É
da índole do espírito das trevas manter o homem na desconfiança
dos seus próprios direitos. Ou, se não pode impedi-lo de adquirir
algumas vezes o conhecimento, tem o cuidado de envolvê-lo com cores
ilusórias, que mantêm esse homem destinado sempre abaixo da
sua verdadeira medida e que o levam continuamente a sacrificar a realidade
às imagens e aparências. É dessa maneira que conseguiu
substituir, quase que em toda a terra, a lei pelas tradições,
o espírito pela letra e as luzes da verdade que iluminaram os profetas
pelas tenebrosas paixões humanas. O homem, depois do crime, viu-se
arrastado pela encosta dessa região terrestre e morta, que só
tende a descer e que faz o homem descer com ela, quando ele esquece a sua
origem ilustre. O inimigo do homem aumenta diariamente esse peso já
tão terrível que fazia Salomão dizer: essa morada terrestre
enfraquece o espírito com a multiplicidade dos seus cuidados. (Sabedoria
9:15)
Portanto, pela mais ardente vigilância o homem saberá suportar
tantos obstáculos. Pois vai encontrá-la em si mesmo, na tradição
que recebeu a sua memória e na lei que recebeu o seu espírito.
E se ele se entregar às obras da sua lei e às obras do espírito,
a voz da tradição se levantará contra ele e tentará
incomodá-lo, fazendo parecerem criminosos as obras da lei e do espírito.
Ele sabe que a sua natureza espiritual e divina o convoca a realizar obras
de paz e a trabalhar para o restabelecimento da ordem universal. Ele sabe
que essa mesma natureza divina e espiritual que o anima está acima
do tempo e é feita para desconhecer o tempo. Assim, todas as vezes
que se apresentar a ocasião de cumprir a sua obra, ele a aproveitará,
mesmo no dia do sábado terrestre. Mas então essa voz do sábado
se levantará contra ele, querendo transformar o seu benefício
em uma verdadeira prevaricação. Foi provavelmente para nos
descrever esse símbolo do homem e dessa reunião aflitiva que
se encontra nele, que o salvador curou em um dia de sábado, no meio
da sinagoga, aquele homem que tinha uma mão seca. Porque, com efeito,
essa sinagoga representava então a reunião da luz e das trevas
onde, de um lado, se agitava a virtude ativa daquele que vinha restituir
aos homens de espírito o uso da mão ressequida, e, de outro,
a oposição de um povo materialista e grosseiro, que se apoiava
na própria letra da sua lei para combater o espírito do verdadeiro
objetivo do nosso ser.
Mas não foi somente para nos descrever o símbolo dessa reunião
aflitiva que o salvador agiu assim: foi sobretudo para transmitir aos homens
cegos, o ensinamento para o qual essa obra de cura não passava da
ocasião e do motivo. Da mesma forma que excitou o murmúrio
dos judeus ao lhes dizer: "Quem dentre vós que, tendo uma ovelha,
se esta cair numa cova no dia de sábado, não a retira do buraco?
Ora, um homem não vale mais do que uma ovelha? Logo é lícito
fazer bem no dia de sábado".
Ele lhes falará ainda mais vigorosamente acerca das espigas que os
seus discípulos, ao passar por um milharal num dia de sábado,
haviam colhido e comido: "Não lestes na lei que nos sábados,
os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem pecado? E contudo
eu vos digo que aqui está alguém que é maior do que
o templo. E que se soubésseis o que quer dizer: eu aprecio mais a
misericórdia do que o sacrifício, não teríeis
condenado inocentes, porque o Filho do homem é senhor até
do próprio sábado".
O Novo Homem, esclarecido pela mesma luz, explicará sem cessar a
tradição pela lei, a letra pelo espírito e o espírito
pela vontade do supremo criador das coisas. Esse Novo Homem não esquecerá,
portanto, que não é da competência do templo prescrever
a lei e as formas dos sacrifícios que se devem realizar em seu seio,
mas que é próprio do templo receber essa lei e esses sacrifícios,
tal como convenha ao príncipe dos pastores, segundo a ordem de Melquisedeck,
prescrevê-los. Que a única obrigação desse templo
é manter-se sempre na ordem conveniente e sempre pronto para o momento
em que aprouver ao príncipe dos pastores vir oferecer o seu incenso.
Ele também tomará a sábia precaução de
jamais ousar iniciar por si mesmo as cerimônias santas, sem antes
sentir que o templo está pronto, que todas as luzes estão
acesas, que o fogo do espírito penetrou seus muros, seus fundamentos,
suas colunas, decorando todas as partes do templo da maneira digna do sacrificador
que aí deverá pronunciar-se e dos santos mistérios
que aí deverão realizar-se.
Perceberá, desse modo, que não apenas o Filho do homem está
acima do sábado temporal, mas que o próprio templo tem também
esse magnífico privilégio, pois esse templo não é
outra coisa senão o Novo Homem, e o Novo Homem partilha de todos
os direitos e de todas as propriedades do espírito do Senhor. Reconhecerá
então que, da mesma maneira o espírito do Senhor é
o chefe e o mestre do Novo Homem, também o Novo Homem se torna, por
ele próprio, o chefe e o mestre da lei. Que é próprio
do Novo Homem esperar e receber do espírito do Senhor as luzes, a
santidade e a vida, assim como é próprio do templo construído
pelas mãos humanas esperar e receber do Novo Homem a administração
de todas essas coisas; e que desse modo o espírito do Senhor se torna,
ao mesmo tempo, o mestre do Novo Homem, o mestre do templo, o mestre do
sábado, o mestre da lei, pois ele compreende tudo, dirige tudo, penetra
tudo, e somente nele as propriedades das coisas, as suas virtudes, os seus
símbolos e seu espírito podem encontrar a sua explicação
e o seu verdadeiro cumprimento.
Ele se encontrará, talvez no Novo Homem dos judeus, que lhe perguntarão,
como o fizeram outrora os doutores da lei e os fariseus ao salvador: Por
que os vossos discípulos violam a tradição dos antigos?
Pois eles não lavam as mãos quando fazem a sua refeição.
Enquanto não forem capazes de se elevar a essas sublimes regiões
do espírito que explicam tudo, ele os fará cair em confusão,
contestando a própria conduta deles em pontos da maior importância.
E lhes dirá: "E vós por que violais o mandamento de Deus
para seguir a vossa tradição? Porque Deus ordenou: honrai
o vosso Pai e a vossa mãe, e: aquele que ofender o seu Pai ou a sua
mãe seja punido de morte. Contudo, vós dizeis: Qualquer que
disser ao seu Pai ou a sua mãe: toda oferta que eu fizer a Deus vos
é útil, satisfaz à lei, não está mais
obrigado a honrar e ajudar o seu Pai ou a sua mãe. Dessa maneira,
tornastes inútil o mandamento de Deus pela vossa tradição.
Hipócritas, é o que sois. Isaías profetizou bem acerca
de vós quando disse: esse povo está perto de mim em palavras,
honra-me com os lábios, mas o seu coração está
bem distante de mim... toda planta que não for plantada por meu Pai
que está no céu, será arrancada".
Não há verdade mais elevada do que a contida nessas últimas
palavras, e que mereça mais atenção do Novo Homem,
pois essas palavras compreendem ao mesmo tempo todas as leis, todos os tempos
e todo o juízo. Heis por que o Novo Homem fará com elas uma
espécie de armadura com a qual quebrará todas as flechas do
inimigo. Heis por que começará por amarrar o forte a fim de
poder entrar em sua casa e pilhar as suas armas, tendo sempre consciência
de que se não se associar continuamente com o espírito, se
não se esforçar por nascer continuamente do espírito,
se não tiver todos os cuidados para ser plantado pelo espírito,
enfim se não estiver com o espírito, estará contra
o espírito, e se não se unir ao espírito, se consumirá.
