Neste
trabalho chegamos apenas na segunda idade do Novo Homem, e ainda não
abrimos a entrada do reino divino, porque esse Novo Homem ainda está
em crescimento e não atingiu a virilidade. Enquanto ele cresce, façamos
aqui uma observação essencial acerca do reino profético,
a de que os espíritos de Píton não agiram sobre os
patriarcas e os profetas, como fizeram em todos os tempos sobre o gênero
humano. Abraão, Jacó, Noé, Moisés, Davi, Ezequiel,
Jeremias, Daniel seguiram a via natural nas mil circunstâncias da
sua vida, onde a luz superior repousava sobre eles. Foram-lhes revelados
acontecimentos proféticos mais distantes, freqüentemente mesmo
em sonhos, e depois foram atirados à lei dos tempos e às trevas
naturais que envolvem toda a família humana.
Quanto à aqueles que se fizeram depositários da lei sacerdotal,
tinham o direito de consultar o Senhor e usar o Efod, e o Senhor só
respondia a eles. Mas esses privilégios se enfraqueceram pela iniqüidade
dos pastores e o reino profético teve curta duração;
as nações da terra foram abandonadas para serem engolidas
pelas trevas e pelas abominações pitônicas.
Nem mesmo duvidemos que ao fim dos tempos essas abominações
se tornem universais, e que quase todas as nações desçam
em direção aos espíritos particulares e inferiores
que, não estando ligados à grande fonte da luz, dispersaram
os homens, cada um para o seu lado. Nascerão inúmeras ciências,
seitas, prodígios e fatos maravilhosos, que conflitarão uns
com os outros. Esse é o significado do evangelho: Verse-a elevar-se
povo contra povo, reino contra reino.
Porque todos esses caminhos serão de divergências e subdivisões.
Mas a massa corrompida dessas ciências verá todas essas parcelas
se separarem e se dissolverem à medida que se elevarem. E é
esse estado de fermentação recíproca e de divisão
universal entre essas falsas ciências, e entre esses falsos sábios,
que os fará desaparecer e os dissipará, deixando somente reinar
a verdade, que salvará o resto do mundo.
Pode-se, por alguns desses sinais, reconhecer que esses tempos já
se iniciaram sobre a terra, pelas inúmeras visões, inspirações,
associações espirituais que se elevam de todas as partes,
devorando umas às outras e precipitando-se à destruição.
Pode-se reconhecer, também, que a maior parte desses prodígios
afasta o espírito do homem do único caminho simples e interior
que pode salvá-lo. Também nos é dito no evangelho que,
a despeito de todas essas maravilhosas predicações para o
fim dos tempos, não haverá, contudo, fé sobre a terra.
Senhor, a iniqüidade dos homens será muito grande para não
aborrecer a tua paciência e para não inflamar a tua justiça.
Certamente, há os homens de paz e os eleitos que já chegaram
a tua morada santa, e que por suas virtudes e seus louvores te consolam
das abominações acumuladas dos outros homens. É através
das suas preces que te consolam e detêm o teu braço, esperando
que, as medidas estando cumpridas, faças explodir a tua fúria,
que será inevitável quando não houver mais fé
sobre a terra, pois quando não encontrares mais asilo no coração
do homem, tu o destruirás, na tua sabedoria e na tua justiça,
como a um velho edifício que não é seguro e no qual
tu não poderias habitar.
Mortais, sepultados no sono, levantai-vos e vede o quanto essa fúria
será terrível, pois deve compensar e arrebatar o peso das
iniquidades que se acumularam durante os séculos, e aprendi, desde
já, que sois vós que determinais a medida dos flagelos e das
vinganças que deveis, um dia, fazer tombar sobre nós. Aprendei,
digo eu, a não blasfemar contra o vosso Deus, porque se acreditais
encontrar nele uma justiça e um poder superiores a todas as vossas
abominações, por que não acreditai, igualmente, encontrar
nele uma tranqüilidade e benefícios superiores às vossas
virtudes e aos vossos impulsos mais puros e mais animados pelo fogo do espírito?
Se determinais, vós próprios, a medida dos vossos males e
dos vossos tormentos, tendes igualmente o direito de determinar a medida
das vossas alegrias e das vossas recompensas, e não duvideis que
o coração do vosso Deus queira mil vezes mais vos recompensar
do que vos punir.
Mas preferistes lançar-vos a caminhos ilusórios e sedutores,
preferistes as imagens da verdade em vez da própria verdade. Ainda
mais, não tivestes o cuidado de verificar de que direção
vinham essas imagens, e acreditastes que deveríeis ornar as vossas
habitações com o brilho das suas cores; acreditastes que deveríeis
ornar a vós próprios, sem considerar que, desse modo, estaríeis
vos comprometendo a observar as leis, os mandamentos e as vontades daquele
que vos enviou esses ornamentos.
Heis como as iniquidades são introduzidas sobre a terra, heis como
se cumprirão as medidas da abominação, porque cada
soberano ou talvez cada usurpador, tentará espalhar abundantemente
essas decorações enganosas porém atraentes para aumentar
o seu reino e granjear para si a fé e as homenagens daqueles que
tiver subjugado com esses encantos.
Através desses caminhos falsos e errôneos, ele leva os homens
a ter faculdades apenas para os conhecimentos da ordem inferior, que não
passam de aparências mortas e mentirosas. É assim que ele transforma
essas luzes turvas e incertas nos únicos elementos do homem e na
única medida do seu espírito. Também, que efeito podem
operar nos homens, as representações vivas e as alegorias
espirituais enviadas pela verdade? Esse efeito é nulo aos seus olhos;
relacionam tudo ou com as ciências inferiores, ou com a invenção
do historiador, ou não percebem nada.
Ora, por que essas figuras proféticas tão eloqüentes,
e essas formas tão pitorescas que o espírito incessantemente
toma, têm tão pouco poder sobre o espírito dos homens,
senão porque estes perderam totalmente de vista os modelos e as grandes
verdades, e estão sepultados em imagens que não exigem qualquer
esforço da sua inteligência, nem das suas outras faculdades
morais e Divinas?
O Novo Homem já viu brilhar claramente nele a própria luz
da sua essência, e não cai em armadilhas semelhantes. Ele dirá,
como Davi, (Salmo 15:17 etc.): Bendirei ao Senhor por me haver dado inteligência
e porque mesmo durante a noite, meu íntimo me adverte, me ensina.
Eu olhava o Senhor e o tinha sempre diante dos meus olhos, porque ele está
à minha direita para impedir que eu vacile. É por isso que,
o meu coração se alegra e que a minha alma canta cânticos
de alegria e que, mais ainda, minha própria carne descansará
segura, porque não abandonareis a minha alma no inferno e nem permitireis
que o vosso santo experimente a corrupção. Vós me haveis
dado o conhecimento dos caminhos da vida, vós me encheis de alegria
ao me mostrar a tua imagem. Delícias inefáveis estão
eternamente à vossa direita."
Com efeito, o Novo Homem é aquele que guardará zelosamente
a palavra do Senhor, com medo de que ele a leve para outro lugar. Trabalhará
dia e noite para conservar o calor do espírito no coração
e a luz nos tesouros da inteligência. Considerará o corpo do
homem como o recipiente de um poderoso metal que mantém a ação
do fogo sem se romper e sem se fundir. Ele dirá a si mesmo: "Antes
que eu tivesse recebido, de modo perceptível para mim esse nascimento
espiritual que me esclarece tão poderosamente sobre a minha verdadeira
natureza, o Senhor me cumulava de bens. Como ele poderia me abandonar após
me haver dado a existência? Ele me ensinou a distinguir a alegria
que desfrutamos nele". Como não viríamos por inteiro
para possuí-la? Como nos contentaríamos com a alegria que
se liga apenas as imagens, se podemos saborear a alegria ligada à
realidade, sobretudo quando as imagens nos são oferecidas como no
meio de um abismo, no seio das mais profundas trevas?
Que graça não necessitamos do alto, e que esforço não
são necessários para nos manter firmes sobre as bordas do
precipício em que caminhamos!
