A
sublime origem do homem
Extrato do Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus,
o Homem e o Universo
Louis-Claude de Saint-Martin
A sublime origem do homem, sua queda, o horror da privação
atual, a necessidade indispensável de que Agentes invisíveis
trouxessem socorros superiores à Terra e empregassem meios sensíveis
para tornar eficazes as virtudes, eis tantas outras verdade gravadas de
tal forma no homem que todos os povos do Universo as celebraram, deixando-nos
tradições que as confirmam. Todas as narrativas históricas,
alegóricas e fabulosas encerradas nessas tradições
falam do primeiro estado do homem na sua pureza, dos crimes e da punição
do homem culpado e degradado. Expõem com igual evidência os
favores das Divindades para com ele a fim de minorar-lhe os males e libertá-lo
das trevas. Não bastou a deificação dos homens virtuosos
que deram aos semelhantes os exemplos de justiça e benignidade e
que com suas ações reproduziram alguns vestígios de
nossa primeira lei. Não se receou fazer as próprias Divindades
descer à Terra para levarem ao homem os socorros superiores que não
podiam ser dados a conhecer pelos Heróis mortais e para exortá-lo
a tornar-se semelhante a elas, como o único meio de ser feliz. Ao
mesmo tempo, aqueles que tiveram o cuidado de nos transmitir tais narrativas
são acordes em representar as Divindades benignas sob formas sensíveis
e análogas à região em que habitamos, porque sem isso
seus socorros teriam ficado, de algum modo, perdidos para os seres corporificados
da forma tão grosseira como nós. E em todas as Nações
os socorros das Divindades benignas foram celebrados através de cultos.
Quem ousaria mesmo garantir que todas as leis, usos, convenções
sociais, civis, políticas, militares e religiosas que vemos estabelecidas
na Terra não sejam vestígios claros das instituições
primitivas? Que não sejam emanações, alterações
ou degradações das primeiras dádivas feitas ao homem
após a queda para trazê-lo de volta ao Princípio? É
preciso não esquecer que os homens tudo podem alterar e tudo corromper,
mas que nada podem inventar. Teríamos, pois, diante dos olhos, um
meio a mais para ler e reconhecer em todas as obras do homem a lei que lhe
diz respeito e à qual ele devia ligar-se, visto que, apesar das diferenças
infinitas na forma das instituições humanas em todos os lugares
da Terra, todas têm o mesmo alvo, o mesmo objetivo, sendo esse alvo
manifesto em tudo o que o envolve. Entretanto, é preciso admitir
que as tradições alegóricas e fabulosas, à força
de quererem tornar os Deuses semelhantes ao homem, com freqüência
conferiram-lhes suas paixões e vícios; fizeram-nos agir como
os seres mais corrompidos e, aviltando-os assim aos nossos olhos, acabaram
perdendo todos os direitos à nossa crença. Mas não
devemos sentir que, se a Mitologia se manifesta sob aparências ridículas,
tais como os furores, o ciúme e o ardor dos sentidos - que parece
ser quase o único móvel dos Deuses e Heróis - é
que, por ser um quadro universal, ela dever expor os males e os bens, a
ordem e a desordem, os vícios e as virtudes que circulam na esfera
do homem. Além disso, as interpretações errôneas
das palavras e a ignorância de seu verdadeiro significado conferiram
às narrativas simbólicas uma multidão de sentidos ambíguos
e forçados que não possuíam na origem, quando representavam
objetos tão regulares, elevados e respeitáveis quanto hoje
esses símbolos nos parecem imperfeitos, ridículos e merecedores
de desprezo. É dessa maneira que podemos explicar em parte as contradições
apresentadas pela Mitologia. A ignorância do verdadeiro sentido dos
nomes levou a atribuir ao mesmo Ser, a um Herói, a uma Divindade,
feitos e ações que pertenciam a seres diferentes. Não
devemos, pois, ficar surpresos se virmos o mesmo personagem mostrar em suas
ações ora o orgulho e a ambição dos seres mais
culpados, ora o mais vergonhoso excesso de libertinagem, ora as virtudes
dos Heróis e dos Deuses. Não devemos espantar-nos se virmos
o Júpiter mestre do Céu, Chefe dos Deuses terrestres, seus
irmãos, e o Júpiter entregue às paixões mais
viciosas; se virmos Saturno ao mesmo tempo como Pai dos Deuses e devorando
seus filhos; e se virmos a Vênus Urânia e a Vênus Deusa
da prostituição. Assim, embora encontremos todos os feitos
e tipos reunidos na Mitologia, embora ela apresente, sob o mesmo nome, vários
quadros opostos, a inteligência deve discernir-lhes as cores e os
verdadeiros objetos. Ainda assim, eu mostraria agora mesmo um ponto de vista
claro sobre esse objeto importante, com o qual descobriríamos soluções
satisfatórias, porque nele veríamos que é do próprio
homem que sai a verdadeira fonte de todas as Mitologias. Não é
