Quando
o homem reza com constância, com fé, procurando purificar-se
na sede ativa da penitência, pode ocorrer de perceber, interiormente,
o que o salvador disse em Cefas: tu és Pedro, e sobre essa pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão
contra ela jamais. Essa operação do espírito no homem
nos ensina que ela é a dignidade da alma humana, pois que Deus não
teme de modo algum tomá-la como pedra fundamental do seu templo;
nos ensina o quanto devemos nos nutrir de doces esperanças, pois
que essa escolha nos abriga dos poderes do tempo, e, mais ainda, dos poderes
das trevas e dos abismos. Ensina-nos enfim, que essa é a verdadeira
igreja, e que, por conseqüência, não há em parte
alguma igreja onde essa operação invisível do espírito
não se encontre.
Mas observemos por que razão essa operação do espírito
constitui a verdadeira igreja. É a própria palavra eterna
que se grava, então, sobre a pedra fundamental que escolhe, do mesmo
modo que o salvador gravou sua própria palavra sobre a alma de São
Pedro, a quem falou face a face. Sem a impressão dessa palavra divina
sobre nossa alma, a igreja não se eleva de nenhum modo. Assim como,
na ordem temporal, os edifícios que os reis se propõem construir
somente começam a se erguer depois que o uso fruto é recebido
e o nome do fundador é inscrito na primeira pedra, que ele próprio
assentou.
Desde esse momento, somos voltados a velar com muito cuidado pela construção
espiritual que nos é confiada; construção que deve
atrair-nos mais à medida que tivermos todos os materiais, e sob a
inspeção, e com ajuda daquele que nos fez esse anúncio,
podemos nos tornar, ao mesmo tempo, o arquiteto, o templo e o pastor pelo
qual o fundador divino será honrado. Devemos, como um artista zeloso
e reconhecido, escrever sobre todas as partes do nosso edifício,
o nome daquele que nos emprega, e não esquecer um só instante
que esse nome sagrado, inscrito sobre a pedra fundamental, é também
aquele que deve acompanhar todos os desenvolvimentos que a igreja nos concederá,
assinalar todas as decorações, exteriores e interiores, normatizar
as divisões do templo, fixar seus horizontes, e prescrever todos
os detalhes do culto que deverá ser eternamente celebrado.
Em uma palavra, a idéia desse ser poderoso deve, a partir de então,
tornar-se tão inseparável de nossa obra como o pensamento
o é das palavras e de todas as operações que são
os seus frutos. Mesmo que nos sintamos contrariados em nosso empreendimento,
ou que nossas forças se afrouxem, temos o direito de interpelar por
meio de suas próprias palavras aquele que nos disse que queria fundar
em nós a sua igreja. Temos o direito de lembrar-lhe que sua palavra
não pode fenecer, como ele prometeu (Isaías 55,11) minha palavra,
que sair da minha boca, não tornará para mim vazia, mas fará
tudo o que eu quero, e produzirá os efeitos para os quais a enviei.
É honrar a Deus, servir-se assim das obrigações que
ele nos dá, e ele não exige mais do que nos ver fazer uma
utilização desse tipo. E a prova de que agir assim é
honrá-lo, é que não tardamos a receber o preço
da nossa confiança, e que a paz e a luz renascem logo em nosso ser,
quando empregamos esse meio.
Revela-te, então, homem, cada dia antes da aurora para apressar tua
obra. É uma vergonha para ti que teu incenso cotidiano não
queime senão depois do nascer do sol. Não é, de modo
algum, a aurora anunciar tua prece para vir render homenagem ao Deus dos
seres e solicitar suas misericórdias, é a prece que deveria,
ela mesma, chamar a aurora da luz e fazê-la brilhar sobre tua obra,
afim de que, em conseqüência, do alto desse oriente celeste vertesse
sobre as nações adormecidas em sua inação, tirando-as
de suas trevas. É somente por essa vigilância que teu edifício
crescerá e tua alma poderá tornar-se semelhante a uma das
doze pérolas que deverão, um dia, dar acesso à cidade
santa.
Porque a alma do homem foi produzida para servir, ao mesmo tempo, de receptáculo
e de intermediário à luz. E da mesma maneira que os vasos
transparentes e cheios de água límpida, nos transmitem a doce
e viva emanação desses raios numerosos que são reunidos
e preparados em seu seio, nossa alma deve enlaçar os raios do infinito,
que saem do centro da cidade santa, e uni-los às nossas próprias
faculdades, que são finitas, a fim de que por essa divina aliança,
estando nós próprios vivificados e resplandecente pela claridade
de seus raios, possamos fazê-la sair de nós, mais reunida,
mais temperada e mais apropriada às necessidades dos povos do que
quando age em sua livre dispersão e em sua vasta imensidão.
E tal será o emprego e o destino das portas da Jerusalém futura.
Não te afrouxes, então, de modo algum, Homem de Desejo, porque
o próprio Deus dos seres não desdenha vir fazer aliança
com tua alma, não desdenha vir realizar com ela essa geração
divina e espiritual na qual ele te traz os princípios da vida, e
quer muito te deixar o cuidado de dar-lhe forma. Se quisesses te observar
com atenção, veras todos esses princípios divinos da
essência eterna agindo poderosamente em ti, cada um segundo à
sua virtude e o seu caráter. Observaras que é possível
unir-te a esses poderes supremos, te tornar uno com eles, sereis transformado
na natureza ativa do seu agente e vereis todas tuas faculdades se desenvolverem
e se avivarem por multiplicações divinas. Sentiras essas multiplicações
divinas se estendendo todos os dias em ti, porque a impressão que
os princípios de vida teriam transmitido sobre teu ser as atrairia
cada vez mais, e ao fim, eles mesmos não fariam mais do que se lançar
verdadeiramente sobre ti, pois que teriam te assimilado.
Então poderias ter uma idéia dessas alegrias futuras das quais
gozarias desde já as primícias; terias deliciosos pressentimentos,
graças aos misericordiosos favores daquele que te criou e quer muito
te regenerar, de que tua entrada na vida é como que caucionada por
ele, e pode nos dizer com uma santa segurança inspirada por ele:
"Minha alma não me foi dada em vão; ele dignou-se a fazê-la
renascer para aplicá-la à obra ativa que minha sublime emanação
me dava o direito de pretender, e promete ainda me fazer colher, um dia,
os frutos do campo que ele mesmo quis cultivar por minhas mãos. Que
esse Deus todo poderoso e todo-consolador seja para sempre honrado como
deveria sê-lo, e como o seriam os homens se o tivessem conhecido mais!
Portanto, podemos já perceber os bens que nos são prometidos
se perseverarmos a nutrir em nós o espírito de dor, ou quem
sabe a dor do espírito, isto é, essa penetrante amargura ligada
ao medicamento espiritual por onde deve começar toda nossa obra.
Porque, não esqueçamos, somos ainda desertos, e entrevemos
a terra prometida apenas pelas narrativas e imagens que nos são fornecidas
pelos enviados fiéis que a percorreram. E se é consolador
para nós saber que podemos chegar a uma herança tão
magnífica, não percamos de vista o único caminho que
nos pode conduzir.