O Novo Homem conhece a necessidade dessa ajuda indispensável, e é
porque ele a recebeu que se enche de indulgência e piedade para com
os seus infelizes concidadãos, que estão ainda esperando por
ela. Ele sabe que só conhecemos Deus, nesse mundo pelos objetos sensíveis.
Que quando morremos começamos a conhecê-lo pelo centros espirituais,
mas que só por meio de nossa total reintegração o conheceremos
por si mesmo. Ele percebe que é essa espera que desencoraja os mortais,
levando-os ao deserto pelos caminhos da impaciência. Geme de dor por
saber que o caminho de retorno não é assim tão longo
como o fazem os homens, com todas as suas doutrinas, que parecem ser apenas
receitas de empíricos e charlatães.
Então ele diz ao Senhor: Não deixeis os homens nos caminhos
que prejudicam vossa própria obra, que eu tenho um grande desejo
de ver cumprida. Vinde em socorro da sua fraqueza, pois apenas vós
podeis preservá-los da morte e dar-lhes as forças e todo o
apoio que lhes falta. Depois, voltando-se para o inimigo, ele lhe diz: "preciso
que corra o sangue do meu espírito para saciar tua sede e te fazer
largar tua presa? Aí está: deixa meus irmãos irem em
liberdade. Não é somente em meu nome que te falo, é
em nome daquele que me trouxe a vida. Mas se não queres crer em meu
nome nem no nome daquele que me enviou, crê ao menos na obra que ele
realizou em meu ser, cuja realidade não podes negar, pois minha existência
é a prova que teu olho não pode ignorar e que não podes
deixar de sentir.
Um
dos mais maravilhosos prodígios que o homem pode perceber é
aquele que se passa nele mesmo quando dá qualquer passo no caminho
da sua regeneração. O que ele experimenta é como se
todas as graças que recebeu se reunissem fortemente, para combater
os obstáculos que suas antigas nódoas criaram nele, e aqueles
que o próprio inimigo criou e cria todos os dias, sobre essas bases
que são suas próprias obras e os fundamentos do seu templo
de iniqüidade. O homem sente não apenas que o abençoaram
em todas as suas substâncias, mas sobretudo que todas as suas substâncias
se tornaram abençoadas, e que ele pode, com o auxílio dessas
graças divinas que descem sobre ele, tornar-se um bálsamo
benfazejo, espalhando por toda a parte o odor mais agradável.
Também seu desejo e seu zelo crescem com essas doces experiências,
sua prece se transforma, por assim dizer, numa fúria santa, e ele
quer tomar o céu pela violência. Deus na minha vida, vem então
viver em minha vida, a fim de que eu possa fazer reviver a morte, como tu
me fizeste reviver quando eu estava morto.
Ah! Os homens só se tocam pela morte, em vez de se tocarem pela vida!
Quais eram os desígnios da justiça, quando após o crime
dos homens ela os precipitou no abismo terrestre em que vivemos, e onde
os colocou um após outro? Era para que se servissem mutuamente dos
testemunhos do seu destro e dos sinais da sua miséria. Era para que
tivessem constantemente diante dos olhos o triste quadro de horror a que
o pecado os havia reduzido. Era para que cada um deles, vendo o seu irmão
nas trevas, na inquietude, nas atribulações, nos sofrimentos
e nos poderes da morte física e moral, se comovesse e se voltasse
para si próprio; e que, reconhecendo humildemente os direitos da
justiça que ele queria exercer com tanta constância e severidade,
tratasse, através de suas lágrimas e sua penitência,
de acalmar-lhes a cólera e temperar-lhes o rigor.
Por esse meio, os homens, após se terem servido mutuamente dos testemunhos
do seu desvio e dos sinais de seu estado de expiação, teriam
podido, em conseqüência, servir-se uns aos outros dos sinais
de melhoria, resignação, encorajamento à prece para
aplacar a cólera divina, e sem dúvida chegariam, em seguida
servir-se mutuamente dos sinais das graças celestes, do perdão,
do consolo e das alegrias tivessem transformado para eles o reino da morte,
colocando-os, de algum modo no reino da vida, antes mesmo que tivessem deixado
essa região terrestre mista, à qual a unidade parecia ser
tão estranha. Não duvidemos, de que eram essas as intenções
da sabedoria em relação a posteridade do homem, pois essa
sabedoria procura apenas satisfazer toda a terra.
Mas os homens não são, uns para os outros, nem sinais de consolo,
nem sinais de melhoria; fazem mesmo todos os esforços para suprimir
os testemunhos do seu desvio, e os sinais da sua miséria, que deveriam
expor uns aos outros. Tornam-se realidades ativas de imprudência,
de orgulho ímpio, de iniqüidade e de corrupção
pestilenta.
Na verdade, podemos ver na natureza, o mesmo ar, a mesma fonte de vida se
comunicar com todas as plantas; entretanto, umas enchem o ar de bálsamo
e perfumes, enquanto outras o corrompem e o contaminam com mau cheiro. Mas
é essa imagem penosa que constitui a verdadeira aflição
do Novo Homem; ver que esse homem infeliz oferece aos nossos olhos o mesmo
quadro, com cores cem vezes mais chocantes e própria para lançarem
a desolação em todas as substâncias do espírito.
A Vida Divina penetra as almas como o ar penetra todos os corpos. Penetra
as almas para que elas possam germinar e produzir inúmeras flores,
dignas de ornar o jardim do Éden. Mas essas mesmas almas, em lugar
de encher a atmosfera com o doce aroma das fragrâncias benfazejas,
espalha na região do homem apenas os venenos mais penetrantes e mais
fétidos.
Choremos de vergonha e de humilhação por estarmos tão
longe da nossa pátria, por estarmos constantemente, comprimidos e
dilacerados pelo silencio da iniqüidade. O sangue corre de nossos poros,
e com medo de que a dor não seja suficientemente viva, dirigimos
o gládio para as nossas chagas, e servimos de algozes uns aos outros.
Amigos, amigos, limitemo-nos a servir de sacrificadores uns dos outros e
nos esforcemos, cada um de nós, a fazer sair, da alma dos nossos
irmãos, vítimas puras, que possam ser colocadas sobre o altar
dos holocaustos.
Vede esse Novo Homem. Ele permitiu que se passasse nele, pela voz das suas
preces, o único antídoto que pode destruir esses animais nocivos
dos quais o coração do homem é o covil. Como já,
ele raspou, a cada dia, o pus de suas feridas com o pedaço de cerâmica
que lhe restava. Assim, o espírito do Senhor veio renovar o seu sangue
e trazer-lhe a saúde. Assim, sua alma se tornará, um dia,
o trono do Senhor. Do alto do seu assento soberbo, ele surpreenderá
as nações pela sua glória, lançará a
ira contra os seus inimigos, traçará as leis do seu poder
aos inúmeros povos que habitarão em seus domínios,
publicará leis de graça para aqueles que quiserem entrar no
caminho da verdade, distribuirá prêmios e recompensas àqueles
que se dedicarem ao serviço do seu mestre e que viverem somente para
a glória da casa do senhor.
Vela então sem cessar, ho! homem de paz, ho! Homem de Desejo, para
que o trono se mantenha firme e inabalável, pois se esse trono não
estiver em bom estado, tu poderás, pela tua inteligência, retardar
a obra e a manifestação das maravilhas e das graças
do Senhor. O que seria se esse trono não fosse erigido em nome da
verdade? Deus vos diria, como em Amós: (5:20. etc.) "Eu odeio
e rejeito as vossas festas, não posso tolerar as vossas reuniões,
em vão me oferecereis holocaustos e presentes, pois eu não
os receberei; e quando em sacrificardes as vítimas mais gordas, para
cumprir vossos votos, não me dignarei a olhá-las. Livrai-me
do barulho tumultuoso dos vossos cânticos. Não ouvirei as árias
que cantaras ao som da lira. Meus julgamentos cairão sobre vós
como água que transborda, e minha justiça como uma torrente
impetuosa. Casa de Israel, porventura me oferecestes hóstias e sacrifícios
no deserto, durante quarenta anos? Vós levastes o tabernáculo
de Moloc, a imagem dos vossos ídolos e a estrela do vosso Deus, que
eram trabalhos das vossas mãos. É por isso que farei com que
sejam levados para além de Damasco, disse o Senhor cujo nome é
Deus dos Exércitos".
