A
seita estranha conhecida sob o nome de Rosa-Cruz.
Por Stanislas de Guaita
Ouando, perto
do fim do reinado de Henrique IV, o mundo profano ouviu falar pela primeira
vez de uma associação muito fechada de teósofos taumaturgos,
os Rosa-Cruzes já existiam há mais de um século. Derivaram
seu nome de um emblema pantacular, de muita tradição entre
eles. Esse pantáculo é o mesmo que Valentin Andréa
(ou melhor Andréas), o grão-mestre de então, trazia
gravado na pedra de seu anel: uma cruz de São ]oão, cuja áustera
nudez ramificava-se em quatro rosas, desabrochadas em seus ângulos.
Muito se falou que a Ordem não remontava a antes de Valentin Andréas,
mas isso é um erro manifesto. Se para refutá-lo evocarmos
o artigo dos estatutos que ordenava dissimular durante cento e vinte anos
a existência da mística fraternidade, poderíamos considerar
a prova como insuficiente. Melhor seria recorrer a outros argumentos. Bem
antes do ano de 1613, quando apareceu o manifesto dos Rosa-Cruzes, e mesmo
antes de 1604, quando o mundo profano começou a suspeitar de sua
existência, colhemos aqui e ali, vestígios incontestáveis
de sua associação: eles são inúmeros, para quem
sabe ler os escritos dos adeptos da época.
Vejamos alguns exemplos. Todos os arcanos Rosa-Cruzes são representados
em um dos pantáculos do Amphitheatrum saptientiae eternae(122), onde
Khunrath desenhou um Cristo de braços abertos em cruz, em uma rosa
de luz. Ora, o livro de Khunrath traz uma aprovação imperial
com data de 1598. Contudo, é principalmente em Paracelso, falecido
em 1541, que devemos obter as provas decisivas de uma Rosa-Cruz latente
no século XVI. Podemos ler em seu tratado De Mineralibus (tomo II,
pp. 341-350 da edição de Genebra)(123) o anúncio formal
do milagroso acontecimento que deveria confundir o século seguinte.
Diz ele: "Nada existe de octulto que não deva ser descoberto.
É assim que deverá suceder-me um ser prodigioso, que revelará
muitas coisas" (De Mineralibus, 1). Algumas páginas adiante
Paracelso precisa seu pensamento, anunciando certa descoberta: "que
deve permanecer velada até a chegada de ELIAS-ARTISTA" (De Mineralibus,
8).
Elias Artista! Gênio diretor dos Rosa-Cruzes, personificação
simbólica da Ordem, embaixador do Santo Paracleto! Paracelso, o Grande,
prediz tua vinda, ó Sopro Coletivo das generosas reivindicações,
Espírito de liberdade, de ciência e de amor que deve regenerar
o mundo!...
Em outra passagem, Paracelso é mais formal ainda. Abramos sua espantosa
Prognosticatio(124), coletânea de profecias, cuja única edição
traz a data de 1536. O que vemos na figura XXVI? Uma rosa desabrochada numa
coroa, e o místico diagrama (F), emblema da dupla cruz, enxertado
sobre esta rosa. Ora, eis a legenda que se lê embaixo: "A Sibila
profetizou o digamma eólico. Foi também pelo direito, ó
cruz dupla, que foste enxertada sobre a rosa: és o produto do tempo,
obtendo precocemente a maturidade. Tudo o que a Sibila predisse sobre ti
realizar-se-á infalivelmente em ti, motivo pelo qual o verão
produziu suas rosas... Triste época, em verdade, a nossa, onde tudo
se faz sem ordem. Essa desordem é o mais evidente símbolo
da inconstância humana. Mas tu, sempre de acordo contigo mesma, só
produzes frutos estáveis, pois construíste sobre a pedra boa;
e, tal como a montanha de Sião, nada mais poderá abalar-te;
todas as coisas favoráveis chegam a ti como que por um desejo. Tanto
que os homens confundidos dirão que é milagre. Mas o tempo
e a idade propícia trarão essas coisas com eles; quando a
hora soar, será necessário que elas se realizem, e é
por isso que ELE VEM(125)" (versão textual).
Quem deverá vir? Ele, o Espírito radiante do ensinamento integral
dos Rosa-Cruzes: Elias-Artista!