Digamo-nos sem cessar uns aos outros: "o medicamento espiritual quer
nos trazer a santidade e a vida; o Deus universal quer passar por inteiro
pelo nosso ser a fim de chegar até o amigo que nos acompanha; quer
passar sofrendo, antes de passar em sua glória: quer romper os liames
que nos prendem na caverna dos leões e das bestas ferozes e venenosas:
quer regenerar nossa palavra pela impressão da sua própria
palavra: quer fundar em nossa alma sua igreja, a fim de que as portas do
inferno jamais prevaleçam contra ela; quer unir-se a nós para
realizar conosco uma geração espiritual cujos frutos sejam
tão numerosos quanto as estrelas do firmamento e possam, como eles,
fazer brilhar universalmente sua luz. E todos esses bens que deseja nos
conseguir, quer realizar em nós pela anunciação do
seu anjo e pela santa concepção do seu espírito, pois
que é esse o termo final de todos os seus desígnios e de todas
as suas manifestações: louvemo-lo pela magnificência
de suas maravilhas e pela abundância e seus tesouros. Mas que seja
no caminho e fazendo nossa jornada que ocupemos assim nosso pensamento;
a fim de que essas santas meditações nos sirvam para aliviar
as fadigas da viagem, e não para nos deter.
Como
poderíamos deixar de nutrir em nós o espírito de dor,
ou talvez, a dor do espírito, quando consideramos a via temporal
e espiritual do homem sobre a terra? O homem é concebido não
só no pecado, vistas as tenebrosas iniquidades daqueles que o engendram.
Essas iniquidades vão influir sobre ele corporalmente e espiritualmente
até seu nascimento. Ele nasce; vai receber interiormente o leite
maculado dessas mesmas iniquidades, e exteriormente mil tratamentos que
vão deformar seu corpo antes mesmo que seja formado; concepções
depravadas, línguas falsas e corrompidas vão tomar de assalto
todas as suas faculdades e espreitar sua passagem para infectá-las
assim que se manifestem pelo menor dos seus órgãos.
Assim, viciado em seu corpo e seu espírito, antes mesmo de fazer
uso deles, vai entrar sob a falsa administração daqueles e
daquelas que o cercam em sua primeira idade, os quais semearão germes
envenenados, em abundância, nesse terreno - já, por si próprio,
envenenado - e se vangloriarão de vê-lo produzir frutos análogos
a essa atmosfera confusa que se tornou seu elemento natural.
A juventude, e a idade viril serão apenas um desenvolvimento sucessivo
de todos esses germes. Um regime físico, quase sempre contrário
à natureza, vai continuar a pressionar em contra-senso o princípio
de sua vida. Um regime moral destrutivo de toda moral vai prejudicar ainda
mais seu ser interior e torná-lo de tal modo fora de sua linha que
sequer acreditará que exista uma para ele. Doutrinas de todo gênero
vão impelir seu espírito pela sua contrariedade e só
vão subjugá-lo pelo engano; ocupações ilusórias
vão absorver todos os seus momentos e esconder dele, sem cessar,
sua verdadeira ocupação.
É assim que, no meio de uma tempestade permanente, ele chega ao termo
de sua vida; e aí, para terminar de selar o decreto que o condenou
a vir a esse vale de lágrimas, atormenta seu corpo pelos procedimentos
de uma medicina ignorante, e seu espírito por consolos ineptos, enquanto
que nos momentos perigosos, esse espírito procura apenas entrar nessa
via e experimentar, talvez em segredo, toda a dor de se ter desviado.
Quando se pensa que somos todos compostos desses mesmos elementos, dirigidos
por essas mesmas leis e por essas mesmas confusões, e esses mesmos
erros, que somos todos imolados por esses mesmos tiranos, e que por nossa
vez, imolamos nossos semelhantes, com essas mesmas armas envenenadas; quando,
enfim, pensamos que essa é a atmosfera que nos envolve e nos penetra,
tememos respirar, tememos nos olhar, tememos nos mexer e nos sentir.
O que deve, então, existir se penetramos no homem interior e espiritual,
e se pensamos nos perigos que o ameaçam e que são incomparavelmente
mais temíveis do que aqueles que ele pode temer da parte dos homens
e das confusões desse mundo? É então que ele sente
a necessidade de ser lançado, primeiramente, no deserto pelo espírito,
ou seja, de retificar nele todas as deformidades que a inércia dos
homens, e os seus próprios desvios, semearam no seu ser; a fim de
que, estando totalmente alheio ao regime de ilusão, ele possa se
entregar por inteiro ao combate do espírito, combate este que não
começa de modo algum nesse mundo para aqueles que estão entregues
à força impetuosa, porque sendo levados longe do deserto,
não sabem nem mesmo que há um combate ao qual se entregar;
também se vê nessa conjuntura quantos homens passam os seus
dias na tranqüilidade!
Mas aquele que sentiu o aguilhão do desejo lança-se corajosamente
nessa carreira onde os perigos e os poderes dos inimigos vão cercá-lo
e assaltá-lo noite e dia; o ardor da vitória lhe encobre a
grandeza do perigo e das fadigas; ele está determinado a tudo, porque
sabe que as recompensas que o aguardam superam tudo. Portanto deve saber
que, entretanto nesse deserto, todas as faculdades do seu ser vão
ser postas à prova, e que não há uma sequer dessas
faculdades, não somente no seu corpo, mas principalmente em sua alma
e em seu espírito, que não deva verter suores de sangue, e
embeber com ele os diferentes domínios aos quais pertencem essas
diversas faculdades; e isso até o dia de sua sepultura, porque enquanto
permanecer nesse terreno de dor, estará no reino da mentira, e aquele
que o domina não esquece de nada para fazer prosperar seu império.
Heis porque devemos pensar apenas em marchar e fazer nosso caminho, nas
maravilhas que o Senhor quer fazer brilhar de tempos em tempos em nossas
trevas; e sem a mais séria vigilância, essas mesmas maravilhas
podem tornar-se funestas para nós, naquilo de que nosso inimigo pode
se apoderar e empregar para sua glória, quando não temos a
sabedoria de empregá-la para sua molestação; mistério
da iniqüidade que inundou a terra.
Contudo, após sermos advertidos quanto a isso, abramos também
nossos corações à esperança e à alegria,
e tenhamos confiança de que a mesma mão que nos tiver conduzido
pelo deserto, a mesma mão que nos tiver escolhido para servir de
fundamento à sua igreja, a mesma mão que tiver feito operar
em nós uma concepção espiritual dignar-se-á
a nos acompanhar na prova, e não permitirá que nosso inimigo
altere e manche, de nenhuma maneira, as alegrias que ela nos reserva. Porque
essas alegrias devem ser tão incalculáveis quanto os perigos
e as fadigas da prova que temos que suportar; e mesmo elas devem fazer mais
do que a compensação, porque a misericórdia sempre
prevalece sobre a justiça.