O Novo Homem não quer um Deus que seja obra das suas mãos.
Heis por que ele não tem outro cuidado, outro desejo que não
seja deixar que a mão do Senhor aja sobre ele. Ele a sente penetrar
até o interior do seu ser. Ela começa por revelar nele a sensibilidade
espiritual por sua aproximação. Transmite a ele um alimento
doce e vivificante, que satisfaz seu paladar e exala perfumes deliciosos.
Esses são os primeiros sentidos espirituais que nascem no homem,
pela mão do espírito.
Em seguida, essa mão benfazeja lhe abre os olhos, para torná-lo
testemunha das maravilhas da sua sabedoria e do seu poder. Tem o cuidado
de mostrar a ele a juventude de sua aparência e a fraqueza dos seus
órgãos. Mas, uma vez que ele abra os olhos para as riquezas
da mão divina que lhe proporciona todos esses tesouros, não
pode mais desviar sua atenção, e se torna, pelo uso e pelo
tempo, capaz de discernir-lhes melhor o valor e a riqueza.
Essa mão divina abre-lhe então o sentido da audição,
para convencê-lo de que todos os tesouros não são mudos
e silenciosos como os tesouros da terra, e seu ouvido é enfeitiçado
pela harmonia dos concertos que ouve, do mesmo modo que pela eloqüência
viva, luminosa e persuasiva de todas as línguas que cercam.
Enfim, essa mão divina solta a própria língua desse
Novo Homem, a fim de que ele possa provar, àqueles que lhes falam
que ele tem prazer em ouvi-los e que não deixa suas palavras escaparem.
Desde então, toda a vida desse Novo Homem será um crescimento
contínuo e um desenvolvimento de todos os seus sentidos e todas as
suas faculdades espirituais, pelos quais testemunhará que o espírito
veio até ele e lhe trouxe a sua voz. Tratará de persuadir
seus semelhantes de que essa mão do espírito é a única
que pode operar todas essas coisas em nossa alma, assim como a natureza
é a única que as realiza em todos os sentidos físicos
do nosso corpo, e que só prejudicaremos nossa conformação
e nossa regularidade, se dificultarmos, o mínimo que seja, essa realização
da mão divina. Ensinará também que o dom da palavra
é o último dos nossos sentidos espirituais que a mão
divina desperta em nossa alma, assim como a palavra material é a
última coisa que as crianças desenvolvem.
É
tempo do Novo Homem começar sua missão. Sua idade terrestre
está cumprida. Sua idade celeste vai começar. A primeira lei
a que ele vai se submeter ao entrar nessa idade celeste, é o batismo
corporal, e é necessário que receba esse batismo da mão
do seu guia, para em seguida receber o batismo divino da mão do Criador.
É o nosso companheiro fiel que está encarregado de realizar
em nós esse batismo corporal, porque sua função é
nos defender, nos preservar, nos purificar de tudo o que há de heterogêneo
ao nosso redor, a fim de romper a barreira que nos separa de nosso único
e universal princípio de reação, que é a divindade.
Contudo, esse batismo que chamamos de corporal não recai sobre a
forma exterior do corpo, porque essa forma tem ações de sua
ordem para cuidar dela e batizá-la segundo as suas medidas. E mesmo
se essa forma não estivesse pura em seus elementos exteriores, o
batismo a que nos referimos não poderia ter lugar, porque ele recai
sobre os princípios da forma, e não poderia chegar até
esses princípios, se a forma exterior lhe oferecesse quaisquer obstáculos,
devido às suas nódoas. Ao mesmo tempo, esse batismo se realiza
por meio da água que é indicada fisicamente pela água
elementar que todo mundo sabe ser o princípio de toda corporificação
material.
É sem dúvida uma vergonha e uma humilhação para
nós, termos que receber esse batismo corporal regenerador pela mão
de uma criatura espiritual, da qual somos destinados, um dia, a ser os mestres
e os juizes, pois havemos de julgar os anjos e a própria justiça
(I Epistola aos Coríntios, 6:3.). Mas essa é a conseqüência
da imensa transposição que se faz no momento do pecado e a
misericórdia divina nos concede uma graça infinitamente grande,
ao permitir que a mão da criatura espiritual rompa nossos grilhões,
para que possamos receber a vida superior e criadora da qual estamos tão
prodigiosamente afastados.
Esse anjo fiel, cheio de amor por nós, deseja certamente com muito
ardor realizar em nós essa obra salutar, mas o deseja para seu próprio
benefício, porque, segundo o que foi dito anteriormente, ele só
pode gozar a Vida Divina por nosso intermédio. Não obstante,
como todo o seu ser é humildade, ele espera, em sua doce paciência,
que os momentos sejam chegados, que as medidas estejam no ponto, e, sobretudo,
que lhe seja dada a ordem de cumprir a sua obra. Porque ele se dedicou a
obediência, oferecendo-nos, assim, o primeiro exemplo de como nos
devemos conduzir perante Deus.
Todos esses movimentos se passaram em São João Batista, quando
o salvador veio encontrá-lo perto do Jordão para ser batizado
por ele. Ele sabia que aquele que seria enviado deveria ser batizado pelo
espírito e pelo fogo. Sabia que não era digno de desamarrar
o cordão dos seus sapatos. Não ousava, por humildade, batizar
o Senhor. Somente se determinou a isso quando recebeu a ordem do próprio
Senhor. E esse São João nos é mostrado no evangelho
como caminhando no espírito e na virtude de Elias, ou como sendo
o próprio Elias, isto é, o espírito do Senhor. Também
era ele o precursor.
Quando esse batismo corporal é realizado em nós pela água
do espírito, o Novo Homem sai das águas em que estava mergulhado,
e quando põe o pé sobre a terra uma voz do céu se faz
ouvir e diz: Este é o meu Filho bem-amado no qual depositei toda
a minha afeição. Até então esse Novo Homem era
o Filho de Deus, pois fora concebido pelo espírito e por esse mesmo
espírito nascera. Mas o seu nome e a sua família divina não
haviam sido promulgados, e enquanto essa barreira que devia ceder à
água do espírito não tivesse sido rompida, o Novo Homem
não poderia receber de seu Pai essa declaração autêntica,
em que ele o reconhecia como seu Filho, assegurando-lhe não só
a sua existência entre as nações, mas também
direitos imutáveis à sua legítima herança.
Só então a divindade começa realmente a nos penetrar,
e temos a esperança de ver descer sobre nós os três
princípios divinos que virão se estabelecer, para realizar,
por sua suprema indissolubilidade, uma união íntima dos três
princípios que nos constituem individualmente, união que,
a partir desses três princípios, deve formar em nós
um único princípio e manifestá-los sempre nessa unidade
forte e harmoniosa, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias,
em qualquer obra e em qualquer parte de nós que necessitar deles.
Essa entrada de Deus em nós é o principal desejo e o objetivo
essencial da divindade. Temos apenas uma idéia muito vaga dos esforços
que ela faz para cumprir esse objetivo. E se há qualquer coisa de
lamentável em nossa existência, é sentir, é experimentar
que impedimos o acesso dessa divindade, é sentir fisicamente que
ela circula em torno de nós, para encontrar um caminho pelo qual
possa se introduzir em nosso coração, e que nós, ao
contrário, nos esforçamos para lhe estreitar essa via, obrigando-a
a se contundir e a sangrar para penetrar em nós e nos trazermos a
vida; é sentir que o amor que ela tem por nós lhe torna suportáveis
todas essas dores, e que ela nem ao menos lamenta, que não se aborrece
de verter lágrimas desde que o fogo da sua caridade supere os obstáculos
e triunfe na santa glória do seu amor, enquanto nós, nas nossas
trevas abomináveis e nos nossos caminhos plenos de iniqüidade,
fechamos os ouvidos às suas solicitações permanecemos
insensíveis à sua ternura.
