À imagem do Agente supremo
Extrato do Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo
Louis-Claude de Saint-Martin


À imagem do Agente supremo, teria o poder de dissolver e decompor os envoltórios, pôr a descoberto os princípios aí contidos e concentrados, (fornecendo-lhes com isso os meios de produzir frutos de todos os reinos que lhe são próprios), recompor os simples, manter na inação os insalubres, isto é, fazer com que por toda parte a abundância suceda à esterilidade, a luz às trevas, a vida à morte, e transfigurar de tal maneira tudo o que o rodeia que sua morada venha a ser semelhante à da própria Verdade." Não nos iludamos: o espetáculo maravilhoso da ação interrupta dos Seres corporais, "o próprio espetáculo da superioridade que o homem deveria ter sobre eles pelo uso e a aplicação que pode fazer de sua lei" não passa certamente de uma representação muito frágil e inferior da harmonia divina que liga as três faculdades primeiras aos Seres inteligentes. Nessa classe divina tudo é santo, tudo é verdadeiro, tudo age de comum acordo e tende a um mesmo alvo. O Chefe divino, no centro de suas puras emanações, une-as a si pelos direitos do amor e da ventura ao derramar-lhe no seio as doçuras de sua existência e de suas Virtudes. Neste ponto, os Súditos não podem jamais elevar-se acima do Soberano e se dentre eles alguns tiveram a infelicidade de se revoltar contra suas leis, jamais puderam atacá-lo diretamente, pois perderam-no de vista no próprio instante em que conceberam esse horrível pensamento. Além disso, quaisquer que sejam os crimes, a clemência do Mestre não abandona os culpados: mais do que estimular sua justiça, ele a modera; mais do que subjugar os criminosos, procura ganhá-los. Envolve, por assim dizer, a sua potência com o seu amor para que não se aterrorizem com o seu nome e para mostrar-lhes que é mais cioso de reinar sobre eles pelo amor do que pelo poder. Não acontece assim na classe temporal, em que o Súdito e o Mestre são quase sempre confundidos. Todos os Seres corporais - todos os agentes da Natureza destinados ao serviço do homem fazem-lhe guerra contínua. E ao ficar ele entregue a si mesmo, longe de vê-lo como Rei do Universo, nós o tomaríamos mais por um proscrito ou por um vil escravo daqueles de quem deveria ser o comandante. E mesmo quando usa seus direitos e o império lhe parece em ordem melhor, só nos oferece figuras desse verdadeiro império do qual acabamos de traçar um débil quadro: não são constantes nem inalteráveis o poder e a extensão de suas faculdades. E se ele revelar realmente uma representação das três faculdades divinas, só podemos dizer que ela não passa de um esboço quase irreconhecível. Não somente seu pensamento não lhe pertence, não somente sua vontade não é constantemente pura, mas sua ação mesma é incerta, sem possuir a segurança nem a autoridade do Mestre e do Soberano, de modo que quase não podemos reconhecer-lhe quaisquer dos traços vivos da terceira Virtude divina que essa ação deveria representar. Entretanto, é por causa da nossa semelhança com essa terceira faculdade que devemos começar a corrigir as deformidades que nos desfiguram. Se a lei pela qual o primeiro Princípio nos deixa perceber a sua imagem no mundo - está ligada a uma ordem temporal e sucessiva, devemos trabalhar para manifestar os direitos e a vida da ação divina antes de pretendermos manifestar as duas faculdades que a precedem: em toda progressão ascendente é necessário passar pelo inferior antes de seguir para o superior. Todavia, os termos superior e inferior só devem ser empregados para indicar os limites em que nossa inteligência está hoje encerrada. Em Deus, nada é superior, nada é inferior: tudo é um no indivisível, tudo é semelhante, tudo é igual na unidade. Mas as conseqüências dos desvios do homem não apenas fizeram com que as Virtudes temporais dos Seres da criação fossem subdivididas: elas até obrigaram a Divindade a só mostrar de maneira progressiva as Virtudes de sua própria essência ao Ser culpado. Há nisso uma prova do amor que ela sente por ele: como o homem não tem mais a força necessária para contemplar sem perigo a unidade divina, ela se reparte em seu favor a fim de que ele encontre sempre os meios de reconhecê-la sem que ela o ofusque, como aconteceria se surgisse diante dele em todo o esplendor. Ora, nessa espécie de subdivisão, relativa apenas ao homem, é da terceira faculdade divina, ou ação, que devemos aproximar-nos de início, já que seu número a coloca depois das duas outras e, como conseqüência, muito perto de nós. 16 Negritos da tradutora. Se nos for demasiadamente difícil conceber as palavras ação, vontade e pensamento (que apresento como distintas umas das outras, embora essas três faculdades sejam uma em sua essência), bastará que nos limitemos a essa idéia geral para termos a compreensão perfeita desse escrito: como o homem perdeu de vista a unidade das potências divinas por causa do