Ele sabe que "todo pecado e toda blasfêmia serão perdoados
ao homem, mas que a blasfêmia contra o espírito não
será, de modo algum, perdoada. Ele sabe que todo o que falar contra
o Filho do homem, isso lhe será perdoado, mas o que falar contra
o espírito, não será perdoado nem neste mundo, nem
no outro". Ora, ele tomará como blasfêmia contra o espírito
não se juntar continuamente com o espírito, pois isso seria
como acreditar em outro poder que não o do espírito. Ele tomará
como falar contra o espírito não se reunir perpetuamente com
o espírito, pois isso seria como acreditar poder viver com uma outra
vida que não a do espírito.
Assim, o Novo Homem não somente se absterá de todas as blasfêmias
contra o Filho do homem, que poderão ser suscetíveis de perdão
- porque elas recaem somente sobre o homem temporal ou sobre o envoltório
do espírito - como não deixará substituir em si os
mínimos sinais de ofensas, ainda que as mais secundárias e
suscetíveis de perdão; estará de tal modo ocupado em
se prevenir contra as blasfêmias imperdoáveis, ou em realizar
tão bem a atividade do espírito, que em um dia vindouro não
se poderá censurá-lo, de não haver estado completamente
devotado ao espírito, e não se poderá fazê-lo
pagar até a última moeda, ou seja todos os momentos que ele
não tiver passado nessa confiança integral e absoluta que
o homem deve ter no espírito. É aí então que
se verificará este dito terrível: muitos serão chamados,
poucos escolhidos. Pois todos os homens nasceram para cumprir essa importante
lei.
Ora, quem não temerá diante do pequeno número daqueles
considerados como tendo sido fieis, e diante da multidão daqueles
que o inimigo desviou desde o princípio e que desviará até
o fim, pelas ilusões de todo o gênero e sobretudo fazendo-os
sacrificar a lei pela tradição, o espírito pela letra
e a realidade pela aparência? Quem não estremecerá,
digo eu, ao ver a que pequeno número serão reduzidos aqueles
que cumprirão fielmente a vontade do espírito, para que um
dia se diga de cada um deles: aquele é o irmão, a irmã
e a mãe do espírito.
O
velho homem caiu sob o jugo de uma morte tríplice, que se designa
sob o nome da morte do corpo, morte da alma e morte do espírito,
mas que, tendo tido primitivamente, por causa e por princípio, a
morte ou a abolição dos seus títulos de pensamento,
palavra e realização do Eterno, deve-se considerar sob o nome
de morte do seu ser divino, o qual, com efeito, está hoje em dia
como que sepultado, se compararmos a sua situação deplorável
com o estado glorioso que já desfrutou. É necessário
que o Novo Homem tenha por tarefa procurar para si uma tripla ressurreição,
ou seja que resgate o seu pensamento, a sua palavra e a sua ação
das regiões tenebrosas onde se encontram escravizados; que resgate
o seu pensamento, a sua palavra e a sua ação da beira do precipício
ao qual o inimigo, diariamente, procura arrastá-los; e que se previna
para o futuro contra a morte do seu pensamento, da sua palavra e da sua
ação, em todas as circunstâncias em que o inimigo possa
ameaçá-los.
Heis um dos aspectos sob os quais podemos considerar a tríplice ressurreição
do Novo Homem. E esse ponto de vista é tanto mais real, quanto ele
não é mais do que a imagem muito próxima do perigoso
destino de toda a posteridade humana. Além do que, ele é o
extrato e a imagem reduzida da obra universal que se realiza em escala maior
sobre toda essa posteridade do homem.
Pois quanto essa grande obra, compreendendo todos os tempos, todos os domínios
e todas gerações da família humana, deve agir desde
a origem para arrancar a presa ao inimigo, que já a havia levado
para a morada da servidão ou para a tumba. Depois deve agir para
resgatar das mãos desse inimigo as vítimas que ele aprisionou
diariamente e leva para as suas moradas sombrias. Por fim, agirá
ainda no futuro para impedir que esse inimigo venha a se apoderar tão
facilmente de novas vítimas ou, ao menos, para impedir que ele venha
prendê-las até mesmo dentro do aprisco. E não duvidemos
que se encontrem nela o espírito das três épocas das
leis de restauração entre os homens, o espírito da
tripla manifestação da sabedoria eterna no tempo e o ternário
que caracteriza essencialmente todas as operações que foram
cumpridas ou simplesmente anunciadas e descritas pelos diversos eleitos
que essa sabedoria eterna enviou à terra em ocasiões diferentes,
para a libertação dos mortais, para o seu consolo e para a
sua instrução.
Por que veríamos nessas fontes de restauração que foram
abertas uma via sacerdotal e levítica, uma via espiritual e profética
e uma via divina? Por que veríamos, nessa ordem sacerdotal, levitas,
pastores e um único grande pastor? Por que veríamos no povo
hebreu, que representa para nós toda a família humana, um
estágio de escravidão, um estágio de combate e um estágio
de vitórias e de triunfos, se todos esses quadros não tivessem
por objetivo nos dar uma instrução que engrandece o nosso
espírito e que foi aplicável a nós mesmos?
Sim, o Novo Homem pode ter claramente essa tríplice ressurreição,
tão necessária para que o nosso ser goze de algum repouso,
e tão conforme a essa morte tríplice ou a essa concentração
tríplice que experimentamos tão dolorosamente quando queremos
por um instante lançar nossos olhares sobre nós próprios,
e que nos convence, de maneira triste e demonstrativa, dessa morte tríplice
e dessa concentração tríplice nas quais o primeiro
homem lançou todas as suas faculdades espirituais e para quais arrastou
toda a sua infeliz descendência.
A primeira e a mais penosa dessas três ressurreições
que o Novo Homem terá de realizar em si, é arrancar, dentre
todas as substâncias falsas que o cercam, as substâncias dos
seus pensamentos, das suas vontades e da suas ações, que foram
absorvidas e, por assim dizer, amalgamadas com aquelas, como que um verdadeiro
sepulcro, onde não apenas não desfrutam o dia e a luz. Como
estão condenadas a uma terrível putrefação.
Com efeito, é impossível conceber uma realização
mais dolorosa que a de separar os diferentes metais que deixamos ligarem-se
uns aos outros, pois só há uma fusão integral que pode
nos permitir atingir esse ponto. Mas aquilo que parecia acima das forças
ordinárias, não está acima das forças do Novo
Homem, pois ele é o Filho do espírito e bebeu o medicamento
salvador, ou aquele poderoso solvente que Jeremias compara a um martelo
que quebra as pedras. (23:29)
A segunda ressurreição será reter, à beira do
precipício, os seus pensamentos, as suas vontades e as suas ações,
que estariam prestes a cair se ele não empregasse toda a sua vigilância
para tirá-lo das mãos que os conduziam ao sepulcro. Mas o
mesmo poder do qual se servirá na primeira ressurreição,
será igualmente útil a ele na segunda, e ele libertará
novas vítimas dos braços da morte.
A terceira ressurreição será aquela que ele realizará
desde já sobre aquelas de seus pensamentos, das suas vontades e das
suas ações, que no futuro poderiam estar expostos aos ataques
do inimigo, o qual tentará corrompê-los a fim de arrastá-los
com ele para o abismo, porque não bastará ao Novo Homem incluir
as épocas passadas e presentes na manifestação do seu
poder e da sua sabedoria. É preciso que ele inclua as épocas
que ainda não chegaram, pois esse é o grande privilégio
do espírito.
Também trabalhará sem descanso para conseguir que a mão
suprema o envolva, o sustente e o proteja, de tal maneira que o inimigo
não possa mais exercer sobre ele qualquer poder. Ele chegará
a esse ponto quando tiver subjugado tudo o que existe nele e quando puder
dizer dele o que o salvador disse à corrupção exterior:
eu dominei o mundo.
Mas, para ter dessa tríplice ressurreição uma idéia
ainda mais simples, mais aproximada e, por conseqüência, mais
fácil de compreender, vamos considerá-la em uma época
em que a morte já produziu os seus estragos em todas as faculdades
espirituais do homem. Essa imagem estando ao alcance de um número
maior, só poderá ser-lhes mais útil.
Com efeito, podemos morrer em nossas obras, se levarmos nossos pensamentos
falsos e nossas vontades criminosas até a consumação.