Não teríamos nenhum impedimento para reproduzir, se necessário,
outros textos não menos formais, para provar que Andréas não
foi o fundador da Ordem Rosa-Cruz.
Não nos iremos limitar às lendas Rosa-Cruzes. Não cabe
aqui discutir se a história do fundador Christian Rosenkreutz é
puramente legendária, ou se um fidalgo de carne e osso, nascido na
Alemanha por volta de 1378, conseguiu que o santuário da Cabala lhe
fosse aberto pelos sábios de Damcar (provavelmente Damasco), após
uma longa peregrinação pelas terras do Oriente; e se, de volta
à Alemanha, tendo transmitido a alguns discípulos a provisão
dos arcanos, ele se tornou o eremita do mistério e passou sua longa
velhice no fundo de uma caverna, onde a morte o esqueceu até 1484.
Durante três séculos as controvérsias sobre esse ponto
não conduziram a nenhuma conclusão positiva; não temos
a mínima vocação para encher páginas fúteis,
para acrescentá-las às antigas...
Essa gruta, sepulcro de Rosenkreutz, só foi descoberta em 1684, ou
seja, cento e vinte anos após a morte do mago, conforme a estranha
profecia que se pode ler na parede de rocha: "Serei descoberto após
cento e vinte anos", - profecia que nos interessa pouco no momento.
Todas essas lendas têm seu interesse, sem dúvida nenhuma, assim
como possuem sua razão de ser do ponto de vista cabalístico.
O mesmo se pode dizer das mil e uma maravilhas que os herdeiros espirituais
de Rosenkreutz - segundo se afirma - teriam descoberto a partir da meditação
sobre os mistérios. As latitudes de um campo mais vasto seriam necessárias,
em todo o caso, para efetuar esse inventário e revelar o significado
preciso e profundo desses símbolos múltiplos; talvez algum
dia nos lancemos nessa tarefa.
O que nos é lícito afirmar desde já é que a
Rosa-Cruz, cujos emblemas constitutivos nos conduzem aos poemas de Dante
e de Guillaume de Lorris, durante muito tempo funcionou veladamente, antes
de manifestar-se publicamente através de obras.
Hoje, quantos falsos magos ousam levar a mistificação ao ponto
de cobrir com o rótulo ultramontano a Rosa-Cruz (restituída
desde então, dizem eles, à pureza de sua gloriosa origem)(126).
Pode parecer interessante transcrever duas frases do Manifesto(127) da Ordem,
publicado pelo Grão-Mestre em 1615. Os irmãos aí proclamam,
diz o contemporâneo Naudé(128): Que por seu intermédio,
o tríplice diadema do Papa será reduzido a pó;
Que eles confessam livremente, e publicam sem nenhum medo de serem castigados,
que o papa é o Anticristo.
Três linhas adiante, eles manifestam o desejo de que se retorne à
simplicidade dogmática e rítualista da Igreja primitiva. Sem
dúvida, essas frases, como todas as outras de seu Manifesto, são
intencionalmente exaltadas, notoriamente impelidas ao maravilhoso, às
vezes absurdas. Inúmeros prodígios são aí anunciados,
sendo que vários, tomados ao pé da letra (que mata, dizia
São Paulo), chocam-se contra a impossibilidade física. Mas
sob essa forma paradoxal, esses engenhosos teósofos tiveram o cuidado
de ocultar aos olhos dos tolos e de designar à sagacidade dos sábios
as mais preciosas luzes do ocultismo tradicional.
Assim, jamais os Rosa-Cruzes renegaram o catolicismo na significação
esplêndida de sua verdadeira etimologia, reveladora de um esoterismo
superior; foram inspirados demais pelo Espírito que vivifica, para
jamais atentarem contra a hierarquia gnóstica. Eles (tão ligados
aos símbolos cristãos, denominavam Capela do Espírito
Santo seu colégio supremo e Liberdade do Evangelho um de seus mais
ocultos manuais) não se furtavam a ver no Santo Padre o princípio
encarnado da unidade viva, e no papado espiritual a pedra angular do templo-síntese
onde oficiarão um dia os pontífices professadores da Religião-Sabedoria
universal. Bem mais, muitos dos Irmãos, nascidos no protestantismo,
proclamavam-se católicos de viva voz, a exemplo de seu ilustre patrono
Khunrath, de Leipzig.
