"Disse-vos
essas coisas para vos preservar dos escândalos e das quedas. Eles vos
expulsarão das suas sinagogas, e tempo virá em que alguém
que voz matar crerá estar fazendo um sacrifício a Deus. Eles vos
tratarão desse modo porque não conhecem nem meu Pai, nem a mim".
O escândalo é a vergonha da inteligência, tanto da parte
daquele que o dá como da parte daquele que o recebe, porque aquele que
tem os olhos abertos observa-se em suas próprias medidas e as discerne
muito bem das outras, para lhes dar somente o que lhes pertence, seja o devotamento,
quando elas são justas, se a condescendência e a piedade, quando
não o são.
"Eu não vos disse desde o começo porque estava convosco.
Agora vou até aquele que me enviou, e ninguém entre vós
me pergunta onde vou. Mas porque vos disse essas coisas, a tristeza encheu vosso
coração". Esses escândalos não podem ocorrer
quando o espírito da verdade está para sempre no homem, porque
ela ilumina tudo. O homem se aflige quando prevê interrupções
em que terá dificuldades para discernir em si mesmo a luz das trevas,
porque estará sozinho. Mas não prevê que essas interrupções
servem somente para lhe preparar os caminhos para o cumprimento da sua obra,
sem o que ele se encheria de consolações.
"É útil a vós que eu me vá, pois se eu não
me for, o consolador não virá a vós, mas se eu me for,
eu o enviarei". Como o consolador, ou a obra efetiva, nasceria em nós
se a vontade, o amor e a palavra não o enviasse? E como essa palavra
nos seria enviada, se não voltasse para o Pai, de quem ela nasceu?
"E quando ele tiver vindo, convencerá o mundo acerca do pecado,
da justiça e do julgamento. Acerca do pecado porque não acreditaram
em mim", não obstante tivessem neles uma palavra que lhes provava
a existência do seu pensamento, assim como minha palavra e minhas obras
lhes provavam a existência de meu Pai.
Acerca da justiça, porque vou ao meu Pai e não me vereis mais,
visto que apareci a vós apenas para libertar-vos da escravidão
e dos grilhões, e é preciso agora deixar-vos desenvolver vossas
forças, para que chegueis ao objetivo e para que obtenhais as recompensas
prometidas a todos os servos fiéis.
Acerca do julgamento, porque o príncipe do mundo já foi julgado,
e a presença do consolador fará com que esse príncipe do
mundo perceba que ele não tem nada a esperar, que seus projetos são
desconcertados, que suas forças estão destruídas, que a
vergonha, a confusão e os mais horríveis castigos cairão
sobre ele e os seus companheiros; enquanto a luz e as consolações
encherão aqueles que ele queria vitimar. Não podeis duvidar da
existência desses três testemunhos do espírito, pois o Novo
Homem, que é a imagem desse espírito, pode fazer-vos encontrar
todos os três em vós mesmos.
"Eu tenho ainda muitas coisas a dizer-vos. Mas ainda não podeis
sabê-las. Quando o espírito de verdade vier, vos ensinará
toda a verdade, pois ele não falará de si próprio, mas
dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas vindouras".
O Novo Homem descobre em si, a cada dia, novas claridades às quais as
diversas inteligências do seu ser não são ainda suscetíveis.
É obrigado a encerrá-las nele mesmo até que essas inteligências
tenham adquirido mais força e mais consistência, isto é,
até que os raios do espírito tenham transformado sua substância
incompleta em uma substância de realidade e de verdade. Mas ele também
se enche, a cada dia, de uma nova esperança de que esses salutares efeitos
se cumprirão. Porque, ao combater ardentemente a aparência que
o rodeia, começa a sentir em si como que o contato da própria
vida, esse "punctum saliens", do qual ele tem motivos para acreditar
que, com o tempo, podem resultar rios abundantes, que não deixarão
na esterilidade nenhuma das regiões do seu ser.
"É ele quem me glorificará, porque tomará do que existe
em mim e o anunciará a vós. Tudo o que existe em meu Pai, existe
em mim; por isso vos disse que tomará do que está em mim e o anunciará
a vós". Quando o espírito tomar do que está no Filho,
tomará do que está no Pai, porque tudo o que está no Pai,
está no Filho. Heis por que ele glorificará o Filho, pois desenvolverá
e manifestará, como pertencendo ao Filho, as maravilhas das quais o Pai
é o depositário e a fonte. Heis porque a glória do Novo
Homem será tão grande quando todas as suas faculdades tiverem
sido renovadas pelo espírito, pois o espírito testemunhará,
assim, que o Novo Homem está ele próprio repleto das maravilhas
do Pai e que essa divindade suprema realmente atravessou-o por inteiro.
Ainda um pouco mais de tempo e não me vereis mais, e ainda um pouco mais
de tempo e ver-me-eis, porque vou ao meu Pai. A primeira aparição
do Novo Homem em vós é uma aparição velada e coberta
de nuvens da região figurativa e passageira; por isso ela é apenas
temporária e quando o tempo se cumpre, ela deve cessar. Mas cessa para
voltar com maior esplendor, pois o Novo Homem, aproximando-se da fonte de onde
emanou, ganhe uma nova vida e uma existência totalmente espiritual, palavras
que os apóstolos não poderiam compreender.
Em verdade, em verdade vos digo, chorareis e gemereis e o mundo estará
na alegria. Estareis na tristeza, mas vossa tristeza transformar-se-á
em alegria. Por que o mundo ficará alegre quando o Novo Homem tiver desaparecido?
Porque acreditará que esse Novo Homem terá desaparecido para sempre,
e esse Novo Homem é para ele um ser escandaloso, que apenas com sua presença
reprova-o por seu vazio e sua impiedade. É que o mundo faz com esse Novo
Homem o que Herodes faz com o precursor em Jerusalém.