Também todas as faculdades do nosso ser, após terem vertido
suores de sangue, devem verter os suores de alegria e de delícia;
cada uma de nossas fibras deve se tornar uma das torrentes da vida e receber
sem cessar um acúmulo de tesouros que nos estabeleça, para
sempre, no meio dessas multiplicidades de luzes, multiplicidades de confiança,
multiplicidades de coragem, multiplicidades de esperança e de consolações
que já tivemos ocasião de exprimir, e que não se pode
reforçar demais a fim de reanimar a fé do fraco e mesmo de
manter a fé daquele que não o é.
Por que razão devem chegar até nós tão grandes
bens? É assim que a medida suprema se faz conhecer, quando a deixamos
apoderar-se em nós de todas as medidas. É que essa medida,
sendo a vida por essência, não pode comunicar outro tipo de
impressão àqueles que se aproximam dela; é que essa
medida tende penetrar até a unidade do nosso centro, para governá-lo
pela mesma ação pela qual ela se governa e conduzi-lo perpetuamente
na identidade do seu movimento; heis a sorte que está reservada àqueles
que quiserem se alimentar do verbo.
O
momento do nascimento é chegado. Os poderes superiores, após
terem formado em nós pelo espírito a concepção
do nosso Filho espiritual, decretaram, de acordo com sua sabedoria, que
chegou o momento de dá-lo à luz. Então sairemos desses
abismos que habitamos, aos quais, o santo, por excelência, não
tem medo de descer para lhes arrancar as vítimas e libertar os escravos;
vamos receber na nova atmosfera onde habitamos, as afeições
mais vivas e mais doces do que aquelas dessa região tenebrosa de
onde saímos e que, a partir de então, é considerada
morta por nós.
Contudo, não temos conhecimentos muito mais vastos, ou talvez, recebamos
a luz e todos os auxílios da vida sem poder contemplar sua fonte,
ainda menos sem poder nos apoderar dela. Do mesmo modo que a criança
goza de todos os bens que seus Pais e seus guias lhe conseguem sem que se
possa dar conta da maneira pela qual todo esses benefícios lhe são
entregues.
Portanto, homem, desconfia dessas luzes precoces que chegam à natureza
do teu ser, que querem te governar sem saberes. É o Deus desconhecido,
que quer Pairar sobre ti, como o sol paira sobre as plantas rasteiras, e
quando ele vier com esses raios brilhantes que têm tanto poder para
nos fascinar, diga-lhes "Vós me extasiais, vós me iluminais,
mas como posso ver-vos, não sois o meu Deus, sois somente imagens.
Meu Deus está mais acima de vós, porque sua ação
deve ser eternamente uma surpresa e um milagre para mim, sem o que não
seria o seu Filho." Diz-lhes que queres ficar constante e exclusivamente
na mão desse Deus desconhecido que se aproxima de ti secretamente,
e te eleva para te fazer vagar em segurança por cima dos abismos
e te encher com mais alegrias e consolações do que se todos
os tesouros dos céus estivessem abertos diante dos teus olhos. Pois
heis a verdadeira renascença; heis o Filho querido que acaba de receber
a luz.
Treme Herodes, o teu trono está ameaçado. Acaba de nascer
o rei dos judeus. Os pastores ouviram os anjos cantarem o nascimento desse
Filho do homem; os magos viram sua estrela no Oriente, vieram visitá-lo
e oferecer-lhe seu ouro e seu incenso. Inutilmente tu mandarás exterminar
os Filhos de Raquel para acalmar teus temores, esse Filho é um Filho
que não se extermina de forma alguma pela mão do homem, porque
não nasceu da vontade da carne, nem da vontade do homem, nem da vontade
do sangue, mas nasceu de Deus. Também o Deus que o formou saberá
olhar pelos seus dias, e ele o fará se refugiar no Egito, até
que os tempos da tua fúria tenham se esgotado e o tempo da glória
do seu Filho tenha chegado.
E tu, homem, não te ofendas de te ver nascer em um estábulo
e no meio de animais, tu não nasces senão na humilhação,
enquanto que antes existias nos abismos. Esses animais farão por
ti o que deverias ter feito por eles, se tivesses conservado os teus direitos.
Irão aquecer-te com seu hálito, como deverias tê-los
aquecido com teu espírito, e conservar-lhes, desse modo, seu caráter
e suas formas primitivas. Haja vista que, hoje, é a tua forma que
te preserva, enquanto que, outrora, tu é quem deverias ter preservado
tua forma. Logo irás ao templo para receberes a circuncisão,
e Simão cantará o cântico de alegria tomando-o em seus
braços e dizendo que és uma criança nascida para a
salvação e para a ruína de muitos.
Nós dedicamos pouca atenção aos cuidados que se deve
dar à infância. Contudo, homem, essa idade será para
teu Filho o tempo mais precioso da vida dele, pois tu serás , ao
mesmo tempo, seu Filho, seu Pai, sua mãe, todos os servidores que
serão empregados à mais sublime das tarefas. Que esse Filho
recém nascido se torne, então para ti, o objeto dos teus cuidados
mais constantes. Esse Filho é amor, e é amor divino, tarefa
que todas as luzes que se desenvolverem nele não o alcançarão,
a não ser por essa mesma via; eu já ia dizer, a não
ser pelo seu nome; esse seria um meio de torná-lo homem em uma idade
em que tantos homens são, ainda, não apenas crianças,
não apenas nascidos, mas sequer concebidos. Isso sem contar aqueles
que nasceram por aborto, ou que pereceram depois de muito tempo por mil
outros acidentes, ainda que tu os veja caminhar na tua frente, apresentar-se
bem e cumprir perfeitamente todas as funções ostensivas do
homem.
Mas não esquece que esse Filho é também o Filho da
dor, que é o segundo nascido de Raquel, que custou a vida a sua mãe,
que é o único dos doze chefes de tribo que nasceu na terra
prometida e que nasceu após seu Pai ter oferecido um serviço
ao Senhor, ao qual ele erigiu um altar um Bethel.
Então, se queres conservar esse Filho precioso, nutre-o cada dia
com os mesmos elementos que lhe deram o nascimento; fazer correr a cada
instante sobre ele o sangue da aliança que deve preservar-se do gládio
do anjo exterminador; mais que isso, faz penetrar, sem cessar, em todas
as suas veias, esse mesmo sangue da aliança que deve dar a morte
a todos os egípcios, e põe-no em estado de despojá-los,
um dia, das suas vasilhas de ouro e de prata, com as quais fazem festins
de iniqüidade. Deixa correr nas suas veias esse sangue corrosivo que
não terá nenhum descanso até que tenha corroído
todos os vestígios do pecado. Verás, por esse meio, os membros
do teu Filho adquirirem pouco a pouco força e consistência.
E porque esse sangue reterá dessa maneira a vida nos membros do teu
Filho? Porque é o sangue da dor que não existe de modo algum
sem a vida, pois que ela não é senão uma contração
da morte e da vida reunidas; heis por que quanto mais há dor, mais
há vida, heis por que esse sangue da aliança é tão
sofredor, pois é composto das trevas e da luz da corrupção
e da santidade, da natureza e da Divindade, do tempo e da eternidade.