Lembremos, ainda, que Valentin Andréas foi o instigador, em 1620,
de uma Fraternidade Cristã, que se fundiu, mais tarde, à Fraternidade-Mãe
dos Rosa-Cruzes.
Mas o abuso do papado temporal fazia com que eles fossem implacáveis
e criticassem as ações ridículas, difamassem as intrigas,
sem tréguas e sem piedade.
O verbo anticlerical dos Rosa-Cruzes clamava tão intensamente por
toda a Europa, nos primeiros lustros do século XVII, que se acreditou
tratar-se de uma associação secreta de huguenotes fanatizados;
ledo engano. Anticlerical jamais significou anticatólico ou anticristão;
confundir seria um erro. No papa, os Rosa-Cruzes distinguiam duas potências,
encarnadas em uma só carne: Jesus e César. Quando qualificavam
o sucessor de Pedro de anticristo, eles ameaçavam destruir sua tríplice
coroa, mas não visavam senão o déspota temporal do
Vaticano.
Seu sistema era, em suma, exaltar ao máximo as fórmulas até
o paradoxo, falsear as obras até o milagre. Tinham tomado emprestado
esse método a seus antigos mestres, os Cabalistas. Davam às
alegorias um estilo tão inverossímil, que somente os imbecis
se atinham sentido aparente, e os demais adivinham no primeiro contato o
valor íntimo de um sentido oculto - era, de fato, um método
inteligente. Foi assim que pregaram cartazes em Paris, no ano de 1622, contendo
as proclamações seguintes, próprias convenhamos a intrigar
os espíritos sutis e a distanciar as mentes parvas:
PRIMEIRO CARTAZ: "Nós, deputados do Colégio principal
dos Irmãos da Rosa-Cruz, estamos visível e invisivelmente
nesta cidade, pela graça do Altíssimo, em direção
do qual se volta o coração dos justos. Mostramos e ensinamos
sem limitações, podemos falar toda a espécie de língua
dos países onde desejamos permanecer, para livrar os homens, nossos
semelhantes, do erro e da morte."
SEGUNDO CARTAZ: "Se alguém deseja nos ver por simples curiosidade,
não se comunicará jamais conosco; mas se a vontade o conduz
realmente e de fato a inscrever-se nos registros de nossa fraternidade,
nós que lemos os pensamentos o faremos ver a veracidade de nossas
promessas; é por isso que não revelamos nosso endereço,
pois os pensamentos, refletindo a vontade real do leitor, serão capazes
de nos fazer conhecer a ele e ele a nós."
Não surpreenderemos os estudiosos, mesmo pouco avançados,
do ocultismo, se protestarmos aqui que o anúncio dessas prerrogativas
que os Irmãos exibiam, secretamente, sob a aparência de uma
loucura incurável, ocultam significações da mais perfeita
sabedoria. A última das pretensões das quais eles se vangloriavam,
aquela que se julgará talvez a mais exorbitante, é precisamente
a única que se poderá interpretar ao pé da letra. Ela
lembra a condição expressa da admissão ao mais alto
grau de uma fraternidade muito fechada e pouco conhecida, no areópago
supremo da qual o postulante é obrigado a apresentar-se em corpo
astral...
Os Irmãos iluminados da Rosa-Cruz eram obrigados, por juramento,
a praticar a medicina oculta por onde quer que passassem, sem jamais receber
remuneração alguma, sob nenhum pretexto. Psicurgia, Mestria
Vital, Hermetismo, Teurgia e Cabala não tinham nenhum segredo para
os mais avançados.
Um artigo de sua profissão de fé obrigava-os a "acreditar
firmemente que, caso sua associação fracassasse, ela entraria
num processo de regressão, voltando ao sepulcro de seu primeiro fundador".
Isso quer dizer que se acontecer que um dos Irmãos se comprometa
no mundo, a Ordem que eles terão manifestado imperfeitamente em atos
voltará a seu potencial; de seu estado de abertura, ela voltará
a ser oculta...
Assim como nenhum homem é perfeito, nenhuma sociedade é indefectível.
A Ordem enfraqueceu e, por volta de 1630, entrou pelo menos como associação
regular - nas trevas ocultas de onde saíra vinte anos antes(129).
Só alguns Rosa-Cruzes manifestavam-se esporadicamente. A unidade
coletiva pareceu adormecer por longo tempo no silêncio da gruta, de
onde a fizeram sair novamente em 1888.
