profeta Davi (Salmo 2).
Também disse em sua dor: "Por que razão as nações
se amotinam com tão grande estrépito e os povos maquinam planos
vãos? Os reis da terra sublevam-se e os príncipes se unem
contra o Senhor e contra o seu Messias. Rompamos disseram os seus laços
e libertemo-nos do seu jugo. Aquele que mora nos céus se rirá
deles, e o Senhor os ridicularizará. Ele lhes falará em sua
cólera, e os encherá de perturbações e de fúria.
Mas quanto a mim, fui feito rei por ele sobre Sión, sua montanha
santa, para que anuncie os seus preceitos. O Senhor me disse: vós
sois o meu Filho, eu vos gerei hoje. Pedi a mim e eu vos darei as nações
em herança e estenderei vossos domínios até as extremidades
da terra. Vós os governareis com açoite de ferro, e os quebrareis
como a um vaso do oleiro. E vós agora, ó reis, abri vosso
coração à inteligência: instruí-vos, vós
que julgai a terra".
Novo homem, considera-te como esse rei constituído sobre Sión,
a montanha santa do Senhor, a fim de que anuncies os seus preceitos. Pede
a Deus tuas próprias nações em herança e ele
estenderá teus domínios até as extremidades da terra
e até as almas dos teus semelhantes. Porque sua sabedoria ativa e
invisível busca somente fazer penetrar em ti suas doces influências
e te apoiar do alto do seu trono, nos combates, para que saias vitorioso.
Em seguida, conduzirá atrás dela o teu espírito triunfante,
até essas regiões calmas onde ela faz eternamente a sua morada,
e onde o homem deveria ter habitado eternamente com ela, se não tivesse
tido a fraqueza de abandoná-las. Verdades que poderiam ser rebatidas
em todas as páginas de todos os livros, sem deverem por isso experimentar
a censura de serem muito repetitivas. Pois como se poderiam acusar os escritores
de dizerem demasiadamente uma coisa que é a única coisa que
se deveria dizer?
O salvador
tomou consigo três dos seus discípulos e os conduziu a uma
alta montanha, e transfigurou-se diante deles. Seu rosto ficou refulgente
como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a neve. E heis que
viram aparecer Moisés e Elias falando com ele.
Quando o homem reúne e concentra suas forças, sente que a
própria Vida Divina não se furta a influir ativamente sobre
ele e a reanimá-lo com seu fogo brando e vivificador. Essa Vida Divina
que o formou não teme formá-lo novamente. Após tê-lo
formado de novo, ela não teme estabelecer-se nele e sustentá-lo
por suas santas influências; e após ter-se estabelecido nele
e o haver sustentado por suas santas influências, não teme
transmitir-lhe a alegria da qual ela é a fonte e da qual ela própria
se nutre perpetuamente. Nessa operação, o homem toma realmente
uma nova característica, pois é de tal maneira penetrado pela
Luz Divina, que o seu interior se torna resplandecente, originando-se aí
como que um sol vivo e brilhante que o seu corpo material não pode
conhecer. Esse é um dos sentidos da passagem de São João:
a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam; ele veio
até os seus domínios, e os seus não o receberam.
Se o homem dirigisse mais cuidadosamente seu olhar para seu ser interior,
certamente descobriria em si esse sol radiante e o veria fisicamente com
os olhos do seu espírito, da mesma forma que pode ver num espelho
a beleza do seu rosto com seus olhos materiais. Porque ele tem sempre, diante
do seu ser interior, um espelho vivo que refletirá seu esplendor
naturalmente. Ele se verá acompanhado, à direita e à
esquerda, por Deus, que não cessa de preservá-lo e defendê-lo
e que foi operante temporariamente nas duas alianças, ou iniciações
espiritual e divina, tendo sido representado em corpo aos três discípulos
do salvador pelos precursores dessas iniciações Moisés,
que conduzirá o povo até as portas da terra prometida, e Elias,
que viera preparar os caminhos para a aliança eterna da paz e da
santidade. Pois o salvador revelou nessa transfiguração os
caminhos que o homem deveria seguir para retornar ao reino da vida.
Mas o homem interior acompanhado à direita e esquerda por Deus, ouve
ainda, acima dele, a voz divina pronunciando estas palavras consoladoras:
é o meu Filho bem-amado, no qual depositei toda a minha afeição.
Escutai-o. Assim, ao encontrar-se entre o ternário divino e superior
- do qual é o Filho de onde provém o ternário espiritual
das suas próprias faculdades, ou de seus três discípulos,
ele descobre em si mesmo o quadro universal de todas as regiões,
das leis de ação e reação que agiram para a
emanação do homem e que agem diariamente para sua santificação
e sua glorificação. E heis os tesouros que se desvelam aos
olhos do Novo Homem.
Não é de surpreender que os três discípulos do
Novo Homem, ao vê-lo assim todo radiante de glória, fiquem
fora de si e que um deles lhe diga: Senhor, estamos bem aqui. Fazei, se
vos agradar, três tabernáculos: um para vós, um para
Moisés e um para Elias. E quando a nuvem vem cobrir aos seus olhos
esse ternário superior, e a voz que sai dessa nuvem se faz ouvir,
não é de surpreender que os três discípulos sejam
tomados de um grande temor e voltem seus olhos para o chão. Mas o
Novo Homem se aproximará deles e, tocando-os, lhes dirá: Levantai-vos
e não temais; então eles levantarão os olhos e verão
apenas o Novo Homem, porque o ternário superior não pode habitar
a terra.
Ordenará a eles que não falem dessa visão a ninguém,
até que ele tenha ressuscitado entre os mortos. Porque se os seus
olhos tiveram tanta dificuldade em suportar o brilho, eles que haviam sido
preparados, como ouvidos impuros e grosseiros suportariam o discurso? É
suficiente, depois dessa transfiguração, que os discípulos
do Novo Homem o considerem como o Filho da divindade e que se dediquem ao
seu serviço com tanto zelo como se estivessem na presença
de um Deus. Instrução que o Novo Homem não pode imprimir
fortemente neles para mantê-los na vigilância e para que, trabalhando
em combinação com ele, empreguem continuamente seus esforços
no sentido de conservar a moderação, a ordem, a atividade
e o amor em todas as suas obras e em todos os seus movimentos a fim de que
ele com eles, e eles com ele, manifestem cada vez mais, e numa representação
sempre mais perfeita, essa unidade suprema, da qual o Novo Homem e suas
três faculdades são a imagem.
Com efeito, sem essa transfiguração interior do Novo Homem,
só pelas imagens da inteligência é que conhecemos a
fonte de onde nos originamos, as ligações que tínhamos
com ela primitivamente, as ligações que conservamos depois
da queda fatal e as que são de novo restabelecidas através
das duas alianças, e, por conseqüência, as maravilhosas
esperanças que podem ainda nos preencher.
Mas uma vez que a nossa própria transfiguração nos
tenha elevado acima da nuvem, a nuvem pode, em conseqüência,
recobrir a montanha. Não perdemos a lembrança do que se realizou
diante de nós. Tornamos a descer cheios de respeito pela essência
que nos anima, cheios de amor e de adoração por aquele que
fez aquilo que somos.
Guardamos nosso segredo na parte mais profunda do nosso coração,
convencidos de que nessa solidão interior podemos honrar melhor o
soberano do que se suas riquezas e seus tesouros fossem revelados a olhos
indignos deles.