crime, contempla-os separadamente, e as potências, transmitindo-se a ele, só se mostram sob uma multidão inumerável de fatos, signos, emblemas, sob uma multiplicidade de Agentes e de meios que o faça sentir quão privado está da unidade e das delícias da qual é ela a fonte e o foco. Se na espécie humana, considerada com relação à ordem física, vemos homens notáveis pela beleza e proporção de seus corpos, sua força, agilidade e as diversas vantagens da forma e dos órgãos, devemos pensar que o mesmo acontece na ordem das faculdades intelectuais. E que, se o número maior está reduzido às noções mais comuns e menos elevadas, em todos os tempos deve ter existido homens que se distinguiram dentre seus semelhantes e que estão mais próximos que eles da luz - diferenças observadas ainda todos os dias com relação ao que vulgarmente chamamos de Ciências. Embora todos os homens da terra estejam destinados a manifestar, no mundo mesmo, alguns raios das faculdades divinas, podemos crer que alguns dentre eles são convocados a essa obra por uma determinação mais positiva do que os outros homens, possuindo feitos mais vastos e mais consideráveis a realizar. Uns, encarregados somente da própria regeneração, só terão de contemplar o quadro dos socorros que a Sabedoria suprema lhes apresenta e se esforçar para aplicar os frutos a si mesmos. Outros, destinados a difundir esses socorros, deverão ter forças maiores e dons mais extensos. Para fixarmos nosso pensamento nesse objeto, consideraremos todos os homens da terra como Eleitos, mas divididos em duas classes: a dos Eleitos particulares e a dos Eleitos gerais. Acrescentaremos que dificilmente os Eleitos gerais poderão descer até a posição dos Eleitos em particular, mas que a todos é dado, pela coragem e pelos esforços contínuos da vontade, elevar-se à posição dos primeiros. Porque é mais difícil a um homem consumado na Ciência esquecer o que sabe do que um homem ignorante adquirir conhecimentos. Isso nos força a examinar por um instante o sistema da pretendida facilidade vinculada ao destino do homem. As dificuldades suscitadas na matéria vêm do fato de que atribuímos aos Eleitos particulares aquilo que foi dito apenas sobre os Eleitos gerais. Já que está claro que a maior parte dos homens, ao permanecer como depositária de seu livre arbítrio permanece também depositária de suas ações - e, como conseqüência, do resultado que as acompanha -,a partir do fato de que haveria na espécie humana alguns seres privilegiados e destinadas a obras maiores, deveríamos concluir que todos os homens devem ser predestinados? Não teríamos razão, em suma, em assimilar todos os eleitos e concluir, a partir da minoria, pela universalidade dos homens. Certamente não nos limitaremos a isso e perguntaremos por que tal homem foi escolhido de preferência dentre todos os outros e colocado na posição dos Eleitos privilegiados, ou gerais. Para atingir o núcleo dessa dificuldade, seria preciso que nos elevássemos até às leis simples, mas universais, da Sabedoria divina que, tendo deixado marca em todas as suas obras, gravou-a na espécie humana, bem como nas outras criações. Acrescentemos que, como a Natureza humana é o quadro figurativo universal da Divindade, assim como de suas Virtudes e Potências, deve ver que todos os tipos se repetem nos diferentes indivíduos de sua própria espécie. Eis por que deve haver alguns homens encarregados de manifestar as coisas divinas; outros, as coisas intelectuais; outros, as físicas e naturais, sem falar de outro tipo de manifestação cuja necessidade é igualmente absoluta entre os homens, mas que não seria prudente revelar à multidão. A lei que dirige os tipos de eleição é semelhante à lei que constitui a própria Divindade: tem como base a propriedade sagrada das faculdades do primeiro princípio e a ordem numérica agindo sobre os Seres que devem representá-los. Propriedade co-eterna da essência suprema, e para a qual não pode haver outra razão senão a de sua existência, já que esta razão e sua existência são a mesma coisa. E é somente através desse conhecimento que compreenderíamos aquilo a que demos o nome de liberdade nesse grande Ser. Assim, não jamais saberíamos por que motivo certos homens têm tais ou quais tipos a manifestar de preferência a outros homens sem conhecerem antecipadamente a lei numérica à qual a Sabedoria suprema sujeitou-lhes a origem. Ou antes, seria preciso saber por que é que as faculdades divinas são tão diversas, embora intimamente unidas e para sempre inseparáveis. Por que o pensamento não é a vontade, a vontade não é a ação e a ação não é nem o pensamento nem a vontade. Mas, se em rigor essas questões não estão acima da inteligência do homem, são quando nada inúteis e com freqüência muito perigosas para ele, sobretudo quando ele não as persegue no verdadeiro caminho, que é a ação. Se a ação é o germe essencial de nossa reabilitação, é necessário, a princípio, que o germe opere para em seguida nos