Os homens estão sujeitos ao erro, à malícia, à
cegueira, e os Rosa-Cruzes são homens; entretanto, não se
podem computar suas faltas ao abstrato da Ordem. Elias-Artista é
infalível, imortal, e além disso, inacessível tanto
às imperfeições como às manchas e às
ridicularizações dos homens de carne que desejam manifestá-lo.
Espírito de luz e de progresso, ele se encarna nos seres de boa vontade
que O evocam. Se estes porventura tropeçarem no caminho, Elias-Artista
os abandonará.
Fazer esse Verbo Superior mentir é impossível, mesmo que se
possa mentir em Seu nome. Pois cedo ou tarde Ele encontra um órgão
digno Dele (nem que seja por um minuto), uma boca fiel e leal (nem que seja
para pronunciar uma só palavra). Por esse órgão de
eleição, ou por esses lábios de encontro - que importa?
- Sua voz se faz ouvir, poderosa e vibrante da autoridade serena e decisiva
que dá ao verbo humano a inspiração do Alto. Assim
são desmentidos na terra aqueles que Sua justiça havia condenado
abstratamente.
Evitemos falsear o espírito tradicional da Ordem; sendo reprovados
no Alto, no mesmo instante, cedo ou tarde seríamos renegados aqui
embaixo pelo misterioso demiurgo que a Ordem saúda por esse nome:
Elias-Artista!
Ele não é a Luz, mas, como São João Batista.
Sua missão é dar o testemunho da Luz de Glória, que
deve irradiar de um novo céu sobre uma terra rejuvenescido. Que Ele
se manifeste por conselhos de força e que Ele desobstrua a pirâmide
das santas tradições, desfigurada pelas camadas heteróclitas
de detritos e de caliças que vinte séculos acumularam sobre
ela. E que enfim, por Ele, as sendas sejam abertas para receber o Cristo
glorioso, no ninho maior do qual se dissipará - estando Sua obra
concluída - o precursor dos tempos futuros, a expressão humana
do Santo Paracleto, o gênio da Ciência e da Liberdade, da Sabedoria
e da Justiça integral: Elias-Artista.
3. Bringaret...
Bringaret, provavelmente Jean Bringern, o autor da versão alemã
do Manifesto de Andréas, impresso em Frankfurt em 1615, juntamente
com uma tradução da Confissão de Fé dos Irmãos
da Rosa-Cruz (Veja Gabriel Naudé, Instruction à Ia France,
p. 31).
Esses quadros eram todos da lavra do proprietário
O leitor atento de Zanoni não poderá deixar de pensar nesse
momento no pintor Clarence Glyndon, um dos personagens que surgem em primeiro
plano nesta grande obra esotérica. Glyndon é o aspirante excluído
do adeptado, não pelo vício de incapacidade mental ou de fraqueza
de alma, mas ao contrário, pelo orgulho e pela temeridade que o induziram
a desobedecer as ordens peremptórias de Mejnour, o Mago.
O neófito dos mistérios só quis tributar à sua
audácia a coroa da eleição; o hierofante estando ausente,
tentou conquistar de assalto as prerrogativas do Sanctum Regnum, desafiando
o Guardião do Umbral... Mejnour vai puní-lo fechando-lhe para
sempre a porta do santuário, pois o fracasso é definitivo
e a suprema prova não se tenta duas vezes. Mas não deixa de
estabelecer-se uma comunicação entre o visível e o
invisível; o véu que separava Glyndon do mundo astral é
rompido. Regressando à vida cotidiana, o pintor debater-se-á
entre as duas influências adversas, fasta e nefasta, que disputarão
o seu ser, isto é, a virtude vivificadora do elixir e a obsessão
do fantasma.
Liberado finalmente por Zanoni, que o ressuscita para a vida ativa e serena
de antes da prova, seu longo martírio vai parecer-lhe a reminiscência
de um pesadelo e o ensinamento substancial adquirido na escola dos dois
caldeus subsiste apenas ao naufrágio das ilusões perdidas,
fazendo do velho Glyndon um iniciado especulativo, um amador apaixonado
das ciências ocultas...
Qualquer que seja a parcela de ficção inserida na possível
realidade dos fatos revelados neste prefácio, não há
dúvida de que Bulwer não quer dar a entender que Glyndon e
o velho cavalheiro encontrado na livraria excêntrica são o
mesmo personagem. Inúmeros detalhes não permitem duvidar disso
e a sagacidade do leitor os distinguirá sem muitas dificuldades.
