Os
últimos iniciados do velho mundo:
Apolônio de Tiana, Máximo de Éfeso e Juliano.
Eliphas Levy
O sacrifício
de si mesmo pelos outros tem algo de aparentemente tão insensato,
mas tão sublime em realidade, que esse antagonismo que se encontra
entre a razão egoísta e o entusiasmo do devotamento justifica
totalmente o Credo quia absurdum do paradoxal Tertuliano. A fé, como
a antiga Minerva, nasceu armada e se apresenta inicialmente como triunfante.
A própria natureza, a santa e imortal natureza, parecia vencida por
um instante, porque estava superada. No dia em que o homem morreu voluntariamente
para salvar os outros, o sobrenatural foi provado. Então os sábios
deste mundo e os raciocinadores se espantaram; procuraram no Evangelho o
segredo do poder do cristianismo e não o encontraram. Viram apenas
uma compilação mística de parábolas judaicas
e de alegorias egípcias; resolveram opor um livro a esse livro e
um homem a Jesus Cristo, e assim foi escrita a vida de Apolônio de
Tiana. Esse monumento contemporâneo dos Evangelhos não foi
suficientemente estudado: encontram-se aí histórias e símbolos;
a fábula aí obscurece a verdade, mas esta fábula é
sempre uma doutrina apresentada sob o véu da alegoria. É dessa
forma que a viagem de Apolônio à Índia e sua visita
ao rei Hiarchas no país dos Sábios representam todo o dogma
de Hermes e contêm todos os signos convencionados, todo o segredo
dos antigos santuários, isto é, a grande obra da ciência
e da natureza. Os dragões da montanha são os metalóides
ígneos que contêm o mercúrio filosófico; o 41
poço onde se encontram os reservatórios da chuva e do vento
é a adega onde fermenta o fogo eletromagnético alimentado
pelo ar e excitado pela água. O mesmo acontece com outros símbolos.
O rei Hiarchas parece enganar-se quanto ao fabuloso Hiram, do qual Salomão
obtinha os cedros do Líbano e o ouro de Ophir. Notemos que Jesus
não pedia nada aos reis de seu tempo e que quando Herodes o interroga
ele não se dá ao trabalho de responder. Apolônio é
sóbrio; é casto como Jesus e como ele se devota a uma vida
errante e austera. A diferença essencial entre um e outro é
que Apolônio favorecia as superstições e Jesus as destruía.
Apolônio incita a derramar o sangue e Jesus maldiz as obras do gládio.
Uma cidade está afligida pela peste; Apolônio chega, o povo,
que o vê como um taumaturgo, precipita-se em torno dele e o conjura
a fazer cessar o flagelo. A peste que vos aflige, ei-la! exclama o falso
profeta mostrando um velho mendigo. Apedrejai este homem e o contágio
cessará. Sabe-se do que é capaz uma multidão furiosa,
cheia de superstição e de medo. O velho desapareceu sob um
monte de pedras. Filostrato acrescenta que depois desentulharam o lugar
do assassínio e que lá só encontraram o cadáver
de um grande cão negro; e aqui o absurdo não chega a justificar
a atrocidade. Jesus não fazia apedrejar ninguém, nem mesmo
a mulher adúltera; rejeitava os flagelos públicos sobre a
cabeça do pobre Lázaro, que o mau rico repelia de sua porta
e do qual os cães tinham piedade. Para curar a miséria, esta
peste aos olhos dos afortunados, oferecia o paraíso e não
o último suplício. Apolônio aqui não é
senão um miserável feiticeiro, e Jesus é o filho de
Deus. Apolônio tem visões; assiste em espírito a morte
do tirano de Roma e solta gritos de alegria. Coragem! diz ele dirigindo-se
aos assassinos; batei, imolai esse monstro! Jesus não tem uma palavra
de maldição contra Herodes e contra Pilatos e ora mesmo por
eles ao mesmo tempo que por seus algozes, quando diz esta palavra sublime:
Pai, perdoai-lhes; porque não sabem o que fazem! O gênio de
Apolônio é uma brilhante loucura que se revolta e protesta,
o de Jesus é uma razão modesta que aceita e se submete. Com
Apolônio de Tiana o velho mundo parecia ter dito sua última
palavra; mas a Providência, que é boa jogadora, deu-lhe ainda
Juliano, para que ele pudesse, mais uma vez, tomar sua desforra. Juliano
era um filósofo como Apolônio e um imperador como Marco Aurélio.
Mas também era um sofista à maneira de Libânio, e concedia
toda sua confiança a charlatões como Jâmblico e Máximo
de Éfeso. Jamais este espírito inflexível e elevado
pôde compreender os doces mistérios da manjedoura. Juliano
não amava as mulheres e não tinha filhos, era casto menos
por sacrifício que por menosprezo ao prazer; sua rudeza filosófica
o fazia negligenciar até os mais comuns cuidados de limpeza. Ele
confessa, no Misopogon, que seus cabelos e sua barba eram freqüentados
pelos mais sórdidos insetos e o diz quase como se fosse um mérito.