Contudo, ela tem o cuidado de nos chamar, de nos fazer levantar do meio
dos mortos, de nos livrar da lama e das doenças nas quais estamos
atolados, de nos tornar suficientemente luminosos pelo fogo do seu espírito,
para que possamos servir de guias uns dos outros, e de pontes em nossos
abismos, e sair juntos por seu poder divino, desse sepulcro no qual não
passamos de verdadeiros cadáveres.
Ora, o menor raio da sua palavra é suficiente para operar em nós
esse prodígio, para nos encher totalmente de força, de amor
e de luz, substituindo esse estado tenebroso e insignificante, próprio
da região que habitamos, pelas virtudes e faculdades do caráter.
E é o raio dessa palavra que nos esforçamos para expulsar
de nós, como se fosse nos trazer a morte.
O Novo Homem não quis seguir esses caminhos errados. Ele foi concebido
em Nazaré, viveu entre os nazarenos e, segundo os usos e as leis
dos nazarenos, quando chegou a idade, foi levado até o Jordão,
que é a fronteira da terra prometida. Lá ele se submeteu humildemente
à mão do seu guia e do seu precursor que se abaixou para pegar
a água do rio e a espalhou sobre a cabeça e sobre toda a pessoa
interior daquele nazareno.
Esse batismo invisível, do qual o batismo visível do salvador
nos dá a compreensão, tem um duplo efeito sobre o Novo Homem.
O Novo Homem não apenas ouve, como o salvador, estas palavras consoladoras:
"Este é o meu Filho bem-amado no qual depositei toda a minha
afeição, como também descobre, da mesma forma que o
salvador, que na profundeza do seu ser, tinha tesouros escondidos, dos quais
não ignorava o valor, mas que não lhes tinham sido ainda revelados,
e que só o poderiam ser através desse batismo invisível,
que não pode ser administrado senão pela mão do seu
guia". Desde o instante em que esse batismo invisível lhe é
administrado, a voz divina pode entrar nele como em sua própria forma
e penetrar em todas as faculdades divinas que o constituem. E à medida
que o penetra assim, em todas as suas faculdades, ele descobre em si mesmo
todas as riquezas de que é dotado pela sua natureza divina e o emprego
que deve fazer dessas riquezas, para a glória daquele de quem as
recebeu.
Essas riquezas consistem, principalmente, em sete canais espirituais que
esperam todos a ordenação sacramental, para retomarem a sua
atividade e para se tornarem novamente os órgãos da fonte
suprema, da qual devem transportar as águas fertilizantes a todas
as regiões assoladas pela esterilidade. Esses canais espirituais
tem contra si a mais perfeita correspondência, e ainda que cada uma
delas tenha uma característica e uma propriedade diferente, um não
pode agir sem o concurso dos outros, ou sem que suas relações
com os outros não estejam determinadas. É assim que, pela
manifestação que a verdade universal nos oferece na harmonia
musical, nenhum som pode existir sem que suas relações sejam
imediatamente estabelecidas com todos os outros sons.
Esse é o instrumento divino que a fonte superior confiou ao Novo
Homem, ou melhor, quis recuperar nele para colocá-lo em condições
de celebrar de novo, através de cantos regulares, a glória
do seu autor, do seu mestre e do seu Pai. Obra que o homem não pode
completar a não ser com o auxílio desse instrumento espiritual,
e ligado em todas as suas harmonias, porque como é a unidade que
ele deve celebrar, não poderia fazê-lo com exatidão,
se não tivesse na mão o representativo dessa unidade.
Obra que jamais teria sido interrompida, se o homem tivesse seguido os planos
do seu destino original, mas que, a despeito da interrupção
que ela suportou pelo poder cruel que o obstruiu em nós esses preciosos
canais, está sempre pronta a reviver e a desenvolver todas as maravilhas
das quais é suscetível, desde que o homem se proponha sinceramente
a reunir as condições, pelos seus esforços constantes
e a sua íntima humildade, de receber o batismo, invisível
do seu guia, o único que o pode conduzir às portas da região
da vida.
Quanto
mais o Novo Homem é tocado pela admiração, ao descobrir
em si tão grandes maravilhas e um instrumento espiritual tão
precioso, mais ele sente a necessidade de se entregar com ardor ao encargo
de limpar cada vez mais todos esses canais e de estudar, com uma vigilância
infatigável, todos os sons, para que o concerto que devem compor
seja de uma harmonia perfeita e para que os planos da fonte suprema não
sejam desarranjados uma segunda vez.
É por isso que ele vai se lançar ao deserto. Não somente
no deserto material de circunscrições locais e terrenas, mas
no deserto do espírito e no deserto de Deus. Ou seja, ao sentir que
é pouco digno de aproximar-se desse espírito e desse Deus
do qual foi tão afastado por causa do crime, vai se desdobrar para
reunir suas forças e suas luzes dispersas, a fim de que, quando tiver
alcançado a felicidade de fazê-las retomar sua unidade, possa
se oferecer, nas mais justas providências àquele que é
a própria providência.
Além disso, ele é conduzido a esse isolamento corajoso por
um sentimento de justiça e de eqüidade. É por nós,
diz ele, que o crime foi concebido e realizado; é por nós
que a subdivisão do nosso ser teve lugar, é por nossa própria
vontade que merecemos se separados do nosso princípio; é portanto
por nós, por nossa própria vontade, que devemos merecer ser
reconduzidos e reunidos a esse princípio. Feliz também, e
cem vezes feliz, não somente quem nos advertiu de que essa aproximação
nos era possível, mas também quem nos mostrou, ao mesmo tempo,
o fim e os meios, pelo dia em que o batismo invisível do nosso fiel
companheiro vem se difundir na alma do homem.
É portanto por esse espírito de humildade, de justiça
e de coragem que o Novo Homem vai ser impelido para o deserto. Lá,
com a luz que recebeu, vai percorrer as mais profundas cavernas do seu ser,
e não repousará nem de noite, nem de dia, até que tenha
afastado todas as imundícies todos os malfeitores e todos os animais
nocivos.
Doutrinas profundas nos ensinaram que nesse deserto ele será tentado,
em realidade, da maneira como o foi o primeiro homem no domínio primitivo
que lhe foi confiado. Ensinaram-nos que o será em seu corpo, em sua
alma e em seu espírito, em razão dos três princípios
que nos constituem. Ensinaram-nos que ele só poderá se defender
opondo ao seu inimigo a palavra que sai da boca de Deus, como o salvador
nos deu o exemplo, respondendo ao tentador com as passagens da escritura.
Ensinaram-nos que esse homem em provação deve passar quarenta
dias e quarenta noites no deserto para cumprir a retificação
desse quaternário que caracteriza a alma humana e que foi desfigurado
pelo pecado. Assim, não entraremos aqui nesses grandes assuntos.
Além do mais, é nele, é em sua alma que esse Novo Homem
descobrirá todos esses princípios. E só será
um Novo Homem se aprender essas verdades superiores pela tradição
e se conhecê-las intimamente pela experiência e pelo sentimento.
Então trataremos, apenas de não perder de vista o caminho
que ele vai seguir nesse deserto.
O primeiro passo é sentir que o ser físico é somente
cidadela que ele deve defender; que essa muralha deve não apenas
oferecer uma resistência intransponível aos inimigos, como
dela própria que ele deve lançar sobre os inimigos os relâmpagos
e os raios para impedi-los de se aproximarem, e atemorizá-los pelo
terror do seu poder. Mas como reconheceu claramente que sem o batismo invisível
que recebeu jamais teria tido a força de empreender obras tão
penosas quanto essas que se apresentam a ele, fará com que esse mesmo
batismo se estenda sucessivamente sobre todas as porções do
seu ser.