...A mais extensa distinção entre o Realismo e a Verdade.
O realismo dá um colorido servil às coisas, tais como os sentidos
fornecem sua noção no mundo físico; a verdadeira arte,
comparando esta noção dada pelos sentidos com o ideal dessas
mesmas coisas intuitivamente pressentido, reergue e corrige os objetos segundo
o modelo de seu arquétipo. E se o Real pode ser concebido sob a aparência
que nos é sensivelmente proposta, o Verdadeiro só se concebe
compreendido na revelação das Essências e das formas
puras; é através de tais indícios que nos cabe definir
a realidade como aquilo que é, no sentido dos positivistas (ou, melhor,
daquilo que parece ser), e a verdade como aquilo que deveria ser (ou melhor,
o que virtualmente por direito concebido, mas que não existe fisicamente
de maneira palpável).
...pagou com sua vida pela maliciosa sátira...
Villars (abade de Montfaucon de) nasceu perto de Toulon, em 1635, e morreu
em 1673, em circunstâncias misteriosas. Seus contemporâneos
acreditaram tratar-se de uma vingança oculta. No ano de 1670, o abade
de Villars publicou sob o título O Conde de Gabalis, ou diálogos
sobre as Ciências Ocultas, um panfleto bastante estranho, aliás
agradavelmente escrito, onde zombava do simbolismo dos RosaCruzes, com interpretações
ao pé da letra; mas isso em estilo bastante equívoco e de
maneira a fazer crer, que, por ser um fervoroso adepto da Alta Ciência,
ele só zombava pela forma, e da boca para fora. Por outro lado, não
se ignorava que ele se fizera iniciar outrora nos mistérios dessa
Ordem Cabalística, e ele próprio deixara entender, com um
tom meio brincalhão e ansioso, a vários íntimos seus
que, convidado a comparecer diante de uma espécie de Corte Vêmica,
sob a acusação de ter profanado os arcanos, não quis
obedecer; mas, à revelia, os irmãos o tinham condenado à
morte como costumavam fazer com os reveladores e traidores... Entretanto,
ele tinha ainda recebido um prazo para opor-se à sentença...
Os amigos do abade acreditaram tratar-se de uma mistificação
em estilo gracejador. Mas a lembrança de todos esses fatos lhes veio
à memória quando o planfletário espiritual foi raptado
e assassinado na estrada que conduz a Lyon (1673).
...Salamandra ou Silfo!... o senhor também cai no erro comum...
Sob a graciosa alegoria do casamento dos Rosa-Cruzes com as Salamandras,
os Silfos e outros Espíritos dos elementos, esses adeptos da Escola
de Paracelso simbolizavam o poder que o homem pode conquistar sobre as forças
semiconscientes da Natureza.
O Leitor não ignora que, seguindo essas tradições ao
pé da letra, as Salamandras habitam a região do Fogo; as Ondinas,
a da Água; os Silfos povoam a imensidão dos ares, e os Gnomos
as cavernas do mundo subterrâneo. A antigüidade pagã multiplicava
ainda mais as raças demiúrgicas, ou dos deuses inferiores.
Cada povo inventava nomes para designá-los; não havia fonte
que não se glorificasse de alguma ninfa tutelar, não havia
floresta onde não se reverenciassem faunos, sátiros e silvanos,
etc...
8. ...Imortais obras-primas de Apolônio.
9. ...Nesse caso, o senhor jamais sonhou.
Apolônio (de Tiana), veja à página 11.
Esta resposta do velho iniciado é plena de profundidade. Sabe-se
que, durante o sono, o homem interno abandona seu despojo material para
banhar seu corpo luminoso fatigado e retomar sua vitalidade esgotada no
Oceano fluídico universal. Ele pode assim transportar-se a distâncias
imensas (veja nossas Notas sobre o Êxtase, pp. 57 a 61) e discernir
as coisas exteriores a ele, nos planos físico e astral, por intermédio
dos órgãos de percepção de seu corpo astral,
ou mediador plástico. Mas, por mais que o ser astral se distancie
de seu invólucro material, permanece unido a ele por uma cadeia simpática
de tal eficácia, que à mínima sensação
anormal percebida por intermédio desse cordão fluídico
o homem interno é bruscamente trazido a seu corpo exterior, no qual
se reintegra imediatamente, ocasionando o despertar. Em certos casos, felizmente
bastante raros, onde o choque foi extremamente intenso, o cordão
pode romper-se, o que ocasiona a morte imediata. Por isso, é perigoso
despertar de sobressalto as pessoas que sonham.