Aqui o César pediculosus torna-se verdadeiramente grotesco. Oh! o
belo queixo de bode! oh! o barbudo mal penteado!, cantavam os habitantes
de Antióquia. Juliano acredita responder exprobando aos cantores
sua debilidade e seus desregramentos. Como se os vícios de uns pudessem
autorizar a imundície de outros. Esse herói sujo, que, apesar
de tudo, havia recebido do cristianismo uma nuance indelével de filantropia,
era, por religião, amante dos sacrifícios e do sangue. Que
vítima foi esse grande filósofo! que açougueiro esse
excelente príncipe! diziam os antepassados de Pasquino. Também
o vemos sempre com as roupas arregaçadas e as mãos repletas
de vísceras fumegantes. Não estávamos mais no tempo
em que os príncipes gregos, cantados por Homero, estrangulavam e
despedaçavam, eles próprios, as vítimas. Juliano não
compreendia nem sua época nem a dignidade de sua classe. Nero pudera
fazer-se histrião porque, segundo a bela expressão de Tácito,
o terror era razão do menosprezo; mas Juliano, bom demais para se
fazer temer, muito desagradável para se fazer amar, não podia
escapar ao ridículo ao exercer as funções repugnantes
dos sacrificadores antigos. Sacrifica-se enfim ele próprio, e o mundo
cristão aplaude. Afirma-se que após sua morte foram abertas
as portas de um pequeno templo que ele havia feito emparedar antes de partir
para sua expedição à Pérsia, e que lá
foi encontrado o cadáver de uma mulher nua pendurada pelos cabelos
e com o ventre aberto. É uma invenção do ódio
ou a revelação de um mistério? Seria essa mulher um
mártir ou uma vítima voluntária? Pendemos para essa
última idéia. Talvez se tenha encontrado uma jovem fanática
que quisera opor seu sacrifício ao do Cristo para a prosperidade
do reino de Juliano e o retorno aos velhos deuses. O imperador fechara os
olhos e só o grande pontífice assistira ao holocausto. O templo
murado, a vítima sangrenta suspensa entre o céu e a terra
como uma prece palpitante, tudo isso parece uma paródia da crucificação.
Sabe-se que numa época bastante próxima da nossa havia moças
que se faziam crucificar assim pelo triunfo do protesto jansenista, e, se
pensarmos nos ritos bárbaros que desonravam a religião de
Juliano, não rejeitaremos imediatamente como uma calúnia póstuma
a história da mulher sangrenta e do templo emparedado. Juliano havia
sido iniciado nos grandes mistérios por Máximo de Éfeso
e acreditava na virtude onipotente do sangue. Com efeito, fora através
de um batismo de sangue que Máximo de Éfeso o havia consagrado
aos antigos deuses. Juliano, conduzido à cripta do templo de Diana,
seminu e com os olhos vendados, recebeu das mãos de Máximo
um cutelo, e uma voz misteriosa lhe ordenou que batesse numa pálida
figura humana que ele podia apenas entrever; a venda foi recolocada nos
olhos do neófito, conduziram sua mão e o fizeram tocar numa
carne quente e viva; nela ele cravou o gládio sagrado, e depois foi
forçado a se prosternar sob a fonte que acabara de abrir. Uma aspersão
quente e nauseabunda o fez estremecer, mas guardou silêncio e recebeu
até o fim a consagração do sangue vertido. Por esse
sangue, dizia Máximo, eu te lavo da impureza do batismo. Tu és
o filho de Mitra e cravaste o gládio no flanco do touro sagrado.
Que a 42 purificação do taurobólio te purifique! Juliano
acabava de sacrificar um homem? não havia ele imolado apenas um touro?
