O DILUVIO
Saint Martin - o Filosofo Descolhecido
No ponto da Física do qual já tratei, com relação
à origem do Universo, tive em vista os resultados regulares que parecem
ter acompanhado seu nascimento. Aqui considero-lhe as desordens. Nessa inundação
geral que não podem negar, os Observadores querem ver apenas um fato
físico, isolado e independente das relações que ele
deve com a grande obra na qual estão empregadas todas as potências
dos Seres. Mas se o plano imenso exposto nesses Escritos puder ampliar suas
idéias sobre a natureza do homem e sua ligação com
todas as coisas visíveis e invisíveis, eles encontrarão
novos esclarecimentos nas mesmas tradições hebraicas, em que
as leis das coisas são delineadas com fidelidade porque lançam
em jogo todas as causas e todos os Seres. Verão nelas que, para terminar
o Dilúvio, independentemente da ação dos elementos
em convulsão, uma força superior fez cessar a ação
do princípio da água, enviando ao mesmo tempo um ar, ou um
sopro ativo, que, agitando em todos os sentidos as águas espalhadas
sobre a terra, ocasionou enormes transposições de substâncias
terrestres de um clima para outro, provocando, num tempo muito curto, revoluções
que exigiriam tempos sem limites se não tivessem sido apenas o resultado
de simples ações elementares. Não nos surpreenda, pois,
que de uma combinação de ações tão opostas
e violentas hajam resultado efeitos físicos tão bizarros e
inexplicáveis quando se suprimem alguns dos Agentes que devem ter
contribuído para produzi-los.
Acostumemos nossos olhares a captar o conjunto dos princípios se quisermos captar o conjunto dos fatos. À famosa época do Dilúvio sucede um novo extravio da posteridade do homem, na qual os criminoso tentam usurpar as Virtudes dos Céus por vias terrestres, materiais e impuras, escondidas sob a expressão de um edifício audacioso que, construído de tijolos e tendo como argamassa o betume, proclamava simultaneamente a tola impiedade dos que o construíam e o pouco de consistência que sua obra devia ter. A seqüência desse crime foi a célebre confusão das Línguas, que dividiu um mesmo Povo em diversas Nações.
Esse símbolo declara bem mais ainda a obscuridade e a confusão da inteligência dos Povos do que a variedade de sua linguagem sensível e intelectual - embora seja verdade que, formando a partir daí várias Seitas esparsas e separadas, em seguida eles viram a sua língua comum e primitiva alterar-se com o tempo, produzindo uma multidão incontável de outras línguas, quase absolutamente estranhas umas às outras. A divisão das línguas, perpetuada por toda a superfície da terra, reflete de maneira típica a situação atual do homem para quem, depois da queda, a Língua de todos os Seres verdadeiros que o cercam é ininteligível, e que não sabe qual meio empregar para revivificar sua correspondência com elas e retomar seu antigo domínio. Como conseqüência, as duas punições, sendo semelhantes, mostram que são o fruto do mesmo crime e que o homem só se encontra hoje tão estranho à língua da verdade por ter ousado, no princípio, falar outra língua além dela - assim como as posteridades primeiras só deixaram de entendê-la ao deixarem de ter como alvo a dominação exclusiva do Primeiro de todos os Seres e ao formarem o desígnio de substituí-lo por um outro Princípio. Exporei aqui uma verdade que irá lançar alguma luz sobre a origem primitiva e a degradação das ciências. Pretende-se que a princípio os homens se encontravam na mais profunda ignorância, reduzidos unicamente ao recurso dos instintos. São retratados com as cores que damos aos Povos selvagens, que só têm a Natureza a combater, as necessidades corporais a satisfazer e só se comunicam entre si através de suas idéias sensíveis.