"Quando uma mulher dá à luz um Filho, não se lembra
mais dos males, na alegria que sente porque um homem nasceu no mundo".
É essa alegria que só o Novo Homem pode conhecer, quando sente
que saiu da escravidão e das trevas e que o espírito lhe deu o
nascimento. Sentirá essa alegria ainda mais vivamente quando esse nascimento
for confirmado nele pela presença do consolador.
"Vós estais então agora na tristeza, mas eu os verei novamente
e vosso coração regozijar-se-á, e ninguém vos arrebatará
a alegria". Pois o homem que tiverdes posto no mundo não terá
nascido nem da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem, mas da vontade
do espírito, e assim esse homem será chamado o Filho de Deus.
Nesse dia, não me interrogareis acerca de nada. Pois como poderíeis
ter necessidade de interrogar-me, se aquele que deve vir e vos ensinar toda
a verdade será para vós a contínua expressão do
Pai e do Filho, e desenvolverá sem cessar no vosso coração
e no vosso espírito todos os tesouros da sabedoria e todas as maravilhas
da unidade.
"Eu vos disse isso em parábolas. Tempo virá em que não
vos falarei mais por parábolas, mas falar-vos-ei abertamente de meu Pai.
Nesse tempo pedireis em meu nome e não vos digo que rogarei ao meu Pai
por vós, porque ele próprio vos ama, porque vós me amastes
e acreditastes que saí de Deus". O tempo das parábolas é
aquele em que ainda nos encontramos sob as sombras da nossa região tenebrosa,
que, como a antiga aliança, permite-nos ver apenas os clarões
da verdade. Quando a idade da maturidade do espírito tiver chegado para
o Novo Homem, ele estará acima das parábolas, pois a palavra ou
a boca do Pai estará aberta para ele, e o Pai procurará recompensá-lo
por ter sido reconhecido na palavra e na boca do seu Filho.
Eu saí do meu Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e vou até
o meu Pai. Como o Novo Homem poderia mostrar-se a nós, nas trevas que
nos compõem, se não saísse de seu Pai? Como a luz superior
e as trevas inferiores poderiam conviver? a luz superior e as trevas inferiores
não podem permanecer juntas, como o Novo Homem, após ter saído
de seu Pai para vir até nós ou até este mundo, não
deixaria este vale de lágrimas para retornar a seu Pai?
"Vós credes agora, mas tempo virá, e já veio, que
vos dispersareis, cada um para o seu lado, e me deixareis só. Mas não
estou só porque meu Pai está comigo". A presença do
Novo Homem alegra por um tempo nossas faculdades tenebrosas. Mas quando ele
se retira para retornar a seu Pai, elas ficam entregues as suas trevas e não
se recordam mais dele, até que venha para regenerá-las novamente.
Mas é em vão que o tenham deixado só. Ele não pode
ficar só, pois é um testemunho vivo da existência e da presença
do seu Pai perto dele.
"Eu vos disse isso a fim de que encontrásseis a paz em mim. Vós
tereis aflições no mundo, mas tende confiança, eu venci
o mundo". O Novo Homem vem até nós somente para romper nossos
liames e vencer o mundo que está em nós. Assim, as trevas que
ainda nos cercam após seu retorno até o Pai não são
mais vivas do que eram anteriormente, acabarão, infalivelmente, se iluminando,
pois sua raiz foi cortada e o homem venceu o mundo. É sob esse aspecto
que o Novo Homem é tão precioso para nós, pois sem ele
todas as nossas substâncias espirituais teriam conservado para sempre
suas trevas e a raiz dessas trevas.
Reunamos aqui todos
os nossos poderes, precipitemo-nos com ardor na corrente que carrega a convicção,
porque sem convicção não há força e coragem;
e sem força e coragem não há bondade nem em nosso coração,
nem em nossas obras. Reunamos, digo eu, todos os nossos poderes e digamos com
o salvador:
Meu Pai, é chegada a hora, glorificai o vosso Filho a fim de que vosso
Filho vos glorifique, porque a glória e o louvor a nosso Pai e a nosso
mestre devem animar-nos mais do que a nossa própria glória, infeliz
daquele que, em seu pensamento, em seu amor ou em suas obras, considerar a si
próprio um instante que seja, pois esse instante estará perdido
tanto para ele como para seu mestre! Os tempos anteriores foram sacrificados
para a consumação da nossa vaidade. Mas é chegada a hora
em que se, devem fazer conhecer, ao mesmo tempo, o poder do mestre, a fraqueza
do inimigo e a fidelidade do servo.
"Vós lhe haveis dado poder sobre todos os homens, a fim de que ele
dê a vida eterna a todos os que lhe havíeis entregue. Ora, a vida
eterna consiste em conhecer-vos, vós que sois o único Deus verdadeiro
e o salvador que enviastes". O poder foi dado ao Novo Homem sobre todas
as regiões do seu ser somente para que ele lhes transmita a vida eterna
da qual está repleto. E essa vida eterna não pode ser outra coisa
que conhecer o supremo autor da vida naquele que ele enviou para manifestá-la,
e sentir em nós mesmos, como foi dado a todos, a obra efetiva desse nascimento
espiritual pelo nascimento do Novo Homem em nós. Maravilha que poderia
encher-nos de alegria, mas que não deveria surpreender-nos se tivéssemos
presente no pensamento o que devemos ser, sob todos os aspectos, a imagem e
a semelhança de Deus.
"Eu vos glorifiquei sobre a terra..., agora, glorificai-me em vós
mesmos, pela glória de que eu tenha existido em vós antes que
o mundo existisse". O Novo Homem percebe facilmente que há duas
glórias; aquela que ele tem o direito de esperar de nós quando
nos manifesta a luz eterna da vida, e aquela que essa luz eterna deve receber
quando ela própria age diretamente nele. Uma dessas glórias parece
reverter mais a ele mesmo do que à fonte da qual proveio. A outra parece
reverter a essa mesma fonte, heis por que ele deseja tanto ser glorificado por
essa glória, pois se preocupa apenas com o zelo pela casa de seu mestre.
