NO
UMBRAL DO MISTÉRIO
Guaita
Cansado de buscar, em vão, a substância sob o véu das
formas que ela assume, e de chocar-se incessantemente contra a muralha das
aparências formais, consciente de um enorme além, o menos místico
dos pensadores quis, certo dia, sondar os arcanos do mundo extrasensível.
Assim, subiu a montanha até o templo do mistério, chegando
a seu limiar. Ora, as gerações anteriores a ele assediaram
o santuário sem jamais descobrir nele uma única porta. Renunciando
a esse sol interior que faz florir, nos vitrais, rosáceas de luz,
não conservaram nada além do ofuscamento de sua miragem eterna.
Os solicitadores degraus do templo terminam no granito inóspito das
muralhas. No frontão, acham-se gravadas duas palavras que provocam
o calafrio das coisas desconhecidas: "SCIRE NEFAS".
Um subterrâneo cuja chave está perdida abre-se em algum ponto
do vale. Costuma-se dizer que, no decorrer dos séculos, alguns raros
audaciosos souberam forçar o segredo do subterrâneo, onde se
cortam inúmeras galerias entrelaçadas: lá jaz o inexorável
ministro de uma lei incontestável. O antigo guardião dos mistérios,
a Esfinge simbólica, ergue-se sobre o umbral e propõe o enigma
oculto: "Treme, Filho da Terra, se tuas mãos não são
brancas diante do Senhor! Iod-Heve aconselha apenas aos seus. Ele próprio
conduz o adepto pela mão até o tabernáculo de sua glória.
O temerário profano, porém, afasta-se infalivelmente e encontra
a morte nas trevas do bárathro. Que aguardas? Recuar é impossível.
Deves escolher teu caminho pelo labirinto. Cabe-te decifrar ou morrer..."
Acautelai-vos, para não verdes nesses símbolos temíveis
vãs ameaças. A alta ciência não poderia ser objeto
de uma curiosidade frívola. O problema é sagrado, e sobre
ele empalideceram muitas frontes privilegiadas. Assim, questionar a Esfinge
por capricho é um sacrilégio nunca impune, pois uma tal linguagem
traz em si o verbo de sua própria condenação. À
vossa pergunta indiscreta, o Desconhecido formula uma resposta inesperada,
tão perturbadora, que a obsessão permanece em vós para
sempre. O véu do mistério incitava vossa curiosidade? Ai de
vós se o levantas! Ele cai imediatamente de vossas mãos trêmulas
e o desatino se apodera daquilo que julgaste ver. Não sabe quem deseja
distinguir o raio divino do reflexo mil vezes refratado nos densos meios
da ilusão terrestre. Esse arcano será elucidado mais tarde.
O que quer que ele seja, os fantasmas da alucinação assombram
o umbral do mistério, e perguntai ao livro do doutor Brière
de Boismont(24) que passo escorregadio separa a alucinação
da loucura. Como veremos, trata-se de uma porta que não podemos transpor
sem entrarmos em contato com certas forças das quais nos tornamos
senhor ou escravo, governante ou joguete. Trata-se de poderes que a Mística
Cristã simbolizou com a imagem da serpente que reduz o homem à
escravidão, caso este não a submeta primeiro, esmagando sua
cabeça com os pés. Os leitores de Zanoni(25) - o belo romance
de Bulwer Lytton - talvez já tenham descoberto, no "monstro
inominável" que Glyndon evoca de modo tão desastroso,
um mito análogo ao da Gênese. A "coisa horrível
e velada", o "guardião do umbral", é a alma
fluídica da terra, o gênio inconsciente do nascimento e da
morte, o agente cego do Eterno Devir: é a dupla corrente de luz mercurial
de que logo falaremos. O autor inglês assinala com grande precisão
a reversibilidade da luz astral, de que se tornam vítimas aqueles
que não a souberam dirigir: Glyndon é livre para fugir, para
debater-se contra a obsessão, mas a influência nefasta o acompanha
e o fará tropeçar, de fatalidade em fatalidade, até
o dia da catástrofe suprema, até o dia em que Zanoni, delirando
na embriaguez do sacrifício voluntário, condenar-se-á,
salvando-o.
Penetremos o sentido esotérico dessas alegorias, reservando o outro
para depois. Uma coisa são os males do coração, que
habitualmente sucedem emoções violentas; uma coisa é
a morte iminente por congestão cerebral; outra coisa são os
perigos de natureza mais estranha, que mencionaremos oportunamente. A prática
imprudente do hipnotismo, a fortiori da magia cerimonial, não deixa
de inspirar ao experimentador um insuperável desgosto pela vida.
O próprio Eliphas(26) - adepto que foi, e de ordem superior - confessa
que sentiu, depois do curioso experimento de necromancia que fez em Londres
em 1854, uma profunda e melancólica atração pela morte,
ainda que sem a tentação ao suicídio. O mesmo não
se passa com os ignorantes que se lançam, de corpo e alma, ao magnetismo,
campo cujas leis desconhecem; ou ao espiritismo, algo que por si só
constitui uma aberração e uma loucura. "Felizes",
proclama o célebre Dupotet, "aqueles que morrem de uma morte
rápida, de uma morte que a Igreja reprova! Tudo o que há de
generoso se mata..."(27)
A história está repleta de exemplos de fatos como esse. Tendo
anunciado profeticamente o dia de sua morte, Jérôme Cardan
suicidou-se (l576) para não desmentir a Astrologia. Schröppfer
de Leipzig, no auge de sua glória como necromante, provocou sua morte
com um tiro na cabeça (1774). O espírita Lavater morreu misteriosamente
(1801). Quanto ao sarcástico abade de Montfaucon de Villars, que
tanto ridicularizou o conde de Gabalis(28), talvez nem se saiba a última
palavra de seu trágico fim (1673).
Assim, sobre os entusiastas do maravilhoso e os temerários amadores
de revelações de além túmulo, sopra um vento
de ruína e de morte. Como seria fácil estender a lista necrológica!
Mas pouco importa. Inacessíveis à louca curiosidade, bem como
rebeldes às emoções doentias, somente podem afrontar
impunemente as operações da ciência aqueles que sabem
distinguir um fenômeno de uma prestidigitação e que
encouraçam os seus sentidos contra toda e qualquer ilusão.
Merece o nome de adepto aquele experimentador que tranqüilamente diz
a si mesmo: "Meu coração não há de bater
mais depressa: a força invisível que desloca esses móveis
com estrépito é uma corrente ódica submissa à
minha vontade. A forma humana que se condensa e se avoluma nos vapores desses
perfumes nada mais é do que uma coagulação fluídica,
reflexo colorido do sonho de meu cérebro, criação azótica
do verbo de minha vontade..." Quem fala assim não corre, é
claro, nenhum perigo; merece o nome de adepto.
Todavia, bem poucos podem reivindicar esse título. Tais homens, se
outrora eram raros, hoje é ainda mais difícil encontrá-los.
Pouco inclinados, aliás, a aparições públicas,
vivem e morrem ignorados. É para os mais ruidosos que correm os néscios;
é aos mais pretenciosos que cabe a fama. Taumaturgos teatrais, doentes
excêntricos, é a esses que a celebridade sorri e consagra:
era feiticeiro Simão, ao tempo de São Pedro: no século
passado, eram Etteilla, o cartomante, e o extático Théot;
ontem, eram Home, o médium, e Vintras, o profeta!... Alguns outros
- esses verdadeiros sábios - também causam furor, mas graças
a certos traços equívocos ou charlatanescos de seu caráter:
assim, o conde de Saint-Germain e o divino Cagliostro; Pierre le Clerc,
o beneditino fatídico, e o espiritualíssimo quiromante Desbarrolles.
Todas as vezes que um charlatão despontou cingido por uma aura de
magicidade, com um cetro grotesco na mão, tudo o que tinha de odioso
recaiu sobre verdadeiros adeptos. Na verdade, estes beneficiaram-se do escárnio,
enquanto aqueles se beneficiaram do dinheiro. Essa, indubitavelmente, foi
a causa maior das calúnias que tanto sofreram - sobretudo na Idade
Média - os discípulos de Hermes, de Zoroastro e de Salomão:
os magos eram acusados das práticas criminosas, obscenas e blasfematórias
que os feiticeiros e feiticeiras realizavam no sabbat. Todos os delitos
desses monstros de ambos os sexos - violações, malefícios,
envenenamentos, sacrilégios foram imputados a iniciados superiores,
sobre cuja vida privada pairavam as mais abomináveis maledicências;
e sua doutrina reputada como uma trama de intensa inépcia e de grosseiras
injúrias contra o Cristo e a Virgem Maria, tornou-se espantalho das
almas piedosas e objeto de escárnio das pessoas de espírito.