é o que ele próprio então devia ignorar; mas que esses
ritos foram aqueles dos grandes mistérios, disso não poderíamos
duvidar, visto que os encontramos ainda nas tradições do iluminismo
e nos antigos rituais da maçonaria, herdeira, como sabem todos os
eruditos desta especialização, das doturinas e das cerimônias
da antiga iniciação. Segundo o uso dos historiadores antigos,
Ammien Marcellin compôs um belo discurso que coloca na boca de Juliano
agonizante, como se um homem com o fígado atravessado por um dardo
pudesse sonhar em fazer discursos. Aqui achamos melhor acreditar na tradição
cristã do que na história sofística. Ora, eis o que
diz essa tradição: Quando foi retirado o dardo de três
gumes da ferida de Juliano, quando seu sangue corria em abundância
e ele se sentia desfalecer, ele encheu as duas mãos com esse sangue
que perdia e os ergueu em direção ao céu pronunciando
estas misteriosas palavras: Tu venceste, Galileu! Tomam-se essas palavras
por uma blasfêmia, mas não seriam antes uma retratação
tardia? O iniciado do taurobólio compreendia tarde demais que o sacrifício
de si mesmo triunfa sobre o sacrifício dos outros. Ele sentia que
dando seu próprio sangue pelos homens, o Cristo derrogou para sempre
os sacrifícios sangrentos do velho mundo. O soberano pontífice
de Júpiter concedia sua demissão oferecendo ao céu,
por um lado, seu próprio sangue ao invés daquele dos bodes
e dos touros. Sim, ele parecia dizer, tu que por desprezo eu chamava de
Galileu, tu és maior que eu e tu me venceste! Toma, eis meu sangue
que te dou como tu deste o teu. Eu morro e reconheço que tu és
meu mestre! Tu venceste, Galileu! As mãos do infeliz imperador enfraqueceram,
o sangue voltou à sua cabeça, e acredita-se que ele as quis
acenar em direção ao céu. Talvez assim ele se tenha
purificado das máculas do taurobólio e renovado os traços
apagados de seu batismo. Seu ato de arrependimento não foi reconhecido
e deixou pesar o anátema sobre sua memória. Mas ele fora bom
e justo e Deus não deixa perecer para sempre os que amaram e procuraram
o bem, mesmo nas sombras do erro. Com base na fé nos fantasmas evocados
por Máximo de Éfeso Juliano havia acreditado na existência
real de seus deuses, e esses fantasmas eram alucinações do
sangue. Afirma-se que Juliano, esgotado pelos jejuns preparatórios
e morno ainda de seu batismo de sangue, viu passar diante dele todas as
divindades do velho Olimpo. Ele não as viu tais como são representadas
pelos poetas da antigüidade, mas tais como existem na imaginação
desencantada das multidões: velhos, decrépitos, miseráveis
e abandonados. Não eram mais as grandes divindades de Homero, eram
os deuses grotescos de Luciano, tanto é verdade que os pretensos
espíritos que se evocam são miragens ou reflexos de uma imaginação
coletiva. O espiritismo visionário é a fotografia dos sonhos.
As fotografias mentais são, aliás, mais duradouras que as
fotografias solares, porque se as primeiras se apagam podemos renová-las
sempre lançando o espírito nas mesmas aberrações.
Vimos em 93 os últimos iniciados nos grandes mistérios, os
filantropos da escola de Juliano, perseguirem através de uma nuvem
de sangue o fantasma da liberdade. Vimos de alguma forma escapar da tumba
Brutus grotescos e Publícolas sórdidas que juravam pela santa
guilhotina invocando deuses. São Justo sonhava com um mundo governado
por velhos laboriosos e vitoriosos ornados por um cinto branco. Robespierre
fez de si próprio grande pontífice, e, segundo a lei sangrenta
dos antigos mistérios, teve que perecer sob a faca daqueles que havia
iniciado; todos os filósofos e apóstatas como Juliano pereceram,
como ele, desesperados em relação ao futuro. Mas, menos generosos
que ele, talvez menos sinceros, pereceram sem presentear o céu com
a oferenda de seu próprio sangue e sem confessar que mais uma vez
Galileu havia vencido. Eis onde levam os sonhos, eis o que produz a evocação
dos mortos. Se os houvessem deixado dormir em suas tumbas, os Brutus e os
Cassius, se os espectros do areópago e do fórum não
se tivessem erigido nos cérebros excitados desses homens cuja razão
era tão bem representada por uma mulher devassa, não se teriam
lançado aos milhares os filhos da França na goela devoradora
do Moloch revolucionário. Mas as larvas que nos vêm do além-túmulo
são sempre frias e alteradas; os fantasmas pedem sangue, e quando
as cabeças se desorganizam a ponto de criar visões, as mãos
estão bem perto de cometer crimes. - Dai-me flechas!, exclamava Quanctius
Aucler, que um débil hierofante de Ceres vinga a natureza ultrajada!
Trata-se de matar os sacerdotes; mas nosso homem, que a alucinação
revolucionária havia tornado completamente louco, queria matá-los
a golpes de flechas, para dar a seu suplício uma cor mais antiga.
Esse Quanctius Aucler, que se dizia hierofante de Ceres, deixou um livro
curioso intitulado a Treicie, onde pede seriamente a volta do culto a Júpiter,
visto que não seria possível aderir-se ao reino de Saturno.
Mas a Revolução não quis adorar nem Saturno nem Júpiter;
ela própria foi Saturno, e, segundo a sombria profecia de Vergniaud,
ela devorou todos os seus filhos