Faz, correr em grandes jorros esse sangue da dor sobre o teu Filho, mergulha-o
nesse mar de dor, que só ele pode lhe dar e lhe conservar o sentimento.
Que ele aí permaneça mais tempo do que Jonas na baleia, mais
tempo do que Moisés sobre a Montanha, mais tempo do que a arca sobre
as águas do dilúvio, mais tempo do que os hebreus no deserto;
mais tempo do que esses mesmos hebreus em todos os seus cativeiros; que
permaneça aí durante toda a sua vida terrestre, porque é
por esse meio que esse sangue depositará em seu coração,
em seus ossos, em sua medula, em suas veias, em todas as fibras do seu ser
o verdadeiro elemento sacerdotal de onde devem nascer para ele a lança
e a espada. Que cada dia coma desse pão sacerdotal, e se embriague
do vinho da cólera do Senhor.
Que passe os dias e as noites nos desertos, que a morte dos leões
seja como os jogos da sua infância, e que se anuncie em boa hora como
devendo ser temível às nações, visto que terá
comido a cada dia o pão sacerdotal. Tempos virão em que o
elemento sacerdotal depositado nele fará florir, por sua vez, o hissópo
e a oliveira; uma vez que, não é senão para triunfar
da morte e fazer reinar a vida que o sangue da aliança se tornou
o sangue da dor.
Mas que os grandes espaços de tempo não te façam falhar
na busca do teu objetivo pela impaciência. Vê com que lentidão
se foram as pedras nos caminhos; da mesma maneira, só após
uma longa série de períodos sucessivos sentirás depositada
em ti uma quantidade bastante grande de substâncias reais, que se
consolidam gradualmente, para formar essa pedra fundamental da igreja. É
nessas substâncias assim reunidas e consolidadas que se acumula o
fogo da vida; e quando sua medida é completada, esse fogo fermenta,
produz uma explosão que rompe suas barreiras, inflama-se e torna-se
para sempre inextinguível.
Quando
Deus vê, que ao nos entregar a ele, não guardamos nada de nós,
nos dá em retorno uma centelha sagrada que, sozinha, é milhões
de vezes maior do que nosso ser, e que nos ensina quanto ganhamos dessa
troca. Sim, nosso Deus é um Deus efetivo e real, e o que ele realiza
em nós deve ser igualmente efetivo e real. Assim, não é
uma esperança mentirosa aquela que promete fazer-nos sentir fisicamente
a espada divina, o sopro divino, o fogo do santuário e o contato
vivo do poder ativo e animador. E até que esse movimento sagrado
e sensível se exerça em nós, vivemos apenas nas sombras
e nas aparências, do mesmo modo que o fogo dos corpos é inútil
enquanto não está em contato e em conjunção
com todos os pontos do ar livre e da atmosfera ativa que o rodeia.
Só depois que esse grande movimento se realiza em nós é
que colocamos o pé na linha, e após o que nos é prometido,
devemos ver quanto nos custará o rompimento da barreira. Põe-te
em sangue, põe-te em trapos, como ao passar através de sarças
e espinhos; é apenas do outro lado da sebe que se encontra o tesouro.
Tu falharás se, para cumprir esse empreendimento, esperares gozar
o repouso e essas comodidades da vida; porque, se gozasses esse repouso
e essas comodidades, precisaria esquecê-las por inteiro para seguir
adiante. Como poderias pensar, então, em te apoiar em esperança,
se ainda não as tens? O inimigo só sabe te enganar com essas
considerações ilusórias; não disputes de maneira
nenhuma com ele, mas prossegue sem lhe dizer nada. Porque, se o escutares,
ele te enganará até o fim da tua vida com promessas lisonjeiras
de circunstâncias mais favoráveis que não chegarão
jamais se não as criares, isto é, se não as mantiveres
fora dessa região de trevas.
Porque desde que essas circunstâncias aparentemente favoráveis
chegarem para ti, o mesmo inimigo que se defende cobrará sua tarifa,
fazendo-as diminuir ao ponto de torná-las quase nulas - para não
dizer prejudiciais - e elas acabarão por te transformar em seu escravo
e seu contribuinte, em vez da liberdade que julgavas gozar. Mas se criares
tuas circunstâncias fora da região das trevas, o inimigo não
poderá estabelecer imposição, nem mesmo saberá
que essas circunstâncias existem, e tu o deixarás vagar no
seu abismo, sem que possa perceber teus movimentos e teus resultados.
Então, espera somente da tua coragem e dos teus sacrifícios
essas circunstâncias situadas na linha; só elas descobrirão
para ti os tesouros que te aguardam, assim como é um único
sol que manifesta as ricas cores do arco-íris.
Porque não é suficiente, para o inimigo, diminuir pela tarifa
as circunstâncias favoráveis pelas quais te teria feito esperar
por longo tempo. Quando te vir decidido a avançar, tentará
cercear mesmo aquelas que te satisfazem, a fim de aumentar teus entraves;
não sabes tu que os reinos do mundo lhe pertencem? Se ele não
os dá por inteiro àqueles que o adoram, ao menos os promete,
e não fica sempre com tudo; mas ele as restringe àqueles que
não o seguem, pois aqueles que não se encontram nem sob sua
ação nem sob a ação do mundo, que é a
mesma coisa, e não é de admirar que sejam como que estrangeiros
a uma e a outra, e é mesmo uma graça do alto quando se despojam
delas; é uma marca do seu avanço.
Amigo, talvez estejas surpreso por te falar tão pouco de ciências,
e tanto da exortação e advertência. É que investiguei
a ciência e a exortação. A ciência é grande,
é filha da luz, é o brilho vivo do sol eterno, mas não
quer conhecer outro órgão e outra via que o coração
do homem. Quando é forçada a entrar por outro acesso, sofre
por se constatar prostituída, e se salva assim que pode. Assim também,
homem, meu amigo, se tivessem te revelado a representação
universal da luz, e a luz de todas as revelações passadas,
presentes e futuras, poderias ainda não ter dado um passo se não
tivesses começado por abrir tua alma ao espírito da vida e
a esse medicamento ativo do qual todo o teu ser tem necessidade a todo instante;
e, ao contrário, se abrisses por instante tua alma a esse espírito
da vida, te sentirias caminhar naturalmente no sendeiro da luz e da ciência.
Por outro lado, queres ver por ti mesmo os efeitos dessa ciência tão
respeitável e quanto ela rendeu aos homens? A terra está cheia
de monumentos dessa ciência divina e dos imensos desenvolvimentos
que ela não cessou de fornecer desde o começo do mundo? Tudo
foi escrito, dito, publicado; não há nenhuma profundidade
neste mundo que não tenha sido sondada, não há segredo
que não tenha sido descoberto, nenhuma luz que não tenha sido
manifestada; os homens estão repletos de tesouros desse tipo, estão
inundados, cercados e obstruídos por eles; e no entanto que caminhos
queres fazer com eles no curso da verdade e da paz? Eles crêem que
seu coração está em segurança, desde que o seu
espírito veja os raios da luz; e não pensam que, sem o medicamento
secreto e doloroso, não fazem mais, com todas as suas claridades,
do que se atirar mais conscientemente no precipício.