Poderíamos morrer em nossas vontades corrompidas, se elas se ligarem
aos planos confusos que os nossos pensamentos podem adotar, quando nós
mesmos não iríamos realizá-los em nossas obras. Enfim,
podemos morrer em nossos pensamentos, se os deixarmos cumprir idéias
contrárias a verdade e a glória do espírito, quando
nós mesmos não as adotaríamos em nossas vontades e
não as deixaríamos transformarem-se em atos.
Heis então a tríplice ressurreição que cada
homem deve realizar em si mesmo, se quiser atingir a dignidade do Novo Homem.
E não poderemos ter a menor idéia dos nossos direitos primitivos
e do nosso verdadeiro renascimento, se não restabelecermos para sempre
em nós uma fonte de ações regulares, uma fonte de movimentos
verdadeiros e uma fonte de pensamentos; são pois, essas três
fontes que derivam juntas da fonte única e eterna do espírito.
O Novo Homem, após se ter convencido dessas verdades, não
somente por sua convicção íntima, mas ainda por sua
própria experiência, verá, como uma doce surpresa, que
o desígnio do salvador era abrir os olhos dos homens para esses deveres
indispensáveis e tão saudáveis, quando empregou o seu
poder para ressuscitar três mortos dentre o povo de Israel. Pois é
uma coisa admirável, não seria demais enfatizar a diferença
dos lugares onde cada um desses mortos foi chamado à vida. Lázaro
foi ressuscitado no sepulcro, onde estava havia quatro dias, já cheirando
mal. O Filho único da viúva de Naim foi ressuscitado no caminho
para o sepulcro; a filha de Jairo, chefe da sinagoga, com a idade de doze
anos, foi ressuscitada na casa de seu Pai. Como não perceberíamos
nessas três ressurreições realizadas pelo salvador a
tríplice ressurreição que devemos fazer em nós
próprios e que é, ao mesmo tempo, a obra principal e a recompensa
do Novo Homem?
Com efeito, esse Lázaro ressuscitado no sepulcro e já livre
da putrefação é o modelo dos nossos atos depravados
e das prevaricações que levamos até a obra e a consumação,
isto é, até a morada da morte e da corrupção,
que é simbolizada neste mundo pelos sepulcros materiais. O Filho
único da viúva de Naim, ressuscitado no caminho para o sepulcro,
é o modelo das nossas vontades criminosas que aderiram aos planos
falsos do nosso pensamento, mas que foram detidas na via do sepulcro, isto
é, antes de chegar à sua consumação e aos atos
iníquos que teriam completado sua corrupção, levando-as
à putrefação sepulcral. Por fim, a filha do chefe da
sinagoga, ressuscitada em casa, é o modelo da morte que podemos experimentar
em nosso pensamento, quando permitimos que ele se infecte por planos criminosos
e injuriosos ao espírito da verdade, que não quer que adotemos
outros planos a não ser os seus, que se dignou escolher o pensamento
do homem para ser o chefe da sinagoga universal, e que deseja que esse pensamento
do homem e todos os Filhos que possam resultar dele, espalhem por toda a
parte a vida que os anima.
Sem
dúvida, só após ter sido purificado em todo o seu ser,
e haver realizado em si essa tríplice ressurreição,
que o Novo Homem fará em si mesmo a eleição da qual
falamos anteriormente, ou a eleição das doze virtudes que
devem manifestá-lo em toda a extensão dos seus próprios
domínios. Antes dessa época ele era tão incapaz de
fazer uma eleição semelhante, que não poderia sequer
ter concebido essa idéia, e ainda menos executá-la, se o espírito
da verdade não tivesse vindo tomar nele o lugar de todas as suas
substâncias de mentira. Mais do que nunca ele está consciente
do quanto nos expomos quando ousamos caminhar por nós mesmos no percurso
espiritual. E é no espírito que o dirige, é no príncipe
dos justos, é no salvador que ele aprende de novo a se ligar a essa
reserva santa, pois esse próprio salvador ou príncipe dos
justos não quis fazer por si a eleição dos seus doze
apóstolos, passando toda uma noite em preces antes de escolhê-los
(Lucas 6:12)
Não será somente esse mandamento interior de si mesmo que
ele submeterá ao movimento do espírito. Em todas as circunstâncias
da sua vida ele terá na boca as palavras dos salmos 101:3: Em qualquer
dia que eu vos invoque, atendei-me. Ele não quererá uma única
virtude que não venha dele, pois sabe o quanto esta seria frágil.
Mas abrirá em si todas as substâncias das suas virtudes, a
fim de que o espírito venha apoderar-se delas, vivificá-las
e governá-las em todas as circunstâncias.
Assim ele pedirá incessantemente ao espírito que venha instalar-se
em sua penitência, em sua humildade, em sua coragem, em sua resignação,
em sua prece, em sua fé, em seu amor, em suas luzes, em sua esperança,
em sua caridade, em todos os afetos puros da sua alma e em todos os movimentos
da sua essência espiritual e divina, a fim de que não seja
mais vencido nos combates que terá a enfrentar.
Ele verá com que arte os homens evitam os perigos naturais que os
ameaçam, com que sabedoria prevêem os males que a sua experiência
lhes ensinou e opô-los uns aos outros para se preservar dos estragos
que esses elementos poderiam lhes ocasionar, caso os deixassem entregues
à força latente e impetuosa que os arrasta incansavelmente
as desordens. Porque ele vê o homem dispor sobre esses elementos e
temperar, ao seu prazer, o fogo com a água, o frio com o calor, o
seco com o úmido, e variar as propriedades nas quais ele se instala,
pela aplicação das substâncias diversas que a natureza
colocou nas suas mãos com uma prodigiosa abundância.
O Novo Homem não duvidará que o espírito tenha os mesmos
poderes nos domínios em que a sua essência e a sua supremacia
o chamam para reinar como mestre e soberano. Não duvidará
que esse espírito possua, segundo a sua classe, incomparavelmente
mais dons, mais previdência e mais sabedoria, os quais não
podem ser possuídos pelo homem que está circunscrito à
região elementar, qualquer que seja a habilidade que esse homem possa
utilizar para isso. Não duvidará que esse espírito
tenha à sua disposição um número incontável
de propriedades e de substâncias da sua própria natureza, em
comparação com as poucas substâncias da nossa matéria,
bem como para a produção e a manutenção das
obras das nossas mãos.
Pleno dessa convicção salutar, o Novo Homem, quando fraco
e fatigado, dirá ao espírito: ponde uma das vossas forças
sobre a minha fraqueza e ela a fortificará. Quando estiver abatido
e frio, dirá ao espírito: ponde uma das vossas substâncias
ardentes sobre minha debilidade, e ela a animará. Quando estiver
arrebatado por seu ardor impetuoso, ele dirá ao espírito:
ponde uma das vossas substâncias calmas sobre a minha impetuosidade
e ela a temperará. Quando estiver nas trevas, dirá ao espírito:
ponde umas das vossas substâncias luminosas sobre a minha obscuridade
e ela a iluminará. Quando estiver ofuscado pela luz, ele dirá
ao espírito: ponde sobre os meus olhos uma das vossas substâncias
intermediárias, e eu não temerei mais perder a visão.
Quando estiver cercado pelos seus inimigos, ele dirá ao espírito:
colocai entre mim e eles um dos vossos escudos, e eu estarei protegido de
todos os ataques. Quando se sentir como que suspenso por um fio em cima
do abismo, ele dirá ao espírito: estendei para mim uma das
vossas mãos, e eu caminharei sobre esses abismos como se fosse sobre
a terra mais firme.
Heis de que maneira o Novo Homem se unirá à habilidade do
espírito para se curar de todos os seus males, para se reservar de
todos os perigos, para prover todas as suas necessidades. Pois não
devemos temer repetir uma verdade tão essencial e tão consoladora,
a saber, que o espírito se presta mil vezes mais facilmente ao alívio
das nossas necessidades espirituais, do que a natureza se presta ao alívio
das nossas necessidades materiais, porque ele nos ama e a natureza não
nos pode amar, pois ela só pode nos entregar cegamente todas as substâncias
que cria, para que nos ocupemos, em seguida, de empregá-las para
o nosso benefício, segundo a nossa sabedoria e as nossas luzes. É
assim, portanto, que se conduzirá o Novo Homem em relação
ao espírito: ele tratará de cativar a sua boa vontade, para
que possa, com inteira confiança, dizer-lhe: em qualquer dia que
eu vos invoque, atendei-me.