Dizemos a nós mesmos que se estivermos sós sobre essa montanha
quando ele vier nos encontrar, para nos penetrar com as suas vivificantes
influências, transfigurando todo o nosso ser com a sua atividade divina,
ele poderá nos encontrar ainda em todos os lugares, mesmo que estejamos
sozinhos, pois nossa existência, não sendo mais do que o fruto
desse ternário eterno e criador, desde que existimos, é uma
prova de que esse ternário está em ação em nós,
sobre nós, ao redor de nós, ainda que não o conheçamos
visivelmente. É então que começamos a ser inscritos
no livro da vida, nesse livro do qual nosso próprio ser interior
deve formar e produzir as letras, depositando-as nas mãos da sabedoria
para que ela as empregue, segundo os seus planos e segundo os seus projetos,
e para que lhes transmita a vida, os sentidos e a inteligência aos
quais ele julga que possam ser suscetíveis para o progresso da obra.
Também, é só depois da transfiguração
do salvador que o Novo Homem pode gozar sua transfiguração
pessoal; e, da mesma maneira que não conhecemos nosso ser de um modo
intuitivo, sem essa transfiguração pessoal não compreenderíamos
se a transfiguração do salvador não nos tivesse dado
a conhecê-la.
Sim, divino e exclusivo libertador dos homens em escravidão, seria
preciso que fosses transfigurado para que os tesouros divinos se revelassem
aos nossos olhos, enchendo-os com seu brilho imortal. Sem ti, não
teríamos conhecido nossa origem, a obra, a caridade, a fonte de vida.
Sê bendito para sempre, por todas as gerações e em todos
os séculos! Que todas as vozes celebrem o salvador universal, o cordeiro
sem mácula interior e exterior, aquele cuja natureza é animada
pela própria vida, aquele que nos abriu os canais das duas alianças,
os únicos pelos quais podemos recobrar a explicação
do nosso ser.
A criança que acaba de nascer, quando poderá desfrutar da
visão? Quando a luz souber se fazer dia nela e insinuar aos seus
olhos uma porção dela própria, à qual vai reagir
daí para frente. Até lá, ela ficará nas trevas.
Acontece o mesmo com todos os outros sentidos, com relação
ao poder que deve animá-los. Acontece o mesmo com todos os sentidos
do nosso espírito e do nosso coração. Ficaríamos
para sempre no entorpecimento de todas as faculdades do nosso ser espiritual,
se o divino libertador que foi glorificado não tivesse dissolvido
todos os vapores maléficos que obstruíam todos os nossos órgãos.
Nada de inteligência, nada de tato, nada de movimento, nada de vida
em nós, se esse supremo agente não tivesse lançado,
em cada um dos nossos órgãos interiores ocultos, um dos seus
raios vivificantes, sobre os quais quer dirigir constantemente sua ação,
para nos manter, com ele nessa divina atividade, de que ele é a fonte
e da qual fomos chamados a partilhar com ele.
Virtudes diversas
e numerosas nos cercam e procuram penetrarnos. Cada uma delas dirige seu
sopro salutar a um dos nossos órgãos, do mesmo modo que por
nossa palavra transmitimos àqueles que nos escutam os diferentes
impulsos que nos animam. Uma dessas virtudes, que é superior a todas
as outras, dirige seu sopro divino ao próprio centro do nosso ser
e, pelo órgão da palavra, do qual ela é o princípio,
transmite para nós sua própria vida, seu próprio amor,
sua própria luz: Felipe, aquele que me vê, vê a meu Pai.
(João 14:9). Essa é a conversa que o Novo Homem pode ter com
seus discípulos, a exemplo do salvador. Pois, como o salvador, ele
busca transmitir sua própria vida, pelo sopro da sua boca e pelo
órgão da sua palavra, a todas as faculdades do seu ser.
Mas esse Novo Homem deve multiplicar e variar inúmeras vezes sua
ação e sua palavra, segundo as diferentes regenerações
que precisa realizar em si próprio. Por isso, ora ele se mostra cercado
de glória e de poder, enchendo os povos de admiração
pelo seu nome e pela grandeza das suas obras, ora se mostra como uma vítima
devotada a salvação do povo, e como um ser de reprovação
exposto a todos os impulsos e todos os desprezos dos seus inimigos. Ora
ele se mostra como o amigo, o sábio instrutor dos seus irmãos,
a quem distribui os diversos preceitos que lhes convêm para se guiarem
em sua jornada. Ora se mostra como o homem de dor, e mesmo como o homem
de pecado, empregando suas lágrimas e seus lamentos para comover
a misericórdia.
É isso o que torna tão mutáveis as características
e as nuanças que devem manifestá-los aos olhos dos seus. E
heis por que ele é irreconhecível aos olhos daqueles que são
vivos apenas no exterior. Ele lhes escapa ou lhes parece contraditório,
por não ter a monótona uniformidade dos seres materiais que
têm uma única ação a realizar e que, por conseqüência,
recebem uma única reação, deixando passar em vão,
acima e ao redor deles, todas as outras reações que não
pertencem, de modo algum, à uma classe inferior e das quais eles
sequer se apercebem. Ao passo que o Novo Homem está exposto, ao mesmo
tempo, a todas as reações destrutivas, das quais é
preciso que ele se defenda, e a todas as reações regeneradoras,
pelas quais é preciso que ele se deixe penetrar e às quais
ele deve corresponder, e ainda cujos frutos e virtudes salutares ele deve
transmitir a todo o circulo particular que o compõe.
É isso também que torna tão variados e tão imperceptíveis
os caracteres dos escritos que anunciam o salvador e onde ele ora instrui,
ora se oculta, ora se lamenta, ora se felicita por seus triunfos, ora se
oferece como vítima, ora se dá como exemplo ao homem e às
nações.
O homem de regeneração parece ter sido concebido sob o reino
patriarcal. No berço, parece ter estado nos tempos de Davi, quando
recebe um alimento adequado a sua idade. Na adolescência, parece ter
estado sob os profetas, quando seu alimento se torna mais forte e os seus
movimentos mais determinados. Na idade adulta, sob o salvador, que o liberta
e o emancipa dos entraves da menoridade. É encargo da morte pô-lo
na categoria dos anciãos e dos príncipes do povo, para obter
deles a veneração e os respeitos que são devidos aos
sábios idosos.
Foi por essa marcha sempre crescente que o salvador desenvolveu o curso
das suas manifestações sobre a terra. A lei e os profetas
duraram até João. Depois desse tempo o reino de Deus foi anunciado
e ele permitiu que se o tomasse pela violência. O cordeiro sagrado
havia sido descrito pelos sacrifícios da antiga lei. O eclesiástico
e os profetas nos indicaram que ele deveria trazer a paz à terra.
João foi o primeiro a reconhecer claramente o salvador como cordeiro
que vinha tirar os pecados do mundo (como dissemos na seção
41). Foi por sua boca que se anunciou e assinalou as nações.
Esse mesmo João nos mostra, no Apocalipse, esse cordeiro sob um aspecto
ainda mais vasto. Ele no-lo mostra imolado depois do começo do mundo;
ele no-lo mostra abrindo os sete selos, sentando-se no trono de Deus, celebrando
as bodas divinas e servindo de lâmpada e de luz ao templo do Senhor.