Deve-se confessar, aliás, que o simbolismo esotérico dos livros
de Hermetismo e de Cabala não deixou de acentuar o desprestígio
das altas ciências entre os espíritos superficiais. Para isso
contribuía a visão de conjunto: os complicados sinais de planetas,
as letras hebraicas dos hierogramas, os caracteres árabes dos grimórios,
a alta fantasia aparente dos pantáculos e a bizarria mística
das parábolas, coisas extremamente diabólicas no entender
dos parvos e ignaros, à primeira vista pueris, no entender dos espíritos
lógicos, e, de qualquer forma, excitantes da curiosidade de cada
um. Em todos os tempos, os sábios escreveram e falaram a língua
dos mitos e das alegorias, mas a obscuridade da forma jamais se fez sentir
tão densa e misteriosa como na Idade Média, até o século
passado; a intolerância dos inquisidores, a constante ameaça
da fogueira e o fanático desatino da população diante
da simples menção da palavra feiticeiro justificam suficientemente
a precaução dos adeptos. A ciência oculta assemelha-se
a esses saborosos frutos protegidos por cascas espessas e duras: agrada-nos
retirar laboriosamente a casca; a polpa suculenta do fruto com certeza ressarcirá
o nosso sofrimento.
Foi a alquimia vilipendiada muito cruelmente e a transmutação
dos metais ridicularizada à vontade? Não se trata, aqui, de
fazer apologia ou, mesmo, uma exposição da arte espagírica.
Exultamos, porém, ao transcrever, para a confusão dos parvos
difamadores, a recente apreciação daquele que é, talvez,
o maior químico da França contemporânea, Berthelot,
em suas Origens da Alquimia: "Reconheci não somente a filiação
das idéias que os (os alquimistas) levaram a almejar a transmutação
dos metais, como também a teoria, a filosofia da natureza que lhes
servira de fundamento, teoria essa fundada na hipótese da unidade
da matéria E, NA REALIDADE, TÃO PLAUSÍVEL QUANTO AS
TEORIAS MODERNAS QUE HOJE GOZAM DO MAIOR PRESTÍGIO... Ora, que estranha
circunstância! As opiniões a que os sábios tendem a
voltar suas atenções, sobre a constituição da
matéria, não deixam de ser análogas às profundas
visões dos primeiros alquimistas"(29).
Vê-se com isso como nosso ilustre contemporâneo revela as filosofias
herméticas. Sua admiração talvez fosse bem maior se,
plenamente iniciado no espagirismo esotérico, penetrasse o triplo
sentido dessas locuções especiais que seu gênio só
pôde adivinhar de modo imperfeito(30).
Mas a alquimia é apenas uma parte mínima da ciência,
ensinada nos santuários da antiguidade. Não é revoltante
pensar que, ainda hoje, os espíritos lúcidos ainda não
aprenderam a distinguir entre as orgias sanguinolentas do sabbat legendário,
os monstruosos priapismos da magia negra e os faustos dessa ciência
tradicional dos iniciados do Oriente, síntese gigantesca e esplêndida
que traduz em imagens grandiosas augustas verdades apenas vislumbradas pelos
pensadores de todos os tempos, e luminosas hipóteses, deduzidas por
analogia, que hoje a ciência, mais esclarecida e mais racional, tende
a confirmar.
Qual Valmiki da Europa cantará as civilizações tirânicas
do mundo primitivo, os grandes ciclos intelectuais testemunhados pela Alta
Magia? E, para celebrar dignamente esta mãe de todas as filosofias,
quem nos dirá a epopéia de sua glória resplandecente
sobre as nações antigas, e o recente drama do martírio
de seus adeptos, perseguidos pela Igreja e alvejados pelas calúnias
do mundo inteiro?... Assim se apresenta para nós a alta Ciência
através da humanidade, maldita e desprezada desde a traição
dos gnósticos dissidentes; confundida, na imaginação
aterrorizada das massas, com a imunda feitiçaria; desacreditada pelos
falsos sábios cujos sonhos fúteis ela solapa, desatinando
a escolástica em delírio; crivada, enfim, de anátemas
de um presunçoso sacerdócio, desprovido de sua iniciação
primitiva!... De tal forma se nos apresenta esta ciência ao longo
de pelo menos quinze séculos de história, que, mergulhando
fundo no passado, hesitamos em reconhecê-la, resplandecente e sagrada
nos santuários do mundo antigo e, mais tarde, conferindo um puro
esplendor ao cristianismo oculto dos primeiros Papas.
Não é que a antigüidade não tivesse seus feiticeiros
- e, sobretudo, feiticeiras. A magia envenenadora conquistou, com as megeras
da Tessália e da Cólquida, uma lúgubre celebridade.
Visitantes noturnas de tumbas, vestais impuras de lugares desertos, elas
misturavam, na seiva narcótico-acre dos meimendros negros e das cicutas,
o leite cáustico do titímalo e faziam digerir extratos de
acônito licoctone e de mandrágora com inomináveis venenos
e humores obscenos. Depois, seus encantamentos saturavam essas misturas
com um líquido que se tomava tanto mais mortífero quanto mais
dolorosamente o seu ódio, por muito tempo contido, o tivesse elaborado
e projetado em uma cólera mais venenosa e tácita. As cozinhas
de Canídia (tão horrendas que, à sua vista, a lua se
velava, conforme se diz, com uma nuvem sangrenta) tiveram a honra de provocar
o desgosto lírico de Horácio, cujos detalhes não é
preciso descrever aqui, presentes que estão na memória de
todos os aficionados do poeta.
Não menos célebre é a lenda que Homero poetizou, a
saber, a dos companheiros de Ulisses, enfeitiçados, que se tornaram
porcos submissos à varinha de Circe. Todos beberam da poção
e sofreram a metamorfose; isso implica um duplo símbolo: o da derrota
a que são predestinadas as naturezas passivas no combate da vida
e o da servidão a que nos reduzem as paixões físicas
não equilibradas por uma iniciativa sempre desperta (paixão,
pois, exprime um estado passivo). Todos beberam, dissemos. Ulisses, porém,
recusa molhar os lábios na taça encantada e no tom calmo,
próprio da força consciente de si mesma, com o gládio
em punho, num gesto de ameaça, ordena à maga que quebra o
sortilégio fluídico. O príncipe, aqui, representa o
Adepto, o mestre dos fluidos, pois que, hábil em desmontar a armadilha,
sabe imprimir às ordens que dá o verbo autoritário
de sua vontade. Nele, Circe reconhece o homem mais forte que todos os encantamentos
e, com a cabeça baixa, obedece.
Mais sanguinária e mais perversa, Medéia também deve
aos poetas o lamentável privilégio de sua ilustração;
muitos cantaram sua vida errante. Medéia envenena seus próximos,
queima e massacra seus filhos. Refugiada em Atenas, perto do rei Egeu, que
a torna mãe, ela dá largas aos seus instintos de depravação
feroz e de inveja, confiante na impunidade, até o dia em que seus
crimes suscitam a indignação de toda a cidade. Pálida
apupada e apedrejada pelo povo, a infeliz vê-se forçada a fugir,
com os olhos incendiados por um ódio implacável, apertando
no peito o único filho que poupara, qual um fruto duplamente sagrado
pelo adultério e pela vingança.
Pouco importa que a história dessas duas irmãs de malefício
seja real ou legendária. As individualidades fabulosas são
tipos de síntese moral em que se encarna o gênio médio
de uma raça ou de uma casta. A estirpe execrável das sagas
da Hélade fez desabrochar Medéia em uma suprema expansão
de vigor. Sim, as abominações a que se refere o povo com referência
a empusas e vampiros foram literalmente realizadas pelas feiticeiras do
mundo antigo, criaturas a quem a cólera pública conferiu,
aliás, os nomes de estrige e de lâmia.
Entretanto, deixemos esses horrores. Se na Idade Média monstros desse
tipo foram confundidos, aqui e acolá, com os verdadeiros iniciados,
é que estes - repito - necessariamente suspeitos de heresia, excomungados
ipso facto, encurralados como cervos, viam-se obrigados a ocultar nas trevas
o mistério de sua dolorosa existência. Desde então,
a calúnia vigorou. Mas tal coisa, graças a Deus, não
era possível ao tempo em que a teurgia enchia os templos de maravilhas
e em que o mago, calmo e benfazejo em seu ilimitado poder, reinava, inviolável
como um soberano, venerado como um Deus...