"Eu fiz conhecer vosso nome aos homens que me entregastes após havê-los
separado do mundo. Eles eram vossos e vós os destes a mim, e eles seguiram
vossa palavra. Agora sabem que tudo o que me foi dado vem de vós, porque
dei a eles as palavras que me havíeis dado, e eles as receberam e reconheceram
verdadeiramente que saí de vós, e acreditaram que vós me
havíeis enviado". Essa glória de que o salvador tenha existido
em seu Pai antes que o mundo existisse é tão grande, que o Novo
Homem a reivindica como uma recompensa pelos seus trabalhos, como um lugar de
repouso por ter manifestado a palavra. Essa glória deve ser, com efeito,
o verdadeiro lugar de repouso para o espírito do homem que, segundo a
lei de tudo o que existe, só pode encontrar repouso na geração
da sua própria fonte.
"É por eles que eu peço. Não peço pelo mundo,
mas por aqueles que me haveis entregue, porque são vossos. Tudo o que
está em mim, está em vós, e tudo o que está em vós,
está em mim, e eu sou glorificado neles". Como o Novo Homem pediria
pelo mundo do que se trata aqui não é composto de homens, mas
de tempo e de aparência, que não podem nem conceber a prece, nem
compartilhar da doçura dos seus frutos?
"Eu não estou agora no mundo, mas eles ainda estão no mundo,
e eu vou até vós. Pai santo, conservai em vosso nome aqueles que
me havíeis entregue, a fim de que sejam uma unidade, como nós".
O Novo Homem, ainda que saído do mundo em espírito, ocupa-se com
os seus que ainda estão no mundo, porque sabe que estarão em perigo
até que a obra tenha sido inteiramente cumprida neles. E como sabe que
só se pode viver através do Pai, emprega todo o seu amor junto
a esse Pai que os entregou a ele, e sem o qual sabe que eles não podem
viver mais do que ele próprio.
"Quando estava com eles no mundo, eu os conservava em vosso nome. Conservei
aqueles que me havíeis entregue, e nenhum deles se perdeu; somente o
que era Filho da perdição, a fim de que a escritura fosse cumprida".
A presença do Novo Homem entre os seus é suficiente para preservá-los.
Da mesma maneira, se o homem velasse na santidade por seu círculo, não
perderia nenhum dos que estão nele, exceto o Filho da perdição,
que também está em nós, que deve mesmo assistir à
nossa regeneração, como assistiu à nossa perda, mas que,
tendo assistido à nossa perda com triunfo, deve assistir com vergonha
e confusão à nossa libertação, a fim de que a sentença
pronunciada contra ele no instante do crime, e promulgada pelas escrituras,
seja executada em nossa santificação, como aconteceu a Iscariotes,
que assistiu à ceia celebrada pelo salvador e que triunfou ao entregá-lo
aos príncipes da sinagoga, mas para quem o sacrifício glorioso
desse salvador, foi, em seguida, uma vergonha e um castigo a mais.
"Agora venho a vós, e digo isso estando ainda no mundo, a fim de
que eles tenham nele a plenitude da minha alegria. Eu dou a eles a vossa palavra,
e o mundo os odeia... Eu não vos peço para tirá-los do
mundo, mas para protegê-los do mal... Santificai-os em vossa verdade...
Eu próprio santifico por eles, a fim de que sejam também santificados
na verdade". O que seria a santificação do Novo Homem, se
ela não se estendesse a todo o nosso ser? E o que seria a santificação
de todo o nosso ser, se estendesse apenas ao nosso próprio círculo?
"Não peço somente por eles, mas ainda por aqueles que devem
crer em mim pela palavra deles. A fim de que sejam um, todos juntos como vós,
meu Pai, estais em mim, e como eu estou em vós, que sejam um também
em nós, para que o mundo creia que vós me enviastes". Que
outro desejo a não ser o da expansão da unidade pode se fazer
conhecer àquele que está pleno da vida da unidade? Da mesma forma,
traços mais vivos que o Novo Homem experimenta desde que entra no caminho
da sua regeneração, são os do zelo e do ardor por essa
expansão da unidade. É a dor que lhe ocasiona a visão dos
campos de Israel abandonados e desertos, e o espetáculo de todos os seus
irmãos levados em cativeiro e abatidos pela escravidão; e é
nele mesmo que experimenta todas essas diversas impressões, pois não
devemos esquecer que o homem é ele mesmo um universo inteiro, e não
devemos duvidar que se, à imagem do salvador universal, existe em cada
um de nós um libertador particular, é porque existem também
reis do Egito e da Babilônia que descobrem diariamente em nós um
povo culpado para levar em servidão.
"Eu lhes dei a glória que me haveis dado, a fim de que sejam um,
como nós somos um. Eu estou neles e vós estais em mim, a fim de
que eles sejam consumados na unidade, e de que o mundo saiba que vós
enviastes e que vós os amais como amastes a mim". Essa é
uma unidade efetiva e conhecida em efetividade por aqueles que ela ama e que
a buscam como fez o Novo Homem. É isso o que lhes dá condições
de convencer o mundo de que a glória dessa unidade veio até eles
e que, por conseqüência, o caminho que devia trazê-la veio
também e foi mostrado às nações.
"Meu Pai, desejo que lá onde estou aqueles que me entregastes estejam
também comigo, a fim de que contemplem a glória que me haveis
dado, porque me haveis amado antes mesmo da criação do mundo".
Novo homem, contempla aqui a glória que te prepara o salvador, para que
tu mesmo a prepares, por tua vez, a todos os teus. É nada menos que estar
lá onde está o próprio salvador; contemplar a sua glória;
abrir caminho até essa luz que está acima do tempo; sentir, elevando-te
até ele, o que é ter sido amado por Deus antes da criação
do mundo; e reconhecer, assim a imensidão do vasto campo que pode compreender
tua antiga origem e tua santa imortalidade.
