Origem helênica do cristianismo
Paul Le Cour


É costume considerar que a origem do cristianismo é judaica. Com efeito, os Evangelhos, pelos menos três deles, fazem freqüentes alusões aos textos da Bíblia mosaica, esforçando-se, por meio de genealogias, aliás diferentes, por fazer de Jesus um descendente de Davi por José (que todavia, não é considerado, seu pai).
O Evangelho de João é uma exceção: em primeiro lugar, foi escrito em grego e contém raras alusões à Bíblia. Veremos que as únicas alusões que aí são feitas constituem interpolações.
A Igreja cristã, na sua origem, foi grega; os primeiros Padres da Igreja eram gregos e houve catorze papas gregos.
Cristo devia falar grego. No capítulo VII, 35 de João, os judeus mostram-se preocupados por vê-lo ir ensinar aos gregos.
Por outro lado, a língua grega foi usada durante os primeiros séculos para pregar o Evangelho e para as cerimônias do culto. Oficiou-se em grego até o fim do século V. O latim só foi introduzido depois que São Jerônimo escreveu a Vulgata.
Os doze apóstolos escolheram, para a distribuição dos socorros da Igreja primitiva, sete diáconos, todos helenos. Um deles, Estêvão, distinguiu-se por sua eloqüência cativante, atacando de frente o judaísmo. Ele não cessava de falar contra o Templo e contra a Lei. Foi perseguido e obrigado a comparecer diante do sinédrio, onde pronunciou um longo e violento requisitório contra os israelitas, contra sua idolatria e a dureza de seu coração. Tendo suas palavras provocado um violento tumulto, foi arrastado para fora dos muros e apedrejado. Morreu, tranqüilo, perdoando a seus carrascos. Foi o primeiro mártir. A esse suplício assistiu Paulo de Tarso, encarregado de ir a Damasco para destruir, a ferro e fogo, a seita dos cristãos. Sabemos o que aconteceu e como Cristo apareceu para ele, dizendo-lhe: "Saulo por que me persegues?" Ele se fez batizar e tomou o nome de Paulo (Paulus: o pequeno).
Se Cristo não foi compreendido pelos judeus, em contrapartida, sua pregação deveria encontrar simpatia entre os gregos, aos quais sua doutrina estava ligada. Isso está implicitamente expresso nesta passagem do capítulo XII do 49 Evangelho, onde vemos gregos declarando a Felipe, que era de Betsaida, cidade habitada por muitos gregos, seu desejo de ver Cristo e de falar com ele, o que provoca esta reflexão de seus Mestre:
"Chegou a hora em que o Filho do Homem deve ser glorificado." Na verdade, Cristo não será glorificado pelos judeus, pois eles o condenarão à morte, mas pelos gregos.
Eis o que diz Reuss a respeito desse capítulo XII:
"O autor chegou ao termo da vida pública de Jesus. O quadro do trágico conflito entre a nova revelação e o espírito judaico está traçado. Uma pequena minoria acreditou; urna poderosa maioria não só ficou surda ao apelo como se prepara para destruir violentamente a obra da regeneração do mundo, apenas iniciada. A partir daí, tudo é dito sobre esse antagonismo. O leitor pressente a catástrofe iminente. Eis que, de repente, um novo horizonte se abre diante de seus olhos , unia perspectiva, ainda toda ideal e profética, e lhe faz entrever, por uma causa aparente mente comprometida, se não perdida, a gloriosa conquista do mundo pagão, compensação brilhante e cheia de futuro que logo fará esquecer a resistência, tão mesquinha quanto má, do mundo judaico. "
O que o autor chama de mundo pagão é o mundo grego. Com efeito, esse será o mundo mais apto a compreender a doutrina de Cristo, e é por isso que a Igreja ortodoxa grega pretende estar mais perto dessa doutrina do que a Igreja romana.
"O judaísmo", escreve Renan, "forneceu a levedura que provocou a fermentação" mas esta se realizou fora dele. O elemento helênico e romano, primeiro, o elemento germânico e céltico, depois, tomaram completamente a primazia, apoderando-se com exclusividade do cristianismo e desenvolvendo-o num sentido muito diferente de suas origens primitivas"
"O cristianismo", escreveu por sua vez Matyla Ghyka, "do ponto de vista ideológico e efetivo, não seria uma religião semita, mas uma religião greco-egípcia, para a qual a Grécia contribuiu com o pitagorismo. E este, por sua vez, hauriu suas fontes nas tradições nórdicas hiperbóreas"
"O que os cristãos chamam de Novo Testamento", escreveu Emest Havet "compõe-se de livros gregos, apenas". Para os gregos é que foram escritas as cartas de Paulo; na Ásia grega é que se levantam as setes Igrejas às quais é dirigido o Apocalipse. Todos os dogmas cristãos foram formulados em grego, nos concílios gregos. As próprias palavras dogma, mistério, catecismo; os nomes padres, bispo, diácono, monge, a própria palavra teologia, tudo é grego. Em suma, o mundo grego é que se tomou o mundo cristão. Portanto, é pelo mundo grego que se deve começar o estudo do cristianismo.
"A Igreja, acrescenta ele, a partir do momento em que passou a refletir sobre a sua própria fé, não pôde deixar de reconhecer quanto o que se chamava de cristianismo era helênico, ou, se se quiser, quanto o helenismo era cristão. Alguns de seus Santos Padres, Justino, Clemente de Alexandria, eles próprios impregnados da sabedoria helênica, não tiveram medo de confessar esses pontos de conformidade, e até se vangloriavam disso.