Meditai sobre o livro magistral de Saint-Yves d'Alveydre - A Missão
dos Judeus(31). Religioso perscrutador das necrópoles do passado,
perquirindo até os mínimos detalhes das raças e das
religiões orientais, o eminente ocultista estabeleceu, com base nas
provas mais irrefutáveis, uma verdade que Fabre d'Olivet(32) e, posteriormente,
Eliphas Levi(33) já haviam entrevisto de forma lapidar, ou seja,
o fato de a Gênese ser uma cosmogonia transcendente em que os mais
profundos arcanos da santa Cabala são revelados simbólica
e hieroglificamente. Mas a Cabala primitiva é filha do Hermetismo
egípcio, cujos mitos primordiais foram hauridos pela grande fonte
hindu. Saint-Yves não se detém, portanto, em Moisés.
Como um navegador, explora o rio dos tempos passados. Desfraldando todas
as velas, sobre o curso dos séculos até a origem do ciclo
de Ram.
Eis aqui o imenso império arbitral do Carneiro. Seu governo "sinárquico",
cuja organização ternária conforma-se às leis
da ciência e da harmonia, faz florescer sobre a Terra, durante dois
mil anos, a idade de ouro celebrada por Ovídio. Dos três conselhos
encarregados da gestão dos negócios, os dois primeiros compõem-se,
respectivamente, de hierofantes admitidos na iniciação suprema,
e de adeptos laicos. Ram conquistou um terço do mundo apenas com
vistas a pacificação. Uma vez atingido esse objetivo, renuncia
ao gládio, à coroa e ao estandarte do Carneiro, em uma palavra,
renuncia aos poderes executivo e militar, deixando-os nas mãos do
primeiro príncipe indiano. Assim, colocando a tiara do Soberano Pontífice
universal, arvora a auriflama do Cordeiro - hieróglifo do sacerdócio.
Este realizador da mais vasta síntese que a mente humana pôde
conceber, este soberano do mais gigantesco império civilizado que
César ousou cobiçar em sonho, troca a coroa imperial pelo
cetro do mago dos magos e pela divindade terrestre; pode-se dizer, pois,
que esses hierofantes exerciam, então, a divindade sobre o microcosmo.
Durante mais de trinta séculos, até o cisma de Irschu, a grande
obra de Ram prospera em ordem e em paz. Queremos transcrever, aqui, a enumeração
das metrópoles religiosas do Império, de acordo com Saint-Yves.
"Os santuários mais célebres deste antigo culto lâmico
foram, entre os indianos, os de Lanka, Ayodhia, Guzah, Methra e Dewarkash;
no Irã, os de Vahr, Balk, Bamiyan; no Tibete, os do monte Boutala
e de Lassa; na Tatarah, os de Astrakan, Gangawas e Baharein; na Caldéia,
os de Ninweh, Han e Houn; na Síria e na Arábia, os de Askala,
Balbeck, Mambyce, Salem, Rama, Meca e Sanah; no Egito, os de Tebas, Mênfis
e Amon; na Etiópia, os de Rapta e de Meroe; na Trácia, os
de Hemus, Balkan e Concayon ou Goy-Hayoun; na Grécia, os de Parnasso
e de Delfos; na Etrúria, o de Bolsena; em Osk-tan, antiga Ocitânia,
o de Nimes; entre os iberos da Espanha, irmãos dos hebreus e dos
iberos do Cáucaso, os de Huesca e Gades; entre os golacks (gauleses),
os de Bibracte, Perigueux, Chartres, etc..."
Esse excerto pode dar uma idéia do que foi o império de Ram.
Entretanto, não nos propomos a um ensaio de história. Os curiosos
que buscarem no livro de Saint-Yves o quadro completo desta "sinarquia
arbitral" serão inteiramente informados da sua organização,
suas leis e seu destino, desde sua origem até o seu apogeu, de sua
decadência até o seu desmembramento: o cisma de Irschu, o positivista,
que pretende cindir a idéia de Deus e que, excluindo o princípio
ativo e paternal, faz subir seu incenso na direção do princípio
produtor passivo; a tirania da Babilônia e de Nínive e a falsa
interpretação do dualismo de Zoroastro; as distâncias
faraônicas; a China de Fo-hi; a emigração dos hebreus
dirigida por Moisés, etc...
Seriam necessários diversos volumes para acompanhar até nossos
dias a transmissão do sacerdócio mágico - se o fizéssemos
sem interrupção. Sem pretender ao menos esboçar uma
visão global, nós nos restringiremos a alguns aspectos característicos.
Na medida em que avançamos na história, vemos deslocar-se
a hierarquia universal. Observamos que a unidade primitiva é paulatinamente
rompida por uma multiplicidade de cismas, que sobre as ruínas dos
grandes colégios de magos - esses centros oficiais, de alta iniciação
psíquica e mental, que outrora espargiam luz e calor por sobre o
mundo pacificado - surgem adeptos individuais. O ensinamento geral das universidades
ocultas é sucedido por escolas particulares de mestres independentes.
Constituem exceção, no entanto, alguns santuários célebres,
tais como Delfos, Mênfis, Preneste, Elêusis, entre outros. O
inevitável desmoronamento destes santuários foi retardado
por muito tempo, mas o nível do ensino, materializado, decaiu pouco
a pouco.
Dilacerada pela queda do Supremo Pontificado universal, a centralização
hierárquica não mais opunha ao transbordamento das paixões
a sua barreira tutelar: os sacerdotes tornaram-se homens novamente. A pior
das rotinas - a da inteligência - elegeu os templos como domicílio
e o espírito passa a ser substituído pela letra. Os pontífices
logo perderam até mesmo a chave tradicional dos hieróglifos
sagrados, para realizar-se, assim, em todo o mundo conhecido, a profecia
de Thoth, o Trismegisto: "Egito, Egito! De tuas religiões restarão
apenas vagos relatos em que a posteridade não mais acreditará,
palavras gravadas sobre a pedra, relatando tua piedade... O Divino retornará
ao céu, a humanidade, abandonada, perecerá por inteiro, e
o Egito será deserto e vazio de homens e de deuses!... Ela, que outrora
fora a terra santa, amada pelos deuses por sua devoção a eles,
será a perversão dos santos, a escola da impiedade, o modelo
de todas as violências. E então, cheio de desgosto pela matéria,
o homem não mais terá pelo mundo qualquer admiração
ou amor(34)"...
Esta será, verdadeiramente, a palavra vibrante do legendário
personagem que passa, sob o nome de Hermes Thoth, por tríplice fundador
da religião, da filosofia e da ciência egípcias? A crítica
moderna inclina-se a contestar a autenticidade do Poimandres (Poemander),
de Asclépio e da Koré Kosmu (Minerva mundi), bem como de outros
fragmentos herméticos. Com efeito, não há erro quanto
à pessoa? Sabe-se que os hierofantes conferiam a si próprios,
juntamente com a tiara, o nome de Hermes e o sobrenome de Trismegisto. Posteriormente,
tais dogmas, próximos da doutrina cristã, parecem denunciar
a autoria de um neoplatônico... Portanto, é preciso ter cuidado!
Se o cristianismo é apenas um modo novo da antiga ortodoxia universal,
essas semelhanças justificam-se de outra forma que não pelo
plágio. Aliás, dificilmente poderíamos ver nos filósofos
alexandrinos os autores desta Tábua de Esmeralda, de um conteúdo
iniciático magistral. Acreditamos, assim, na antiguidade dos fragmentos
de Hermes. [A forma, sem dúvida, pode ter sofrido alteração
ou ter sido rejuvenescida pela pena dos tradutores e dos copistas, mas o
essencial data de época mais remota e não variou](35). Trata-se,
então, de um hierofante da época áurea que, mergulhando
nos confins da posteridade, prediz desventuras para a terra dos faraós,
como Jeremias para a cidade santa dos Hebreus. Lamentamos ter de mutilar
esta grandiosa página. Entretanto, todos poderão lê-la
no Asclépios.
Jamais uma predição se realizou de modo tão estranho.