Assim, ele invocará o nome do Senhor para que os seus elementos sejam
mantidos na medida e na exatidão que lhes convêm, a fim de
que a muralha conserve a sua estabilidade. Invocará o nome do Senhor
para que os elementos superiores reajam e fortifiquem continuamente essa
muralha, preservando-a de toda degradação, para que possa
resistir melhor aos seus inimigos. Invocará o nome do Senhor para
que o princípio da sua vida corporal contribua sempre com a ação
dos seus elementos constitutivos e a reação dos elementos
superiores, de modo que a harmonia os torne como que inseparáveis,
formando um triângulo poderoso e irresistível, sobre o qual
a desordem não possa ter nenhum poder. Nutrirá assim o seu
ser elementar, da força, da paciência, da firme constância,
de coragem, de elevação sobre os males e os perigos, enquanto
sente que esse ser elementar é apenas a muralha da fortaleza, e que
o faz pensar com não menos preocupação, na necessidade
de preparar a guarda do lugar para a defesa e a segurança.
Vede então esse Novo Homem, no meio da sua solidão, ora errar
pelos caminhos afastados, ora sentar-se atormentado pela amargura, e verter
torrentes de lágrimas, ora absorver-se na profundidade dos seus pensamentos,
sempre a gemer, sempre a desejar, sempre a esperar os momentos de consolo
e de triunfo que lhe são anunciados, sempre a orar para que a sua
esperança não definhe, não obstante a dureza do deserto,
a aspereza do seu alimento e as rudes provas que deve suportar a cada instante.
Vede-o, ao mesmo tempo, defender-se por meios simples e sempre tirados do
amor e do respeito que tem pelo seu Deus.
Com efeito, todas as vezes que um objeto qualquer se apresenta ao seu pensamento,
procurando despertar-lhe desejos, por mais legítimos que estes pareçam
ser, antes de se agarrar a esse objeto ele se volta para Deus e diz:
"Eu senti que meu Deus era o princípio de todas as coisas, que
não há nada que não tire dele sua força, suas
propriedades, suas virtudes e todo o seu valor. Não devo, portanto
entregar meu pensamento e meu coração a qualquer objeto, sem
procurar saber se o meu Deus não tem o que considerar acerca desse
objeto. Porque se ele tiver um lugar para esse objeto, eu seria insensato
de não me dedicar exclusivamente a ele, de formar outras alianças
que não possuem com ele, pois qualquer outro objeto além dele
é apenas secundário e só pode me oferecer alegria passageira
e limitada, como o pé a essência particular desse objeto, ao
passo que ao fazer uma aliança exclusiva com meu Deus, encontrarei
nele todos os objetos secundários que existem fora dele, ainda que
por ele, e os encontrarei em uma existência durável, permanente
e universal, pois estarão ligados a fonte eterna e imperecível
que os criará e os engendrará continuamente, e sem que possam
jamais deixar de existir e de me encher de alegrias e delícias.
Por essa resposta simples e tomadas ao espírito da verdadeira fé,
ele imperceptivelmente afasta todos os sedutores, que não podem resistir
a uma evolução semelhante, e que talvez sejam mais facilmente
dispersos por esse meio do que por uma resistência aberta e por combates
declarados. À medida que esse Novo Homem fortifica a muralha da cidadela,
obtém desenvolvimentos simples e vastos, instrutivos para a administração
do interior.
Ele pode perceber as solidas razões disso. Em primeiro lugar, quanto
mais essa muralha é fielmente guardada e mantida em suas justas medidas,
menos relações e entendimento pode haver entre os inimigos
que estão fora e os habitantes mal intencionados que poderão
estar no interior do lugar. Talvez mesmo, por não poderem se comunicar
com o inimigo, e tocados pelo exemplo dos seus concidadãos que permanecem
fiéis, eles próprios se coloquem do lado da boa causa, e assim,
todas as forças se reunirão para a saudação
comum da força, da prudência, da sabedoria, das luzes e da
coragem se multiplicando entre os habitantes, e a cada dia descobrirão
novas claridades e novos expedientes para desencorajar os sitiantes e fazê-los
desistir, e talvez até para extermininá-los, quando se apresentar
a ocasião de combatê-los corpo a corpo.
Em segundo lugar, como todas essas forças e essas luzes não
podem se encontrar no Novo Homem, a não ser quando descerem da via
superior pelas diversas progressões da sabedoria e pelo uso sagrado
que o homem tem a felicidade de fazer dela, é ainda o bom estado
da muralha do lugar que pode favorecer e auxiliar a chegada desses recursos.
Porque vimos que o nosso Deus era um ser ativo e efetivo; vimos que ele
procurava fazer penetrar por todas as partes a sua atividade e a sua efetividade.
Mas pela lei das analogias da qual ele é, ao mesmo tempo, o modelo
e a fonte, ele só pode unir-se à atividade e à efetividade.
Assim, a atividade divina só poderá se comunicar com o nosso
interior, desenvolvendo-se aí de uma maneira útil e real,
se tratarmos de acumular em nossos elementos a atividade espiritual e efetiva,
invocando o nome do Senhor. Antes que essa atividade divina desça
em nós e se estabeleça de uma maneira proveitosa, é
preciso que ela possa encontrar aí órgãos ativos e
suficientemente cheios de força para corresponder a todos os seus
movimentos e realizar, segundo as suas medidas, os planos que ela traçará
segundo as medidas dela. Enfim, não seria demais repetir, é
preciso que o Novo Homem se sacrifique, se regenere, se espiritualize e
mesmo se divinize, para que a ação divina possa baixar com
alegria sobre ele, certa de encontrar uma morada que lhe convenha e onde
sua glória, seus poderes e todos seus tesouros não sejam condenados
a ficar sem frutos ou a ser roubados pelo inimigo.
Esse
cuidado e essa vigilância sobre nosso ser exterior parecerão
tão indispensáveis ao Novo Homem, que ele não terá
dificuldade em considerá-los como os principais e, talvez mesmo,
como os únicos com que o homem deveria se ocupar neste mundo. Com
efeito, é esse ser exterior que está na fronteira, é
por meio dele que se devem manifestar a sabedoria, a força e a magnificência
dos habitantes do reino. É até ele que vão afluir e
chegar todos os resultados das sábias deliberações
que devem ser constantes no interior do império. Não deveríamos
ter outras funções senão as de velar e de colaborar
para a exata execução dessas sábias deliberações,
porque somos apenas os agentes do Estado, e não os seus legisladores.
Poderemos desempenhar muito bem nossas funções, sem a menor
inquietude acerca das luzes e da sabedoria que não faltarão
ao conselho, se não interrompermos a marcha e a execução,
pela nossa negligência, para manter nosso posto em bom estado.
A razão pela qual podemos ficar tranqüilos acerca das luzes
e da sabedoria do conselho, não pode deixar de descobrir as luzes
dele e receber, continuamente, seus decretos e deliberações,
como um rio que corre naturalmente em seu leito.
Assim, se deixarmos a via do nosso interior aberta a essa sabedoria e a
essas luzes, elas correrão tão infalivelmente em nós
como o rio corre nesse leito que lhe está sempre aberto, e como ele
não teremos medo de que a fonte possa um dia se esgotar. Nosso crescimento
espiritual exterior faz-se-a como o crescimento corporal das plantas, que
transformam em casca, ramos, folhas, flores, frutos as essências que
lhes são enviadas pelo princípio da sua vida vegetal, sem
que tenham necessidade de se preocupar com a maneira como essa seiva radical
e criadora fará chegar novas essências, para os novos resultados
que estão sempre prontas a realizar, e ficaremos tão inquietos
acerca do fluxo da fonte divina em nosso interior quanto elas acerca do
fluxo da fonte viva da natureza em seus diversos canais, que são
próprios para cumprir os planos dessa natureza. Porque estaremos
certos de que a fonte divina tem planos mil vezes mais vastos e mais duráveis
e uma abundância incomparavelmente mais inesgotável.
Fonte divina, oh! fonte divina, o que é que torna os teus planos
assim tão vastos e a tua abundância assim tão inesgotável?
É essa santa analogia que te dignaste estabelecer entre ti e o homem.