Queres saber o que lhes é necessário, e o que podem esperar
da via simples, oculta e natural? Que uma parte possa se desprender da grande
medida e suscitar sobre todo o seu ser esse espírito de moderação,
de firmeza, de equilíbrio, de justeza, de segurança, de certeza
e de confiança animada e irresistível do qual ela é,
ao mesmo tempo, o centro, a fonte, o órgão, o selo, o sinal,
o caráter, e o contínuo, majestoso, universal e triunfante
efeito. Trata de alcançar esse degrau ao mesmo tempo delicioso e
santificante; trata que não haja mais em ti qualquer coisa de ti.
Pois, quanto mais essa parte imperceptível a que chamei medida, achar
em ti coisas que pertencem a ela, mais serás pleno dessas medidas
tão salutares, das quais só a presença pode servir
de data para tua regeneração.
Gostaria muito que acreditassem em mim, meus infelizes irmãos; poderia
apresentar-lhes sobre esse assunto verdades muito consoladoras. Eu lhes
diria: vedes que vossa língua e vosso paladar têm o discernimento
dos sábios e das diversas propriedades dos sais; vedes que as substâncias
alimentares são submetidas a esse discernimento dos espíritos,
e que por ela podeis experimentá-los, verificá-los, saboreá-los
e julgá-los. Descei ainda um pouco mais ao fundo de vós mesmos,
e vereis que vosso coração tem o discernimento das intenções,
das faculdades, das realizações e dos movimentos do vosso
próprio Deus; e que sois o órgão sagrado, que ele quer
muito deixar provar tudo o que se digna enviar para fora do seu eterno centro.
É com essa língua invisível mas imperecível
que se pode provar todos os sais divinos que a sabedoria envia continuamente
à atmosfera do espírito.
O homem! Purifica, então, sem cessar, esse órgão; o
uso é tão suave, a perspectiva que ele te oferece é
tão sublime, que não sei como poderias ainda permitir aos
teus olhos se fecharem após terem observado semelhante maravilha.
Contudo, por mais admirável que seja, não te surpreenderia
mais se te lembrasses que a Divindade deve nos atravessar por inteiro, seja
em seu sofrimento, seja em sua glória; pois se ela deve nos atravessar
por inteiro, não é de admirar que sejamos ordenados e formados
para ter o discernimento dela; aprende, então, por esse caminho a
simplificar tuas idéias sobre o caráter e o emprego do profeta;
compara sua escolha e todo o seu ser com esse Filho que acaba de ser concebido
em ti pelo espírito, e com todos os outros tipos que examinastes.
Porque é preciso esperar encontrar a mesma coisa a cada passo.
Como
nosso Deus é um ser efetivo, tudo deve ser efetivo no que se aproxima
dele, como no que sai dele. Assim, desde que o procuremos com uma penitência
efetiva, uma humildade efetiva, uma coragem efetiva, não devemos
duvidar de que ele venha a nós com poderes efetivos, com dons efetivos,
e que transmita a nós os testemunhos efetivos do seu interesse e
da sua efetividade; creiamos, além disso, que, se por essa efetiva
influência divina, nos encontramos em uma nova situação
efetiva de alegria, de luzes, de forças, de virtudes, de fé,
de piedade, de santidade, enfim, se nos encontramos efetivamente em uma
atmosfera realmente viva, podemos esperar produzir essa mesma temperatura
efetiva em tudo o que nos cerca, porque a verdadeira e viva efetividade
do nosso Deus não procura senão se estabelecer e se difundir,
a fim de que, segundo o seu desejo, tudo fique pleno dele.
Quando Davi escreveu no salmo cento e dez, versículo 7, As obras
das suas mãos não são outra coisa que a verdade e a
justiça, ele disse mais, que a inteligência comum só
pode perceber e compreender efetivamente essas palavras pela junção
dessa influência efetiva pela qual todos somos feitos, e sem a qual
não podemos ser renovados. Mas também, desde que ela existe,
devemos nos encher de um ardor sem limite para chegarmos a ser penetrados
em todos os momentos e para, por nossa vez, penetrarmos todos os trabalhos
das nossas mãos e todos os objetos das nossas obras.
Sim, Deus da minha vida, tu me chamarás, e te responderei imolando
para ti sacrifícios efetivos dos quais os frutos e as recompensas
serão viver com o teu espírito, pelo teu espírito e
em teu espírito. Tu bem queres não desdenhar a minha alma,
por mais miserável e enferma que ela seja. Após tê-la
feito tomar o medicamento da amargura, tu a farás conhecer também
o medicamento da alegria e da doçura; e essa doçura virá
de te apossares dela, de conduzi-la com tua mão em todas as atividades
que tem a fazer e de não a deixar um instante sem ti.
Vinde, humildade santa, vinde viver na predicação interior
que minha alma ouve cada dia dentro dela, e uni vossa atividade à
palavra interior que me persegue, a fim de que eu seja o tempo todo um ser
efetivo, e que através de vós o defensor divino e universal
repousa sobre mim e me preserve da cólera do Senhor.
O homem está tranqüilo no meio dos abismos que o circundam;
esquece que os seus inimigos são tão temíveis, que
não pode abater um inimigo, com o grau de seu poder, a menos que
a própria força divina se ponha em movimento, e sem que ele
custe a Deus uma realização e um ato real de sua força
e de sua ação inteira. O inimigo não ignora essa verdade.
Ele não se abala enquanto pomos em jogo apenas os nossos poderes
inferiores e particulares ao homem tenebroso, e um dos seus grandes segredos
é enganar os mortais com êxitos aparentes, fundados sobre preces
falsas e ilusórias, que os fazem dormir no sono da morte; é
por esse meio que ele devora todos os dias toda a terra.
Mas quando temos a felicidade de não descansar sobre nossas próprias
forças, quando, enfim, é esse ser poderoso que age e realiza,
o inimigo treme e foge para os seus antros obscuros, não podendo
resistir à invencível força do leão da tribo
de Judá, a quem o eterno jurou, por seu nome temível, que
todo o poder lhe seria dado; é essa promessa irrecusável que
assegura o triunfo apenas pela presença desse agente sagrado, e que
faz sentir ao homem a diferença entre a palavra de verdade e uma
palavra variável ou falsa.
Esse inimigo de toda a verdade tem, sob suas ordens, poderes que envia antes
dele, como espiões, quando é perseguido ou atacado em seu
domínio; tem sob suas ordens cães, lobos, que observam se
não podem devorar o cavaleiro e sua montaria e, em seguida, roubar
rebanho como lhes aprouver. Mas assim desabaladamente, pois esse leão
da tribo de Judá tem armas cortantes e prontas para tudo. Suas armas
nem mesmo precisam se mover; ele se aproxima e tudo treme diante dele.
Não busquemos um outro líder. Não foi ele que chamou
a alma do homem e lhe disse: "sobre essa pedra edificarei a minha igreja"?