Homens curiosos e ávido de inteligência, segui nessa corrente
a progressão da misericórdia, e vede em que abundância
de paz e felicidade tudo deve terminar. Mas não esqueçais
que aqueles que seguiram o modelo em seus sacrifícios, em suas humilhações
e em sua penitência, serão os únicos que poderão
seguí-lo um dia em sua glória.
Não temo assegurar-vos de que é nas escrituras que encontrareis
o guia esclarecido que vos fará percorrer todos os caminhos dessas
diversas progressões e todas as maravilhas que essas diversas épocas
encerram. Conjugai, portanto, continuamente, vossos princípios imortais
com as verdades das escrituras santas e vereis crescer, em vós e
ao redor de vós, numerosas gerações.
Sois esse esposo beneficiado com todas as vantagens da fortuna, pois tem
o ouvido e os favores do seu mestre, e a escritura é uma esposa sempre
radiante das graças, da beleza e da juventude. Que delícias
se comparam às que são reservadas à ternura dos vossos
dois corações?
Podereis encontrar nas escrituras esse espelho interno no qual deveríamos
estar constantemente nos olhando. Podereis encontrar uma representação
fiel dessas regiões pacíficas que deveriam ter sido sempre
vossa morada. Encontrareis aí essas fontes vivas que se juntam continuamente
contra os obstáculos que a iniqüidade lhes opõe, derrubando-os
e triunfando sobre eles. Encontrareis o maior segredo que pode ser comunicado
ao homem neste vale de lágrimas: aprender a abrir vossas próprias
faculdades a essas virtudes benéficas que vos cercam e vos procuram
a todo instante e, assim, serdes penetrados mais profundamente, mais universalmente,
de forma que, à medida que essa união se torna, mais habitual
para vós, não abandonais mais a esfera dessas virtudes, construindo
para vós uma morada celeste e durável sobre a terra.
Nelas aprendereis como serão tratados um dia vossos inimigos, ou
essa Babilônia que, segundo Isaías, 47: não teve misericórdia
para com seus cativos, que aumentou o seu jugo sobre o velho, e que disse:
eu dominarei eternamente... não há quem me veja... Sou a única
e depois de mim não haverá outra. Vereis que essa filha dos
caldeus não será mais chamada a rainha do mundo, que os dois
males dos quais ela se acreditava livre, a viuvez e a esterilidade, virão
até ela ao mesmo tempo, num só dia, e ela não saberá
de jeito nenhum de onde lhe vieram todos esses males. E será dito
a ela: "Fica com os teus encantadores, com a multidão dos teus
malefícios, em que tem trabalhado desde a tua juventude, verifica
se acaso te servirão para alguma coisa e se podes te tornar mais
forte... que se apresentem e te salvem esses agoureiros do céu, que
contemplavam os astros e contavam os meses para poder te anunciarem as coisas
que te deveriam acontecer. Eles tornaram-se como a palha, o fogo devorou-os,
não livrarão mais teu espírito das chamas. Assim perecerão
todas as artes em que empenhaste tanto trabalho. Aqueles que foram os teus
agentes desde a juventude seguiram cada um o seu caminho. Não há
ninguém que te possa salvar".
Mas vós, homens de desejo, que seguis os passos do Novo Homem, tereis
o discernimento de preferir, aos encantadores, o caminho simples das escrituras,
que ligam naturalmente o homem a Deus. Quem poderia dar conta dos feitos
produzidos por operações forçadas? São concebidos
pela violência, devem desaparecer quando o reino da paz vier se estabelecer.
Mas, antes disso, será preciso um tempo para que desapareçam
e para que os agentes possam entrar novamente na rota dos frutos naturais.
Essa espera será dolorosa porque manterá o homem na privação.
Felizes ainda se esses frutos forem prematuros, viciados em seus elementos
ou picados por insetos maléficos!
Se perguntares
ao Novo Homem quando é que tu poderás, como ele desfrutar
das consolações de que te fala incessantemente, ele te responderá:
quando abrires teu ouvido aos gemidos daqueles que suspiram pelas veredas.
As vozes de todos esses homens de desejo formarão uma longa cadeia
de sons lúgubres e dolorosos, que é como o anúncio
dos bons dias de Israel. Essa longa cadeia, o Novo Homem mediu-a em toda
a sua extensão, e essa medida encontra-se no intervalo do sábado
setenário ao sábado octonário ou dominical.
O Filho de Isaías era o modelo desse sábado, não somente
porque ele era o último dos oito Filhos do seu Pai, mas ainda porque
pôs cinco pedras em sua funda, atacou e venceu o gigante. Ele não
queria servir-se de armas estrangeiras, pois elas embaraçariam sua
marcha e seus movimentos, que deveriam ser livres como os do espírito
e da santidade.
Homem de desejo, dizei então com o Novo Homem, sem cessar: Senhor,
a palavra cujos sons se elevam até ti é a que revelas no homem,
descendo ao fundo do seu ser. Bates e te insinuas nas bases do seu templo
e fazes saírem dele os gritos de louvor, de júbilo ou de dor,
de acordo com as substâncias que deixou acumularem-se ou desenvolverem-se
nele e que se expõem à tua ação.
Ai, é preciso antes que o teu fogo seque o rio das palavras mortas
e sem vida! Esse rio corre sobre um leito pestilento, do qual esconde o
fundo aos nossos olhos, tornando-se assim ainda mais funesto. Flui sobre
o leito das palavras mortais, cujos sons só se propagam em direção
oposta à da verdade.
Por que as águas do rio das palavras mortais não absorvem
ao menos os vapores das palavras mortais? Porque ele se deixa infectar,
espalhando, em seguida, essa infeção na atmosfera. E é
nesse triste e infeliz centro de horror e desgraça que o homem é,
contudo, obrigado a pagar as retribuições legítimas
que são devidas ao seu soberano.
Mas enchei-vos de confiança, vós todos, homens de espírito,
lembrai que aquele que quis regenerar o Novo Homem pagou ele próprio
essa retribuição ao príncipe, e pagou-a a todos os
que se uniram a ele no espírito da justiça e da eqüidade
do qual ele deu o exemplo. Pois não disse ele aos seus discípulos:
Ide ao mar e lançai vossa linha; e o primeiro peixe que ela fisgar,
recolhei-o e abri-lhe a boca. Encontrareis aí uma moeda de prata
de quatro dracmas. Tomai-a e dai a eles por mim e por vós?
Que mar era esse? É esse abismo no qual o crime primitivo nos mergulhou
a todos. Que linha era essa que se deveria lançar? É esse
raio de misericórdia e amor, que a mão do pescador não
teme, do alto da sua sede eterna, fazer descer até esse mar tão
distante dele e tão tenebroso. Qual era esse primeiro peixe que se
deveria recolher? Era o velho homem que trazia em suas entranhas o tesouro
com o qual podemos pagar o tributo. Que moeda de prata era essa, de quatro
dracmas, que se deveria encontrar na boca do peixe? É essa palavra
eterna da qual o quaternário do homem é a imagem. A única
que poderia regenerar a nossa e pagar, por ela como por nós, a César
o que era devido a César.