O próprio sonho não é outra coisa senão a percepção
mais ou menos confusa dos reflexos e dos fenômenos do mundo astral,
cujas lembranças bastante vagas só se coordenam imperfeitamente
no estado de vigília.
Os iniciados sabem em que condições hiperfísicas o
corpo astral, assim expulso de sua efígie carnal, pelo sono ou pelo
êxtase, pode condensar-se, tornar-se objetivo ao ponto de ser visto
e tocado, mesmo a distâncias enormes do local onde o corpo material
jaz imóvel e, geralmente, em catalepsia. A história fornece-nos
vários exemplos desse fenômeno, em casos em que ele pode ser
bem verificado.
"Nada no mundo, diz Eliphas, "é melhor atestado e mais
incontestavelmente provado do que a presença visível e real
do pe. Alphonse de Liguori ao lado do papa agonizante, enquanto que o mesmo
personagem era visto em sua casa, a uma grande distância de Roma,
orando e em êxtase. A presença do missionário François
Xavier em vários locais ao mesmo tempo não foi constatada
com menor rigor(130). Ver, ainda, o livro de Gurney, Meyers e Podmore, Phanstams
of the living (3 vol. in-8°), ou o resumo francês dessa grande
obra, efetuada por M.L.Marillier, sob um título menos explícito
e significativo: As alucinações telepáticas (Les Hallucinations
télépathiques Paris, 1891, in-8.°).
Esta fase de aparição à distância de um ser vivo,
cujo corpo jaz adormecido no mesmo instante longe do lugar onde se produz
o fenômeno, tem o nome de desdobramento.
10. ...Testemunho ocular da Revolução Francesa...
É inútil sublinhar aqui esse traço revelador, entre
outros, da identidade que, segundo entendemos, se impõe entre Clarence
Glyndon da narrativa e o old gentleman do Prefácio.
...Platão assinala quatro tipos de Êxtase...
Cornélio Agrippa faz, no terceiro volume de Filosofia Oculta, um
comentário extenso dessa classificação quaternária,
advinda de Platão e dos Alexandrinos (Capítulos XLVI-XLIX).
Depois de ter definido o Êxtase (iluminação da alma
pelos deuses ou gênios) - uma alienação do homem animal
sensual e, ainda, uma amarra que mantém cativo esse carcereiro da
alma, de modo que ela se solta da prisão que não está
mais guardada e, livre, sob os influxos divinos, envolve todas as coisas
e prevê o futuro -, Agrippa detalha quatro tipos de furores ou êxtases,
que distingue pela diversidade de suas origens: o primeiro procede das MUSAS
(êxtase Musical), o segundo de DIONISO (Êxtase Místico),
o terceiro de APOLO (Êxtase Sibilino), o quarto, enfim, de VÊNUS
(Êxtase de Amor).
O primeiro furor, segundo o discípulo de Tritemo, imanta a inteligência,
tornando-a divina e apta a atrair as influências superiores, pelas
virtudes das coisas naturais(131). As musas nada mais são do que
as almas das esferas celestes que dirigem hierarquicamente as qualidades
atrativas das coisas materiais, com relação ao que se encontra
no Alto. A Lua rege as plantas, as pedras e os metais; Mercúrio,
aquilo que provém da natureza animal e principalmente o que se refere
ao beber e ao comer; Vênus rege os perfumes, ungüentos, exalações
e fumigações; o Sol preside à voz, às palavras,
à música, à harmonia; Marte, às paixões
veementes, às afecções da alma, ao ímpeto da
imaginação; Júpiter governa o que se refere à
razão; Saturno rege tudo o que se refere à inteligência
e ao espírito puro - eis o que concerne às sete esferas dos
planetas. Restam a oitava esfera (aquela das Estrelas Fixas), que exerce
influência sobre a astrologia e seus instrumentos e a nona, enfim
(aquela do Primeiro Móbil), que exerce sua influência sobre
o que se refere à analogia e ao símbolo: números, figuras,
pantáculos, efígies de divindades, etc. Tal é, segundo
Agrippa, o governo cósmico das nove Musas, e suas correspondências...