Mas nossa alma compreende e penetra todo o nosso ser, como o espírito
do Senhor compreende e penetra todo o universo; assim, cada porção
de nós, cada uma das nossas faculdades, cada um dos nossos pensamentos,
cada uma das nossas atividades pode, portanto, transformar-se em igrejas,
onde o nome do Senhor seja perpetuamente honrado; é por isso que
o nome do Senhor será louvado do oriente até o ocidente, do
norte até o sul e em toda a extensão da terra. Essas serão
as funções desse recém-nascido a quem o espírito
dará à luz, pois seu ministério propagar-se-á
pelo quaternário. Desse modo, o homem terá que estar disponível
para as funções divinas no oriente, para as funções
espirituais no norte, para as funções de ordem mista no oeste,
e para as funções da justiça, do combate e do julgamento
no sul. De lá retornará sobre os seus passos para purificar
e santificar novamente as regiões e fazê-las sabedoras dos
seus triunfos, e em seguida, virá render homenagem ao triunfador
universal, sem o qual não teria conquistado nada.
Mas, repitamos, é nas maiores profundezas da alma humana que o arquiteto
deve vir colocar o fundamento da igreja. E é preciso que os cimente
com a carne, o sangue e a vida do nosso verbo e de todo o nosso ser. Heis
o trabalho mais penoso da regeneração; é esse que conduz
a essa substância íntima de nós mesmos. Dentre os suplícios
que nosso corpo pode suportar, podemos, em nossa alma, suportar um maior
ainda.
Foi o que ocorreu ao salvador, que não pensava de modo algum na morte
do seu corpo quando pediu que o cálice fosse afastado dele. Enfim
é essa luta do espírito, essa dor a qual nenhuma outra se
compara, e que por sua própria grandeza nos dá condições
de suportar todas as outras com uma espécie de indiferença.
Pois se quiséssemos, corajosamente, fazer nosso espírito vivo
penetrar em todas as subdivisões e regiões de nosso ser, para
nos trazer a vida e o renascimento, não levaríamos em conta
os males ordinários aos quais nos expõem nossa natureza e
nossa vida temporal e ele não teria mais dor que pudesse ser comparada
com a nossa dor; mas, também, onde estariam as alegrias que, finalmente
pudessem ser comparadas com as nossas alegrias?
Conheceríamos, em pouco tempo, toda a nossa história. Saberíamos
que nascemos do Divino, que nos configuramos no espírito, que corrigimos
a aparência e que afadamos a iniqüidade, e que essas quatro grandes
operações se fazem pela influência da força,
do amor e da santidade sobre nosso corpo, nosso coração e
nossa fronte. Tudo sob o parecer do grande nome central que Paira acima
de nós, para nos vivificar, como vivifica todos os seres dos quais
é, para sempre, a sede única e universal.
Quando
foi a Betânia para ressuscitar o irmão de Marta e de Maria
que estava morto já a quatro dias e que cheirava mal, o salvador
estando perto da tumba, disse em voz alta: "Lázaro, levanta-te",
foi a ti, alma humana, que ele endereçou sua palavra, muito mais
do que ao cadáver, que era somente o símbolo do verdadeiro
renascimento; e é ainda aí onde encontras um novo traço
dessa representação geral, que compreende todo o conjunto
das coisas, e da qual tu és o objeto.
Se puderes perceber, antes de tudo, que a anunciação do anjo
pode se repetir para ti, bem como a concepção e o nascimento
do Filho da promessa, não te surpreenderás que a ressurreição
de Lázaro possa se repetir para ti de igual maneira; mas também,
pela mesma razão, sentes que essa operação preliminar
se torna indispensável para ti, porque estás morto depois
de quatro dias, isto é, nas quatro grandes instituições
primitivas que não soubeste cumprir, e porque difundes a doença
por todos os lugares. A voz do salvador se aproxima da tumba e te grita:
"Lázaro levanta-te". Não faças como os judeus
no deserto; não endureças teu coração para essa
voz, e lança-te prontamente fora do teu ataúde; não
faltarão pessoas serviçais para desamarrarem tuas faixas.
Lembra que ele te disse: "Lázaro levanta-te" para que,
por tua vez, tu repitas, livremente a todas as tuas faculdades adormecidas:
"Lázaro levanta-te", e para que essa palavra circule continuamente
em todas as partes do teu ser. Será então que poderás
sentar-te a mesa com o Senhor?
Alma humana, lembra-te de que uma terra se enriquece pelos frutos que produz.
Porque as sementes que recebe em seu seio lhe rendem numerosos detritos
para os sumos que retiram dela, e as sementes fazem cair sobre ela as gotas
do céu. Alma humana, para receber sementes vivas; tu podes, mais
do que ela, produzir numerosas colheitas; tu podes, mais do que ela, fixar
e fazer fluir sobre ti as gotas ricas e fecundas; e são todos esses
tesouros que devem te enriquecer para sempre, porque se te disseres, muito
sinceramente, "Lázaro levanta-te", poderás esperar,
então, que o conselho celeste venha deliberar até em teu próprio
seio e conduzir, por conseqüência, a sua palavra sagrada por
todo o teu ser, para aí executar os seus decretos, e fazer fluir
abundantemente, em todas as suas substâncias elementares, espirituais
e divinas, as santificações eternas que tendem a apagar o
tempo ou essa nódoa, lançada sobre o quadro da vida, e que
gostaria que essa imagem a que chamamos hoje, estando oculta, tudo o que
existe retoma o nome universal de Deus.
Pois é esse o nome que todas as coisas tiveram antes da corporificação
material; e é esse mesmo nome que elas tendem a carregar novamente,
quando a obra for completada, para que a unidade seja total em todos, não
mais por leis subdivididas, como aquelas que constituem, governam, engendram
e destroem a natureza, mas por uma plenitude de ação que se
desenvolve sem cessar, e sem acidentes aflitivos de contrações
e de resistências.
Se o conselho celeste deve deliberar até no nosso próprio
seio, e isso resulta para nós numa lei poderosa, que traz com ela
a impressão de um terror salutar, é que não deveríamos
nos permitir um ato, nem um movimento que não fosse a conseqüência
de uma deliberação desse conselho celeste que o próprio
Deus não teme, de maneira nenhuma ter, em nossa alma; assim, todas
as nossas obras deveriam ser apenas o cumprimento vivo e efetivo de um decreto
divino pronunciado em nós, como a nossa existência espiritual
é o cumprimento contínuo do nome sagrado que nos produziu
e que nos produz continuamente.
Homem, se essa perspectiva te parece interessante, se te parece agradável
entrever o homem sob uma luz desse tipo, põe-te ao trabalho, e que
essa expectativa consoladora anime teus esforços para fazer nascer
em ti uma aurora tão bela, tão magnificente, que nenhuma representação
poderia te oferecer uma idéia dela; e ao mesmo tempo tão rica,
que ainda que te despojes constantemente de tudo, para lhe oferecer o teu
ser em toda a sua submissão e em toda a sua plenitude original, não
acharás que tenhas, oferecido algo comparável ao que ela te
pode dar.