A melhor maneira de chegar a esse final feliz, é poder dizer realmente
com confiança ao espírito: em qualquer dia que eu vos invoque,
atendei-me, é aproveitar cuidadosamente as substâncias saudáveis
que ele nos envia para o alívio das nossas enfermidades. Quanto mais
tirarmos proveito delas, mais ele nos prodigalizará com outras, de
tal modo que a nossa prece possa, ao fim, transformar-se em uma invocação
ativa e perpétua e que, em vez de dizer essa prece, possamos realizá-la
e operá-la a todo momento para a nossa preservação
e cura contínuas.
Consideremos então esse Novo Homem cercado de todas as substâncias
do espírito e aplicando-as, por sua fé efetiva ou por sua
prece em atos, a todas as necessidades que pode experimentar em sua obra.
Vejamo-lo, em todos os passos ao seu caminho, procurar para si novas graças,
novos apoios, novos benefícios e, por essa fidelidade e esse vivo
devotamento, identificar-se de tal modo com o espírito, que essas
mesmas graças, esses mesmos apoios e esses mesmos benefícios
desçam sobre ele de uma maneira natural e gratuita: que ele as receba
a todo instante, sem que as procure e sem que, contudo, se surpreenda ao
vê-las preencher todas as suas necessidades.
Por essa doce perspectiva, julguemos o que seria para nós esse estado
glorioso em que não nos encontramos mais, mas do qual o Novo Homem
nos autoriza a crer que podemos ainda perceber os vestígios neste
mundo. Porquanto esse Novo Homem deve ser para nós o desenvolvimento
e a manifestação do que era o homem primitivo, antes que as
conseqüências do crime o tivessem tragado em sua prisão
tenebrosa.
Vejamo-lo desenvolver os tesouros que se escondem nele, e dos quais o salvador
nos mostrou tantos frutos semeados no campo evangélico. Vejamo-lo
no meio de um povo que tem um número aproximado de cinco mil, tendo
apenas cinco pães e dois peixes para se alimentar. Ele os fará
sentar-se em grupos de cinqüenta em cinqüenta, tomará os
cinco pães e os dois peixes, elevará os olhos para o céu,
abençoá-los-á, parti-los-á e dá-los-á
aos seus discípulos para que os apresentem ao povo. Eles comerão
todos e ficarão saciados e levarão doze cestos cheios dos
pedaços que sobraram. Uma outra vez, ele tomará sete pães
e alguns peixes para quatro mil homens. Todos eles comerão e ficarão
saciados e levarão sete cestos cheios dos pedaços que restaram.
Uma outra vez ainda, vejamo-lo, com Eliseu, multiplicar vinte pães
para mil pessoas, dos quais também haverá sobra.
Todos esses fatos são apenas os testemunhos e os frutos dos dons
que o espírito fez germinar no Novo Homem. Apenas anunciam esse alimento
espiritual, ativo e físico que esse Novo Homem pode incessantemente
multiplicar nele em favor dos diversos povos que habitam as diversas regiões
do seu ser. Porque, se estiver unido à fonte da vida, não
haverá nenhum lugar nele a que os veios dessa fonte viva não
possam chegar e acumular as suas águas fecundas, de tal maneira,
que a fertilidade aí se estabeleça e forneça abundantemente
a substância a todo o que habitar seus domínios legítimos,
de indigente e esfomeado.
Se a inteligência quiser se elevar ainda acima desse Novo Homem e
se entregar as leis e aos caminhos que a sabedoria divina utiliza para fazer
descer as suas graças e os seus favores sobre os infelizes mortais,
ela verá nos fatos relatados acima, primeiramente, o poder supremo
aliviando a nossa fome e curando a nossa miséria pelo número
da nossa própria miséria. Em segundo lugar, verá esse
mesmo poder supremo nos reservar, além disso, o número necessário
de fontes abundantes para nos ajudar em nossa regeneração.
Enfim, verá esse mesmo poder supremo agindo em seguida, por um número
puro, sobre o homem regenerado, devolvendo-nos novamente a posse desse mesmo
número puro que foi, outrora, a nossa característica distintiva.
A
razão pela qual o Novo Homem, reunindo-se à fonte de vida,
se toma depositário de tão grandes tesouros, podendo manifestar
em si próprio tão grandes e tão saudáveis multiplicações,
é que essa fonte de vida o faz descobrir, no fundo do seu ser, sete
fontes ativas que, unindo mutuamente suas forças diversas, desenvolvem,
umas através das outras, suas propriedades particulares, de uma maneira
que não possam mais se interromper, e que torna essas fontes inesgotáveis,
pois é a fonte da vida que as anima e as sustenta.
São como bases sacramentais que trazemos em nós próprios,
e sobre as quais devemos elevar todo o edifício sacerdotal ao qual
o homem foi destinado por sua natureza primitiva e segundo os planos da
sua origem. São as sete colunas erguidas por essa pedra inata em
nós, sobre a qual o salvador disse que queria construir a sua igreja.
Essa pedra é quadrada e talhada pelo cinzel do espírito e
deve servir de base a esse templo divino, destinado a substituir no Novo
Homem as tendas que, até então, foram o único abrigo
da arca santa ou da verdade. É essa a porta do templo que era quadrada,
segundo o profeta Ezequiel (41:21), e que correspondia à fachada
do santuário, olhando uma para a outra. É por essa porta que
os oráculos do santuário devem se pronunciar ao povo, segundo
Isaías (9:8): O Senhor dirigiu a sua palavra a Jacó, e ela
caiu em Israel. E saber-lo-á todo o povo de Efraim e os habitantes
da Samaria. É por essa mesma porta que devem entrar as nações
para vir adorar no templo de Jerusalém, e são essas sete colunas
erguidas no templo que tornam esse templo totalmente sólido, para
que as nações possam habitar nele em segurança, pois
Salomão nos diz (Provérbios 9:1) que a própria sabedoria
edificou para si uma casa e levantou sete colunas.
Novo homem, contempla-te, portanto, com respeito. Tu tens, à tua
frente, o santuário ou a unidade eterna e divina; tu tens, ao fundo
do teu ser, a base fundamental do templo, e encontras em atividade nesse
templo as sete fontes sacramentais que, estando vivificadas pela fonte da
vida, devem fertilizar para sempre todas as regiões que te compõem.
Compete a ti velar incansavelmente para que as águas dessa fonte
de vida não se desviem de modo algum do seu curso natural e para
que se dirijam, diariamente, aos teus sete canais espirituais. Elas jamais
se desviarão por si mesmas, porque, por sua própria inclinação,
tendem a encontrar o repouso em ti. Mas se não tiveres o cuidado
constante de lhes preparar os caminhos, exatamente em linha reta, essas
águas divinas se espalharão em vez de entrarem nos teus sete
canais espirituais, e não te trarão benefício algum,
pois é essa pedra fundamental do teu templo que elas escolheram como
sendo o único mar suficientemente grande para lhes servir de reservatório.
Essa pedra fundamental é realmente a raiz dessas sete fontes sacramentais,
que o Novo Homem descobre em si depois de já ter suportado as provas
preparatórias e indispensáveis, como aquela em que descobriu
esse divino instrutor do qual falamos anteriormente, e que, estando sentado
na cadeira anterior a todas as cadeiras temporais, pronunciou diante dele,
sobre a verdadeira montanha, os discursos e os ensinamentos que devem servir
de guia e de regra ao povo de Israel, se ele quiser conservar os privilégios
da sua escolha.
A raiz dessas fontes sacramentais se encontram, então, na pedra fundamental
do nosso templo; portanto, trazemos em nós próprios o testemunho
e a característica viva que nos devem dizer, à semelhança,
do salvador: "Como o Pai tem a vida em si próprio, ele concedeu
ao Filho que também tivesse a vida em si próprio, e deu-lhe
o poder de exercer o julgamento, porque ele é o Filho do homem..."