"Pai justo, o mundo não vos conheceu, mas eu, eu vos conheci, e
esses aqui souberam que vós me enviastes. Tornei o vosso nome conhecido
para eles, e ainda o daria a conhecer, a fim de que o amor com o qual me haveis
amado esteja neles e que eu próprio esteja neles. "Novo homem, não
cessa de jeito algum, de enfatizar a todos os teus essas últimas palavras
do salvador, antes que ele seja entregue para que se consume o seu sacrifício.
Não cessa de lhes dizer que o termo de todos os desejos dele é
que o amor com o qual seu Pai o amou esteja em seus discípulos, e que
ele procura apenas estar neles para fazê-los obter esse amor com o qual
é amado por seu Pai e com o qual ama toda a família humana. Não
cessa de observar que ele não lhes mostra assim o seu amor como o termo
final de todas as suas obras e de todas as suas empresas, senão porque
esse amor é nele o princípio eterno e universal.
Após ter
assim concluído suas instruções, o salvador se retira para
o vale de Getsêmani, ou vale do Óleo, e entra no jardim das Oliveiras,
onde costumava ir com seus discípulos. Esse nome de vale do Óleo
é ele próprio análogo à obra de paz que esse salvador
vinha realizar. E é nesse jardim de pacificação que ele
vai ser traído e entregue, como o foi outrora o primeiro homem no jardim
do Éden, ou das delícias, a fim de que, por suas correspondências
notáveis, o homem inteligente perceba as relações entre
essas diversas épocas, e de que não mais duvide que o salvador
tenha querido caminhar pelas mesmas vias que o homem culpado, mas em um outro
espírito e com a intenção de retificar essas vias e restabelecer
o que esse homem culpado havia destruído.
É aqui, Novo Homem, que o peso da obra te parecerá opressivo.
Começarás a ficar cheio de tristeza; dirás àqueles
dos teus que estiverem mais próximos de ti: minha alma está triste
até a morte, ficai aqui e velai comigo. Mas como o homem culpado peca
sozinho, tu acreditarás que eles ainda estarão próximos
de ti, na expiação que vais suportar, e trabalharás sozinho
nessa terrível expiação. Concentrarás todas as tuas
faculdades em ti próprio, em razão da concentração
criminosa a que o homem se reduz pelo seu crime. Essa expiação
te parecerá tão temível que dirás: meu Pai, fazei
com esse cálice, se possível, fique longe de mim. Mas a submissão
prevalecendo sobre tua fraqueza, acrescentarás: contudo, que a vossa
vontade se cumpra, e não a minha!
Voltarás até três vezes para os teus e, encontrando-os dormindo,
como dormiram as três faculdades do primeiro culpado, dirás: a
hora está próxima, e o Filho do homem vai ser entregue nas mãos
dos pecadores. Em seguida receberás o beijo de Judas, beijo semelhante
ao que o primeiro culpado recebeu do inimigo, nas falsas promessas de uma grandeza
ilusória em que colocou sua esperança. E cairás, como esse
primeiro homem culpado, pelo poder daquele que te traiu. Mas o primeiro homem
caiu assim pelos poderes dos seus inimigos porque suspendeu os seus poderes.
E tu, Novo Homem, é para que caias novamente pelo poder de Deus, que
vais suspender os teus, a fim de que as forças de expiação
possam ser postas em movimento.
Não ignoras a lei: aquele que ferir pela espada, perecerá pela
espada, pois a recordas àquele que quer te defender, e não queres
recorrer nem mesmo ao auxílio de teu Pai, que te enviaria doze legiões
de anjos, porque teu sacrifício deve ser voluntário para ser útil,
pois o crime do primeiro homem foi-lhe funesto porque havia sido voluntário.
É para provar aos teus inimigos o teu devotamento voluntário que
tu os arruinarás primeiramente com essa única palavra: sou eu,
e em seguida te entregarás às mãos deles para lhes mostrar,
de um lado, o poder temível e, de outro, a enormidade do seu crime, pois
não obstante os testemunhos evidentes do teu poder, eles têm a
impiedade criminosa de se apoderar de ti e continuar com suas atrocidades contra
ti. Também é isso o que os torna indignos de perdão, pois
a ignorância não lhes poderia servir de desculpa. Mas tudo isso
se fez para que as palavras dos profetas se cumprissem. E mesmo então
os teus te abandonam, fogem todos, da mesma forma que numa enorme dor e em males
extremos, inevitáveis, que nos abatem todos os nossos poderes se suspendem
e parecem afastar-se de nós.
Mas diante de quem tu vais aparecer? Diante do grande sacerdote da lei do tempo,
onde se encontram reunidas todas as trevas, ou seja, os doutores da lei e os
senadores, que atormentados pelos raios de verdade que saíram de ti e
que os humilham, procuram por toda a parte falsos testemunhos contra ti, para
poderem matar-te.
Enquanto o grande sacerdote empregar contigo, apenas a voz dos falsos testemunhos,
guardarás silêncio, não somente porque és devotado,
mas ainda porque sabes que o homem, tendo ele próprio falsificado o testemunho
que deveria dar outrora à divindade suprema, é uma lei da justiça
que ele experimente a lei de Talião e que seja objeto de falsos testemunhos.
Mas quando o grande sacerdote te ordenar pelo Deus vivo, dizer lhe se és
o Filho de Deus, mostrarás o teu respeito por esse nome inefável
e responderás que és o ungido do Senhor para realizar tua regeneração
particular, assim como o salvador é o ungido do Senhor para a regeneração
universal. Acrescentarão, para lhe fazer conhecer tua tranqüilidade
no meio das suas ameaças, e tua esperança no meio das atribuições,
que um dia ele verá o Filho do homem sentado à direita da majestade
de Deus, que virá sobre as nuvens do céu.