Homem de paz, heis sobre o que deve repousar a vossa confiança. O
dracma foi reencontrado. Não vos separeis de modo algum daquele que
a fez sair do fundo do mar e estareis sempre pronto a cumprir as vossas
obrigações, porque ele trouxe o valor e a vida ao que estava
morto e sem virtude em vós. O Novo Homem também reencontrou
esse dracma, agarrou avidamente a linha que se lhe apresentava, saiu do
fundo do abismo, satisfez os direitos da justiça. Não hesiteis,
de jeito nenhum, em seguir o seu exemplo.
Mas não façais, em seguida, como tantos infelizes que deixaram
os sinais desse dracma se apagarem pelos poderes da lima contundente. Seu
numerário não traz mais a efígie do príncipe.
Esse numerário não pode mais circular e lança o homem
na penúria mais insuportável. Procurai saber, ao menos, se
não vos restam meios de escapar da morte. Escutai.
A efígie está apagada e o vosso numerário não
tem valor. Mas o metal não permanece ainda? Confiai-o ao hábil
artesão encarregado pelo soberano de inscrever nesse numerário
todo o seu valor. Ele imprimirá de novo a efígie do príncipe
e podereis, em seu nome, buscar vossa subsistência e pagar os legítimos
tributos do Estado.
Podeis abreviar essa obra durante vossa vida terrestre. Após o seu
término, sereis obrigados a esperar e suportar toda a duração
do decreto, para que em vós a morte ou o numerário retomem
sua vida, seu caráter e seu valor.
É uma água fecunda, que vos pode ajudar a prevenir essas infelicidades.
Essa água está oculta em vossa terra, é necessário
que caveis profundamente para descobri-la. Mas ela vos aliviará das
vossas penas. Essa água não é corrosiva como a do vasto
oceano. Não é insossa e insípida como as águas
dos rios que fluem sobre o vosso globo. E mais límpida que o éter,
mais doce que o mel, mais ativa que as águas mais espirituosas enfim,
é mais inflamável que o enxofre e o óleo.
Por sua limpidez, deixa atravessar nela uma imensa quantidade de raios luminosos,
que aproximam de vós os objetos mais afastados e vos esclarecem acerca
da natureza e do destino de tudo o que vos cerca. Por sua doçura,
transmite-vos as afeições mais deliciosas, às quais
não podereis encontrar na terra nada semelhante. Por sua atividade,
amolece em vós os humores mais espessos, permitindo-lhes a livre
circulação, sem a qual vossos dias não vos podem prometer
uma longa duração. Enfim, por sua propriedade inflamável,
pode, instantaneamente, levar o fogo a todo o vosso ser e pôr em ação
todas as vossas faculdades espirituais e todos os órgãos dessas
faculdades.
Mas não é somente ao vosso âmbito individual e particular
que se limitam as propriedades dessa água tão fecunda. Por
sua qualidade inflamável, pode transmitir seu fogo a todas as regiões
superiores, pois essa mesma água encontra-se aí em abundância
ainda maior. Quando essa inefável união se efetua, a claridade
fica ainda mais ofuscante para olhos que não estão acostumados,
porque essa claridade torna-se sete vezes maior do que quando se mostrava
apenas em vós e ao redor de vós, de acordo com esta profecia
de Isaías (30:26): A luz da lua será como a luz do sol, e
a luz do sol será sete vezes maior, como a luz de sete dias juntos
quando o Senhor atar a ferida do seu povo e curar a chaga que recebeu.
Ide, portanto, cavar cuidadosamente vossa terra, pois ela contém
essa água preciosa que vos trará grandes benefícios,
pois ela é também o dracma que pode fazer de cada um de vós
um Novo Homem.
Mas se ela tem o poder de abrir vossos olhos para os objetos que estão
em vós, ao redor de vós e acima de vós, também
tem o poder de abrir vossos olhos para os objetos que estão abaixo
de vós. É aí que a dor se apodera do coração
do Novo Homem.
Homens de Deus, consolai-me, consolai-me, o meu coração está
cheio de aflição. Consolai-me, que ele está cheio de
dores como o coração dos profetas. Porque ele compreende a
vasta extensão do crime, e os abismos se abrem diante de mim. Veja
neles as vítimas que aí são imoladas diariamente sobre
o altar da iniqüidade. Vejo esses infames carrascos degolarem eles
próprios as vítimas infelizes que seduziram com a isca dos
maiores triunfos e das mais doces consolações. Vejo os auxiliares
desses sacrificadores percorrerem todas as veredas da terra para surpreenderem
novas presas e trancá-las na caverna do leão feroz, e não
vejo ninguém que os defenda e os livre da morte. Homens de Deus,
que sejam vossas lágrimas a correr em todas as minhas veias em lugar
do meu sangue. Dai-me a vossa força e irei prender todos esses profetas
de mentira que se apoderam do espírito dos reis de Israel, e, a exemplo
de Elias, que sacrificou os falsos profetas de Baal e de Astarte, eu os
precipitarei na torrente de Cison. Espezinharei os habitantes de Edom; pisarei
neles como em um lagar, e o seu sangue esguichará sobre minhas vestes
e tingirá de vermelho a fímbria das minhas roupas. (Isaías
63)
Príncipes da mentira, quando o profeta entra em fúria, para
a glória e o serviço do seu mestre, dizeis que ele é
insensato. Como poderia o profeta conservar seu sangue frio, sua calma e
sua razão quando o seu coração está dilacerado
pelas angústias que se acumulam nele como em uma torrente? Mas o
delírio do profeta desconcerta a sabedoria dos príncipes da
mentira. Eles não podem conseguir a homenagem dele. Não podem
fazê-lo oferecer o incenso aos seus projetos ambiciosos e se retiram
cheios de cólera e de confusão.
O Novo Homem
é semelhante a uma árvore sobre a qual a pomba vem pousar
com alegria, após ter voado até o limite de suas forças
para buscar alimento aos seus Filhotes. O Novo Homem também se assemelha
à trombeta que se faz soar nas praças e nos lugares elevados
para chamar o povo à prece. Porque o Novo Homem é o lugar
de repouso da verdade e está encarregado de exortar diariamente o
seu próprio povo ao sacrifício; está encarregado da
manutenção de todos os canais da cidade e de cuidar para que
as águas vivas possam circular neles livremente. Está encarregado
de advertir seus concidadãos de que a cidade que habitam é
uma cidade santa, na qual não se admite nenhum mendigo, nenhum covarde,
nenhum preguiçoso, pois não há ninguém que não
possa encontrar legítima e abundantemente a sua subsistência.
Porque se um desses habitantes crê não ter as forças
necessárias para, sozinho, cumprir sua tarefa e conseguir prover
suas necessidades, pode se dirigir a um dos seus irmãos, pode se
unir a ele, e essa união não lhe deixará nada a desejar,
pois está escrito: eu vos digo ainda que se dois dentre vós
se unirem sobre a terra, qualquer coisa que pedirem lhes será concedida
por meu Pai que está no céu.
Ora, se o homem não precisa procurar mais longe do que nele próprio
para encontrar a cidade santa com os seus habitantes, com mais forte razão
poderá encontrar em si mesmo esse segundo, esse concidadão
ao qual se pode unir em nome do Senhor, para lhe pedir tudo aquilo de que
o seu espírito tem necessidade. Com freqüência, essa reunião
será suficiente para lhes proporcionar auxílios inesperados,
com os quais ficarão totalmente surpresos. Assim quando o seu barco
for agitado por um grande vento, o salvador caminhará até
eles sobre o mar e, ao ver o seu temor, lhes dirá: sou eu, não
temais. E, ao entrar no barco, este se conduzirá sozinho ao lugar
onde eles queriam ir.