Também pode dizer como o salvador: "Eu não recebo o testemunho
de um homem... Tenho um testemunho maior que o de João... é
meu Pai, que me enviou, deu ele próprio um testemunho de mim".
O Novo Homem pode falar dessa maneira, porque ao descobrir em si a pedra
fundamental do templo, ele reconhecerá que ela é o fruto,
o extrato, o produto e o testemunho da própria unidade, e que se
essa pedra fundamental é o testemunho da unidade, que por sua vez
é o testemunho dessa pedra fundamental, pois o Filho é o testemunho
do Pai, como o Pai é o testemunho do Filho.
É esse duplo testemunho que assegura para sempre a dignidade do Novo
Homem e que constitui a base da sua confiança e da sua segurança.
É, ao mesmo tempo, o que dá todo o valor e toda a virtude
a essas sete fontes sacramentais que derivam dessa pedra fundamental sobre
a qual deve ser construída a igreja, como essa pedra fundamental
deriva da unidade.
Também a harmonia se faz conhecer nessas fontes, pois elas são
a expressão da harmonia que deve reinar na pedra fundamental, à
semelhança daquela que reina na unidade. Elas estão todas
intimamente ligadas, embora tendo características distintas, e se
auxiliam mutuamente de modo algum para eclipsarem umas as outras, mas para
facilitar as suas diversas manifestações.
Ora, as suas manifestações, ainda que diversas, tendem contudo
a um fim comum e único, que é a propagação e
a comunicação da coisa sagrada. Porque um sacramento tem essa
reputação, uma vez que ele é o caminho pelo qual as
coisas santas e divinas se transmitem aos lugares onde são necessárias
para que a morte e o nada desapareçam; e sob essa ligação
vemos crescer, diante dos nossos olhos, a dignidade do homem que foi escolhido
para ser a pedra fundamental do templo e, além disso, para possuir
as sete fontes espirituais pelas quais a Vida Divina quer se transmitir
aos lugares áridos e estéreis. Ora, hoje não podemos
mais ignorar o que desenvolve nele essas sete fontes sacramentais, pois
repetidamente apresentamos o homem como sendo o pensamento, a palavra, a
realização do eterno, e como tendo uma necessidade indispensável
do auxílio da palavra, para que a palavra lhe seja restituída
e ele possa alcançar a dignidade do Novo Homem.
Digamos, então, que o Novo Homem só possui em si essas sete
fontes sacramentais, ou esses sete sacramentos, porque recebeu realmente
em si o sacramento da palavra, e esse sacramento da palavra fez brotarem
nele as sete fontes que, anteriormente, estavam na estagnação
e na morte. Mas como o sacramento da palavra não pode atingir as
sete fontes sacramentais do Novo Homem, por não ter operado sobre
a pedra fundamental do templo, segue-se que essa pedra fundamental do templo
deve primeiro ser penetrada e revestida por esse sacramento da palavra,
para que as sete fontes que se originarão, dai sejam sempre abundantes,
e para que os rios divinos possam enchê-las ininterruptamente e em
toda a sua pureza.
Recolhamo-nos diante de Deus, diante desse princípio eterno de toda
vida e toda existência, o único a quem se podem oferecer homenagens
merecidas, que não cabem a nenhum outro ser. Recolhamos diante dele,
em nosso respeito e em nossa admiração, por ter permitido
que a alma do homem pudesse partilhar a serenidade da sua existência
divina e a administração dos seus tesouros santificantes.
Recolhamo-nos, digo eu, em um santo tremor, a fim de que a nossa essência
imortal reuna desse modo todos os seus poderes, para não receber
em vão esse sacramento que fará correr nela.
Tenhamos incessantemente diante dos olhos o destino tão glorioso
do Novo Homem que o sacramento da palavra regenerou. Ele foi sacralizado
por essa palavra e, por assim dizer, como um sacramento nele tudo foi sacramentado
em seu ser, pois as sete fontes sacramentais que brotaram da sua pedra fundamental
compreendem sua região terrestre e corporal, sua região celeste
e espiritual e sua região divina.
Após ter sido assim sacramentado em todo o seu ser, ele teve sacramentado
todos os objetos que o rodeiam e todos os seres que esperavam que essas
fontes sacramentais fossem abertas para receber as águas do rio da
vida. E tal é o destino que o homem teria desfrutado se tivesse conservado
a sua dignidade primeira. Tal é o destino do qual ele pode recuperar
os traços vivos, humilhando-se diante do sacramento da palavra e
administrando com sabedoria e com um santo temor os dons que sairão
dessas sete fontes sacramentais. Tal é, enfim, o destino que deve
ainda se tornar belo para ele, dia vindouro, se souber unir-se para sempre
a esse sacramento da palavra, do qual foi feito para ser eternamente sacramentado.
Esse
sacramento da palavra dá três nomes ao Novo Homem, segundo
as três faculdades que nos distinguem. Assim, em sua ação,
ele se chamará celeridade da obra; em seu amor ele se chamará
unidade dos reflexos do afeto divino; em seu pensamento ele se chamará
amanhã perpétua do mais belo dia; e todo o seu ser, desenvolvendo-se
assim, fará o inimigo sentir de tal maneira suas forças, que
ele tremerá de medo ao saber que o leão desperta e o ameaça
de não ter um momento de repouso e de perseguí-lo até
que tenha largado a sua presa e que seja queimado pelo fogo da palavra do
Novo Homem.
Como a palavra tratou Efraim e Judá? Esses povos que romperam, como
Adão, a aliança que haviam feito com ela, e que no seu culto
violaram as ordens do Senhor. (Oséias 6:7) Eu os tratei duramente
pelos meus profetas e os matei pela palavra da minha boca (disse o Senhor,
id. 5) e tornarei clara como o dia a eqüidade dos julgamentos que exercerei
sobre eles. Se assim foram tratados os povos prevaricadores, que eram, contudo,
o povo escolhido, a justiça não tratará mais severamente
ainda o príncipe da iniqüidade e o Pai de todas as abominações
sobre a terra? E ao Novo Homem foi destinada a execução desses
terríveis julgamentos em todo o seu ser, antes de os exercer sobre
as nações que estão fora dele.
Ele permanecerá noite e dia em seu trono, não deixará
de modo algum a sala do conselho, cuidando para que os decretos que emanam
dele sejam levados apenas por mensageiros fiéis, até as fronteiras
das suas possessões e do seu império particular, que esses
decretos não sejam recebidos com tremor pelos povos culpados, e que
ele tenha somente testemunhos autênticos de que esses decretos produziram
o seu efeito e foram executados. A autoridade se enfraquecerá se
a obra não se cumprir. O homem deve velar e respirar somente para
o triunfo da lei. E se quiser que a autoridade não perca o respeito
que lhe é devido, é preciso que ela não ordene nada
em vão.
É a fim de que ela não ordene nada em vão que o Novo
Homem se unirá aos homens de Deus, para que eles unjam os seus membros
com o óleo santo e se preservem de serem mortos pelo inimigo ou empedernidos
pela indolência. Rogará ao grande pastor que venha renovar
nele as diversas alianças que Deus sempre quer fazer com o homem,
e que o homem sempre se esforça para anular. Rogará ao grande
pastor que venha a toda hora e a todos os momentos ministrar, no seio da
sua alma, o sacramento do renascimento e da revivificação.
Pois sem isso, como poderá reunir as porções dispersas
do nome do Senhor? Ora, heis como a sabedoria distribuiu os órgãos
do Novo Homem, a fim de que ele possa cumprir o seu destino e reunir as
porções dispersas do nome do Senhor.
O coração está situado à direita da alma. É
ele que deve ajudá-la a pôr todos os inimigos a seus pés.
O espírito está à sua esquerda, para adverti-la da
aproximação do inimigo. Quando tiver a felicidade de fazer
triunfar a lei e de colocar os inimigos a seus pés, então
o espírito passa para a direita e da direita vai para a linha da
unidade. O salvador, que é o modelo divino do Novo Homem, não
foi anunciado por toda a parte como estando à direita de Deus? O
espírito está à sua esquerda. Está encarregado
de velar contra o inimigo e de anunciar os julgamentos da inteligência
eterna, expressões que somente têm lugar no tempo e acerca
das quais o homem esclarecido não se pode enganar, porque ele sabe
que, acima do tempo, todos os nomes estão em um só nome e
exprimem um só ato. Mas no quadro dessa disposição
temporal das obras divinas, o Novo Homem vê por que nos é dito
que a nossa vida está oculta no salvador. É que o salvador
é a vida, e só podemos viver pelo coração; heis
mais uma razão pela qual o homem está à direita do
Senhor.