Esse grande sacerdote da lei do tempo fingirá estar escandalizado com
tuas palavras. Em sua hipócrita ignorância, rasgará tuas
vestimentas dizendo: ele blasfemou, temos necessidade de mais testemunho? Vós
mesmos acabastes de ouvi-lo blasfemar. Que julgais? E eles, estando repletos
do espírito de seu chefe, responderão: ele merece a morte. Então
todos os comparsas desse líder ambicioso e invejoso se reunirão
contra ti. Eles te encherão de insultos e ultrajes. Multiplicarão
contra ti as acusações, a fim de te perturbar em tua obra e, sobretudo,
de te impedir de manifestar os títulos da verdadeira realeza.
Os inimigos da paz e da luz, tratando-te desta maneira, terão grande
cuidado em observar alguns pontos da lei, para que pareceram fiéis à
justiça, tirando-te a inocência. Foi assim que os judeus, conduzindo
o salvador até Pilatos para entregá-lo à morte, não
quiseram, de jeito nenhum, entrar no palácio desse governador, que não
era da sua religião, de medo que, estando impuros, não pudessem
celebrar a Páscoa.
Haverá em ti um homem natural, dirigido pela sua razão simples,
que condenará todas as injustiças que os teus inimigos dirigirão
contra ti. Tentará mesmo, como Pilatos, não se expor à
fúria dos teus adversários e persuadi-los de que é injustamente
e sem motivo que te acusam e te condenam. Mas serás obrigado a reduzir
esse mesmo homem ao silêncio, porque é o momento em que o poder
das trevas deve reinar, a fim de que o teu sacrifício possa se cumprir.
É o momento em que o pacífico devotamento do Novo Homem deve se
manifestar, e em que ele deve sentir o que custou à verdade suprema quando
ela se viu ultrajada pelo homem prevaricador, e em que ele reconhecerá
ser necessário experimentar a mesma espécie de injustiça
que foi cometida quando da queda.
Contudo, esse homem natural que ainda está em ti, e que não faz
olho cego para as injustiças que se cometerão internamente contra
ti, separar-se-á dos teus acusadores e dirá como Pilatos, quando
pediu a água e lavou as mãos diante do povo: eu sou inocente do
sangue desse justo. Seria em vão que ele se oporia à tua condenação;
seria em vão que os reis da terra, desprezando-te inteiramente, como
Herodes desprezou o salvador, diriam, contudo, não encontrar em ti nada
que merecesse a morte. Seria em vão que se ofereceriam para libertar-te
na Páscoa, segundo o costume em que o governador nessa época libertava
um criminoso. Teus inimigos interiores, não se contentando em denunciar-te
como criminoso, queriam ainda que fosses crucificado como tal, enquanto que,
ao contrário, queriam que Barrabás fosse libertado, isto é,
queriam que a graça caísse sobre o culpado e que toda a fúria
da vingança, a que chamavam justiça, caísse sobre o inocente.
Novo homem, Novo Homem, admira aqui essa santa e profunda economia que a sabedoria
emprega para cumprir os desígnios que estabeleceu em favor da posteridade
do homem. Dirige olhos inteligentes a todos os fatos que o salvador apresentou
ao teu pensamento. Para qual objetivo veio esse salvador? Para salvar o culpado?
Para libertar o escravo? Para arrancar tua palavra dos abismos que a mantinham
encerrada? Para libertar a si próprio, pois ele não estava sob
a lei do pecado?
Mas a libertação do culpado não podia acontecer sem o sacrifício
do inocente, pois era preciso apresentar uma isca ao inimigo, sobre a qual ele
pudesse descarregar sua raiva, a fim de forçá-lo, desse modo,
a largar sua presa. Heis por que o salvador suspende todos os seus poderes espirituais
para se entregar ao poder temporal dos homens. Suspende todos os seus poderes
espirituais por amor e por seu desejo de levar a vida aos seus irmãos,
como o primeiro homem suspendera os seus, por um cúpido orgulho e uma
cegueira iníqua. Entrega-se ao poder temporal dos homens em um tempo
marcado, no qual a lei e o costume os autorizava a libertar um criminoso. E
embora tenha em si todos os meios para se libertar das mãos dos seus
inimigos, deixa-se condenar por eles e permite que o ladrão seja solto.
Imagem temporal da libertação espiritual que ele iria realizar
sobre toda a posteridade humana pela consumação do seu sacrifício.
Cabe a ti, então, Novo Homem, absorver aqui as instruções
salutares que essa marcha do salvador apresentou à tua inteligência.
Suspende em ti mesmo todos os teus poderes espirituais de poder e autoridade,
para só pôr em ação teus poderes de resignação.
Imola sem cessar em ti o homem inocente, para a libertação do
homem culpado ou do Barrabás que carregas em teu íntimo. Enfim,
liberta o homem ilusório e passageiro, corajosamente, das mãos
dos teus inimigos. Eles próprios serão as vítimas dos males
que te farão sofrer. Seu sangue recairá sobre eles e sobre seus
Filhos, pois, ao exercer sua raiva sobre o homem ilusório e passageiro,
abrirão o caminho ao homem real e regenerado na vida, e esse homem real
e regenerado os cobrirá de vergonha e os precipitará nos abismos.
Depois que o salvador
foi coberto de ultrajes; depois que foi revestido de todas as marcas da derrisão;
depois que, nesse estado de humilhação, Pilatos o apresentou ao
povo, dizendo: Heis o homem, como que para nos recordar esse despojamento ignominioso
de todo o nosso poder e toda a nossa glória a que o pecado original nos
arrastou; depois, digo eu, que todos esses modelos preparatórios se cumpriram,
o salvador foi entregue nas mãos dos seus inimigos para ser crucificado.