"Persisto em acreditar, diz ele, ainda, que, seja qual for a parte do judaísmo na revolução cristã, a do helenismo é muito mais considerável. Os dois primeiros evangelhos são ainda mais helênicos do que as cartas de Paulo; o terceiro, e o Livro dos Atos, mais ainda; quanto ao quarto, neste não resta mais nada, por assim dizer, do judaísmo."
Essa origem grega do cristianismo já foi reconhecida por um israelita, Isidore Lévy, que escreveu na Légende de Pythagore:
"O Evangelho seduziu o inundo antigo porque trazia, tomado de empréstimo ao mais penetrante encanto antigo, um produto do pensa mento grego, herdeiro de um longínquo passado indo-europeu"
Joseph de Maistre, por seu lado, declarou que o cristianismo é essencialmente grego.
Não é sem interesse recordar aqui o que Bergson, embora também seja um israelita, escreveu:
"O cristianismo está carregado de filosofia grega." E acrescenta: "É fora de dúvida que o cristianismo foi uma transformação profunda do judaísmo.. , Uma religião que era substancialmente nacional foi substituída por uma religião capaz de se tornar universal. A um Deus que se destacava sobre todos os demais ao mesmo tempo por sua justiça e seu poder, mas cuja justiça dizia respeito, antes demais nada, a seus súditos, sucedeu um Deus de amor, e que atuava toda a humanidade. Esse é o motivo pelo qual hesitamos em colocar os profetas judeus entre os místicos da antiguidade. Jahveh era um juiz demasiado severo; entre Israel e seu Deus não havia bastante intimidade"
Bergson, por sua vez, estava muito inclinado a se converter ao catolicismo, quando morreu. Mas o que nos importa aqui é ver um israelita concordar que o cristianismo, como ele o diz, deriva não do judaísmo, mas do misticismo alexandrino, através do platonismo, do pitagorismo, do orfismo e do dionisismo.
Tais apreciações apóiam singularmente a nossa tese; mas há outras ainda. Dionisio, o Areopagita, bispo de Atenas, por exemplo tende a helenizar o cristianismo em seus escritos, compostos no século V, época da luta entre os heleno-cristãos e os judeo-cristãos,
Na Renascença, a Academia dos Médicis e os humanistas se esforçaram por levar o cristianismo de volta ao helenismo, separando-o do judaísmo. Mas o papa Sixto IV tentou mandar assassinar Lourenço, o Magnífico, durante uma missa; ele escapou, por milagre mas o mesmo não aconteceu com seu pai, Juliano, que caiu sob os golpes dos assassinos.
Numa revista recente, Jean Héring escrevia:
"Alguns Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, admitiam que, pelo menos para os gregos, a filosofia grega havia sido uma educação para o cristianismo, e que os filósofos, como Platão, eram certamente inspirados pelo Logos, a palavra de Deus. Santo Agostinho, por sua vez, considerou a filosofia de Plotino sob esse mesmo ângulo. E, de um modo geral, a filosofia dos Padres da Igreja e dos antigos concílios não seria o que é sem a existência da filosofia grega e helenística,"
Êmile Gebliart por sua vez, escreveu:
"O 4º Evangelho, obra do espírito grego, todo impregnado de neo platonismo, vem a propósito para restituir à cristandade o ideal."
Nos primeiros tempos do cristianismo existiani cristãos helenizan tes; esses últimos, muito numerosos, tinham uma Igreja em Jerusalém (Atos VI, 9) e esses helenizantes protestavam contra os hebraizantes,
Interromperei aqui essas citações: elas nos provam claramente que o cristianismo é um prolongamento do helenismo, e não do judaísmo, e que o Evangelho de João é essencialmente grego.
Lutero declarava que o Evangelho de João o era o Evangelho por excelência, o Evangelho único, inédito. "Esse Evangelho, dizia ele, bastaria; poderíamos dispensar os outros."
Os comentaristas
O primeiro comentário do 4º Evangelho foi feito pelo gnóstico Herácleon (por volta do ano 150). Mais de meio século depois, Orígenes tinha-o constantemente sob os olhos quando, por sua vez, comentava o mesmo Evangelho.
É graças a ele que ainda subsistem fragmentos que nos foram conservados referindo-se aos quatro primeiros capítulos.
O poeta Nonnos, que viveu em Alexandria no fim do século IV e que é o autor do poema Dionisiacas, publicou, em grego, uma Fará-frase do Evangelho de João. Falando do Cristo em seu prólogo, ele escreve: "O Logos é um deus nascido no céu e que brilhou desde o início ao lado do Deus eterno, autor do Cosmos. Nele estava a vida, por ele foi feito tudo o que é animado ou inanimado."
As preocupações filosóficas de Nonnos ligam o helenismo ao cristianismo. Em suas Dionisíacas, depois de ter narrado a conquista da India por Dionisos-Baco, ele o faz cantar, à sua volta, um Hino ao Sol, que celebrava todas as religiões.
Nos tempos modernos contam-se numerosos estudos do 4º Evangelho. Reuss (La Théologie Johannite, editada em 1879) cita cento e vinte desses trabalhos publicados de 1793 a 1879. Desses, apenas cinco ou seis são de autores franceses; todos os outros foram escritos por alemães.
Desde 1879 muitos dos estudos sobre esse Evangelho foram publicados (Ernest Havet, Maurice Gognel, Henri Réville, Benzi Delafosse, pseudônimo do padre Turrnel, Loisy, padre Alta, Rudolf Stemer, Albert e Jean RévilIe, etc.).
Consultei a maioria dessas obras, como se poderá constatar.