preciso procurar fora dele a origem natural dos fatos submetidos às
suas especulações. Se refletíssemos sobre a universalidade
das opiniões dos Povos com relação às manifestações
visíveis das Potências divinas, sobre as provas apresentadas
de que elas são necessárias ao cumprimento dos Decretos supremos
e sobre os vestígios que nos restam de quaisquer instituições
estabelecidas na Terra, ficaríamos bem dispostos a crer que tais
manifestações realmente ocorreram entre os homens. Confirmaremos
essa idéia se considerarmos que se encontram tradições
parecidas entre os Povos separados de nosso continente por distâncias
consideráveis e mares imensos, entre as Nações que
respiraram o mesmo ar que nós e que usufruíram do mesmo sol
durante muitos séculos, sem nos conhecerem e sem serem por nós
conhecidas. Os diversos Povos da América tinham idéias uniformes
sobre a criação do Universo e sobre o número que lhe
dirigiu a origem. Admitiam, como os povos Antigos, uma multidão de
Deuses benignos e malignos a preenchê-lo e aos quais ofereciam numerosas
vítimas em sacrifício. Concordavam com todos os Povos sobre
a perfeição de um estado anterior do homem, sua degradação
e o destino futuro dos bons e dos maus. Tinham Templos, Sacerdotes, Altares
e um fogo sagrado mantido por Vestais submetidas a leis severas, como entre
os Romanos. Os peruanos tiveram chefes visíveis, que, como Orfeu,
diziam-se filhos do Sol, ganhando as homenagens de suas regiões.
Tinham um ídolo cujo nome, segundo os Intérpretes, significa
três em um. Os mexicanos tinham um ídolo que consideravam como
um Deus que tomara um corpo em favor da Nação. Talvez bastasse
mudar os nomes para encontrarmos nesses povos a mesma teogonia e tradições
que existem desde a mais remota antigüidade no Velho Mundo. Se a persuasão
das manifestações visíveis das potências divinas
e de suas necessidades não fosse no homem um sentimento essencial
e análogo à sua própria natureza, essas opiniões
seriam transmitidas apenas pela tradição, progressivamente.
Não teriam existido entre esses Povos se eles jamais se houvessem
ligado a nós por algum elo, ou teriam sido apagadas da lembrança
deles com o correr do tempo, já que as tínhamos compartilhado
com eles em tempos tão primitivos, depois de nossa separação.
Com essa alternativa não pretendemos fortalecer as incertezas e desconfianças
que posam ter reinado sobre a diversidade de origem de todos esses Povos.
Hoje não há mais dúvida de que o norte da Ásia
se comunica estreitamente com o norte da América, de que o estreito
que separa esses continentes não esteja repleto de Ilhas que lhes
tornam mais fácil a comunicação, enfim - de que seus
habitantes não comerciem juntos e até mesmo de que no norte
da Ásia não haja Povoamentos americanos. Independentemente
dessa via de comunicação entre os dois continentes, é
preciso crer que, no intervalo transcorrido desde os primeiros séculos,
vários Navegadores, do Oriente ou do Ocidente, foram lançados
a essas praias desconhecidas, onde, criando povoamentos diferentes em diversos
lugares, lhes terão transmitido os vícios e as virtudes, a
ignorância e as luzes que traziam. 17 1782. (N.T.) Se considerarmos
a diversidade das Nações que habitavam a América, a
variedade extrema de seus costumes, usos, línguas e mesmo de suas
faculdades físicas; se considerarmos que a maior parte dessas Nações
ou famílias eram desconhecidas umas das outras, sem mostrarem indício
algum de um dia ter havido relações entre elas, demonstraremos
sem dificuldade que devem a existência a vários náufragos
ou a emigrações do antigo continente, tendo seus antepassados
sido atirados a essas costas em épocas diversas e em séculos
distantes. Sem nos determos por mais tempo nessa questão, e seja
qual for a maneira pela qual esse povoamento aconteceu, não podemos
deixar de reconhecer uma unidade de origem primitiva nos Povos cujas distintas
espécies podem procriar conosco e cujos frutos, provenientes dessas
alianças, procriam por sua vez; nos Povos onde descobrimos os vestígios
das verdades que já afirmamos sobre a necessidade da manifestação
das faculdades e potências do Ser divino no Universo e perante os
homens, e nos Povos totalmente semelhantes a nós por sua natureza,
suas idéias fundamentais e tradições. Digamos mais:
mesmo que sua origem primitiva não fosse comum à nossa, assemelhando-se
eles a nós, devem participar nas mesmas vantagens. Se são
homens, se como nós estão privados e necessitados do Ser superior
e universal que os formou, esse Ser une-se a eles como a todas as suas outras
criações. Assim, mesmo que jamais tivessem tido comunicação
alguma com nosso continente, o Ser sempre poderia ter feito chegar a eles
as provas e manifestações de seu amor e de sua sabedoria.