Tanto isso é verdade, que, segundo "homens sérios"
deste século, os antigos egípcios adoravam a esfinge e outros
animais fantásticos cujas figuras podemos encontrar sobre os restos
de seus monumentos. Dia virá, sem dúvida, conforme supõe
Eliphas, em que algum ocidentalista definirá o objeto de nosso culto:
um deus tríplice, composto de um velho, um supliciado e um pombo.
Ah! Antes os iconoclastas do que os imbecis! Quebremos todas as imagens
simbólicas, se é que se degenerarão em ídolos!
De qualquer forma, os pensadores podiam contar com essa materialização
do culto: prescrevendo a transmissão dos altos mistérios apenas
com bom conhecimento de causa e mediante ensinamento oral, a lei mágica
expunha seus adeptos negligentes à possibilidade de perder a inteligência
dos mitos sagrados. "É a pura justiça", talvez respondesse,
a essa censura, um hierofante dos velhos tempos. "Antes a ciência
perecer, um dia, do que cair em mãos indignas!..."
Se é verdade que os santuários ortodoxos desmoronaram após
uma agonia de grande duração, algumas sociedades de adeptos
laicos perpetuaram-se, ao menos, até os nossos dias. Não vemos
aqui, necessariamente, a franco-maçonaria, cuja origem dita adonhiramita
e salomônica, não fez senão homens ludibriados conscientes
e encantados por assim serem. Trata-se, na realidade, de raros colégios
- aquela associação dos Mahatmas, por exemplo, que nos assinala
um Louis Dramard em sua brochura intitulada A Ciência e a Doutrina
Esotérica(36). Apaixonados por um ascetismo panteísta, talvez
errôneo, mas notáveis por sua síntese cósmica
e sua ciência espantosa de realização, os Mahatmas sucedem-se,
diz ele, desde tempos imemoriais, sobre os altiplanos do Himalaia. É
lá que vivem no retiro e mergulhados nos estudos. A Sociedade Teosófica,
muito próspera nas Índias Inglesas e em todo o império
britânico, estendendo diversas ramificações até
Paris, reivindica esses mestres orientais, inspiradores diretos da interessante
revista (O Teosofista) que foi fundada em Madras sob os seus auspícios.
Mas retomemos ao mundo antigo. Quando Moisés, sacerdote de Osíris,
deixou o Egito levando consigo a multidão bastante miscigenada, que
guiou pelo deserto até Canaã, a decadência sacerdotal,
que mal se notava em Mizraim, acentuou-se entre os outros povos em que a
usurpação cismática dissolvera a autoridade arbitral.
A gangrena moral invadiu sobretudo o país de Assur, tiranizado, desde
o advento de Ninus (2200 a.C.), por uma seqüência ininterrupta
de déspotas conquistadores.
Alguns séculos antes, três homens haviam despontado: entre
os indianos, Chrisna (3150); na Pérsia, Zoroastro (3200); na China,
Fo-Hi (2950). Cabia-lhes derrubar o sanguinolento nemrodismo e reconstituir
parcialmente a antiga teocracia do Carneiro. Não nos interessa aqui
descrever a obra de regeneração social levada a efeito no
Oriente por esses três benfeitores da humanidade. O leitor sequioso
de detalhes poderá recorrer ao livro de Saint-Yves, autor de cuja
eminente cronologia fizemos uso e a quem exprimimos nosso reconhecimento.
Observamos apenas, do ponto de vista hermético, a aparente reforma
que Zoroastro, rei da Pérsia, introduziu na teologia esotérica.
Aqueles que se ocupam das religiões orientais conhecem o significado
hieroglífico das quatro letras do divino tetragrama. Símbolo
não do Ser absoluto que o homem não pode definir, mas, antes,
da idéia que tem dele(37), o vocábulo Iod-heve ou Jehovah
(U Y U W ), que os cabalistas pronunciam letra por letra: iod, he, vau,
he, analisa-se da seguinte maneira:
W Iod: o espírito masculino; princípio criador ativo; Deus
em si mesmo; o Bem. Corresponde ao signo do falo, ao cetro do tarô,
e à coluna Iakin do templo de Salomão. (Em alquimia é
o enxofre ? ).
U He: a substância passiva; princípio produtor feminino; a
alma universal plástica; a psíque viva, a potencialidade do
Mal; representados pelos cteis, pela taça de libações
do tarô, e pela coluna Boaz. (Em alquimia, é o mercúrio
? ).
Y Vaf ou Vau: a união fecunda dos dois princípios; a copulação
divina; o eterno devir; representados pelo lingham, pelo caduceu e pela
espada do tarô. (Em alquimia, é o Azoto dos Sábios \
).
U Hé: a fecundidade da natureza no mundo sensível; realizações
últimas do pensamento encarnado nas formas; os ouros do tarô.
(Em alquimia, é o sal). Esta última letra associa à
idéia de Deus a do universo, como finalidade: também o tetragrama
Ieve (Iod-heve), aliás tão admirável, é, neste
sentido, de uma envergadura menos precisa que o tetragrama } LO} (Agla),
cuja quarta letra, exprimindo a síntese absoluta do Ser, afirma vigorosamente
a unidade em Deus.
Pois bem, para a compreensão do vulgo, Zoroastro reduziu os termos
a dois: o ativo e o passivo, o bem e o mal. Suprimindo, pois, pelo menos
aparentemente, o princípio equilibrante, pareceu criar o império
do demônio. Os iniciados, sem dúvida, sabiam como proceder.
Assim, denominavam Mithras-Mithra o terceiro princípio, que mantém
o equilíbrio harmônico entre Ormuzd e Ahriman. Todavia, a partir
do momento em que Zoroastro, talvez sem saber, pareceu sancionar a crença
no Binário impuro, símbolo de um eterno antagonismo, o reino
de Satã foi estabelecido na imaginação do vulgo, e
o inferno maniqueísta que aterrorizou toda a Idade Média não
tem outra origem senão esta.
Entretanto, longe de querer cindir Deus, reagindo contra Irschu que, no
Ser, divinizara a mulher, Zoroastro masculinizou o segundo princípio.
Nada de passivo, com efeito pode ser concebido nos atributos do Ser essencialmente
ativo e criador. Do mesmo modo, aos olhos dos Padres da Igreja - e pelo
mesmo motivo - a segunda pessoa em Deus é o filho, e não a
mãe, que a existência do filho supõe como condição.
Como se vê, foi inteiramente sem razão que se suspeitou de
Zoroastro como preconizador de um dualismo anárquico. Todavia, aos
olhos dos profanos, o mal já estava feito, e o ensinamento errôneo
do segundo Zoroastro em nada atenuou as suas conseqüências.
Quanto a Fo-Hi, veremos como os seus Trigramas correspondem ao pantáculo
macrocósmico de Salomão (a estrela de seis pontas, formada
por dois triângulos entrelaçados com base paralela - representativos
dos mistérios do equilíbrio universal).
Mas, depois deste longo parênteses, voltemos ao fundador dos Bene-Israel.
Imbuído dos princípios da ortodoxia dórica e confirmado
nesta doutrina pelo hierofante árabe Jethro, seu sogro, Moisés
modelou o governo de seu povo pelo antigo modelo sinárquico. O conselho
de Deus, ou dos sacerdotes de Israel, foi escolhido na tribo, a partir de
então sacerdotal, de Levi. E foi da assembléia dos iniciados
laicos, ou conselho dos Deuses, que surgiram mais tarde nabis e profetas,
para lembrar aos soberanos e pontífices o seu dever esquecido.
Contudo, o epopta-legislador eclipsou, em toda a sua vida, os membros dos
conselhos por ele mesmo criados. Notável taumaturgo - até
o advento do Cristo, Israel jamais conheceu outro igual - Moisés
ilustrou a sua carreira com uma multiplicidade de prodígios, que
testemunham seu império absoluto sobre as forças fluídicas
e misteriosas. O próprio rei dos magos, Salomão, não
realizou obras que se comparem às suas. Porém, é nos
livros mosaicos (Gênese, Êxodo, Números, Deuteronômio)
que vemos o mais fascinante e imortal de todos os seus milagres. Diante
do Pentateuco, tríplice obra-prima de poesia, ciência e sabedoria,
os livros de Salomão parecem-nos pálidos. Nada no Antigo Testamento
consegue atingir a altura da revelação mosaica, com exceção
das páginas de hermetismo épico assinaladas pelo nome de Ezequiel.
Monumentos sublimes, sem dúvida, de poesia oriental, o Eclesiastes
e o Cântico dos Cânticos(38) - passionais em suma, embora de
caráter bastante diverso - parecem menos profundos e de inspiração
menos luminosa.