É porque nos colocaste imediatamente abaixo de ti, que o rio da tua
vida escorre em nós, como se fosse arrastado pelo peso das suas águas
na inclinação natural que tu próprio deste a ele, ao
nos dar a existência. É porque deste ao nosso coração
a capacidade de crescer à medida que as águas divinas se acumulam
nele, que gostas de fazer descer em nós esse rio sagrado, que é
tão eterno quanto tu. E procuras dirigir para nós o curso
dessas águas, porque sabes que o coração do homem é
o único que as pode receber em toda a sua grandeza, conservá-las
em toda a sua eficácia virtual e empregá-las para essa fertilização
e para essa vegetação universal que, mesmo antes dos séculos,
era o desejo do teu ser e o objetivo da tua existência.
Alma do homem, o homem não pode, de modo algum, descrever as delícias
que podem te envolver quando, após haver estabelecido, pela graça
superior, uma medida justa, forte, durável e à toda prova
em teu ser exterior - que é como a fronteira de estado -, sentes
descer em ti essas águas divinas, essas doçuras divinas, essas
luzes divinas, essas virtudes divinas que te dão a fé, a vida,
o sentimento da vida que elas te trazem e a santa confiança de que
participas da imortalidade delas. Mas o homem pode te advertir de que ainda
não é chegado o momento de te entregares a essas sublimes
alegrias.
Lembra que neste mundo ainda estás no deserto. Lembra que ainda estás
no meio dos leões devoradores. Lembra que estás suspenso como
por um fio sobre o abismo. Lembra que estás aqui para padecer, para
trabalhar, e não para desfrutar. Assim, mantém-te em guarda
mesmo contra as delícias dessas junções divinas que,
sendo muito antecipadas, poderiam te enganar acerca da tua obra, se as escutasses
durante muito tempo e com muita complacência. Antes, temperas com
o sentimento da tua enfermidade. Mantém-te sempre pronto a renunciá-las,
afim de preparar-te melhor para recebê-las um dia, de uma maneira
que não seja perigosa para ti e que te seja inteiramente proveitosa.
Enfim, recebe-as com uma mescla de alegria temor e estremecimento, pela
infelicidade que tenhas de deixá-las escapar aos perigos que ameaçam
todos os tesouros sagrados que descem até este vale de lágrimas.
Ocupa-te somente de fazê-las chegar ao seu termo sem acidente e sem
avarias, e não consumas com o gozo das tuas satisfações
pessoais o tempo que deves empregar para o progresso da obra do teu mestre
e para velar contra os depredadores das suas riquezas.
Não esqueças de que há duas portas no coração
do homem; uma, inferior, que abre ao inimigo o acesso à luz elementar,
da qual ele só pode usufruir por esse meio; a outra, superior, que
só pode lhe ser comunicada neste mundo por esse canal. Se, em vez
de abrires a porta superior para consolar o amigo que está contigo
em tua prisão, abrires a porta inferior, dando acesso em ti ao teu
adversário, tornaste-as um campo de batalha onde o teu amigo fiel,
já em privação por sua caridade por ti, continuará
exposto ora a um combate cruel, ora a ataques dilacerantes, quando perceber
que também declaras contra ele, e sempre a uma situação
lamentável, por causa da horrível vizinhança que lhe
proporcionaste e pela infeliz condição em que se encontrará,
por tua negligência ou por teus crimes, de ficar próximo de
seu inimigo, e do teu, de se achar preso no mesmo recinto, de vê-lo
diariamente corromper-te com sua infeção e de ser obrigado
a respirar essas influências pestilentas.
Pensa então no que seria, se após ter deixado esse inimigo
de toda verdade penetrar em ti, abrisses imediatamente a porta superior
do teu ser, e a própria verdade fosse colocada em situação
de descer, por causa da sua inclinação natural. Desviemos
os olhos desse quadro, ou, ao menos, só o contemplemos quando nos
for útil e necessário para invocar em nós uma força
maior do que aquela que nos resta, após os danos essa força
superior para que se junte àquela desse amigo fiel e à nossa,
a fim de que esse triplo poder caia como um raio sobre o depredador e o
funesto inimigo que deixamos entrar em nós, para que ela o faça
retornar aos abismos, fechando em seguida, de maneira segura, essa porta
inferior que jamais deveríamos ter aberto para ele.
Heis, com efeito, qual é a obra do Novo Homem durante a sua estada
no deserto: obter do alto uma chave poderosa para prender o inimigo em suas
cavernas tenebrosas, separar o puro do impuro, como havia sido recomendado
aos hebreus, levar a respiração do ar celeste e divino a esse
amigo fiel, a quem o primeiro homem fez respirar continuamente um ar infecto
depois do crime, enfim, arrancar das mãos do inimigo as porções
dos tesouros divinos e as centelhas da própria verdade que permitimos
algumas vezes que fossem roubadas ao abrir imprudentemente a nossa porta
superior, sem tomar a preocupação de enxotar o inimigo para
os seus abismos e fechar cuidadosamente sobre ele a porta inferior.
Porque esse é o encargo que nos resta cumprir, depois que a fraqueza
do homem primitivo deixou a iniqüidade penetrar nossos domínios.
Ao comer da árvore da ciência do bem e do mal, reuniu, um ao
outro, o seu ser que habitava a luz e o seu adversário que habitava
nas trevas. Era essa reunião monstruosa que a sabedoria divina queria
impedir, prevenindo-o para não comer dessa árvore da ciência
do bem e do mal, que lhe traria a morte. Portanto, é a ruptura de
uma associação semelhante que devemos realizar agora, se quisermos
estar em condições, de comer os frutos da árvore da
vida sem cometer a mais abominável das profanações.
Repito, esse último quadro seria muito aflitivo e muito desesperador
para aqueles que não tivessem adquirido os olhos, a idade e a força
do Novo Homem, e não poderiam considerar, sem risco, as horríveis
prostituições às quais os frutos da árvore da
vida foram expostos pela iniqüidade dos mortais; Mas é com a
expiação e com a abolição dessas prostituições
que o Novo Homem está particularmente ocupado. Heis por que não
pode mais gozar um momento de repouso sequer, pois o inimigo não
apenas se defende o tempo todo, temendo retornar aos seus abismos, como
procura, de todas as formas fazer com que se abra a porta superior do coração
do homem, a fim de multiplicar cada vez mais as abominações
que terminariam por inundar a terra, como o fizeram antes do dilúvio.
Essas
ocupações e esses cuidados do Novo Homem são tão
urgentes e tão importantes, que ele permanecerá um tempo no
deserto ainda para assegurar os fundamentos da sua obra. Se recebeu o nascimento
espiritual, se foi alimentado pelo verbo até a idade da sua missão,
foi para seu próprio benefício e para sua libertação
pessoal.
Atualmente, ele precisa pensar na obra do seu mestre. Ele precisa fechar
de tal maneira a porta inferior do coração do homem, após
ter expulsado o inimigo, que a porta superior e divina possa se abrir sem
inconvenientes e sem temer as horríveis prostituições
que esse inimigo constantemente projeta e maquina, de acordo com os meios
de que dispõe.
Esse era o espírito das três tentações com as
quais atacou o salvador. Sob a aparência da piedade e da fé,
buscava apenas fazer com que as virtudes divinas caíssem em seu domínio,
para utilizá-las erradamente, a fim de que todos os frutos fossem
para o proveito dos seus fins cúpidos e criminosos. Tal era o espírito
dessas três tentações, pois, uma vez que esse príncipe
das trevas não anda na luz, só pode conhecer a mesma rota
errada que vem seguindo desde o princípio, e atacou o salvador como
atacara o primeiro homem e como ataca diariamente todos os mortais.
Mas o salvador, ao contrário, conduziu-se em relação
a ele como o homem deveria tê-lo feito nos tempos primitivos, como
o Novo Homem se conduzirá daqui por diante e como todos os mortais
deveriam se conduzir. Ou seja, considerando-se apenas como ministro e servo
de Deus, não pode tomar para si a determinação de ceder
a qualquer proposta sem a autorização de seu mestre, contentando-se
em recitar a lei e as vontades desse mestre, a aquele que o quer seduzir.