Imediatamente o conduziram ao suplício, com dois ladrões que deveriam
ser crucificados ao mesmo tempo.
Novo homem, por que o salvador caminha assim para o suplício no meio
de dois ladrões, senão para mostrar que veio para destruir a iniqüidade?
Mas que iniqüidade é essa que deve destruir? És tu mesma,
alma do homem, que te transformaste em mentira e em abominação.
É a ti que ele deve atravessar hoje, para atacar o inimigo, como fez
outrora para lhe trazer auxílios e luzes. A lei não mudou, ainda
que o objeto da lei não seja mais o mesmo. E tu, infeliz mortal, que
o salvador não teme atravessar, ainda que não sejas mais do que
iniqüidade, temerias atravessar com ele as iniquidades que te cercam, essas
iniquidades que não podes destruir e dissolver sem ele, essas iniquidades
que ele próprio vem dissolver contigo, enquanto te pede apenas para deixá-lo
entrar em ti na figura de um criminoso e marchar ao suplício contigo!
Não, imitemos o cirenaico que o ajuda a carregar sua cruz, a fim de que
o fardo seja menos pesado para ele. Abramo-lhe em nós um caminho largo
e espaçoso, deixemo-lo caminhar à vontade no meio de todos os
ladrões que existem em nós, e beijemos, numa santa e temerosa
desolação todos os passos que quiser dar em nós até
nosso calvário, para que por ele e com ele, possamos destruir e dissolver
todas as iniquidades que nos cercam tornando-nos, em conseqüência,
os modelos da sua glória e da sua luz, após termos sido, tão
vergonhosamente, os instrumentos de suas humilhações e seu sofrimentos.
Novo homem, se há em ti um povo que te acusa e te condena, haverá
em ti também quem se comova pela tua sorte e que chorará ao ver-te
ser tratado como um celerado. Mas tu te voltarás para o teu povo e lhe
dirás: "Filhos de Jerusalém, não choreis por mim;
chorai por vós e por vossos Filhos, pois se aproxima o tempo em que se
dirá: Felizes as estéreis e as entranhas que não carregam
Filhos e as mamas que não amamentaram. Eles começarão a
dizer às montanhas: caí sobre nós; e às colinas:
cobri-nos. Pois se a madeira verde é assim tratada, o que será
da madeira seca?"
Caminha, então, sobre os passos do salvador em tua resignação
e em tua confiança até teu calvário. Deixa-te crucificar
entre os ladrões que estão em ti. Se teu exemplo e tua inocência,
e ao ver-te pedir pelos algozes. Talvez ele caia em si e acabe merecendo, por
sua receptividade, entrar hoje mesmo contigo no paraíso preparatório.
Tu te encherás, então, do espírito de inteligência
para penetrar na obra e no sacrifício do salvador, e para aplicá-lo,
em seguida, ao teu sacrifício particular. Verás por que havia
um jardim onde esse salvador foi crucificado (João 19:41). Porque foi
num jardim que ele foi preso, assim como foi num jardim que o primeiro homem
se tornou culpado.
Verás por que os soldados que o crucificaram tomaram suas vestimentas
e as dividiram em quatro partes, mas não quiseram dividir sua túnica,
porque a túnica do primeiro homem jamais poderia ter sido dividida, ela
teria espalhado o brilho da sua luz celeste pelas quatro regiões do universo.
Verás por que as três Marias se encontram ao pé da sua cruz
durante seu suplício, representando os três princípios elementares
dos quais o espírito do homem que se regenera é considerado inteiramente
separado para entrar na região do espírito, a única que
lhe é natural, pois se não tivesse sido abandonado outrora, jamais
teria nascido das mulheres.
Verás por que os príncipes dos sacerdotes os senadores, os soldados
e todo o povo que passava por lá diziam-lhe com desprezo que se ele fosse
o eleito de Deus, enviado para salvar os outros, salvaria a si próprio,
e que se ele quisesse que acreditassem nele, tinha somente que descer da cruz.
Pois ignoram que há somente esse caminho cruel para cumprirmos a obra
da nossa libertação, pois deixamos crucificar pelo sangue e pela
matéria o que era dele e o que saíra dele, e porque se o salvador
descesse da cruz a obra espiritual falharia, mesmo que os olhos corporais da
multidão se comprometessem a ser convencidos por esse prodígio.
Não escutarás, portanto, de modo algum, essa voz mentirosa que
queria impedir a tua obra e te fazer descer da cruz, e serás animado
por um zelo ardente, que não conhecerá nenhum obstáculo
e não se permitirá nenhum repouso, até que tua obra se
cumpra e os teus olhos espirituais se abram por prodígios cem vezes maiores
que todos aqueles que a matéria poderia te oferecer. Desse modo, desconcertarás
inteiramente os projetos do inimigo de toda a verdade, o qual procura somente
deter o progresso das medidas verdadeiras, para fazer procederem suas medidas
falsas.
Como poderia avançar sua obra quando ataca o diamante vivo, pois, crendo
agir em seu próprio proveito, age quase sempre contra si próprio?
Compeliu os judeus a matarem o salvador, e era essa morte que o mataria. Compeliu
os judeus a pedirem que o sangue desse salvador caísse sobre suas cabeças,
porque esperava que com isso eles se perdessem, e era esse sangue que os salvaria.
Não obtendo sucesso nessas duas empresas, experimentou tentá-lo
através deles, pedindo-lhe que se libertasse para convencê-los,
e era esse sacrifício que lhes traria a convicção.
Novo homem, estudarás todas essas sabedorias e verás onde está
a fonte e a sede da inteligência.
Saberás por que a inscrição colocada acima da cabeça
do salvador trazia as seguintes palavras: Jesus de Nazaré, rei dos judeus,
e por que esses mesmos judeus pediram que se colocasse apenas que ele se dizia
rei dos judeus. Porque teriam ficado chocados com a aparência do seu crime
se o nome positivo tivesse permanecido, ao passo que não se importavam
com o crime se a vítima apresentasse ser um criminoso.