Somente o homem mentiroso e covarde teme se lançar sobre a praia
para dirigir-se às regiões longínquas. Ele diz a si
mesmo o mar é tão grande! Os ventos provocam tormentas tão
fortes! Ele está tão cheio de escolhos! Devo me arriscar a
naufragar e me afogar? Devo me arriscar a ser vencido pela tempestade, a
ponto de ser obrigado a me refugiar em algum porto inimigo? Não,
esperarei prudentemente que os ventos se acalmem. Ficarei ancorado até
que o tempo me permita uma navegação favorável.
Coração do homem, és tu mesmo esse mar tormentoso e
coberto dos destroços de todos os naufrágios que os navegadores
sofreram desde o princípio. Quantas riquezas não afogaste
em teu seio! Quantos homens de desejo não encontraram em ti o seu
sepulcro, em vez de um asilo e um lugar de consolação! Quantos
animais vorazes não vagueiam incansavelmente em tuas paragens à
espera de sua presa? Sim, enquanto ofereceres ao navio apenas um elemento
tão pérfido e um destino tão funesto, será melhor
que ele fique ancorado a que se exponha a uma perda certa.
Coração do homem, torna então o mar mais calmo e mais
seguro. Destrui todos os escolhos e apressa-te a lançar o navio e
a soltar as velas, porque as nações estrangeiras esperam impacientemente
tua chegada para obter sua subsistência, e és tu que as manténs
na privação e na miséria.
Mas o homem não se contentou em assustar-se com a empresa. Ele se
negou a levantar âncora mesmo quando os ventos estiveram os mais favoráveis,
permanecendo indiferente à indigência dos outros povos e ao
que ameaçava a ele próprio se não cumprisse sua missão.
Quantas vezes, escravo infeliz e agrilhoado, quantas vezes não levaste
contigo uma boa lima, com a qual terias podido romper os ferros e entrar
novamente nas regiões da liberdade, para seres útil à
tua pátria! Em vez de aproveitares esses recursos, te preocupaste
unicamente em medir as dimensões dos teus grilhões e em fazer
cuidadosas e sábias descrições dos metais que os compõem.
E de tal maneira te encheste dessas análises fascinantes, que deixaste
de acreditar que tinhas outra ocupação e, talvez mesmo, deixaste
de acreditar que eras escravo.
Desvia-te dessas ocupações que te enganam. Toma da lima quando
ela te for apresentada e não adia o instante de te servires dela,
porque se todos os dias limares uma risca dos teus grilhões, isso
será mais benéfico do que descrevê-los.
O que fez o Novo Homem? Ele se levantou todos os dias com o desejo e a resolução
de erguer um altar a uma virtude e lhe oferecer assiduamente sacrifícios,
até que tivesse recebido dela os testemunhos de seu interesse por
ele. Não se deteve nesses testemunhos, perseverando em suas assiduidades
até que essa virtude tivesse por assim dizer, se identificado com
ele, e que ele próprio se tivesse aclimatado e casado com ela. Foi
assim que fez germinar nele os frutos vivos da verdade, da misericórdia
e da justiça, e que estabeleceu no centro do seu ser a consumação
da santificação e da sua liberdade.
Porque ele não se desesperou em ver concluídos os seus trabalhos,
e quando se apercebia de que lhe faltava uma virtude, punha-se em ação
para se apoderar dela. Como um homem que percebe uma fenda em sua casa não
se permite descanso até que essa fenda tenha sido fechada. Isto é,
ele se ocupou apenas em reconstruir essa antiga casa que habitamos outrora
e cujo recinto era formado pelas virtudes do espírito e do nome do
Senhor, que nos mantinham protegidos de todos os ataques dos nossos inimigos.
É também porque habitávamos outrora esse recinto formado
pelas virtudes do espírito e do nome do Senhor, que éramos
bastante espiritualizados, para ser cada um dos sinais do Senhor. Porque
todos os raios do espírito e do nome do Senhor se reuniam em nós,
fazendo-nos refletir a sua imagem.
Essa é ainda nossa lei, não obstante a nossa queda, e tal
seria ainda a nossa esperança se, como o Novo Homem, nos levantássemos
todos os dias com o desejo e a resolução de erguer um altar
a uma virtude e de não abandonar a obra até que esse altar
estivesse consagrado e as cerimônias santas estivessem em plena atividade.
Mas o adversário, pelos conselhos do qual caímos desse posto
sublime, não esquece de nada que nos possa impedir de subir novamente
até lá e de nos espiritualizar de maneira bastante característica
para nos tornar um dos sinais do Senhor. Assim vemos que a tarefa mais consoladora
desse adversário é opor-se a que os homens se tornem os indícios
constantes e significativos da verdade. Cuida para que essa região
ilusória na qual ele reina, tenha como característica dominante
apenas o vago, a incerteza e o vazio. Mais que isso, ele se esforça
para transformar todos os homens em sinais característicos da mentira,
das trevas e da iniqüidade.
Pois quantos sinais adulterados, enganosos e abomináveis se apoderaram
do homem! Quantos poderes falsos pensam nele, pensam por ele e o fazem pensar
contra a sua vontade! Quantos poderes falsos falam nele, falam por ele e
o fazem falar contra a sua vontade! Quantos poderes falsos agem nele, agem
por ele e o fazem agir contra a sua vontade! E heis portanto esse ser que
a divindade deveria atravessar por inteiro e da qual ele deveria ser, ao
mesmo tempo, o pensamento, a palavra e a operação. Heis esse
ser que é a pedra fundamental sobre a qual o Senhor disse que queria
edificar sua igreja. Heis esse ser que, à semelhança do salvador,
que é seu irmão, poderia dizer como ele: eu sou a luz do mundo.
(João 8:12)
Em vez de cumprir um tão nobre destino seu espírito, seu coração,
sua alma, toda a sua pessoa é continuamente o órgão
e o escravo dos sinais estranhos que dirigem todos os seus movimentos. Ele
é como esses reis cujas faculdades estão embotadas e enfraquecidas,
que são apenas o joguete perpétuo das opiniões dos
seus ministros passionais.
Mortal infeliz, não esquece então que a divindade deve atravessar-te
por inteiro. Antes do teu crime ela passava somente com glória, ao
passo que hoje só pode passar com humilhação. Aprende
a reconhecer ao menos, por esse meio, a grandeza da tua origem e dos teus
direitos. Aprende a reconhecer o teu valor, considerando que Deus tornou-se
teu Filho a fim de se tornar o teu Pai uma segunda vez. Aprende a reconhecer
a dignidade e a santidade das tuas alianças, e se não estiveres
pleno de respeito por ti mesmo, por te desviares dos caminhos da justiça,
volta a eles prontamente pela honra e pela veneração àqueles
a quem pertences.
Trata de te tornares novamente um dos sinais do Senhor, nem que seja para
derrubares as paredes da tua casa, como Ezequiel, e trazeres, como ele,
o rosto coberto, para a instrução do rei e do teu povo prevaricador.