fornecer os conhecimentos e as luzes, seus frutos verdadeiros. Permanecendo, pois, fiéis a esta ação, reconheceremos que compete somente a ela confirmar as verdades até aqui expostas e dissipar-nos todas as obscuridades. Entremos novamente no nosso assunto para descobrirmos os caminhos físicos e intelectuais pelos quais os Eleitos gerais, ou os privilegiados, foram admitidos a esse título sublime. Se eles houvessem tido apenas os recursos naturais e humanos cujo quadro percorremos anteriormente, se jamais houvessem tido nem mesmo o socorro dos outros homens privilegiados como ele, só teriam visto nisso tipos secundários e inferiores, através dos quais não teriam descoberto por que razão o homem existe. E sem conhecerem ainda as Virtudes eficazes do grande Princípio, teria sido impossível elevarem-se à posição sublime da qual haviam descido, e Deus teria pronunciado ao homem um decreto que jamais poderia ser cumprido. É preciso, pois, segundo a ordem da imutabilidade divina, que a Sabedoria superior haja apresentado aos Eleitos privilegiados sinais ativos, evidentes e diretos das virtudes e faculdades com os quais o homem deve encetar o curso de sua regeneração. Por fim, é indispensável que as próprias Virtudes da Sabedoria divina se hajam aproximado dos homens privilegiados, fazendo-os tocar sua própria substância a fim de lhes fornecerem os meios para que eles manifestassem sua ação e começassem a cumprir a tarefa para a qual haviam recebido a existência temporal. Não teremos dúvida alguma sobre essas verdades quando refletirmos que as virtudes divinas, irradiando-se em todos os sentidos como o fogo solar, vivem numa atividade contínua que as faz proceder ao mesmo tempo em todas as progressões do infinito: dúvida de que assim, no seu percurso, é-lhes obrigatório encontrar o homem e que, quanto mais o homem for análogo a elas, tanto mais elas tendem a unir-se a ele pelas relações essenciais de sua natureza. E é essa a reação que, independentemente da universalidade da ação divina, é demonstrada em particular em cada um de nós: por não ter o homem o pensamento por si próprio, todos os dias ele recebe pensamentos vivos e luminosos. Se algum homem se queixar de que nada recebe de semelhante, essa falta não é um vício de sua natureza, mas conseqüência da negligência por não se haver apoderado dos raios oferecidos na primeira idade e apresentados como guias para conduzi-lo ao gozo permanente de uma luz maior. Quando dizemos que as Potências de Deus se transmitem aos homens de maneira indispensável, falamos de uma necessidade apoiada em leis fundamentais que Deus imprime nos Seres e sobre a imutabilidade de seus decretos. Assim, ela não deve diminuir perante os nossos olhos a grandeza de seu amor e menos ainda fazer-nos acreditar que estamos dispensados de contribuir com ele na obra, como se ele devesse operar sozinho e sem o concurso de nossa livre vontade. Formando uma classe à parte dos Eleitos gerais, que, por estarem sempre unidos ao próprio grande Princípio não nos permitem fazer distinção alguma entre a Ação divina desse Princípio e o próprio livre Arbítrio, diremos o mesmo que ocorre tanto com o amor quanto com a justiça. Ambos não passam de apoios apresentados para nos ajudar a sair do abismo, mas nos deixam, de ordinário, a mais inteira liberdade para apropriarmo-nos deles, assim como para deles fugir e abandoná-los. Embora os socorros que a Sabedoria suprema concede ao homem sejam uma conseqüência do amor que a constitui, ele ainda deve pedir-lhe até a força para deles fazer uso e empregar todas as Potências de seu Ser para que os socorros não lhe sejam dados em vão. Como a Sabedoria impõe sempre uma condição às suas graças exigindo sempre um trabalho do homem, cabe à vontade do homem, posteriormente, determinar-lhe a eficácia. Semelhantes aos traços da luz colorida, que se prolongam quando encontram meios por demais divididos e débeis para neles se apoiarem e refletirem, os raios supremos atingem inutilmente o homem, deixando-o para trás quando não há nele base alguma para fixá-los. Se os homens pudessem agir segundo sua lei verdadeira, sem o socorro de Deus, ou se Deus devesse agir nos homens sem o concurso deles, os Teólogos e Filósofos teriam fundamento para fazer tantas perguntas sobre o livre arbítrio e os efeitos da graça divina, a qual nada mais é que o amor. Mas como o bom uso do livre arbítrio atrai a graça, ou o amor e, de modo recíproco, esse amor dirige o livre arbítrio e o purifica, é evidente que não devemos jamais separá-los. Está claro que o amor e a liberdade auxiliam-se continuamente e que essas duas ações, embora distintas, estão sempre unidas por relações íntimas e recíprocas. Entretanto, não é preciso crer que a vontade humana possa tornar nulos os decretos das manifestações do Poder supremo que deveriam ser feitas através do órgão do homem; porque, se o homem não cumprir o alvo de sua emanação, é esse poder mesmo que se mostra.