É preciso que ele entenda, a partir disso, que não pode entregar-se
legitimamente ao que lhe é sugerido, e sendo a vontade do seu mestre
a sua primeira lei, deve consultá-la antes de agir e segui-la, uma
vez que a conheça.
Um observador inteligente talvez encontre na serenidade dessa resposta,
e na citação das vontades superiores, um indicador da maneira
como o homem deveria ter se conduzido em seu estado de glória e da
função que deveria ter exercido em relação ao
ser extraviado. Porque a citação da lei da vontade superior
teria sido um tipo de instrução que o homem deveria ter dado
ao prevaricador, e que poderia tê-lo feito cair em si e ingressar
novamente na verdade.
Mas deveria fazer essa citação não como a fez Eva,
ao dizer à serpente, já cambaleando e perturbada: Deus ordenou
que não comêssemos o fruto da árvore que está
no meio do paraíso, e nem a tocássemos, pois ficaríamos
em perigo de morrer. Mas com a firme resolução de permanecer
fiel ao preceito e de se opor, em conseqüência dessa fidelidade,
a todas as tentativas do prevaricador. Heis então, ainda, um dos
frutos que o Novo Homem pode dar aos seus irmãos, dadas as inúmeras
colheitas que sairão dele quando tiver concluído suas provas
e seus combates no deserto.
Esse fruto é a maneira pela qual podemos nos livrar do inimigo, quando
ele nos tenta com qualquer proposta insidiosa, com imagens ilusórias
e com suas insinuações habituais. Digamos a ele, como o Novo
Homem: Eu não sou o meu próprio mestre, sou apenas o servidor
de Deus, é a ele que te envio para que julgue os teus planos e as
tuas propostas. O inimigo não resistirá a essa linguagem;
ou, se ele tiver a intenção de prosseguir nos seus empreendimentos
e nas suas tentativas, irá chocar-se a própria lei, que o
destruirá e o cobrirá de vergonha e confusão.
Quantos esforços e cuidados serão necessários, até
que esse Novo Homem tenha fechado ao inimigo todas as passagens! É
preciso que não haja um único ponto em seu ser por onde esse
inimigo possa levar a cabo o menor dos seus projetos sedutores, estabelecendo
essas falsas alegrias com as quais aprisiona diariamente os mortais. São
essas as reuniões de jogos e divertimentos em que Jeremias disse
que não se encontrava.
Esse Novo Homem também vos dirá, como Jeremias 15:15: "Senhor,
vós que conheceis o fundo do meu coração, lembrai-vos
de mim e defendei-me dos que me perseguem... Vossa palavra se tornou o prazer
e a alegria do meu coração, porque eu carreguei o nome do
vosso profeta, ó senhor, Deus dos exércitos... já não
me encontro nas reuniões de jogos e divertimentos... estou retirado
e solitário... porque minha dor se tornou constante... Por causa
disso o senhor diz: se souberes distinguir o precioso do vil, serás
como a boca de Deus. E te levarei à consideração desse
povo como um muro de bronze, inabalável. Eles pelejarão contra
ti e não levarão nenhuma vantagem, pois estou contigo para
te salvar e te livrar... Eu te libertarei das mãos dos perversos
e te preservarei do poder dos fortes".
Lembremo-nos de que não há um único ponto no ser do
homem sobre o qual essas sublimes palavras não se devam pronunciar,
e que a única exigência de Deus é que o homem esteja
constantemente atento a elas. Já fomos muito longe para nos admirar
com essa maravilhosa misericórdia. A grandeza do homem é um
testemunho evidente da grandeza da obra de Deus com relação
à infeliz família humana e, reciprocamente, a grandeza da
obra de Deus é uma demonstração da grandeza do homem.
Essa obra é tal, que seria suficiente contemplá-la e percebê-la
para renascer e para nos restabelecer nas regiões santas do amor
e da sabedoria, de modo que não somente o mundo das ilusões
e das trevas desaparecessem para nós, mas que todos os mundos de
luz parecessem se encontrar em nossa alma, como se encontram no pensamento
de Deus.
Oh! Novo Homem, tu te tornas respeitável aos teus próprios
olhos quando sentes o que realiza para ti o criador das coisas! Ele é
o Deus único, tu és o seu Filho. Pode haver alguma coisa que
não seja divina na obra que se realiza em ti e nele!? Pode haver
alguma coisa que não seja o próprio ato do teu Deus!? Também
tu não viverias, e já estarias morto, se não acreditasses
naquele que ele enviou a ti.
Ao mesmo tempo, é por essa confiança viva, é por essa
fidelidade às vontades do seu mestre, que o Novo Homem vai restituir
ao seu ser a atividade que lhe é própria. Ele sente que nada
no sangue do salvador como num mar abundante que envolve todo o universo.
Sente os germes, produzidos pelos simples poderes secundários. Sente
que os frutos provenientes desse sangue não são insignificantes
e sujeitos à ação do tempo, e fica admirado de encontrá-los
nele em viva atividade, mesmo quando parecia ter perdido de vista a sua
existência. Sente que sua atividade se transmite ao seu próprio
germe e o dispõe a realizar todas as suas virtudes, à imagem
e à semelhança daquele que houve por bem escolhê-lo
para seu irmão.
Também não há nenhuma dúvida de que esse sangue
no qual ele nada restabelece, em todos os pontos do seu ser, a vida que
lhes falta é a força e a segurança de que necessitam
para conservar intacto o interior do lugar e escapar à fúria
dos que o atacam e o perseguem. Porque, se o seu ser é a síntese
universal de tudo o que existe nos dois mundos, é preciso que ele
recupere todas as dimensões que lhe pertencem nessa relação,
e que, assim, os dois mundos que estão nele retomem suas relações,
sua justeza e suas propriedades originais.
É esse o sentido de sua verdadeira reconciliação e
regeneração; assim, é preciso que esteja reconciliado
com os seus princípios e ações elementares, com todas
as regiões temporais, com as duas regiões espirituais, celestes
e terrestres, com todas as regiões divinas, pois todas essas regiões
estão nele e não foram colocadas aí para permanecerem
na inércia e na morte.
O primeiro homem deixou que os sete domínios fossem devastados pelo
crime, colocando-nos na necessidade de trabalhar, como ele, para reabilitá-los
em nós, antes de trabalhar para reabilitá-los ao redor de
nós. O agente supremo dá o seu auxílio ao primeiro
homem, desde o instante do crime, para ajudá-lo a se regenerar em
suas leis e em suas medidas particulares. É por isso que viu renascer
nele esses sete canais que o tornariam, primitivamente, o instrumento ativo,
da divindade; é por isso que se retirou para o deserto, afim de se
afastar totalmente do que não tinha relação com os
seus elementos primitivos. Enfim, é por isso que, cheio de confiança
naquele que não o perdeu de vista, e em todos os germes da regularidade,
da força, da justeza, das luzes, da sabedoria, do poder e das verdades
que essa mão suprema semeou nele, vai abandonar o seu deserto, espalhando
para fora os frutos que, graças a todo poder, soube produzir pela
cultura cuidadosa e vigilante.
Como
esse Novo Homem, aparentemente, teve relações tão perfeitas
e direitos tão ativos sobre a natureza, a ponto de poder alterar
as substâncias que a compõem, dando-lhes propriedades tão
poderosas, em comparação com as que elas anunciavam antes
que ele aparecesse? É que ele já havia celebrado as bodas
de Canaã. É que ele já havia transformado a água
em vinho, já havia revivificado nele as seis urnas, isto é,
as seis ações elementares que compõem a circunferência
visível de tudo o que é matéria, e por essa revivificação
deu acesso nele ao princípio central e setenário que lhe dá
o movimento e a vida, podendo transmiti-la por seu intermédio a todos
os que não o receberam e ainda estão no domínio da
morte e da inação. É que, ao permitir acesso a esse
princípio central e setenário, ele devolveu a sua forma corporal
e propriedade original, que lhe pertence por natureza, de ser superior a
todas as formas do universo e de provar a sua superioridade. É que,
ao devolver a sua forma corporal a sua propriedade original, pôde
provar, a todas as outras formas, que seu destino primitivo foi, com efeito,
produzir resultados semelhantes e semelhantes regenerações
em todas as formas da natureza que estivessem submetidas ao seu poder.