E querem que acreditemos que foram essas as bases sobre as quais foram erguidos, um após outro, os diversos andares do edifício dos conhecimentos humanos. Houve engano ao se situar nisso a origem cumulativa das ciências do homem. Quando, após a degradação, ele foi admitido na Terra, nela chegou com mais luz do que talvez nem mesmo sua posteridade veio a possuir, embora elas tenham sido inferiores às que ele fruía antes de descer. Ele foi como que o tronco dos Eleitos gerais, empregados pela bondade divina na reparação de seu crime. Transmitiu aos Descendentes as luzes das quais então gozava: eis aí a verdadeira herança da qual os primeiros homem eram tão ávidos e da qual os homens dos séculos posteriores conservaram apenas a figura em suas hereditariedades materiais. Mas as posteridades primitivas deixaram que essa herança fosse alterada, assim como o próprio homem perdera aquela da qual fruía durante sua glória; e a ignorância, aliando-se à iniquidade, apenas aumentou até que, havendo ambas chegado ao auge, os flagelos da justiça reduziram os homem às mais densas trevas e a uma dispersão absoluta. É à época derradeira que nos deveríamos transportar para encontrar o homem padecendo na incerteza e na miséria, reduzido somente aos recursos de seu instinto. É nessa época que se deve buscar a origem das línguas convencionais porque, estando todo conhecimento perdido para os homens, era necessário que eles empregassem objetos sensíveis para os signos de suas idéias.
Tal foi a sorte de todo trabalho no qual foram obrigados a buscar recursos depois de haverem abandonado os móveis infalíveis que ainda podiam dirigi-los na Terra. Excitados pelas necessidades, seus esforços levaram-nos logo, por diversos meios, a descobertas, embora imperfeitas, dos móveis universais que lhes eram necessários, sem que qualquer Povo, qualquer Tribo, e qualquer indivíduo, talvez, tivesse caminhado nesse percurso com o mesmo passo ou pelas mesmas sendas. Foi então que as Ciências foram progredindo entre os homens, podendo nós seguir-lhes o encadeamento como que ininterrupto desde a época secundária até nossos dias. Se refletirmos nos inúmeros meios descobertos para disseminá-las, devemos mesmo garantir que elas irão desenvolver-se cada vez mais. Aconteceu com a espécie geral do homem o mesmo que com os seus indivíduos. Nada há de mais puro do que os primeiros raios de luz que iluminaram nosso Ser quando este se tornou susceptível de recebê-los.
Bem depressa esses raios preciosos foram detidos, muitas vezes mesmo obscurecidos por paixões tempestuosas, que fazem o homem perder até a lembrança dos primeiros favores da inteligência saboreados ao sair da infância. Mas bem depressa também o vemos livrar-se dessas amarras para elevar-se às regiões das ciências e da razão e caminhar nas sendas imensas de luz e de verdades que, estendendo-se a cada dia diante de seus olhos, vão perder-se no infinito. Foi por conseqüência desse crescimento progressivo que, em meio às prevaricações e à dispersão dos antigos Povos, foi escolhido um Justo entre os caldeus para ser o depositário do conhecimento das diversas leis naturais do nosso Ser. Esse Justo foi tirado da cidade de dy (Ur), que em hebraico significa luz, para lembrar-nos a emanação do primeiro homem e de toda a sua espécie, que teve nascimento no seio da própria verdade e que por sua natureza pertence e corresponde ao centro universal da Vida. Esse Justo parecia sensivelmente favorecido por três sinais superiores ou pela presença de três Agentes imateriais corporificados em forma humana, que chegaram a receber sua hospitalidade. Fazendo alusão às três virtudes supremas, tais sinais anunciam a posição sublime à qual o homem era convocado. E essa posição seria: ser o Pai de uma Posteridade tão numerosa quanto as estrelas do Céu e o pó da Terra; penetrando no sentido dessa expressão figurada, recuperar as Virtudes superiores da qual o homem fora despojado e reconduzir os seres inferiores ou extraviados; ser o Chefe e o pai de um povo eleito entre todos os povos da Terra, destinado a ser o objeto dos favores da Divindade e a servir de farol a todas as Nações.
.Saint Martin - Quadro natural
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