Sim, o coração do homem é o seu céu, e a sua
alma, é o seu Deus. O Deus não pode morrer, mas o céu
pode obscurecer, ele pode se confundir como um livro. O único meio
pelo qual o Novo Homem impedirá o seu céu de obscurecer e
se confundir como um livro, é fazer-se um coração à
imagem de Deus e identificar-se com aquele que está à direita
de Deus, tornando-se assim semelhante à vida. Homens de paz, queiramos
que esse céu não mais escureça e nem se confunda como
um livro. Façamos de nós um coração que se assemelhe
à direita de Deus, que combata universalmente, como ela, as desordens;
que como ela, por sua própria força, vença a iniqüidade,
que, como ela, deixe sair de si mesmo os ramos de todas as virtudes, fazendo
brilhar, noite e dia, o candelabro de sete pontas; que, como ela, possa
satisfazer a nossa segurança e as necessidades espirituais dos indigentes;
enfim, que, como ela, esteja sempre pronto a realizar a obra de Deus, de
todas as formas e em todas as ocasiões.
Porque o Novo Homem não pode afirmar, antecipadamente que, à
imagem do salvador, ele deve ser entregue às mãos dos homens,
que é precioso que sofra muito, que seja rejeitado pelos senadores,
pelos príncipes dos pastores e pelos doutores da lei e, enfim, que
seja morto e que ressuscite no terceiro dia. Mas esse Novo Homem, devotado
ao serviço do seu mestre, vê somente as consolações
que o esperam e não se deixa deter pelos males que deve sofrer, pois
ele bebeu o medicamento da amargura, e assim o seu coração
engendrou nele a compreensão, e a compreensão engendrou nele
a palavra que lhe traz uma viva confiança na sua vitória sobre
os seus inimigos. Em conseqüência, heis de que maneira ele emprega
os diferentes recursos que lhe são dados pelo espírito, e
que se encontram nele pelos diversos desenvolvimentos do seu ser.
Ele coloca a constância no oriente, a purificação no
ocidente, a confiança ao norte, a audácia santa ao meio-dia,
e assim marcha para a sua obra, sempre no meio de virtudes.
Não se deixa enfraquecer pela ternura dos seus irmãos, que
o querem deter e impedir de ir a Jerusalém, onde deve sofrer e ser
morto. Conhece somente as coisas do céu e se "queixa vivamente
aos seus irmãos de que eles não renunciam a si próprios
para o seguirem e de que têm somente o gosto pelas coisas da terra.
E de que serviria a um homem ganhar todo o mundo e perder a si mesmo? Como
poderia redimir-se, quando o Filho do homem viesse na glória do seu
Pai, com os seus anjos, para dar a cada um segundo as suas obras?"
Essa também é a diferença dos caminhos por onde os
movimentos e as ordens nos chegam. Quando recebemos do alto as ordens ou
os conselhos, o quaternário age pela inteligência, pela adesão,
pelo zelo e pela obra; quando é a nossa própria alma que se
manifesta, ela age pela afeição, pelo julgamento, pela vontade
e pela expressão, porque, como nos encontramos nas trevas, é
preciso, necessariamente, que submetamos nossos movimentos ao grande juiz
- que está sediado na região superior -, para que as sancione.
Mas enquanto não tivermos colocado tudo em ordem em nosso ser, só
haverá intrusos sentando-se no tribunal; e eles sancionam, seja pela
ignorância, seja pela depravação, os planos mais perversos,
colocando-nos pelas obras que daí resultam, na situação
de não mais poder receber do alto nem as ordens, nem os conselhos.
Pois, se um cego conduz outro cego, o que eles podem trazer um ao outro,
e não é para crer que ambos caiam na fossa?".
É por isso que o meu coração está pungido por
uma ferida que não pode mais ser curada sobre a terra, porque essa
ferida é semelhante àquela que afetou o reino da verdade.
Também eu não procurarei mais sobre a terra o remédio
para a ferida do meu coração. Eu o procurarei no reino da
verdade, pois somente ele pode resistir ao inimigo e curar todas as feridas.
O próprio reino dos céus chora e está cheio de tristeza,
depois que o mal verteu o seu veneno e que o príncipe das trevas
sentou-se no tribunal: como poderia o coração do homem não
estar em luto e lágrimas, uma vez que o reino dos céus e o
coração do homem estão unidos por uma aliança
que os torna inseparáveis? É nessa aliança que os torna
inseparáveis que se encontra também a única consolação
feita para o homem. Porque o choro do reino de Deus, ao penetrar o meu ser,
trouxe-lhe o discernimento, como as lágrimas da vinha trazem claridade
aos nossos olhos corporais.
Chorai então, videira sagrada, chorai com abundância que recolheremos
com cuidado as lágrimas que espalhardes. Fazei com que nosso ser
chore convosco, pois se nosso ser deve unir-se a vós nas consolações,
também o deve na vossa tristeza. Só vossas lágrimas
podem curar a ferida universal, mas são as lágrimas do homem
que devem curar suas feridas particulares. Quanto mais ele chorar, mais
poderá esperar curar-se da ferida, pois só poderá obter
isso pelas suas lágrimas e pelos seus gemidos. Ele não faz
mais do que repetir a imagem da vossa obra restauradora. Quanto mais chorais,
mais anunciais, como avinha, uma grande colheita, e mais manifestais as
virtudes salutares da primavera.
O
homem de Deus é obrigado a se rebaixar constantemente e a se reduzir,
como Elias, à pequenez do Filho da viúva de Sarepta para ressuscitá-lo.
É isso o que torna o seu ministério tão laborioso.
É preciso que esse homem de Deus esteja sempre em contração,
para adequar as virtudes divinas à nossa morada impura e suja. Pois
o homem se estabeleceu para ser perpetuamente o órgão dessas
virtudes, seja na prece, seja nos ensinamentos, seja nas obras.
Que o Novo Homem não se atemorize por essas fadigas; o tempo de repouso
fará com que ele as esqueça. O Novo Homem é um homem
de verdade, e o homem de verdade não conhece nenhum obstáculo.
Mesmo no meio dos seus trabalhos e das suas provações, tem
sempre diante de seus olhos esta passagem de Davi: que toda a terra se regozije
em Deus. Servi o Senhor com alegria, entrai e apresentai-vos diante dele
em um êxtase santo. Sabei que o Senhor é o verdadeiro Deus,
que foi ele quem nos fez e que não fizemos a nós mesmos. Toda
a terra do Novo Homem está em segurança, e na alegria, porque
ele sente que os seus ossos se tornaram semelhantes aos ossos da vida, e
que a virtude da carne celeste e do sangue espiritual penetra e nutre a
sua carne e o seu sangue.
Homens impetuosos, vós queríeis conhecer as vontades de Deus
nas diferentes situações em que vos encontrais, como se estivésseis
unidos a ele, enquanto que nada se pode fazer por vós sem essa santa
união. Queríeis estar unidos a Deus, como se estivésseis
purificados, enquanto que essa união só pode ser feita após
a vossa purificação. Queríeis ser purificados como
se tivésseis, feito todos os esforços para isso, enquanto
que a vossa purificação não pode ter lugar senão
após longos e penosos sacrifícios. Queríeis que esses
longos e penosos sacrifícios fossem feitos como se os objetos desses
sacrifícios já tivessem desaparecido de vossa frente, enquanto
que esses mesmos objetos compõem hoje em dia todas as substâncias
do vosso ser.