Talvez esse sinal salve algumas almas. E mesmo que não salve nenhuma,
receberás sempre a recompensa devida ao fiel servidor que buscou
a glória do seu mestre.
Pensa ao menos na tua segurança. Convence-te de que um grande e súbito
incêndio irá tomar tua casa; pensa que esse incêndio
deve durar até que não reste o mínimo vestígio
da tua habitação, pois ela foi construída pelo mesmo
fogo que a queima. Faz então o que se costuma fazer nos incêndios
dos edifícios construídos pelas mãos dos homens. Eles
jogam os móveis imediatamente para fora, recolhem suas jóias,
seu ouro e seus títulos importantes para evitar a miséria
que os ameaça.
Joga então para fora, com vigilância e celeridade, teus tesouros
mais preciosos, com receio de que se tornem o pasto das chamas. Não
perde um só instante. A casa vai desmoronar e pode te esmagar, ou
o fogo pode fechar de tal maneira as saídas, que não terás
como escapar. É esse o momento de usar tua inteligência e tua
coragem. E esse momento deve durar por toda a tua vida terrestre, pois o
incêndio não cessará até que o fogo tenha consumido
os últimos materiais do edifício.
Objetos mentirosos,
poderes ilusórios, poderes destrutivos, em vão reunireis vossos
esforços contra o Novo Homem. Seu pensamento crescerá apesar
de vós. Sua virtude não estará sujeita, de modo algum,
a declinar e a ser destruída, como a de todos os seres compostos;
ela seguirá a linha do infinito. Quando nosso pensamento tiver decaído
por causa do crime, ela terá reencontrado os limites. É onde
a linha do infinito se rompe. Afortunados limites em nosso infortúnio!
Feliz ruptura! Foi por amor que abreviaste a nossa permanência no
abismo. As regiões do universo não são todas elas contíguas?
A árvore cujas raízes se ocultam na terra participa, através
dos seus ramos, de todas as ações da atmosfera. O pensamento
do homem, sepultado nas trevas do seu corpo, por que não participaria
de todas as ações da sua atmosfera?
Tristes rebentos da posteridade humana, vós sois todos solidários.
As dores dos vossos irmãos não vos poderiam ser estranhas.
Se eles estiverem na atmosfera corrompida, suas influências se transmitirão
até vossa morada. E tendes, então, a dupla tarefa de vos defender
da corrupção e de buscar o vosso crescimento.
Onde estão os que, do seio mesmo da sua prisão, conseguiram
o poder de purificar a atmosfera e levar saúde aos seus irmãos?
Onde estão os que têm os olhos abertos para o abismo e que
usam a prece para arrancarem daí os infelizes?
Consolai-vos homens de paz, não estais mais separados daqueles vossos
irmãos que habitam uma atmosfera pura. A morte somente separa os
maus. Cabe a eles esperar que se lhe tragam auxílios. Porque ao lhes
tirarem o invólucro de mentira, tiraram o que era tudo para eles.
Lembrai-vos da parábola do rico mau. Ele desejou que Lázaro
apenas mergulhasse o dedo nos seus abismos para temperar-lhe o ardor devorador
esse alívio lhe foi recusado. Mas o homem justo não fica um
instante sequer sem que o dedo de Deus mergulhe na sua atmosfera. Assim
também com a espiga no meio do campo, que vê impassível
a foice do segador tudo derrubar ao redor de si e se aproximar para derrubá-la
também. Ela sabe que saindo dessa terra entrará na atmosfera
da pureza, e que lá os olhos mais penetrantes, ainda que os do ímpio,
a examinarão com cuidado, para preservá-la e ajudá-la
sem ela saber.
A criança no berço não conhece a mão que lhe
dispensa cuidados e o seio que a alimenta. Apesar da sua fragilidade e da
sua ignorância, ela não está abandonada, nem sente falta
de nada. Poderíamos estar mais abandonados do que ela? Ela não
rejeita a mão que cuida dela, nem o seio que a alimenta. Não
precisamos de outra ciência que a sua. Heis por que está escrito:
"Se não vos tornardes como crianças pequenas, não
entrareis no reino dos céus. Aquele que se humilhar e se tornar pequeno
como essa criança será o maior no reino dos céus, e
aquele que a receber em meu nome estará recebendo a mim".
É por isso que o Novo Homem mergulha sem cessar em sua humildade
profunda e diz com Davi (salmo 43:16): "Tenho a minha confusão
todo o dia diante dos meus olhos, e a vergonha que transparece em meu rosto
cobre-me inteiramente... Nossa alma está humilhada até o pó,
e o nosso ventre está como que colocado à terra. Levantai-vos,
Senhor, em nosso auxílio e livrai-nos pela glória do vosso
nome".
Ele lhe dirá em sua santa confiança: "Senhor, não
permitais que os vossos inimigos nos tratem como trataram outrora a cidade
de Sión. Essa cidade que chamavam de repudiada e acerca da qual diziam:
é essa Sión que não tem mais quem a procure? "(Jeremias
30:17)
Vós dizeis ao povo escolhido: "Mas um dia todos aqueles que
vos devoram serão devorados. Todos os vossos inimigos serão
levados ao cativeiro; aqueles que vos destroem serão destruídos;
e entregarei ao saque todos aqueles que vos saqueiam". Se prometestes
tratar favoravelmente vosso povo e seu templo que a vossos olhos era apenas
um templo temporal e figurativo; se prometestes fazer retornarem os cativos
que habitavam as tendas de Jacó e ter compaixão das suas casas;
se dissestes: a cidade será reconstruída sobre a colina e
o templo será erguido novamente da forma como era antes, que esperança
não deverá ter então a alma do homem, que é
o vosso verdadeiro povo e o vosso verdadeiro templo?... Por isso esperarei
sem inquietude e cheio de fé, como Davi (salmo 44:4): vós
que sois poderosíssimo apertai vossa espada contra vossa coxa, assinalando
vossa glória e vossa majestade.
Ele lhe dirá: não duvido de que consagreis a ação
e as obras das minhas mãos, e que as minhas mãos fiquem cheias
pela abundância da justiça e pelo zelo do vosso serviço.
Não duvido de que consagreis a ação interior do meu
desejo e do meu amor, e que eles se tornem semelhantes ao vosso desejo e
ao vosso amor. Não duvido de que consagreis a minha inteligência
e a minha concepção, e que os torneis próprios a receber
em sua pureza os vivos raios da vossa luz e da vossa verdade, pois fizestes
a alma do homem para ser o vosso caminho e o vosso órgão.
E por mais suja e impura que ela possa ser, não evitastes mergulhar
em suas sujeiras para purificá-la e após tê-la penetrado
com vossa humilhação e vosso sofrimento para penetrá-la
com vossa alegria e vossa glória.
E vós, homens cegos, homens desviados, se vos restasse o mínimo
vestígio de sentimento pela natureza do vosso ser e pelo destino
dele, não verteríeis lágrimas de sangue pelas vossas
insensibilidades passadas? Não seríeis atormentados pela vergonha
de haver acumulado na via do Senhor tantos escombros e tão grandes
obstáculos, e não seríeis tomados pelo desejo de poupar
ao Senhor essas terríveis e violentas provas às quais expusestes
o seu amor?