Quanto à antigüidade dos tempos em que as manifestações
das Virtudes superiores começaram a operar entre os homens, as tradições
da maior parte dos Povos antigos nos oferecem ainda índices mais
seguros. A origem dos Povos está quase sempre envolvida num véu
maravilhoso e sagrado. Quase todos se dizem protegidos por alguma Divindade
que lhes presidiu ao nascimento, e até mesmo descendentes dela, que
os estabeleceu e os sustém por um poder invisível. Isso não
nos mostra que há muito tempo o olho da Sabedoria vela sobre o homem
apesar de seu crime? Não nos diz que, desde o instante em que o homem
se tornou culpado e infeliz, a luz apressou-se a vir-lhe ao encontro repartindo-se,
por assim dizer, a fim de ficar ao seu alcance e não deixando, desde
então, de espalhar os mesmos benefícios em toda a sua posteridade?
A partir das tradições, não seria tão fácil
determinar o número de atos solenes de manifestação
feitas pelas Potências divinas entre os homens desde essa primeira
época. Não estando de acordo neste ponto, as doutrinas antigas,
fazem surgir dúvidas sobre a maior parte dos Agentes que nos apresentam,
de modo que ficamos reduzidos a pensar que possa haver algumas doutrinas
cuja memória a tradição não nos tenha transmitido
e que vários daqueles que elas declaram como verdadeiros Agentes
da faculdades supremas jamais existiram, ou não passaram, talvez,
de impostores. Certamente as observações bem atentas e fundadas
sobre o conhecimento das verdadeiras leis dos Seres poderiam servir-nos
de guia para numerar essas manifestações e calcular-lhes as
épocas. Segundo as noções mais naturais, devem ser
iguais e relativas ao número das faculdades e virtudes abandonadas
pelo homem, ou seja: análogas à verdadeira natureza do homem,
cujos complemento e exatidão devem operar por seu número.
Mas a geração presente ainda não chegou a esse ponto.
As falsas idéias que concebeu sobre o homem e seu destino fecham-lhe
mais uma vez as rotas que conduzem ao Santuário da Verdade. Pelas
mesmas razões não devemos ficar surpresos se o sentido sublime
que deixamos entrever nas tradições mitológicas dos
Povos antigos parecesse imaginário à maior parte das pessoas.
De tal forma elas perderam de vista a ciência de seu Ser e a de seu
Princípio que não mais conhecem quaisquer das relações
que os ligarão eternamente um ao outro. De fato, nas narrativas mitológicas
o vulgo só vê um jogo de imaginação dos Escritores
ou a corrupção de tradições históricas,
ou talvez os efeitos da idolatria, do temor ou da tendência que dos
Povos para com os feitos maravilhosos. Assim, excetuando-se algumas alegorias
engenhosas, tudo na fábula lhe parece bizarro, ridículo ou
extravagante. Homens estimáveis, colocados na classe dos Sábios,
empregaram a mais vasta erudição para a esse respeito estabelecer
sistemas mais sensatos do que a opinião comum. Mas, como não
se aprofundaram bastante na natureza das coisas, sua doutrina permanece,
por mais imponente que possa ser, abaixo das tradições que
tentaram interpretar. Não podemos emitir outro julgamento sobre os
que limitaram o sentido das tradições mitológicas exclusivamente
a um objeto inferior e isolado e que se esforçaram por fazer ver
nele, em todas as situações, o sistema particular que haviam
abraçado, sem percebermos que as tradições, por não
possuírem todas o mesmo caráter, não podiam tolerar
a mesma explicação;. sem percebermos que umas, ligadas à
alta antigüidade, encerravam os emblemas das verdades mais profundas;
que outras, muito mais modernas, só deviam a existência à
superstição e à ignorância dos Povos que, não
tendo compreendido as tradições primitivas, alteraram-nas,
confundindo-as com as tradições posteriores e particulares
de cada Nação; que a mistura dessas tradições,
os preconceitos dos Historiadores e os frutos da imaginação
dos Poetas lhes haviam aumentado a obscuridade. De modo que, longe de querer
concentrar a Mitologia num objeto particular, deveríamos antes admitir
que ela apresenta fatos que não têm analogia alguma. E se se
permite que os Observadores nela busquem relações com a classe
das coisas que lhes são conhecidas, a razão nos proíbe
que sejamos cegos para não vermos nada além e reduzirmos emblemas
que podem ter um alvo mais vasto e mais elevado a um objeto inferior e com
limitações. Ela se opõe, bem mais ainda, a que se dêem
a essas tradições e emblemas um sentido e alusões que
jamais poderia convir-lhes. São essas aplicações falsas
e estreitas que tenho o propósito de destruir a fim de elevar o pensamento
do homem a interpretações mais justas, mais reais e mais fecundas.