Descobrirás também os traços de luz nessa tripla inscrição
em hebreu, em grego e em latim, porque esse objeto pertence particularmente
à marcha que a verdade quis seguir sobre a terra. Não era em vão
que essas três línguas eram conhecidas e familiares à Jerusalém.
E essa inscrição não foi escrita nas três línguas
apenas para ser entendida pelas três nações, mas porque
a sabedoria tinha desígnios secretos para essas três nações.
Pois havia em Jerusalém ainda outras nações e outras línguas,
e esses desígnios secretos da sabedoria são explicados em parte
aos olhos dos homens menos atentos, pois puderam ver a expulsão dos judeus
e a vocação dos gregos e romanos: nova imagem dessa unidade, que
é continuamente sacrificada para a destruição da iniqüidade
e para a libertação dos infelizes que fazem sua estadia nas trevas.
Mas, abandonando essa procura particular à história espiritual
dos povos, na qual devem encontrar-se também imensos tesouros de inteligência
e de verdade, perseguirás tuas observações sobre o sacrifício
do salvador.
Verás por que ele disse: Tenho sede. Palavras que tinham menos relação
com a sede material que o seu corpo podia experimentar do que com a sede de
justiça, de força e de luz, das quais, como homem, ele sentia
necessidade. Essa sede não te assombrará de modo algum, porque
representa a miséria em que o homem deve se encontrar depois de ter abandonado
a fonte eterna da vida; não é surpreendente que essa mesma miséria
se faça sentir àquele que veio tomar o lugar do homem para realizar
o que o homem sozinho não teria conseguido.
Ao contemplar incessantemente esses princípios, compreenderás
por que dão a ele vinagre para beber. Porque, embora os intérpretes
nos ensinem que era costume na época dar uma poção amarga
aos criminosos, verás que o homem não poderia encontrar uma poção
de outro tipo, após se ter separado da fonte eterna das águas
vivas e puras. E que o salvador, ao suportar corporalmente uma lei tão
rigorosa para sua matéria, dava ao mesmo tempo um profundo ensinamento
ao seu pensamento, e traçava a rota ao espírito daqueles que desejassem
marchar pelos caminhos da regeneração.
É essa a derradeira prova que conclui a obra visível do salvador,
e parece que é em experimentar essa amargura espiritual, como vimos no
começo deste escrito, que consiste realmente o sacrifício e todo
o valor da expiação, pois o salvador, após ter tomado o
vinagre que lhe foi apresentado em uma esponja, na ponta de um bastão
de hisopo, disse: Tudo está consumado. E baixando a cabeça, entregou
o espírito.
Novo homem, aplica
a ti todos os modelos que acabas de percorrer. A morte corporal do salvador
deveria ser voluntária para levar a teu espírito a força
de morrer voluntariamente. E ela te oferece uma obra maior que a da tua própria
morte corporal. Por isso, ele te disse: Fareis obras maiores que as minhas.
Os primeiros prevaricadores fizeram morrer de morte o primeiro homem enviado
para regenerá-los. Eles o fizeram morrer de morte, porque, não
sendo matéria, não poderia morrer de outra maneira. Os judeus
mataram o salvador que veio salvá-los, mas não o fizeram morrer
de morte uma segunda vez, se queres pagar o tributo à justiça
e se queres entrar novamente na vida do espírito, e isso sem esperar
a morte do teu corpo, para a qual, na verdade, deves estar sempre pronto e resignado,
mas que não deve ser voluntária, pois a morte do corpo do salvador
foi, e porque não foi teu corpo que pecou.
É portanto ao holocausto e à morte do teu espírito que
devem estar consagrados todos os teus esforços, e é para o cumprimento
dessa grande obra que devem ser empregados todas as tuas inteligências
e todos os teus poderes. Pois se não morreres de morte em teu espírito
antes da morte do teu corpo, deves temer que após a morte do teu corpo
teu espírito viva apenas de morte, ao invés de viver da vida.
É preciso, então, que após ter sido o joguete do povo ignorante
que está em ti, após ter sido conduzido ao suplício no
meio de ladrões e da iniqüidade da qual te aproximaras outrora,
enfim, após ter sido pregado na cruz e ter tomado o vinagre que te foi
apresentado, tu digas como o salvador: tudo está consumado, e que, baixando
a cabeça, entregues o espírito como ele.
Teus carrascos não quebrarão teus ossos, como não quebraram
os do salvador; não dividirão mais tua túnica, porque tu
próprio és o sentido e o espírito do qual todas essas coisas
eram o modelo e a letra. Mas atravessarão teu flanco, como fizeram com
o corpo dele, a fim de que teu sangue espiritual seja espalhado e que entregues
a Deus o que havias tomado de Deus, como o salvador entregou à terra
o sangue material que recebera da terra. Mas da mesma maneira que o sangue material
do salvador, dada a sua pureza, retificou todos os poderes dos elementos universais,
teu sangue espiritual, ao se espalhar, deve correr sobre toda a tua pessoa e
sobre todos os teus poderes, para trazer-lhes sua primeira virtude e sua primeira
característica.
Heis o cordeiro imaculado que foi imolado em ti desde o começo do teu
mundo particular, como o cordeiro divino foi imolado depois do começo
do mundo geral para a redenção da universalidade dos humanos.
Heis esse cordeiro que foi engendrado em ti pelo espírito como o salvador
foi engendrado por Deus. Heis enfim esse cordeiro cuja crucificação
é tão necessária e tão indispensável para
que realizes, teu renascimento particular, como a crucificação
corporal do salvador o foi para realizar o renascimento de toda a família
humana.