Começai baixando um véu entre vós e os objetos informes
que deformaram vossa visão e vosso discernimento. Esse primeiro passo
vos conduzirá aos sacrifícios, os sacrifícios vos trarão
a purificação, a purificação vos guiará
à união com o princípio ativo do vosso ser, e esse
princípio ativo vos revelará, a todo instante, as vontades
do vosso Deus. Pois o vosso Deus está ocupado com os seus planos
e com os seus desígnios para os homens. E quando ele realmente se
une a nós, de uma maneira viva e dinâmica que desenvolve ativamente
todas as nossas relações e todas as nossas leis.
Foi-nos dito que Deus era tudo. Mas não é de modo algum na
linguagem de uma moral vaga e estéril que podemos compreender essa
verdade: e somente a partir dele, por ele e nele que podemos entendê-la.
Ai dos homens impetuosos no meio de riquezas tão abundantes! Em vez
de unirem-se a essa ação una, abandonam-se diariamente e se
deixam seduzir por toda sorte de ações múltiplas e
diversas, que os destroem e os decompõem, iludindo-os.
Mas tu, ó sabedoria santa, tu que jamais perdes de vista os teus
Filhos, se deixares que eles sejam negligentes e errem, não poderão
eles, em conseqüência, adquirir virtudes falsas quando entrarem
no caminho reto? Porque podes trazer-lhes, ao mesmo tempo, os frutos do
tempo que eles empregaram e os frutos do tempo que perderam, pois tu podes,
se quiseres, abolir e apagar para eles a diferença das horas. Mas
que esses infelizes não esqueçam jamais sob que condições
essa diferença das horas lhes será abolida. Será somente
quando cada porção do seu ser tiver se tornado um órgão
de dor e de penitência. Porque sem essa aguda transpiração,
a corrupção permanecerá neles e lhes corroerá
até a medula.
Sábios do século, que considerais que a natureza do homem
não pode chegar até o nosso conhecimento, jamais experimentastes
o verdadeiro segredo que poderia trazer-vos esse conhecimento. Como podereis
querer obtê-lo, então? A própria matéria não
sai dos seus invólucros para vir vos oferecer os seus segredos? Seria
preciso, portanto, começar por seguir a lição que ela
vos dá e libertar-se dos vossos próprios entraves, como ela
faz diariamente. Poderíeis, em seguida, comparar os seus frutos com
os do vosso ser interior, e essa comparação bastaria para
dirigir os vossos julgamentos de maneira mais segura.
Com efeito, podereis obter uma prova positiva de que essa matéria
é enganosa e sem valor. É assim quando percorreis as suas
vias obscuras e submeteis o vosso espírito às suas leis, parecendo-vos
que estais no vazio e como que numa miséria universal. Ao contrário,
podereis obter uma prova de que o espírito é tudo. É
assim quando o cultivais e vos ligais às suas percepções,
parecendo-vos que estais na plenitude e que ele não vos deixa faltar
nada.
Assim também a própria lei, tomada em seu sentido integral
e essencial, é o caminho que nos conduz à unidade e que por
objetivo a unidade, isto é, o gozo da realidade. Porque quando estamos
na unidade, temos o sentimento do gozo e não temos mais a idéia
da lei. Mas, uma vez que saiamos da unidade, a lei se apodera de nós,
e heis que elas são as suas ramificações, se não
cuidarmos para prevenir os fins inferiores aos quais ela pode nos fazer
descer.
O dever está ao lado da lei, a fadiga ao lado do dever, o desalento
ao lado da fadiga e a miséria ao lado do desalento. Na própria
ordem dos gozos legítimos deste vale de lágrimas e em tudo
o que podemos chamar neste mundo de serenidade e felicidade do espírito,
não estamos muito mais em segurança, enquanto a própria
unidade não nos dominar, nos dirigir, nos governar. Pois o prazer
está ao lado da felicidade, o erro ao lado do prazer o crime ao lado
do erro e a morte ao lado do crime.
O homem, retorna em direção à unidade. Só ela
te manterá acima de todos os perigos, porque te manterá acima
de todas as leis, pela abundância da sua sabedoria e a imensidão
da sua luz. Não imita esse tirano cego que submete as nações
encurvadas ao seu jugo. Tu vês que o mundo está contente, pois
o espírito se oculta nele e não exige nada dele, ao passo
que o corpo encontra aí tudo o que precisa. Não esqueça
que, na verdadeira ordem, caberia ao espírito, ter tudo o que quisesse,
e que o corpo, ao contrário, não poderia ousar elevar a sua
voz e pedir qualquer coisa, mas esperar, como um vil escravo, que se quisesse
dar a ele tudo o que necessita. Sem isso, o espírito se degrada,
na medida em que, se torna o servidor desse escravo. Não estamos
nós bastante degradados pelos cuidados forçados que diariamente
temos de dispensar a essa forma material que nos envolve, e pela obrigação
que nos sujeita, de modo humilhante, a tratar dessa besta de carga? Sangue
do homem, profetizado contra a sua injustiça e o seu crime; profetizado
como o fardo da sua iniqüidade. Ele paga com juros os seus primeiros
desvios, depois que o sangue se tornou a sua vestimenta. Esse sangue lhe
foi dado para que afogasse todos os súditos do faraó, após
ele próprio tê-lo atravessado sem molhar os pés, como
Israel ao cruzar o mar Vermelho. Mas, em vez de se separar, a cada dia,
dessa vestimenta que o desonra, ele lhe acrescenta novas marcas de infâncias,
que poderão torná-lo um objeto de opróbrio.
Sim, o sangue é o inferno terrestre. Longe de aclamar a tempestade,
ele busca somente torná-la mais violenta, a fim de que o homem seja
tragado para o fundo do mar. Ele ordena aos quatro ventos do céu
que venham agitar incessantemente as ondas desse mar tormentoso, e essas
ondas, ao se agitarem elevam-se para revelar as fundações
do altar de Baal. Oh! sangue, oh! sangue, cada uma da tuas palavras é
uma revelação da impiedade do homem e uma profecia do príncipe
da mentira. Heis por que todos os nossos dias se passam na ilusão
e no vazio. Heis por que vivemos no meio das espessas trevas do Egito.
Mas se a palavra do Senhor deve um dia revelar os fundamentos do mundo (Salmo
17:16), não pode também ela revelar os fundamentos da alma
do homem? E sem isso o Novo Homem poderia ainda ter esperança? Ele
dirá então: "Senhor, recordai-vos da sabedoria dos vossos
desígnios, desde que haveis dado ao homem a existência. O grande
objeto de vossa antiga aliança com ele, poderíeis alguma vez
esquecê-lo? Se o sábio se afrouxou diante de vós, foi
em vão que ele abriu os olhos para o resto da sua obra. Ele se torna
o objeto das lágrimas dos profetas que o comparam aos servidores
preguiçosos. Pois não pode mais cantar os cânticos da
paz e da felicidade, esses cânticos que os ouvidos de sabedoria gostam
de ouvir".
O Novo Homem ouve no fundo de si mesmo esse cântico que agrada o ouvido
da sabedoria: "É do alto que virá a minha força,
é do alto que espero a luz. A Força do poder do Senhor precipita
todos os seus inimigos no abismo, porque o seu poder impede a alma humana
de desenvolver o dela, e o poder da alma humana é como um entrincheiramento
em torno do exército do Senhor".
Alma humana, enche-te de confiança e considera quais serão
os teus benefícios, se te dignares a fazê-los render. O inimigo
não é mais do que uma passagem por onde ele pode aproximar-se
de ti, e tu podes ainda fechar essa passagem de acordo com a tua vontade.
Mas, para ti, teus poderes podem desenvolver-se em todos os sentidos, pois
tu és o centro e te manténs no centro universal. Porque era
de ti que falava o salvador quando dizia: assim como o meu Pai, da mesma
forma aquele que se alimentar de mim vivera por mim. Ora, alimentar-se do
salvador é transformar todas as tuas substâncias nas obras
e na atividade do seu espírito, fazendo com que esse espírito
eterno e divino penetre todas as tuas faculdades, como o sumo dos teus alimentos
grosseiros penetram todas as fibras do teu corpo.
Não
é pela repetição das palavras em sua prece que o Novo
Homem chegou a essa união com o espírito; é pelo fogo
interior do seu ser, que se inflamou e que espalhou ao redor dele uma luz
semelhante àquela da qual se originou. A lei da afinidade realizou
o resto. E mesmo esse fogo do seu ser interior só se acendeu pelo
sopro suave da sabedoria, que procura apenas levar a cada coisa as suas
propriedades.