Em Israel, como em outros lugares, o sentido esotérico das alegorias
primitivas perdeu-se pouco a pouco, e os grandes sacerdotes deixaram de
compreender o próprio simbolismo do culto, quando Jesus Cristo veio
vivificar, reanimar o eterno dogma - que dormia sob o véu já
vetusto da revelação mosaica -, dando-lhe uma roupagem nova,
mais coerente com a alma mística do mundo rejuvenescido. Achamos
prudente não falar aqui dessa missão divina, pois onde a fé
começa talvez seja conveniente que a ciência pare, a fim de
evitar tristes mal-entendidos. Assim, evitemos falar nos Evangelhos; no
momento, não penetremos o seu simbolismo, e sempre que, no decorrer
deste rápido esboço, nos for necessário falar de crenças
religiosas, declaremos de uma vez por todas que, nem um pouco competentes
em matéria de fé, temos em mira os homens e os fatos apenas
do ponto de vista da inteligência e da razão humanas, e sem
jamais pretender dogmatizar.
Decorridos cerca de cem anos desde a morte do Cristo, os seus ensinamentos
se foram disseminando gradativamente. O sangue de seus mártires -
pela paz futura - já havia, então, batizado as três
partes do mundo conhecido, quando os gentis, confundidos pelo progresso
da fé cristã, decidiram opor Messias a Messias e investir
altar contra altar. A caducidade dos velhos cultos necessitava imperiosamente
de uma nova revelação. Simão, o taumaturgo, lutara
em vão pela deificação de Helena, sua concubina, e
de sua própria pessoa. Surgiu apenas um homem que parecia suficientemente
grande para ser colocado ao lado de Jesus de Nazaré... Iniciado nos
mistérios de todos os templos do mundo, Apolônio de Tiana semeara
prodígios por onde passara, e foi de acordo com as memórias
de Damis, o Assírio, um de seus fiéis, que Filostrato (193)
escreveu, em grego, o evangelho do mago(39). "Spiritus flat ubi vult..."
Sobre o engenhoso repositório de sábias alegorias, narradas
artisticamente, no melhor estilo, o espírito vivificador não
emitiu seu sopro. A multidão, pois, não se dirigia ao mago
Apolônio. E, dois séculos mais tarde (363), vítima de
uma tentativa análoga de restauração teocrática,
pôde o imperador Juliano, em seu último suspiro, erguer ao
céu suas mãos debilitadas, cheias de um sangue inutilmente
derramado, e, adepto e sábio, clamar, antes com lassidão do
que com ressentimento: "Venceste, Galileu!..."
Porém, antes de tratar dos iniciados de nossa era, acossados pelas
maldições mais ou menos efetivas do Cristianismo triunfante,
consagremos algumas linhas à Grécia antiga. Os limites do
presente ensaio não comportam uma análise da imensa epopéia
mística cujas poéticas lendas foram celebradas por Homero,
Ésquilo, Hesíodo. Assim, nós nos restringiremos a saudar,
em um personagem cuja existência tem sido posta em dúvida pelo
mundo moderno, o grande iniciador das raças helênicas.
Contemporâneo de Moisés, educado juntamente com ele em um santuário
de Tebas, Orfeu retornou ainda jovem à Hélade, onde nascera.
Enquanto Moisés e os seus pisavam as areias áridas da Ásia,
Orfeu, sacerdote-oráculo do grande Zeus, revia, sob o olhar severo
de Iod-Heve, o arquipélago azul e a península natal, verdejante
de murtas e oliveiras. À sua cara pátria, assolada pela desordem,
trazia ele a Ciência absoluta, haurida nas próprias fontes
da Sabedoria - a eterna Ciência do Ser inefável, designado
por Osíris, Zeus ou Iod-Heve.
Quando desembarcou, modulando na lira de sete cordas sua alma expansiva
e sonora de apóstolo e de rapsodo, a terra predestinada estremeceu
toda, atenta aos seus acentos. Orfeu pregou o evangelho do Belo e converteu
os povos pelo prestígio da lira santa. Assim, edificou-se uma restauração
teocrática. A partir desse dia, o Gênio grego, revelado a si
mesmo, concebeu o harmonioso Ideal que o consagra imortal entre todos.
A harmonia é civilizadora. Assim, Virgílio, um iniciado, mostra-nos
o aedo em êxtase, fazendo chorar os animais selvagens, dóceis
diante do magnetismo de sua voz, fazendo fremir de amor os carvalhos, que
se vergam para ouvi-lo: Mulcentem tigres et agentem carmine quercus.
A harmonia é criadora. Assim, a Tebas de Anfião, constituída
ao som da lira, é de um simbolismo análogo. Todos esses mitos
não são destituídos de profundidade. Marcam esplendorosamente
o caráter estético que a magia assumiu na Grécia.
A doutrina de Pitágoras é irmã daquela de Orfeu, assim
como as matemáticas pacientes são irmãs da música
inspirada; analisam seus acordes e denominam as suas vibrações.
No Egito, Pitágoras aprende a Ciência já decadente dos
magos. Recebe, na Judéia, das mãos dos nabis Ezequiel e Daniel,
uma iniciação parcimoniosamente sincera(40). Cabe ao seu gênio
preencher, através da intuição, essas lacunas. De qualquer
forma, seu Tetractys e sua Tríade correspondem, rigorosamente, ao
Tetragrama e ao Ternário cabalísticos.
Quanto ao esoterismo de Platão, devolvido mais tarde e sutilizado
pelos teurgos de Alexandria, fundir-se-á, nas mãos dos Gnósticos,
com o cristianismo oculto, imediatamente derivado da doutrina essênia.
As obras de São Clemente de Alexandria, de Orígenes, de São
Denis, o Areopagita, e do bispo Sinésio testemunham irrefutavelmente
este intercâmbio dogmático. Parece que, inconscientemente,
os herdeiros do mundo antigo trataram, de potência a potência,
com os fundadores do novo mundo para firmar, de comum acordo, um compromisso
filosófico. Em São João, reencontramos a tradição
secreta, mas, integral, dos velhos mestres de Israel, a tal ponto que o
Apocalipse forma, juntamente com o Zohar, o Sepher Ietzirah(41) e algumas
páginas de Ezequiel, o mais puro corpo doutrinário e clavicular
da Cabala propriamente dita.
Além disso, Porfírio e Jâmblico, por mais pagãos
que se proclamem, pregam o Cristianismo sem o saber, ao lançarem
os retalhos de um véu místico envelhecido sobre estes mesmos
grandes princípios que o simbolismo cristão acaba de revestir,
de modo tão magnífico, com novas alegorias, mais de acordo
com o gênio da era nascente.
Lastimavelmente, porém, a Igreja não soube reservar para si
mesma, por muito tempo, a chave do inestimável tesouro, confiado
à guarda de seus altos prelados. Tal chave garantia a unidade hierárquica
nas mãos do Soberano Pontífice (daí em diante, indispensável
como revelador); penhor de ortodoxia infalível nas mãos dos
Príncipes do sacerdócio (mesmo para, a partir daí,
controlar tudo, à luz da síntese fundamental), tal chave -
que é a do Bem e do Mal - só poderia abrir, para o vulgo,
o reino das trevas. A razão transcendente do dogma acha-se muito
acima do nível intelectual das massas, sendo que as mais graves heresias
são verdades mal compreendidas.
Alguns iniciados na Gnose, invejando a autoridade hierárquica, resolveram
fazer com que ela perdesse o tesouro da tradição oculta. A
malícia desses homens empenhou-se, subrepticiamente, no sentido de
levantar todos os véus. Chegou um dia em que, revelado em suas mais
secretas fórmulas, o dogma esotérico foi posto à mercê
da estupidez das multidões. A luz ofuscante cegou os olhos fracos.
Diante da suprema sabedoria, os ignorantes julgaram-se feridos em sua parvoíce
e se escandalizaram. A Igreja, então, teve que anatematizar a inscrição
sublime do templo, a razão positiva e a razão real do dogma:
esta Gnose santa dos adeptos que, temerariamente traduzida para a linguagem
das massas, tornara-se, para a imbecilidade delas, o objeto do maior escândalo
- uma mentira!
Ah! tinha toda razão o bispo Sinésio quando escreveu: "O
povo sempre escarnecerá das verdades simples. Ele necessita de impostores...