Heis por que nada se compara à imprudência daquele que tenta
fazer quaisquer empreendimentos nessa ordem de coisas superiores, sem começar
por devolver a sua forma as propriedades essenciais das quais ela deveria
ser o depositário e o órgão. Mas se ele chega a devolver
à sua forma as suas propriedades originais, não há
resultados que ele não possa alcançar, pois sua forma esta
acima de todas as formas da natureza.
O que seria então se o Novo Homem estivesse regenerado em todo o
seu ser? Ele faria muito mais coisas que o próprio salvador, porque
o salvador não fez mais do que semear os germes da obra, e o Novo
Homem pode fazer a colheita, que amadurece a cada dia. O salvador ressuscitou
mortos individuais, e o Novo Homem poderá ressuscitar tribos inteiras.
O salvador acalmou as águas de um lago, e o Novo Homem poderá
acalmar as águas do oceano. O salvador restituiu a visão a
alguns cegos, e o Novo Homem poderá abrir os olhos de todos os que
o rodeiam. O salvador libertou os homens limitados corporalmente pelos grilhões
do inimigo, e o Novo Homem poderá romper, ao mesmo tempo, todas as
cadeias de todos os homens de desejo.
Ao operar todas essas maravilhas, ele dirá: Senhor, é ao vosso
nome que toda a glória é devida, porque fostes humilhado para
elevar o homem; não fizestes mais do que voar ligeiramente diante
dele, como a águia voa diante dos seus Filhotes para ensiná-los
a voar e a exercer as suas forças, e quisestes que ele se tornasse,
através de vossos ensinamentos, tão grande como deveria ter
sido, se não tivesse abandonado o antigo posto que havíeis
confiado a ele. Quisestes operar diante do homem em vosso estado de rebaixamento
e de humilhação, a fim de que, seguindo fielmente o vosso
exemplo e os vossos mandamentos, ele pudesse chegar a operar em vossa glória,
e é por isso que prometeu a vós que faria coisas maiores do
que vós. Mas por maiores que sejam as obras que realizará,
não poderá deixar de celebrar ainda mais os vossos louvores,
pois fostes vós que o regenerastes, e só por vós ele
adquiriu o poder de operar em vós.
Esse foi o espírito de sabedoria e de humildade que ditou a resposta
do salvador a sua mãe, quando ela lhe disse: Eles não tem
vinho nenhum. Porque, ao responder a ela: Mulher o que há de comum
entre mim e vós? A minha hora ainda não chegou, ele contemplava
o grande poder pelo qual deveria um dia abrir a fonte das águas vivas
no céu e ver o fruto novo da vinha do reino do seu Pai. Mas como
os homens não estão ainda preparados a partilhar divinamente
esses benefícios, visto que ainda se encontram sob o jugo das aparências,
ele declara que a sua hora ainda não chegou e limita-se a deixar
que sua ação opere, perante eles, sobre as substâncias
elementares. Operação suficientemente tocante para enchê-los
de assombro e de respeito pelo seu autor, enquanto que a sublime operação
divina da qual ela é a imagem escapou dos seus olhares e tornou-se
totalmente inútil para eles.
Essa operação se tornou ao mesmo tempo um tipo instrutivo,
para aqueles cuja compreensão tinha adquirido alguns desenvolvimentos.
Não somente anunciava a renovação da natureza, como
fez nascer ao mordomo uma observação significativa, quando
disse ao esposo: todo homem serve primeiro o bom vinho, e depois que se
bebeu bastante, serve o vinho inferior. Mas para vós, vós
reservastes até agora o bom vinho.
O significado dessa resposta pode, com efeito, mostrar a diferença
do reino da matéria e do reino do espírito, porque o reino
da matéria sempre se degenera, pois seu princípio, seus meios
e seu fim, tudo está contido nela e termina no nada. Ao passo que
o espírito cresce continuamente, prometendo ao homem sempre novas
alegrias. Ora, essa diferença estava claramente indicada, pois o
próprio salvador agira diretamente e espiritualmente sobre a água
com a qual fizera encher as urnas. Além disso, o sentido da observação
do mordomo mostra, com clareza ainda maior, a característica e o
fim da lei antiga e o espírito da nova lei que o amor divino veio
trazer à terra.
Porque, sendo circunscrita nas medidas do tempo e proporcional ao estado
terrestre da família humana, essa lei antiga deveria ter um fim,
e produzira a saciedade quando as necessidades espirituais do homem tivessem
acalçando um desenvolvimento maior ao passo que a nova lei, colocando
novamente o homem na linha da vida, deveria trazer-lhe alegria sempre crescentes,
como o infinito, e os tesouros mais doces e abundantes. Ora, só o
salvador poderia produzir o vinho bom ao fim do repasto. E essa obra foi
ocasião de uma grande alegria na região superior e divina,
porque o grande mundo não pode deixar de nivelar-se quando o pequeno
mundo assume suas próprias medidas, já que o restabelecimento
das semelhanças é o principal desejo desse grande mundo.
Vejamos aqui uma segunda razão pela qual o Novo Homem adquiriu tantos
direitos e propriedades tão poderosas e tão maravilhosas.
É que durante a estada dele no deserto, aprendeu a conhecer o nome
do inimigo que o perseguia; conheceu sua região, suas faculdades,
seu poder, as causas afastadas ou próximas que o colocaram próximo
dele, o nome e a autoridade dos chefes sob os quais esse inimigo tem suas
relações, suas correspondências, os planos gerais e
particulares que lhe são traçadas, e os meios que emprega
a cada dia para atingir seus fins desastrosos. Quanto mais o Novo Homem
se aprofunda nas descobertas sobre o motivo e a marcha desse malfeitor,
mais adquire condições de frustrar seus planos e de fazer
falharem todas as suas armadilhas, porque como o espírito do homem
não pode permanecer no nada e no vazio de ação, não
pode mais afastar de si a influência falsa, sem que a influência
verdadeira o preencha.
O Novo Homem também recebeu no deserto o conhecimento do nome daquele
que o protege e o acompanha em seu caminho de provações e
combates; conheceu não apenas o nome daquele que o protege, como
o posto que ocupa na hierarquia celeste, suas relações, suas
correspondências, os vastos desígnios que a sabedoria lhe confiou
para a direção do seu discípulo e os motivos sagrados
pelos quais essa sabedoria o enviou para perto dele.
O fruto que esse Novo Homem colheu de todas essas descobertas, é
haver deixado penetrar em si uma espécie de impetuosidade espiritual
que se apoderou de sua coragem, de seu amor, de sua palavra, de seu pensamento,
e que não é mais do que a correspondente dessa impetuosidade
divina com a qual a ação superior procura se precipitar sobre
nós para tomar o lugar das trevas e da morte.
Mas ele só colheu tal fruto depois de haver experimentado uma sensação,
ao mesmo tempo, bastante lamentável e consoladora. Pois, como contemplar
com indiferença o quadro das infelicidades do homem e dos recursos
que lhe são oferecidos contra essas infelicidades? Também,
o Novo Homem, tocado ora por uma, ora por outra dessas duas forças
opostas, chegou, pela comparação, a sentir sua dignidade e
sua nobreza. Após haver estremecido diante das misérias do
homem, estremeceu perante sua grandeza, que não o teria deixado ser
tão infeliz se ele não tivesse tido tantos meios de se tornar
culpado. E, reciprocamente, após haver estremecido diante da grandeza
do homem, estremeceu diante das suas misérias. E é pelo choque
de todas essas sensações violentas que a alma do Novo Homem
se pôs a descoberto, que o princípio superior pôde operar
nela um contato poderoso que a revivificou e que a penetrou com essa ativa
e santa impetuosidade que é a verdadeira característica da
vida.