Entretanto, para não mais nos desviarmos de nossa marcha, da qual
essas observações são meros acessórios, limitar-nos-emos
a examinar os dois principais sistemas mitológicos, o que bastará
para fixar nossa opinião sobre todos os outros. O primeiro desses
sistemas apresenta, em todas as Fábulas da Antigüidade, símbolos
dos trabalhos campestres, indícios do tempo e das estações
próprias à Agricultura e todas as leis que a Natureza terrestre
e celeste é forçada a seguir para o crescimento, a manutenção
e a vida das produções da vegetação. Tendo concebido
esse sistema, os Observadores fizeram esforços admiráveis
para justificá-lo, nele encontrando relações com todos
os detalhes da Mitologia. Mas, para perceber-lhe a imperfeição,
um pouco de atenção será o suficiente. Em tempo algum
e em Povo algum se viu fazerem figuras que fossem mais belas e mais nobres
do que as coisas figuradas. Se pretendêssemos que o homem empregou
o superior como emblema do inferior ao imaginar símbolos e hieróglifos
mais elevados e mais espirituais do que o objeto que queria designar, não
estaríamos lançando por terra todas as noções
que temos da marcha do espírito do homem? Pelo contrário,
não é certo que o verdadeiro alvo do símbolo seja o
de velar ao olhos do vulgo alguma verdade, cujo emprego errôneo ou
profanação deveríamos temer se ela fosse revelada?
De fazer com que aquele que não é digno dessa verdade tenha
dificuldade em descobri-la ou em subir até ela através do
símbolo, enquanto os ditosamente preparados perceberão com
um relancear de olhos todas as relações que ele encerra? Não
é certo que os símbolos e os hieróglifos são
quadros ou signos destinados a fazer com que as verdades e as Ciências
úteis se tornem sensíveis à maioria das pessoas, tornando-se
compreendidas por aqueles cujo espírito limitado não poderia
percebê-las nem conservar-lhes a lembrança sem o socorro dos
signos grosseiros? Essas definições simples demonstram de
modo satisfatório que os emblemas, as figuras e os símbolos
não podem ser superiores e nem mesmo iguais a seus tipos, porque
então a cópia se elevaria acima do modelo, ou poderia confundir-se
com ele - o que a tornaria inútil. Basta, pois, comparar a maior
parte dos emblemas mitológicos aos tipos que os Intérpretes
quiseram dar-lhes para decidirmos, de acordo com a inferioridade dos tipos,
se sua aplicação pode apresentar alguma exatidão. Examinemos
o que parecer mais nobre e mais engenhoso, ou os detalhes grosseiros e mecânicos
da Lavoura ou das Pinturas vivas nas quais se representam todas as paixões
e onde são personificados todos os vícios e virtudes. Examinemos,
além disso, se podemos considerar as constelações celestes
e suas influências sobre os corpos terrestres, com referência
à vegetação, como o tipo da Mitologia. Como essa opinião
apresenta a mesma inferioridade do tipo quanto à figura, os mesmo
motivos a tornam inadmissível. Quanto aos signos astronômicos
vulgares, sobre os quais gostaríamos de fixar exclusivamente o nosso
pensamento, digamos que, por ignorância, o homem estabeleceu quase
todos eles em divisões ideais, com nomes arbitrários de animais,
personagens e outros objetos sensíveis. Imaginárias e convencionais,
as relações que deles nos são apresentadas não
oferecem a idéia de um verdadeiro tipo, não passando de figuras
vagas, estranhas aos Verdadeiros signos astronômicos e às Virtudes
que lhes servem de móveis. Isso deve bastar para abrir os olhos àqueles
que, por perceberem apenas um objeto isolado nas tradições
das fábulas, crêem que a Mitologia dos antigos deve a origem
somente à Agricultura e à Astronomia.