Um espírito amigo da sabedoria e contemplador da verdade sem véus
é forçado a disfarçá-la para obter a aceitação
das massas... A verdade torna-se funesta aos olhos frágeis demais
para sustentar o seu esplendor. Se as leis canônicas autorizarem a
reserva das apreciações e a alegoria das palavras, aceitarei
a dignidade episcopal que me oferecem, mas sob a condição
de me ser lícito filosofar em casa e contar, lá fora, parábolas
reticentes. O que pode haver em comum, na verdade, entre a multidão
vil e a sabedoria sublime? A verdade deve permanecer oculta. Às massas
só se deve dar um ensinamento proporcional à sua limitada
inteligência(42)..."
Eis o que os anarquistas e tribunos jamais compreenderão.
Embora o esoterismo sacerdotal tenha sido condenado sob o nome de Magia,
os papas, segundo se diz, conservaram misteriosamente as suas chaves, até
Leão III. Bons espíritos lograram sustentar a autenticidade
do Enchiridion, compilação cabalística publicada sob
o nome deste pontífice. Quanto ao Grimório de Honório,
ocorre algo bem diferente: consta, segundo uma engenhosa pesquisa de Eliphas
Levi, que esse ritual blasfematório seria a obra ignominiosamente
maquiavélica do antigo Cadalous.
Montan, Manés, Valentin, Marcos, Ario, todos os heresiarcas dos primeiros
tempos apresentam-se, em maior ou menor grau, como feiticeiros. Entretanto
- com exceção dos teósofos de Alexandria - foi somente
Apuleio (114-190), platônico como eles, que fez jus, nessa época,
ao título de adepto. Seu Asno de Ouro, em que o burlesco roça
o sublime, dissimula, através de engenhosos emblemas, as mais altas
verdades da ciência, e a fábula de Psique, contida nessa sua
obra, nada deixa dever aos mais belos mitos de Ésquilo ou de Homero.
Tudo leva a crer, aliás, que Apulenio se ateve a parafrasear com
gosto uma alegoria de origem egípcia. Oriundo de Mandaura, na África,
Apulenio é romano apenas por direito de conquista e anexação.
Este fato sugere-nos que Roma, tão fértil em abomináveis
necromantes, não deu origem a nenhum verdadeiro discípulo
de Hermes. Não cabe objetar com o nome de Ovídio, pois suas
Metamorfoses, tão graciosas a todos os gostos, testemunham um esoterismo
bastante errôneo, para não dizer ingênuo. Virgilio -
este, um iniciado - cioso, antes de tudo, de legar à Itália
uma obra-prima do gênero épico, só nas entrelinhas,
e de modo eventual, evidencia o brilho de sua sabedoria.
No caso da República e do Império de Roma, o caráter
perpetuamente anárquico e nemrodiano que acusaram em todas as circunstâncias
refuta, por si só, a hipótese de uma iniciação
a nível de governo. O único rei genuinamente "mago"
de quem se podem orgulhar os filhos da Loba foi Numa Pompílio (714-671),
um Nazareno dos tempos da Etrúria(43) que as nações
circunvizinhas impuseram à Roma nascente. Mais tarde, Juliano, o
filósofo (360-363), figura também como adepto nos faustos
do Império. No entanto, nascido em Constantinopla, proclamado César
pelos Gauleses de Lutécia (360), ele é também, por
seu turno, muito menos romano. Assim, dois são os soberanos iniciados
da cidade eterna: em seus primórdios, um rei, Numa Pompílio;
já em seu declínio, Juliano, o Sábio, um imperador.
Entre os dois, a guerra civil, a extorsão e o arbítrio.
Esses gauleses que Roma chamou de bárbaros são povos verdadeiramente
mais livres e civilizados. Seus druidas, herdeiros diretos dos hierofantes
ocitâneos da teocracia do Carneiro, perpetuam-lhe a tradição
e transmitem uns aos outros, regularmente, o depósito da ciência
sagrada. Alguns preceitos de seu ritual são interpretados, com efeito,
em um sentido antropomórfico, errôneo, mas a inteligência
do dogma, ao que parece, conservou-se integralmente nas mãos dos
sacerdotes, distanciados, contudo, dos grandes centros de civilização
e ortodoxia. Não obstante, na Gália, como em outros lugares,
a feitiçaria recruta suas vestais sacrílegas. A feitiçaria
é de todos os tempos, e de todos os países.
Sob os primeiros reis da França, pululam encantadores e bruxas. Só
se fala de necromantes que oferecem a hospitalidade de seu corpo ao diabo,
de clérigos que exorcizam o diabo, de verdugos que queimam ou enforcam
necromantes. É especialmente em honra dos feiticeiros que Carlos
Magno institui, sob o nome de Santa Vema (772), essa terrível sociedade
secreta que, sancionada novamente pelo rei Roberto (1404), aterrorizará
mais de trinta gerações(44). Primeiramente na Vestefália,
mais tarde em toda a Europa Central, os tribunais de franco-juízes
não tardam a multiplicar-se. Os mandados de prisão se pronunciam
em cavernas inacessíveis onde, por caminhos tortuosos, o acusado
é conduzido de olhos vendados e com a cabeça desnuda. Não
há sentença intermediária entre a morte e a absolvição,
com ou sem reprimenda... Tanto camponeses como senhores temem encontrar,
alguma manhã, a ordem de comparecimento afixada à sua porta
com um golpe de punhal! E ai de quem não obedecer a citação
dos franco-juízes! Mesmo sendo cardeal, príncipe de sangue
ou imperador da Alemanha, ninguém escaparia ao decreto de morte pronunciado
à revelia, e seria apanhado cedo ou tarde. O que se segue mostrará
a vingança oculta vinculada aos passos do contumaz - sempre paciente,
pois é garantida: "O duque Frederico de Brunswick, que foi imperador
por um momento, recusara-se a atender a uma citação dos franco-juízes.
Quando saía, armava-se da cabeça aos pés e cercava-se
de guardas. Entretanto, certo dia ele se afastou um pouco de seu séquito
e precisou desvencilhar-se de uma parte da armadura. Ninguém o viu
retornar. Os guardas penetraram no pequeno bosque em que o duque desejara
permanecer a sós por um instante. O desventurado, então, expirava,
tendo nos rins o punhal da Santa Vema, de onde pendia a sentença.
Olharam em todas as direções e viram um homem mascarado que
se retirava com andar solene. Ninguém ousou persegui-lo."(45)
Na Idade Média, o Mal teve, assim como o Bem, seus aliados misteriosos
e suas assembléias secretas. Eu não teria reservas em descrever
aqui - após tantas outras! - as orgias priapescas e sádicas
do sabbat criminoso: encontros de envenenadores e de bandidos que, salvaguardados
pelo prestígio de um terror supersticioso, empenhavam-se em envolver
suas práticas nas mais fantásticas trevas. Lendo-se o processo
de Gilles de Laval, senhor de Retz, os cabelos se eriçam e a náusea
sobe aos lábios. Entra-se, porém, no mesmo nível neste
mundo nefasto da magia negra, em que os ritos dos sortilégios servem
para dissimular perversidades mais efetivas, em que o assassino se disfarça
como feiticeiro: só sob a fronte do marechal de Bretanha germinaram,
floresceram e frutificaram depravações, todas as perversidades
habituais aos freqüentadores do sabbat.(46) Estes, por vezes, ao menos
descuidavam de temperar com a pimenta satânica o miserável
guisado de sua cupidez saciada. Talvez se tenha exagerado o papel do magnetismo
e das influências ocultas nas obras do sabbat criminoso. Os verdadeiros
adeptos reservam a si mesmos, sem dúvida alguma, o emprego racional
deste formidável agente. Quanto aos vendedores de filtros, eram,
em sua maioria, envenenadores banais.
Contudo - à parte os cruzados ocultos do Inferno e do Crime e os
cavaleiros não menos ocultos da Justiça e do Castigo, além
dos necromantes e dos franco-juízes - viam-se campônios pacíficos
e cidadãos inofensivos mesclaram-se como atores à grande tragicomédia
de então. Comprimida pelo despotismo dos estados e pela intolerância
do sacerdócio, a atividade vital, na Idade Média, teve, de
fato, que se desenvolver na sombra. Tomava-se o ar de conspirador. Uma doença
fustigava todas as classes da sociedade: a monomania do mistério,
e, assim, reuniões secretas organizavam-se por toda parte. O maravilhoso
(e as pessoas eram tão ávidas dele!) decuplicara o prestígio
de um suposto sabbat, em que os pobres diabos confraternizavam de modo estranho
com os maiores senhores, fascinados pela curiosidade, mais forte que o orgulho.