Heis esses poderes ilusórios, esses poderes destrutivos do qual o
Novo Homem se separou e dos quais também vos deveis separar, se quiserdes,
como ele, tornar-vos os servidores e os amigos do Senhor, em vez de seus
adversários. Aprontai-vos para a ação divina; ela só
vos pede que não vos oponhais a ela, e por esse simples abandono
da vossa parte, ela vai se entregar a vós inteiramente e deixar em
vós os testemunhos vivos do seu zelo. Ela vai se estender a todos
os canais do vosso ser e se mover em vosso espírito, como a natureza
se coloca em vosso ser passageiro e sensível.
É esse movimento da ação divina que preparou o nascimento
do Novo Homem, e é também esse movimento da ação
divina que o realizou. Pois não há nada na ordem das coisas
do espírito que o movimento da ação divina não
deva governar. Esse nascimento do Novo Homem foi para ele como o dia que
Abraão deseja ver com ardor, que ele teve a felicidade de ver e pelo
qual se regozija (João 8:56), e é esse o significado desta
palavra do salvador aos seus discípulos (Lucas 10:24): Eu vos afirmo
que muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes e não viram,
e ouvir o que ouvis e não ouviram. Porque, da mesma forma que ninguém
conhece o Filho a não ser o Pai; nem o Pai senão o Filho,
ninguém conhece o Novo Homem a não ser a ação
divina, nem a ação divina senão o Novo Homem, ou aquele
a quem ele deu o poder de revelá-la.
Com efeito, essa ação divina e o Novo Homem estão unidos
pelos laços mais indissolúveis. Ele não pode nada sem
ela, pois ela é a plenitude universal, mas ela não pode nada
sem ele, pois lhe é o seu agente predileto. É por isso que
ele pode dizer: o meu Pai colocou todas as coisas nas minhas mãos.
Mas se ele se regozija de que o seu Pai tenha colocado todas as coisas em
suas mãos, é maior porque todos os espíritos se submetem
a ele porque o seu nome está escrito no livro da vida. É porque
aquele que o escutar, escutará ao seu Pai. É porque é
tal o ardor do seu zelo pela glória do seu Pai celeste, que ele não
percebe nenhuma perspectiva mais consoladora que a de manifestar as maravilhas
desse Pai celeste que o criou e o cria continuamente. Por isso, pelo simples
brilho da luz pela qual brilha esse Novo Homem, a morte e o nada desaparecem
em suas trevas.
É então que ele explicará o nome do Senhor, fazendo
brilharem as maravilhas. Pois essas maravilhas se concentraram no nome do
Senhor depois do momento fatal em que esse realizou a concentração
universal. Mas o nome do Senhor assim concentrado foi posto nas mãos
do Novo Homem a fim de que o abrisse e espalhasse os seus perfumes nas regiões
preparadas para recebê-los, e para que, pelo desenvolvimento desse
nome, ele destruísse as barreiras do crime, substituindo-as pela
ordem, pela moderação e pela perfeição.
O Novo Homem tem também o poder de explicar o nome do salvador, pois
ele não pode explicar o nome do Pai sem explicar o nome do Filho.
Além disso, abrindo esse nome, ele verterá as consolações
em todo o seu ser e em sua própria terra, da mesma forma que esse
nome verteu as consolações na terra universal.
O Novo Homem explicará também o nome do espírito, pois
ele não pode explicar o nome do Pai e o nome do salvador sem explicar
o nome daquele que é a sua verdadeira e essencial realização.
E é pela explicação desse nome tríplice que
se tornará o fiel servidor do senhor, pois ele jamais se dedicará
à explicação ativa desse nome tríplice sem estar
possuído por um temor santo de que os canais do seu ser não
estejam suficientemente purificados para que a verdade passe através
deles sem provocar tormento e dor.
Heis o quadro
dos degraus que o Novo Homem pode subir em direção ao trono
da glória. O seu ser corporal é mantido em harmonia e atividade
por seus elementos, os elementos são operados por seus poderes, seus
poderes são dirigidos pelos espíritos das regiões,
os espíritos das regiões são estimulados à sua
obra pela alma sensível e desejosa do Novo Homem, sua alma sensível
e desejosa é ativada pelo espírito santo. A alma divina do
Novo Homem recebe um forte impulso, que é o aguilhão do fogo
e da verdade. Daí ela chega ao respeito e ao amor do Filho, de onde
se eleva ao santo temor do Pai, que a mantém inteira na sabedoria,
no zelo e na vigilante operação, até que seja reintegrada
na unidade indivisa, onde conhecerá somente o amor, que é
a característica essencial e universal daquele que é Deus.
O Novo Homem sobe esses degraus com um estremecimento contínuo, porque
ele sabe que o fogo do espírito pode inflamar até nossas substâncias
más, e que nada se compara às precauções que
devemos tomar para evitar que Deus entre em nós antes de termos eliminado
todas essas substâncias falsas e suscetíveis de se inflamarem
para nossa destruição, em vez de se inflamarem para nosso
verdadeiro aperfeiçoamento. Além disso, se não resultar
sempre num funesto abrasamento, pode resultar ao menos num terrível
perigo: o de não receber a ação do espírito
em nós em sua abundância e plenitude. Se quiserdes ser perfeitos,
disse o salvador ao jovem do evangelho, ide, vendei o que possuís
e dai-o aos pobres, e tereis um tesouro nos céus; depois vinde e
segui-me.
Essas palavras recaem, com efeito, sobre todas as substâncias estranhas
ao nosso ser, que devemos vender se quisermos ser perfeitos, isto é,
se quisermos que o espírito circule em nós em sua plenitude
e em sua perfeita abundância. E então, sem sequer sair deste
mundo, temos um tesouro nos céus, ou talvez os próprios céus
suscitem seus tesouros em nós e nos tornem parte das suas riquezas
vivas, fazendo-nos experimentar continuamente sua estimulante atividade.
Bem-aventurado aquele que comer o pão do reino de Deus!, disse um
dos que se encontravam um dia à mesa com o salvador (Lucas 14:15).
Mas o que respondeu o salvador para lhe mostrar quão poucos homens
sabem não somente buscar o espírito em sua plenitude, mas
mesmo deixar que ele os penetre quando se manifesta, e vender o que tem
para dar-lhe lugar? Ele lhe conta a parábola do festim e da grande
ceia para a qual um homem havia convidado várias pessoas. Relata
como todas essas pessoas recusaram o convite sob os mais diversos pretextos.
Um por uma casa que acabara de comprar, outro por uma mulher que acabara
de desposar etc. Conta, então, como ordenou ao seu servidor que fizesse
entrar os pobres, os estropiados, os cegos e todos aqueles que encontrasse
pelos caminhos e cercados, porque ele queria que sua casa ficasse cheia.
Ele vai mesmo, uma outra vez, até elogiar a habilidade dos Filhos
dos homens, para a vergonha dos Filhos da luz, que não sabem, como
estes, aproveitar suas riquezas e fazer amigos para os tempos de penúria.
Pois se essa economia fosse culpada por suas injustiças, ele seria
notável por sua destreza e sua habilidade. E era tudo o que o salvador
buscava revelar no espírito dos homens, a fim de que depois de terem
feito uso dos dons que estavam à disposição deles,
lhes fossem confiados dons mais consideráveis.