O segundo furor, emanado de DIONISO, obtém-se pelas cerimônias
exteriores do culto: exorcismos, sacramentos, solenidades, práticas
e pompas religiosas, etc. Sublimando a alma na região espiritual,
que é a parte mais elevada, o Êxtase de Dioniso faz desta alma
um templo purificado, digno de ser visitado pelos deuses. Desde então,
os deuses vêm morar nele e o enchem de oráculos, numa efusão
de alegria divina e de inefável sabedoria. Eles não se manifestam
por sinais ou prognósticos, mas diretamente, acionando o espírito
ou ainda, às vezes, por visões claras ou por vozes articuladas.
Um exemplo, entre vários, é o demônio de Sócrates.
O terceiro furor provém de APOLO, que é o Espírito
Universal, a alma inteligente do mundo. Se o furor de Dioniso é fundamentado
por pompas exteriores do culto, o de Apolo obtém-se pelos mistérios
sagrados, as adorações, as invocações, a virtude
dos objetos consagrados e as práticas da Magia. É o Espírito
de profecia que repentinamente desce sobre um mortal e o invade inteiramente.
O mais ignorante, purificado sobre o todo poderoso amplexo de Deus, vaticina
os oráculos da suprema sabedoria. Exemplo: os Sibilas.
O quarto juror, enviado por VÊNUS, o furor do amor, identifica a alma
humana com a natureza divina e a assimila às potências empíreas.
Deve-se ver aí a reintegração propriamente dita: um
contato essencial, uma fusão temporária da alma humana transfigurada
com a divindade transfigurante, que lhe infunde a Sabedoria em um abraço
sublime, transpondo os limites do Entendimento. É por isso que Orfeu
considerou o Amor cego como superior ao entendimento humano(132), acrescenta
Agrippa.
Esses comentários distintivos são excelentes(133). Mas nada
impede que o texto platônico tenha outra interpretação,
uma vez que o sentido dos apotegmas é múltiplo em Magia, bem
como o sentido dos próprios símbolos. Assim, o Êxtase
enviado pelas Musas (inspiradoras das inteligências e reitoras das
esferas) pode ser entendido igualmente como a iluminação espontânea,
que favorece os homens de gênio: seja aguilhão fulgurante do
pensamento, ou chama criadora da arte. Lá jaz o arcano de uma apoteose
semiconsciente da natureza adâmica, ilustrada por intervalos, e depois
obscurecida.
Traduziremos ainda Êxtase Musical no sentido estrito da palavra? Leitor
de Zanoni, nós o podemos, em memória do papel preponderante(134)
reservado por Bulwer Lytton ao pai da jovem, esse bizarro e genial maestro
Pisani. Viola, nascida de um sonho, caminhará no sonho, protegida
do mundo exterior por uma muralha de melodia. Silfos e Salamandras, de asas
vibrantes e musicais, transparecem em rivalidade na atmosfera encantada
engendrada pelos acordes do violino. É toda uma teurgia evocatória
em volta do berço da criança; o milagroso ambiente torna-a
predestinada a encontrar o mago, do qual ela se tornará a fatal delícia
e o inocente flagelo. Podem-se ler, já, as fatalidades de sua vida
futura, virtualmente incluída nas ondas sonoras do violino paterno.
Os músicos mais importantes de hoje sabem o que é a Música,
concebida em sua essência e potencialidades? Eles vêem nela
apenas uma arte divina, mas só uma arte. "Ora, o que fazia da
Música uma ciência tão importante para os antigos era
a faculdade que nela haviam reconhecido de poder facilmente servir de meio
de passagem do físico ao intelectual; de forma que, como transportavam
de uma natureza para outra as idéias que ela fornecia, acreditavam-se
autorizados a atingir, por analogia, o Desconhecido partindo do conhecido.
A Música então, era, entre suas mãos uma espécie
de medida proporcional que eles aplicavam às essências espirituais"
(Fabre d'Olivet, História Filosófica do Gênero Humano,
1, p. 264). Esta simples citação deve bastar. É suficiente
para entrever a que nível a Música pode, sozinha, servir de
base a uma categoria de iluminação celeste: aquela correspondente
ao Êxtase Musical, cuja significação pode ser interpretada
textualmente.