Em conventículos noturnos, aliás tão inocentes, sob
o pretexto de cerimônias estranhas, degustava-se o inefável
prazer de andar a passo de lobo, de trocar a senha com uma voz sepulcral
e de correr grande risco de ser enforcado.
Todavia, sem nenhum medo de semear o temor ou o estupor, desdenhando quando
lhes era possível sem perigo, todo este luxo de encenação,
os verdadeiros iniciados reuniam-se, também, e a grande Isis sentava-se
no meio deles. Fundaram-se associações herméticas que
deviam a rubricas forjadas o privilégio de uma segurança relativa.
Citaremos, de memória, a ordem dos Templários (ninguém
ignora sua origem e seu fim trágico)(47); as confrarias da Rosa-Cruz
e dos Filósofos Desconhecidos, sobre as quais a história,
por outro lado, diz pouca coisa, e, finalmente, a Franco-maçonaria
oculta, prolongamento mais ou menos direto da Ordem do Templo, iniciada,
segundo consta, por Jacques de Molay, antes de subir à fogueira.
Mas a moderna franco-maçonaria - sonho de algum Asmohle em delírio,
cepo bastardo e mal enxertado no antigo tronco - já não tem
consciência dos seus menores mistérios. Os velhos símbolos
que ela reverencia e que transmite numa piedosa rotina tornaram-se para
ela letra morta: é uma língua da qual ela perdeu o alfabeto.
Seus afilhados, assim, nem mais suspeitam de onde vêm e para onde
vão(48).
Em suma, se os grandes colégios iniciáticos foram seminários
ocultos do mundo antigo, não se pode dizer o mesmo das misteriosas
associações da Idade Média, por mais intensamente que
se afirmasse sua vitalidade. Ocorre então que na Europa, depois do
desmoronamento dos derradeiros santuários, luminosos baluartes da
síntese hermética, a ciência universal cinde-se em três
ramos, surgindo, assim, os especialistas. A partir desse momento, cada um
atém-se ao seu ramo. Os adeptos apaixonaram-se quer pela Cabala,
quer pela Astrologia e pelas Ciências Divinatórias, pela Alquimia
e pela Medicina Oculta. Alguns gênios excepcionais, cérebros
organizados para a síntese, ressuscitam, efetivamente, a doutrina
dos magos em sua íntegra: entre eles, Raymond Lulle, Paracelso, Henri
Kunrath, Knorr de Rosenroth, Eliphas Levi. A maior parte dos ocultistas,
contudo, conforme o seu temperamento especial e as influências preponderantes
de seus respectivos ambientes, acantonam-se em alguma das três ciências
de Hermes, cada uma delas correspondendo a um dos seus três mundos.
Os cabalistas, fascinados pelos grandes problemas metafísicos, aspiram
o conhecimento do Mundo Divino. Inclinados de preferência à
psicologia, os áugures (e sob este rótulo incluo adivinhadores,
astrólogos, quiromantes, fisionomistas, cartomantes, frenólogos)
decifram os problemas do Mundo Moral. Quanto aos alquimistas, mais inclinados
ao estudo das leis da física material, são os escrutadores
do Mundo Natural ou Sensível.
No entanto, a primitiva síntese é a tal ponto una e coesa,
que todos esses sábios, por mais diferentes que sejam suas preferências,
respaldam-se nos mesmos axiomas, convergem para os mesmos princípios.
Além disso, para penetrar os mistérios da ciência particular
que elegeram, é preciso que eles, preliminarmente, galguem os degraus
da escada analógica das correspondências nos três mundos,
para assim reerguerem - pelo menos durante o seu período de aprendizagem
- o edifício hermético dos antigos mestres.
Assinalaremos, de forma sucinta, os mais célebres iniciados da Idade
Média e dos tempos modernos. Sob o reinado de Pepino, o Breve, desponta
o cabalista Zedequias, a cujo poder fascinante os homens dessa época
atribuem os fenômenos que os aterrorizam, segundo documentam as crônicas.
"O ar está cheio de figuras humanas; o céu reflete palácios,
jardins, ondas agitadas, navios com as velas desfraldadas ao vento, exércitos
mobilizados em batalha. A atmosfera deixa a impressão de um grande
sonho. Julgamos distinguir, no ar, feiticeiros disseminando em profusão
os pós malfazejos e os venenos".(49) Quem leu o abade de Villars
sabe o que pensar dessa orgia de estranhas visões, fotografadas na
luz do sol. Depois de que perturbações fluídicas produzem-se
essas miragens, ora deslumbrantes, ora terríveis, semelhantes aos
reflexos coloridos de uma imensa lâmpada mágica? Ocorre-nos
sempre o axioma de Hermes: "Quod superius, sicut et quod inferius".
É natural que o céu de uma época turbulenta reflita
a incoerência das coisas terrestres.
No século de São Luís, brilha o rabino Jequiel, notável
eletricista e duplamente detestado pelos parvos, por seu gênio e por
seu crédito surpreendente junto ao rei da França. Ao anoitecer,
quando sua lâmpada misteriosa resplandesce(50) na janela, como uma
estrela de primeira grandeza, o mago - caso seus inimigos, impelidos pela
curiosidade, assediem tumultuosamente a porta - toca um prego cravado na
parede de seu gabinete e faz fulgurar, do seu interior, uma centelha viva,
crepitante e azulada. E ai do pobre indiscreto que nesse momento sacudir
a aldraba do umbral da porta! Dobrar-se-á sobre o mesmo, gritando
aterrado por uma força desconhecida; um raio circula em suas veias;
é como se o chão se abrisse de repente e engolisse metade
do seu corpo... Uma vez restabelecido, talvez fugisse o mais depressa possível,
sem perguntar à terra por que milagre ela o vomitara.
O rei dos mágicos legendários, que resolveu, segundo se diz,
o problema do andróide, é contemporâneo de Jequiel.
Trata-se do célebre Alberto, o Grande (1193-1280), sob cujo nome
circulam ainda, em nossos campos, coleções de inomináveis
inépcias(51). Ainda na mesma época, surge um gênio universal,
o monge Raymond Lulle, de Palma (1235-1315). Discípulo, no campo
da alquimia, de Arnauld de Villeneuve - este, por sua vez, herdeiro da tradição
árabe que remonta a Geber, o magister magistrorum (séc.VIII),
Lulle desenvolveu esplendorosamente em seus escritos (sobretudo em Testamento
e Codicilo) esta bela teoria hermética, cujos princípios,
um século mais tarde, seriam inseridos na inextricável farragem
simbólica de dois adeptos alemães: o conde Bernard le Trevisan
e o monge Basile Valentin (l394)(52). A Arbor Scientiae e a Ars Magna, em
que Raymond Lulle condensa todos os conhecimentos de seu tempo colocados
à luz dos princípios do Esoterismo, apontam-no, além
disso, como grande mestre cabalista, teólogo e filósofo.
O espagirismo de Nicolas Flamel (morto em 1413) deve pagar tributo, sem
dúvida, ao sistema luliano, mas remonta diretamente ao ensinamento
de Abraão, o Judeu, cuja obra (Asch Mezareph) Eliphas Levi traduziu,
publicando-a em anexo à sua Chave dos Grandes Mistérios. juntamente
com Lulle. A. Sethon, Filaletes, Lascaris, e alguns outros, Flamel é
um dos realizadores absolutos da ciência, a quem não se poderia
contestar - sem invalidar todos os critérios da certeza histórica
- uma série de transmutações efetivas e a arte real
da projeção filosofal.
Retornamos à Magia propriamente dita com o abade Tritheim ou Trithème
(1462-1516), o ilustre autor da Esteganografia e do Tratado das causas segundas.
Trithème foi mestre e protetor do "arquifeiticeiro" Cornelius
Agrippa (1486-1535). Agrippa, esse intrépido aventureiro que escandalizou
seu século e que, arrastando atrás de si a fogueira, só
escapou desta para passar sob os ferrolhos os dois terços de sua
existência! Este sábio irrefletido que jamais atingiu a paz
do Conhecimento Total (53) e que renegou, em seu livro de Vanitate Scientiarum
(54) a grande confidente que ele não soubera levar a dizer a sua
última palavra!