Lembra-te também que todos os decretos desse conselho só têm
por fim a paz, a glória, a felicidade e a extensão do reino
da vida; dessa maneira, desde que esse conselho celeste queira pronunciar
em ti semelhantes decretos, cada um dos teus passos e dos teus movimentos
deve ser uma vitória, uma execução de algum julgamento
divino, uma libertação de algum escravo e um desenvolvimento
do reino da luz; e todas as tuas obras são hinos à glória
daquele que veio deliberar em ti, decretá-las, e que deseja te confiar
a sua realização para te transmitir, por esse meio, as centelhas
dessa Alegria Divina e imortal que é o elemento primitivo da tua
existência. Toma coragem, o empreendimento demanda cuidado e atenção,
mas em pouco tempo te sentirás aliviado das tuas penas, e dirás
a ti mesmo: "como Deus não seria um ser incompreensível,
visto que eu sinto que o homem também tem esse privilégio,
e para que ele possa ser conhecido dos seus semelhantes quando estiver novamente
em sua lei, será preciso que os céus e a terra sejam renovados
por eles, sem o que ele é somente, perante os seus olhos, uma massa
muda e sem valor?"
Mas se queres te instruir ainda melhor acerca da tua lei, reflete sobre
qual é a primeira deliberação desse grande conselho
celeste que se realiza em ti. A primeira e, por assim dizer, a deliberação
contínua que aí ocorre, é que o Deus que te formou,
torna-se para ti o Deus sofredor; sim, Deus diz perpetuamente: esqueçamos
a minha glória para salvar o homem, humilhemo-nos para elevá-lo
e carreguemos os fardos que ele não pode carregar por si próprio.
Essa idéia te ensinará que esse decreto deve te considerar
de uma forma ainda mais direta; assim, deves sentir que a deliberação
desse grande conselho é que estejas igualmente no sofrimento e no
combate, se queres conseguir a vitória. Ora, esse decreto, considerado
como um todo, se subdivide e se estende a todos os detalhes da tua vida
e da tua existência. Assim, pensa que não há um só
instante em que nesse conselho divino não seja deliberado que deves
ser puro, que deves ser humilde, que deves amar ao teu irmão, que
deves querer te completar com todas as virtudes do espírito e da
verdade, e de semear ao menos os desejos por elas nas almas daqueles que
estão na indigência. Dessa maneira, ainda que negligencies
somente um instante a prática dessas obrigações, serás
refratário à lei, serás um prevaricador.
Reflete, alma do homem, que é o próprio Deus que chora em
ti para que possas, por suas próprias dores, alcançar as consolações.
Pensa que ele chora a todo instante, em todo o teu ser, e que não
procura senão instituir o seu próprio jejum ou sua própria
penitência em teu centro elementar, em teu centro espiritual e em
teu centro divino. Se Deus chora em ti, como te recusarias a chorar com
ele, como te oporias a deixar circularem livremente em ti, essas torrentes
inflamadas da penitência sagrada, às quais o amor eterno se
junta para trazer a tua morada com ele próprio, para que tu, em conseqüência,
faças a tua morada com ele, na alegria e na vida. Faz de maneira
a não ser mais do que dor, suspiros e lamentações.
Visto que só assim podes ser hoje, a imagem e a semelhança
do teu Deus.
Farás como os habitantes da Babilônia que, irritados com as
projeções das duas testemunhas do Senhor, mataram-nos, e logo
se fizeram presentes para se felicitar de estarem livres desses homens inoportunos?
Não sabes que essas duas testemunhas ressuscitarão após
três dias e meio e exercerão as mais horríveis vinganças
contra aqueles que os tiverem desdenhado e maltratado tanto? Não
trata assim as testemunhas que te profetizam toda a luz, porque inutilmente
as afastarias de ti pelo teu menosprezo. Isso ocorreria apenas por um momento,
e elas não tardariam a voltar com todo o seu poder para te punir
com todo o rigor da justiça, da qual o mestre de todos vós
lhes confiou a administração. Escuta com atenção
essas testemunhas sagradas, de forma a nunca ouvir outra voz que não
a delas. Isso porque a sua voz é a do próprio conselho divino
e celeste, que quer descer da morada da sua glória para vir deliberar
em ti, tornando-te se quiseres, uma realização viva e contínua
das suas inefáveis, deliberações.
Que
alma é essa que parece tão jubilosa e tão cheia de
regozijo? É uma alma que Deus acaba de visitar, deixando testemunhos
preciosos do seu amor e da sua riqueza. Vês como ela transborda de
delícias e de abundância? É que ele foi correto e fiel
à promessa que fizera a ela de estar ao lado daqueles que o invocassem.
Também, depois que recebeu esses ricos presentes, ela vai fazer justiça
aos prevaricadores; vai estabelecer a ordem e a moderação
sobre a terra; vai se afiliar a todas as sociedades espirituais que a reconhecerem
como um dos seus membros; vai habitar o levante divino, sua primeira pátria,
porque o Senhor pronunciou sobre ela, a palavra criadora que desenvolveu,
ao mesmo tempo, todas as propriedades, todos os dons, todos os atributos
dos quais ela é a reunião e o agente. Ele pousou sobre ela
o seu olhar vivificador, e ela se encontrou regenerada em todo o seu ser,
assim como toda a natureza se regenera pelos olhares vivificantes do Sol.
Heis o que o homem pode esperar quando persevera com constância em
sua prece e não esbarra nos obstáculos ilusórios que
o inimigo incessantemente lhe apresenta como obstáculos intransponíveis.
Uma firme confiança no fogo sagrado que nos anima, uma confiança
mais firme ainda na fonte da qual emana esse fogo, e que não pode
cessar de dirigir os seus olhares, o seu calor e a sua luz sobre ele, logo
fazem desaparecer esses ataques débeis do nosso inimigo, que só
tem forças quando somos pusilânimes e hesitantes.
Logo também o Deus da vida vem visitar nossa alma, e então
podemos dizer com júbilo: Deus vive em mim, Deus viverá em
minha penitência; viverá em minha humildade, viverá
em minha coragem; viverá em minha caridade, viverá em minha
inteligência, viverá em meu amor, viverá em todas as
minhas virtudes; porque prometeu que seria um conosco, todas as vezes que
lhe implorássemos em nome daquele que nos enviou para servir de sinal
e de testemunha entre ele e nós. Esse sinal ou essa testemunha são
eternos como aquele que os enviou a nós. Tornemo-nos semelhantes
a esse sinal e a essa testemunha e participaremos da sua divina e santa
segurança, e seremos como ele, de tal modo plenos de vida, que a
segunda e a primeira morte ficarão longe de nós e seremos
totalmente alheios a elas.
Há uma incerteza que o inimigo freqüentemente procura te incutir,
menos para te enriquecer com a sabedoria aparente com a qual a colore do
que para te barrar em tua caminhada, pois que ela deve lhe ser contrária.