Quem não sentiu esse sopro suave da sabedoria descer sobre si, jogando
por terra todas as matérias estranhas que escondem esse fogo e o
impedem de se mostrar em todo o seu esplendor e em toda a regularidade da
sua forma, digo eu, quem não viveu essa experiência útil
não conhece ainda o verdadeiro caminho.
Com efeito, é nesse caminho que se conhecem as recompensas prometidas
ao Homem de Desejo, que se consumiu na vigilância e no zelo em guardar
a cidadela que lhe foi confiada; a esse Homem de Desejo que prometeu a si
mesmo não se entregar a uma especulação do espírito
e da inteligência, sem haver antes consagrado esforços e tempo
a alguma obra ativa do espírito. Ele está persuadido de que
o homem deve sempre temer por não agir e jamais temer por não
saber. É saudável: estar sempre pronto a seguir as ordens
do seu mestre: sempre cheio de resignação a todos os acontecimentos
aos quais os seus serviços podem conduzi-lo; enfim, sempre feliz
por poder se tornar, interiormente, o testemunho consolador de que zelou
pela glória desse mestre e de que não faltou, nem atrasou
no seu serviço.
E então, o sopro suave dessa sabedoria que desenvolverá no
Novo Homem a sua verdadeira prece, que é a ação natural
do seu ser. Pois o único fim dessa prece é manter no homem
a ordem, a segurança, a moderação. Deve fazer com que
o inimigo fique sempre fora de lugar, que o coração do homem
esteja sempre saciado das fontes das águas vivas, e que o seu pensamento
seja como um centro onde as luzes divinas se reúnem para se refletirem
com um brilho ainda maior. Como essas são as faculdades primitivas
do homem, se elas chegarem a cumprir o objetivo da sua destinação,
o homem estará realmente em sua prece, ou melhor, o homem será
de fato a prece e o sacrifício do mais agradável perfume que
o senhor possa receber. Mas onde está aquele que verdadeiramente
se converteu em uma prece e em um sacrifício do mais agradável
perfume para o Senhor?
Deus disse: "O homem será um centro onde se refletirão
todos os raios da minha glória. Ele recebeu de mim, em seu corpo,
a base de todas as impressões e de todas as suas qualidades de seres
sensíveis, assim como recebeu de mim, em seu espírito, a base
de todas as impressões e de todas as propriedades superiores. Foi
por mim que dispus e coloquei o homem nessa alta categoria. Tive por objetivo
a minha própria alegria, a minha própria glória e o
progresso dos meus desígnios. E, contudo, o homem desdenhou os meus
presentes. Desdenhou trabalhar para a minha glória e para o progresso
dos meus desígnios. Como eu deveria tratar esse servidor infiel?
Eu o trataria como às nações que tomaram os ídolos
por seus deuses. Mil universos acumulados uns sobre os outros não
subtrairiam dos meus olhos esses culpados. O seu crime ousa tocar o meu
trono, e a minha justiça se lembra ainda do abalo que ele experimentou.
Homens negligentes, homens insensíveis a minha glória e ao
avanço dos meus desígnios, enchei-vos de zelo pela minha casa
até que os muros de Jerusalém estejam totalmente construídos,
até que estejais realmente convertidos em uma prece ativa e em um
sacrifício de agradável perfume para aquele que vos criou".
Quanto ao Novo Homem, ele realmente se converteu em uma prece ativa, e heis
como as suas faculdades recobraram os direitos do seu destino original.
Ele disse: "Invocarei Deus em nome do salvador, invocarei o salvador
em nome do cumprimento da lei, invocarei o cumprimento da lei em nome da
fé, invocarei a fé em nome das minhas obras e da constância
das minhas santas resoluções". Heis os quatro rios que
o Novo Homem encontrou em si. Também encontrou nele o jardim do Éden,
desde que se encheu de confiança e de zelo e que as colheitas se
tornaram abundantes. Outrora esses quatro rios formaram um único
rio, pois esse jardim do Éden estava ainda em sua fertilidade primitiva.
Mas as catástrofes da natureza, ao multiplicar as montanhas e os
vales, dividiram as fontes dos rios e multiplicaram as correntes.
Essa multiplicidade pode e deve retardar a obra, mas não deve impedi-la
de se realizar. Todos os caminhos da sabedoria são tranqüilos.
Ela não limita nossos gozos, a não ser que tenhamos limitado
nossas faculdades, a ponto de não podermos hoje, sem perecer, contemplar
em todo o seu brilho a luz que nos foi outrora destinada, haja visto nossa
desproporção em relação a ela.
Porém essa luz se encontra ainda muito viva e muito abundante, não
apenas para suprir nossas necessidades, mas também para encher de
delícias aquele que põe nela toda a sua afeição.
É porque o Novo Homem disse com júbilo e na plenitude da sua
esperança:
"Quando o fogo do Senhor tiver inflamado o meu coração
e queimado as minhas vísceras; quando os homens de Deus tiverem preparado
todos os sentidos da minha alma; quando o óleo santo tiver cumprido
a minha consagração exterior e interior; então o Senhor
entrará em mim, passeará em mim, como outrora passeou no jardim
do Éden.
Eu escutarei o meu Deus, verei o meu Deus, conceberei o meu Deus, sentirei
o meu Deus. Ele próprio aplainará os caminhos por onde quiser
fazer marchar a sua sabedoria; ele disporá o meu coração
para aí poder habitar como em um lugar de repouso. E quando eu quiser
me nutrir das doçuras da virtude, do império das forças
e dos poderes, e da deliciosa contemplação da luz, considerarei
o habitante celeste que morará em mim e obterá para mim, ao
mesmo tempo, todos esses benefícios".
"Quando o habitante celeste que mora em mim tiver encontrado para mim
todos esses benefícios, semearei no campo da vida os germes dessas
árvores portentosas. Elas crescerão nas margens desses rios
de mentira que inundam a perigosa morada do homem. Elas entrelaçarão
suas raízes para sustentar as terras que esses rios banham com suas
águas, impedindo que desmoronem e sejam arrastadas pela corrente.
Desenvolverão grandes ramos, que darão sombra às margens
dos rios e protegerão do calor do dia o paciente pescador que vier
buscar seu alimento com a linha na mão. Esses ramos prestarão
um outro serviço ao navegador, que poderá amarrar aí
sua embarcação e ter um momento de repouso após uma
viagem fatigante. Com um ardor ainda maior, ele se agarrará a esses
ramos para se salvar dos freqüentes naufrágios aos quais sua
perigosa navegação esta sujeita diariamente. Ele os agarrará
em seu temor e os bendirá por tê-lo ajudado a se livrar do
abismo que haveria de engoli-lo".
"Esses são os frutos que devo esperar das virtudes do meu pensamento
e do meu coração, se eu zelar pela glória e pelo serviço
do habitante celeste que habita em mim. São como imãs que
colocarei fora de mim e que trarão para cima da terra a minha massa
informe, lançando-me em direção à verdadeira
mina e servindo-me de bússola nos diversos caminhos da minha jornada.
Serão os meus tesouros neste vale de lágrimas, meu coração
estará com eles, porque nos foi dito que onde está o nosso
tesouro, lá está o nosso coração.
Não saberíamos mais afirmar, não é pela repetição
das palavras em sua prece que o Novo Homem conseguirá preencher-se
dessas doces esperanças e fazer brotar em si esse discernimento tranqüilo
que difunde, ao seu redor a calma e o repouso. É reunindo com cuidado
todo o fogo do seu ser interior que ele vê, enfim, elevar-se uma chama
pura, viva e ágil, que purifica o ar e o agita docemente, fazendo
exalar um vento refrescante. Heis como conseguiu descobrir em si os quatro
rios do jardim do Éden, subdivididos nessas sete fontes sacramentais,
que são os poderes da sua alma e que jamais poderiam ter recuperado
sua atividade natural se a própria alma desse Novo Homem, não
se tivesse regenerado e ordenado novamente pelo sacramento da palavra.