Ele nos dá, dessa forma, uma instrução luminosa sobre
a conduta que o inimigo geralmente tem com relação a todos
os homens. Ele se tornou o ecônomo das nossas faculdades e, em vez
de dirigir sua administração para o proveito e a utilidade
do mestre, pensa apenas na sua própria utilidade e proveito. Quando
então prevê que o mestre vai-lhe exigir prestação
de contas e tirá-lo do seu posto, busca se relacionar com pessoas
que o recebam em suas casas. Manda vir cada um dos devedores que estão
em nós e diz ao primeiro: "Quando deveis ao mestre? Cem barris
de óleo? Resgatai vossa dívida, sentai-vos e fazei vivamente
uma de cinqüenta". E diz a um outro: "Quanto deveis? Cem
medidas de frumento? Resgatai vossa dívida e fazei uma de oitenta".
É assim que esse hábil inimigo se conduz conosco, procurando
diminuir nossas dívidas aos nossos próprios olhos, buscando
diminuir nossa confiança com benefícios injustos e uma indulgência
criminosa e ligar-nos a ele pela nossa fraqueza e pela arte com que cuida
de abrandar nossas obrigações. Mas se a justiça é
imprescritível, nem ele nem nós podemos jamais fraudar os
direitos do mestre, e de acordo com as palavras desse mestre é mais
fácil passarem o céu e a terra, do que uma única letra
da lei perder o seu efeito. (Lucas 16:17)
Igualmente nos será dito: Infelizes de vós fariseus, que vos
assemelhais a sepulcros que não se mostram e que os homens que caminham
sobre eles não conhecem. Porque se escutarmos o inimigo, ele cuidará
para que mantenhamos, limpo o exterior do copo e do prato, enquanto o interior
dos nossos corações estará cheio de rapina e iniqüidade.
Ser-nos-á dito: Infelizes de vós, doutores da lei, que dais
aos homens fardos insuportáveis e não permitis que recebam
qualquer ajuda. Pois pior do que aquele servo a quem o senhor havia perdoado
a dívida e que, saindo de lá, estrangulou seu devedor para
fazê-lo pagar, cometemos a injustiça de pagar a nós
próprios o que não nos era devido e de não pagarmos
o que devíamos.
Ser-nos-á dito: Infelizes de vós que construís tumbas
para os profetas, e são os vossos Pais que os mataram. Assim testemunhais
que consentis no que vossos Pais fizeram, pois eles mataram os profetas
e vós construístes sua tumba. Porque nós mesmos serviremos
de tumbas para esses profetas, sufocando a voz que eles tentam fazer-nos
compreender, e nós mesmos lhes serviremos de assassinos e homicidas.
Ser-nos-á dito: Infelizes de vós que vos apoderastes da chave
da ciência e que, não tendo entrado vós próprios,
a haveis fechado aqueles que queriam entrar. Porque, semelhantes aos falsos
doutores, percorremos mar e terra para procurar em nós aprovadores,
sob o pretexto de fazer prosélitos, e quando os tivermos feito, torná-los-emos
cem vezes mais culpados do que antes. Porque não apenas não
entraremos com eles no espírito da verdade, como os impediremos de
entrar em nós, não obstante todas as solicitações
que nos fazem.
Novo Homem, vem dissipar essas nuvens sombrias. Nós te vimos há
pouco explicar o nome do Pai, explicar o nome do Filho, explicar o nome
do espírito, ou seja, desenvolver ativamente todas as maravilhas
contidas nesses ricos tesouros. Porque não explicaste ou desenvolveste
todos esses tesouros? É que esses tesouros se desenvolveram ou se
explicaram por si mesmos em ti, é que fizeram brilhar sobre tua cabeça
o sinal luminoso da sua luz, e abrasaram com o seu fogo todo o teu ser;
é que eles explicaram e desenvolveram o germe sagrado que te constitui,
e trouxeram voz a essa pedra fundamental que está em ti e sobre a
qual o eterno Deus dos seres prometeu edificar sua igreja; é que
eles trouxeram a voz a tudo o que te compõe, a fim de que tudo o
que te compõe possa celebrar a glória do Senhor, à
imagem da criatura universal que, em cada um dos seus movimentos, em cada
um dos atos da sua existência, manifesta o poder e a gloriosa dominação
do eterno soberano dos seres.
O que é que poderia manter a contemplação da majestade
do homem, se ele se mostrasse assim explicado e desenvolvido pela ativa
influência dos poderosos tesouros dos quais nasceu para ser a fiel
expressão e do qual ele está constantemente rodeado? O que
é que poderia manter o brilho da majestade de Deus, que estaria nele
e que o tornaria como uma palavra universal, espalhando-se perpetuamente
desde o oriente até o ocidente, e desde o ocidente até o oriente,
a fim de que tudo esteja pleno do nome do Senhor e de que todos os caminhos
da vida e da justiça estejam sempre iluminados pela luz e pela verdade,
no temor de que aqueles que se apresentem para caminhar por esses caminhos
não fiquem expostos às armadilhas e emboscadas do inimigo,
que tende apenas a retardar o passo do exército de Israel em direção
à cidade santa?
Não mais esqueçamos que essa é a tarefa da posteridade
humana e é para isso que o Novo Homem se chama também o Filho
de Deus. Porque seria necessário, para que ele se tornasse um Novo
Homem, que os poderes supremos se reunissem, se concentrassem em sua força
e em sua unidade e resolvessem pronunciar em voz alta o seu nome sobre ele.
Sim, Senhor, é pronunciando o vosso nome sobre o Homem de Desejo
que renovareis todo o seu ser, e é pronunciando o vosso nome sobre
ele que o tornais de novo vossa imagem, vossa semelhança e vossa
propriedade, como essas substâncias nas quais colocamos nosso selo
e nossos sinais para que se reconheça aquele a quem pertencem. O
homem se torna assim vossa imagem e vossa semelhança porque, ao pronunciar
vosso nome sobre ele, reunis também o seu próprio nome em
sua essência e em sua unidade, e assim o tornais suscetível
de realizar em seu domínio a manifestação das maravilhas
que operais na universalidade de todos os reinos e de todas as regiões.
Por isso não fiquem surpresos que o Novo Homem não permita
mais um único movimento de acordo com a sua vontade, pois ele é
o pensamento do Senhor e não se crê no direito de dispor do
pensamento do Senhor.
Não fiquem admirados que a ilusão e as trevas não tenham
nenhum acesso a ele, pois ele lhes responde sempre: eu sou um pensamento
do Senhor, não posso escutar-vos, não posso entregar-me a
vós, porque pertenço aquele do qual sou o pensamento, e se
eu dispusesse de mim não seria mais o pensamento dele e, por conseqüência,
não seria mais nada.
Não fiquem admirados que todo o seu ser não somente se torne
brilhante e luminoso como os astros do firmamento, mas mesmo que fique todo
cheio de olhos, como as rodas de Ezequiel, pois deve vigiar tudo o que se
aproxima dele, como maus propósitos e aclarar tudo o que chega perto
dele com a sede da luz.
Não fiquemos de modo algum admirados, digo eu, que ele tenha um olho
sobre cada um dos seus olhos, cada um dos seus ouvidos, cada uma das suas
mãos, cada um dos seus pés, sobre o seu coração
e a sua língua. Esse é o sinal da sua atividade, da sua vigilância
e da sua penetração, é enfim o sal que ele deve, segundo
a lei de Moisés, espalhar e misturar em todos os seus sacrifícios.