Pois sem essa crucificação do salvador, a família humana
jamais poderia ter entrado nas veredas que a conduziriam à vida, e sem
tua crucificação particular, a do próprio salvador torna-se
inútil à tua cura espiritual, como o seria para a cura das tuas
feridas corporais um bálsamo que te fosse ofertado, mas do qual não
quisesse fazer uso.
Na antiga lei era permitido retirar-se do combate para ocupar-se de suas obrigações
porque era apenas o tempo dos dons parciais. Também os oficiais deviam
gritar à frente do exército (Deuterônomio 20:5): Há
alguém que tenha construído uma casa nova e não tenha ainda
se alojado nela? Que se vá e retorne à casa nova e não
tenha ainda se alojado nela? Que se vá e retorne à sua casa, para
que não suceda que morra em combate e um outro se instale primeiro em
sua casa. Há alguém que tenha plantado uma vinha, e não
tenha ainda feito que ela seja comum, da qual seja lícito a todos comer?
Que se vá e retorne à sua casa, para que não suceda que
morra em combate e um outro faça o que ele devia fazer. Há alguém
que tenha noivado com uma jovem e não a tenha ainda desposado? Que se
vá e retorne à sua casa, para que não suceda que morra
em combate e um outro a despose. Há alguém que seja tímido
e cujo coração esteja afligido pelo medo? Que se vá e retorne
à sua casa, para que não suceda que lance o pavor no coração
de seus irmãos, assim como ele está assustado e possuído
pelo temor".
Na nova lei nenhum homem está dispensado do exército, porque cada
um deve combater por sua própria conta. As vitórias de um independem
das vitórias do outro, e se alguém se retira do combate, seja
por fraqueza, seja por um interesse qualquer que o esteja atraindo em outro
lugar, como não terá participado dos perigos e das fadigas, de
modo nenhum participará das recompensas. Pois o dom geral que o salvador
veio trazer sobre a terra, devendo pertencer a todos, obrigamos a mesma obra,
pois o tempo das subdivisões esgotou-se e podemos renascer, viver e agir
na unidade.
Por isso, os que não tiverem consumado a obra da sua crucificação
não serão, de modo algum, admitidos no festim do cordeiro e não
provarão desse novo suco da vinha que foi preparado pelo salvador, e
por todos aqueles que tiverem feito morrer seu espírito em nome dele,
e que o tiverem sepultado, pois ninguém, senão ele, poderia penetrar
pela primeira vez nas sombrias moradas da morte, a fim de que, após ter
dissipado as trevas e a corrupção, aqueles que quisessem em seguida
morrer nele e sepultar-se nele não encontrassem aí senão
a luz, a pureza e a vida.
Novo homem, se, a exemplo do salvador, caminhas assim para teu sacrifício,
e se tens a felicidade de cumpri-lo, verás realizarem-se em ti os mesmos
prodígios de quando ele sujeitou-se à morte corporal. O sol da
tua matéria obscurecer-se-á, porque esse sol opera em ti apenas
a morte da vida, e esse espírito que nasce em ti deve operar a morte
da morte.
O véu do teu templo se rasgará em dois, desde o alto até
embaixo, por que esse véu é a imagem da iniqüidade que separa
tua alma da luz de onde te originaste. E como, ao dividir-se em duas partes,
deixa aos teus olhos um acesso livre a essa luz que antes te era inacessível,
fica claro para ti que era a reunião dessas duas partes que formava tua
prisão e te retinha nas trevas. Nova imagem dessa iniqüidade que
o salvador não teme atravessar, aparecendo sobre o Calvário no
meio de dois ladrões, a fim de te dar a força e os meios de destruir
em ti, por tua vez, essa iniqüidade.
Tua terra tremerá, porque o sangue do cordeiro particular que foi sacrificado
em ti depois do começo do teu mundo individual penetrará até
as raízes e os fundamentos do teu edifício espiritual. E como
esse sangue é puro, pois foi criado a partir do espírito, ao cair
sobre esses fundamentos e sobre essas raízes, que são impuros,
provocará uma violenta fermentação e um choque cujo abalo
transmutará a todo o teu ser.
As pedras fender-se-ão, porque o pecado, tendo tornado tudo espesso e
como que coagulado em ti o sangue do espírito, que é bem mais
poderoso que o pecado, dissolverá, pela sua aproximação,
todas essas substâncias petrificadas, a fim de que, após ter derrubado
em ti o templo de Baal, possa buscar por todo o teu ser um livre curso.
Os sepulcros se abrirão, e muitos corpos de santos que estão dormindo
ressuscitarão, e saindo das suas tumbas, após sua ressurreição,
virão à cidade santa e serão vistos por muitas pessoas.
Sentirás tuas substâncias espirituais renascerem em ti e saírem
das suas tumbas, onde te pareciam sepultadas no sono da morte. Retomarão
sua atividade e virão reunir-se à ação do teu espírito,
para tomar continuamente novas forças e uma nova vida. Virão passear
nas ruas dessa Jerusalém sagrada, que foi construída em ti desde
a origem, mas cujas avenidas tinham sido fechadas pela iniqüidade e só
poderiam ser liberadas pelo poder daquele que acaba de expirar em ti, e que
só pode expirar em ti operando uma explosão universal.
Todas as tuas outras substâncias que tiverem sido testemunhas do teu sacrifício
ficarão assombradas e, a semelhança do centurião e daqueles
que estavam com ele guardando o corpo do salvador, dirão: Esse homem
era, verdadeiramente, o Filho de Deus. Pois, tendo visto o tremor de terra e
tudo o que se passará em ti, serão tomados por um enorme temor.
Não há uma única parte de ti que não experimentará
esse temor extremo, ao ver os prodígios que se realizarão pelo
teu suplício, e que não dirá: Esse homem era, verdadeiramente,
o Filho de Deus, pois desde a prevaricação não houve uma
única parte de ti que não tenha estado numa orgulhosa segurança
e não tenha recusado, então, reconhecer Deus como teu Pai.