É preciso saber se deves invocar o nome do Senhor e o sinal que ele
te enviou, antes de ter dissipado inteiramente todos os obstáculos
que te cercam, ou se deves te servir, para combater esses mesmos obstáculos,
do nome do Senhor e de todos os poderes ligados a ele. O inimigo que teme
o efeito dessas armas eficazes te insinua constantemente que não
és suficientemente puro para empregá-las; coloca-se na frente,
algumas vezes, sob cores imponentes, a fim de refrear tua coragem e impedir
tuas resoluções; outras vezes, encontrando-te mal preparado,
te sugere invocar o nome do Senhor para te convencer, pelo pouco êxito
que resultará disso que não deves atirar-te a uma tarefa tão
sublime e santa, e que faria bem em esperar um pouco mais de tempo.
Mantém-se sob teu abrigo no meio de todas essas insinuações.
Elas pressupõem mais preguiça do que virtude, mais desconfiança
do que coragem verdadeira, mais trevas do que luz. Enche-te, primeiro, da
convicção profunda de que a verdade vence a morte; enche-te
da convicção profunda de que por tua simples conduta, regular
e atenta, o inimigo não terá sobre ti mais do que uma débil
influência na qual não achará base para se fixar e se
ligar; enche-te da convicção profunda de que nasceste na vida
e só existes na vida e pela vida, à qual deves retornar; enche-te
enfim, da convicção profunda de que a vida universal e sagrada
procura sem cessar reavivar todo o seu ser, e mantê-lo na harmonia
ativa e eficaz de todas as faculdades que o constituem.
Em seguida, lança-te corajosamente na via da prece e da súplica,
sem pensar nos obstáculos que te teriam detido se não fosse
essa precaução, sem se dignar sequer a percebê-los;
conduzem-te com ardor para os diferentes lugares dos teus sacrifícios.
Implora ao Pai, invoca o Pai, conjura o Pai, une-te ao Pai quando quiseres
oferecer o sacrifício sobre o altar eterno do qual emana a fonte
da vida e da existência em todos os seres; serve-te com confiança
do seu nome; ele próprio estará em participação
igualitária contigo, visto que terás o desígnio de
estender o seu reino, e o inimigo não poderá se opor à
tua obra, ficará a uma distância muito grande; será
em relação a tua obra e ao teu sacrifício, como um
ser nulo e absolutamente estranho.
Quando quiseres oferecer teu sacrifício sobre o altar da regeneração
espiritual para santificar teu ser, purificá-lo, enchê-lo com
os tesouros do amor, implora o nome do Filho, invoca o nome do Filho, conjura
o nome do Filho, une-te ao nome do Filho, e teu coração será
transformado numa vítima de consolações, e deixará
de acreditar nos poderes aflitivos do teu inimigo, e tu sentirás
teu barco ser levado suavemente sobre as ondas, pelos ventos mais favoráveis,
sem a mínima aparência de perigos e de escolhos.
Enfim, queres oferecer teu sacrifício sobre o altar dos poderes vertidos
do espírito no tempo? Implora o nome do espírito, invoca o
nome do espírito, conjura o nome do espírito, une-te ao nome
do espírito, e a natureza retomará para ti sua medida, sua
ordem, e seu equilíbrio, e conhecerás assim, ao redor de ti,
em ti e acima de ti, apenas a harmonia, a felicidade e a perfeição.
Se o inimigo se reanima na inveja dos teus sucessos, adquirirás assim
as forças para o combate, com mais vantagem do que se permaneceres
nessa perigosa timidez que ele intencionalmente te sugere, poderás,
então, empregar com mais proveito esses mesmos nomes, que certamente
virão te defender, esclarecer e santificar. Pois foi dito que aquele
que invocar o nome do Senhor será salvo.
Apoia-te sobre essa lei infalível, contra a qual a prudência
ilusória do inimigo não deve jamais obter a tua aquiescência.
Porque a única virtude que Deus nos exige é a confiança;
assim, o único defeito que podemos ter com relação
a ele é a timidez, é a covardia. Mas desde que tenhas tomado
essa santa resolução, e desde que tenhas posto em uso as armas
sagradas, considera-te como engajado na milícia divina e espiritual
e lembra que a menor negligência pode te tornar indigno de levar o
nome do soldado da verdade; lembra que a menor negligência pode te
expor a tomar o nome de Deus em vão, lembra enfim que será
para ti um crime, daqui por diante, perder uma ocasião que seja de
exercer tuas funções santas e dar um só passo sem que
empregues o nome do Senhor, pois foi dito: Feliz daquele que perseverar
até o fim.
Não é necessário, de modo algum, dissimular a enorme
diferença que deverás encontrar nessas diversas invocações.
Nenhuma comparação entre o trabalho de preservação
que precisamos fazer é aquele que temos de realizar para nos unir
às funções do espírito; nenhuma comparação
entre esse trabalho e aquele que temos de realizar para beber na própria
fonte divina. Quanto mais nos elevamos, mais esses trabalhos nos parecem
suaves, simples e naturais, o que é uma das mais vivas demonstrações
de que nascemos para a paz e para a felicidade, e que as horríveis
revoluções pelas quais passamos nas diversas regiões
desse mundo são absolutamente opostas àquelas de que nos ocuparíamos
se estivéssemos dentro de nossa lei e no gozo dos privilégios
da nossa destinação primitiva.
Alma humana, a tua experiência única te instruirá mais
acerca disso do que todas as doutrinas. Tenta te elevar até a região
pura, simples e divina; trata de permanecer aí por um longo tempo,
para que sejas penetrado pela eterna e doce influência que a preenche;
tu provarás então alegrias tão penetrantes, mas ao
mesmo tempo tão calmas e tão tranqüilas, que o universo
inteiro, apesar da beleza de suas leis e dos poderes espirituais que o governam,
parecer-te-á uma espécie de superposição estranha
a natureza divina; sentirás que, para ser feliz não tens necessidade
da presença do espírito, se estás na presença
de Deus, e que, consequentemente, é Deus, e não o espírito,
a tua fonte.
Quando então desceres dessa região suprema à região
do espírito, imediatamente, sentirás uma maneira de ser da
qual a tua verdadeira natureza poderia abster-se e que só pode tornar-se
suave se considerar essa situação como uma conseqüência
de decretos superiores que te destinam a uma obra secundária e que
têm o direito de te empregar do jeito que lhes apraz. Quando desceres
à região elementar, tua situação te parecerá
ainda mais estranha; enfim, pensa que isso acontecerá quando desceres
à região das trevas.
Contudo, abraça tuas diversas obras com a mais inteira submissão
às vontades daquele que as envia para ti; trata de fazê-las
e, sobretudo, não esqueças de que deves realizá-la
todas em seu nome; e se queres aprender aqui um grande segredo, não
sai jamais, em pensamento ou em espírito, dessa região suprema;
unamos continuamente os três nomes eternos, e aqueles que não
saem jamais do seu interior divino, com os três nomes temporais divinos
que dirigem as três operações temporais, e esse será
o meio de pertencer ao mesmo tempo, como Deus, à eternidade e ao
tempo. O que te proponho é menos impossível e tu podes fazer
em ti mesmo a experiência mais certa, observando a semelhança
das faculdades internas e externas do teu espírito, assunto que demandaria
um trabalho à parte e que, por essa razão, não trataremos
nesta obra.