Paracelso (1493-1541) pode ser colocado entre estes oniscientes a quem coube
por direito a chave de todos os arcanos que caminham pela estrada da vida
escoltados por todas as glórias, numa série ininterrupta de
prodígios, Quando tais homens morrem - jovens, como todos aqueles
que são amados pelos deuses -, o povo a quem maravilham não
crê em sua morte e, assim, põe-se a aguardar seu retorno, espera
vê-los surgir a qualquer momento dizendo: aqui estou! Mas as gerações
sucedem-se, os eventos precipitam-se e a tradição do semideus
extingue-se, apaga-se na mente dos homens que logo esquecem. Três
séculos já se passaram, e quem pensa em Paracelso? Só
Michelet lhe fez justiça... Quando o Magnetismo, algum dia mais bem
conhecido em sua essência, tiver revelado ao mundo a Medicina Simpática,
os espíritos familiarizados com a obra do mestre surpreender-se-ão
com o descrédito em que caiu a memória de um adepto tão
miraculoso. Ao leitor atento, sua Philosophie Occulte desvendará
os últimos segredos da Magia científica; o seu Sentier Chymique,
do qual Sendivogius fez circular uma cópia clandestinamente(55) apresentar-se-á
como a mais pura obra-prima hermética dos tempos modernos. A sua
terapêutica, enfim (que é a arte de equilibrar as emissões
fluídicas em simpatia com o influxo astral, ou de centuplicar a eficácia
curativa do magnetismo humano, regulando o seu uso segundo as leis invariáveis
do magnetismo universal), sua terapêutica será compreendida
e a auréola de Mesmer empalidecerá à vista de todos.
Como foi superestimada a medicina oculta deste vulgarizador - cheia de indecisão
e de experimentos -, sem imaginar que J.B. Van Helmont (para só citar
um nome) publicava, já em 1621, o seu sábio tratado Magnetica
vulnerum curatione! Ora, mas quem deu nome à América, Colombo
ou Vespúcio? Não é sempre assim?
Universal como Paracelso, Henri Khunrath (1560-1605) condensou a ciência
sintética dos magos em um pequeno in-fólio magnificamente
impresso em 1609(56). Não conhecemos nada mais pessoal e mais cativante
do que este Amphitheatrum Sapientiae Aeternae(57). Em torno dos mais serenos
Pensamentos arrasta-se tortuosamente um estilo áspero, exaltado,
quase bárbaro, mas de um relevo lampejante, ao estilo de Tertuliano.
Maravilhoso contraste! Parece que o Verbo feito carne toma a idéia
de assalto; que as asperezas da forma, no entanto, não nos choque,
pois a idéia oculta irradia-se, de súbito, àqueles
que sabem surpreendê-la. E sobre o tumulto épico dos vocábulos
verte em torrentes de luz o inefável ideal. Parecendo parafrasear
os provérbios de Salomão, o texto místico comenta as
mais altas doutrinas da Cabala especulativa e nove pantáculos assombrosos
simbolizam, segundo o costume dos Mestres, os últimos arcanos. Se
Khunrath se dirige, na prática, à chama da teoria, consegue
controlar, infatigavelmente, a teoria através da experiência
- coisa rara em sua época. Assim, ele reitera, a cada passo: "Theosophice
in oratorio, physicochemice in laboratorio, uti philosophum decet, REM tractavi,
examinavi, trituravi..." Dois opúsculos póstumos de Khunrath
- confessio de Chao Chemicorum e Signatura Magnesiae (Agentoranti, 1649)
- constituem manuais imprescindíveis para todos os estudantes alquimistas.
Sem nos determos no astrólogo Jérôme Cardan (1501-1576),
conhecido por seu notável tratado De Subtilitate(58); - sem falarmos,
lamentavelmente, no douto monge Guillaume Postel (1510-1581), cuja Clavis
absconditorum a constitutione mundi(59), sempre condenada para o "profanum
vulgus", abre a porta da ortodoxia sintética; sem louvarmos,
como conviria, a Basilica Chemica e o Livro de assinaturas(60), em que Oswald
Croll (15..-1609) cria uma esplêndida teoria do mundo, da qual Gaffarel,
o astrólogo de Richelieu, tomará alguns fragmentos para a
sua compilação das Curiosidades Inusitadas - para citar apenas
este - cumpre saudar, aqui, o grande iniciado Knorr de Rosenroth (l636-1689),
a quem a posteridade deve uma coletânea cabalística dificilmente
encontrável em nossos dias, uma obra que se pode qualificar como
inestimável e única no gênero. Interpretação
do Zohar, antologia das obras mais raras e sublimes da Tradição
antiga e luminoso comentário sobre este tesouro doutrinal, a Kabbala
Desnudada (Sulzbach, 1677, e Frankfurt 1684, 3 vol., in-4.? ) forma, juntamente
com a coleção de Pistorius e certos manuscritos hebreus, o
compêndio verdadeiramente clássico da Cabala clavicular.
Em torno dessa época, os adeptos multiplicam-se a tal ponto, que
enumerar todos nos faria ultrapassar os limites a que nos propusemos. Não
mencionaremos nem alquimistas puros - muitos dos quais, entretanto, como
Sendivogius (l566-1646) e Philalèthe (1612-1680), passam por realizadores
da pedra filosofal -, nem os místicos ingleses e alemães que
abundam sobretudo no século XVIII. Retenhamos, no entanto, a título
de memória, os nomes do Presidente Jean d'Espagnet, cujo Enchiridion
phisicae restitutae, traduzido para o francês no ano de 1651 resume,
de forma bem condensada, a filosofia sintética de Hermes; e do sapateiro
de Goerlitz, Jacob Böhme (1575-1625), que foi o mestre póstumo
de Louis Claude de Saint-Martin.
Na primeira edição do presente ensaio fomos injustos para
com Saint-Martin (1743-1803). Nós o julgamos, então, com base
na leitura apressada e muito superficial da obra Dos Erros e da Verdade
(1775), livro de estréia, cansativo e enredado, em que páginas
excelentes são comprometidas por uma intenção de obscuridade
e por ares de mistério, características de que o autor soube,
com o decorrer do tempo, desvencilhar-se. O Quadro Natural (1782) e, sobretudo,
as últimas produções - O Espírito das Coisas
(1800) e o Mistério do Homem-Espírito (1802), em que a influência
de Böhme sobrepõe-se decididamente à influência
menos pura de um primeiro mestre(61), testemunham a iniciação
do marquês de Saint-Martin aos mais altos arcanos tradicionais.
Quase à mesma época, um outro adepto, o ministro genovês
Dutoit-Mambrini, publicava, sob o pseudônimo de Keleph ben Nathan,
um livro em que, certamente, há muitos erros, mas que, só
pelo título e pela data de publicação torna-se merecedor
de respeito e atenção por parte dos pesquisadores curiosos
por assuntos de ocultismo: A Filosofia divina aplicada às luzes natural,
mágica, astral, sobrenatural, celeste e divina; ou às verdades
imutáveis que Deus revelou no tríplice espelho analógico
do universo, do homem e da revelação escrita (1793, 3 vol.
in-8.? ).
Alguns anos antes da grande Revolução, a Europa estivera sulcada
de personagens misteriosos, cujo caráter equívoco acentuamos
em outra parte(62). Referimo-nos a personagens como Saint-Germain, Mesmer
e Cagliostro. Realizador extraordinário, mas de espírito bizarro,
extravagante, confuso tanto quanto erudito e original, Joseph Bálsamo,
conde de Cagliostro, não merece mais do que os outros dois o título
de adepto superior. Nem Lavater, o profeta de Zurique (1741-1801), restaurador
da Fisignomonia e correspondente místico da imperatriz Maria da Rússia,
nem Swedenborg (1688-1772), iluminado freqüentemente genial, porém
fantasioso e temerário, podem apresentar, nesse sentido, pretensões
mais altas.
O mesmo diremos do poeta iniciado Jacques Cazotte (1720-1792). O seu Diabo
Amoroso, em que a paixão é analisada cabalisticamente, basta
para assegurar-lhe a estima e a simpatia, mas não a admiração,
dos adeptos. Bem mais do que por suas obras e mesmo por suas profecias célebres.
Cazotte pertence à história da magia pelas circunstâncias
surpreendentes de seu processo e de sua morte, cujos detalhes apresentamos
no n.? 7 da revista A Iniciação(63).
No limiar do Império, surge a figura enigmática de Delormel,
cujo livro Grande Período (Paris, 1805, in-8.? ), tão notável
no entender de todos, valeu a morte violenta dos perjuros e reveladores.
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