Dialética e Métodos Martinistas



"Os princípios naturais são os únicos que se devem,
primeiramente, apresentar à inteligência humana e, as
tradições que se seguem, por mais sublimes e
profundas que sejam, jamais devem ser empregadas,
senão como confirmações, porque a existência humana
surgiu antes dos livros".
Portrait n.º 319 (Obras Póstumas
vol. I, pág. 40, 41).


O Martinismo é uma maneira de vier, mas seus princípios de ação estão subordinados a uma determinada maneira de pensar. A soberania da inteligência e do senso moral deve ser respeitada. Nenhum vulgar oportunismo e nenhum utilitarismo poderiam ser admitidos. As verdades essenciais e exatas que os livros só podem confirmar, regem nossa existência e nossa atividade total. Qualquer que seja o plano sobre o qual o homem aja, sua conduta decorre de suas certezas profundas, intelectuais, digamos a palavra: filosóficas. É porque sabe de onde vem e para onde vai que o homem poderá orientar sua ação política e dar-lhe um sentido. A resposta ao problema capital do destino humano, contém a solução de todas as questões que se apresentam ao homem. Antes de possuir a lógica desta dedução, antes de expor as conseqüências morais ou políticas da doutrina Martinista, perguntemos, inicialmente, qual é seu fundamento. Quais são, no espírito de Saint-Martin, as verdades primeiras e como as adquiriremos?
"É um espetáculo bem aflitivo, quando se quer contemplar o homem e vê-lo, ao mesmo tempo, atormentado pelo desejo de conhecer, não percebendo as razões de nada e, entretanto, tendo a audácia de querer dá-las a tudo".(68)
Essas primeiras linhas da obra inicial de Saint-Martin, fornecem o ponto de partida e o plano de toda a doutrina Martinista.
"O homem é a soma de todos os problemas. Ele próprio é um problema, o enigma dos enigmas. A questão que ele coloca, a que a sua própria natureza encerra, nos obriga a solucioná-la. Uma teoria que não visasse, em primeira instância, o bem do homem, seria totalmente inútil". (69)
E esse bem só pode resultar da resposta à interrogação humana. A existência dessa interrogação será a primeira certeza. Com efeito, uma constatação se impõe: o estado do homem. Ora, este estado se caracteriza pela angustia, o sentimento de limitação e de imperfeição. O fato de que o homem possa ignorar e assombrar-se por isso, é um mistério inicial que ocasiona, logicamente, a conclusões sobre a origem e o destino do homem. Mas é somente pelo estudo do homem, pelo aprofundamento do problema, pela reflexão sobre os termos do problema que encontraremos a solução do mesmo. Tal é o método de Saint-Martin. Precisamos explicar "não o homem pelas coisas, mas as coisas pelo homem". (70)
"Aquele que possuir o conhecimento de si mesmo terá acesso à ciência do mundo, dos outros seres. Mas o conhecimento de si, é somente em si que convém buscar. É no espírito do homem que devemos encontrar as leis que dirigiram a sua origem".(71)
O homem que é o enigma, é também a chave do enigma. Dir-se-á que temos aí uma tautologia? E que não se poderia provar o valor do espírito ou a eminente natureza do homem por um método que os pressupõe? Mas não se trata de utilizar um método para demonstrar a superioridade da faculdade intelectual. Não se trata mesmo de uma idéia diretriz apropriada para estabelecer as bases dessa faculdade. Diante de sua situação que é também, seu enigma, o homem é naturalmente levado a examinar-se. Ele quer julgar os elementos do enigma. Seu reflexo normal (se assim podemos afirmar) será olhar para si mesmo, pois aí reside o problema. Também é uma infelicidade para o homem ter necessidade de provas estranhas à sua pessoa "para conhecer-se e crer em sua própria natureza, porque ela traz consigo, testemunhos bem mais evidentes que aqueles que podem concentrar nas observações dos objetos sensíveis e materiais". (72)
É, somente após ter-se reconhecido por aquilo que ele é, que o homem convencido de sua Divindade e de sua situação central, decide tomar-se por medida das coisas, ou, ao menos, por princípio de explicação. Afirmar que da verdadeira natureza do homem deve resultar "o conhecimento das leis da natureza e dos outros seres" (73), não é um postulado, é uma certeza; a conclusão de uma experiência. Se o Martinismo nos faz encontrar a explicação do Universo e a visão de Deus, é porque ele tem sua fonte na "arte de conhecer-se a si mesmo". Saint-Martin, mestre do Ocidente, reencontra-se aqui com a luz da Ásia. O Buda, premido pela urgência de nosso estado, condenou energicamente as reflexões sem proveito. Elas nos desviam de nosso verdadeiro interesse. Com efeito, que loucura seria procurar, em primeiro lugar, saber se o princípio da vida se identifica com o corpo ou é algo diferente!
Seria como se um homem, tendo sido ferido por uma flecha envenenada e, cujos amigos ou companheiros, chamassem um médico para tratá-lo, dissesse: "não quero que retirem esta flecha antes que eu saiba qual foi o homem que me feriu, se foi nosso príncipe, cidadão ou escravo", ou, "qual o seu nome e a família a que pertence", ou, "se é grande, pequeno ou médio"... Certo é que esse homem morreria antes de estar ciente de tudo isso. (74)
Nossa situação exige uma resposta exata. Os outros problemas são acessórios. Mas, Saint-Martin, não os baniu, por isso, do campo da pesquisa humana. A investigação filosófica não foi proibida. Ele considera absurdo que nosso espírito, sendo havido de conhecimento, não possa satisfazer tal sede. (75) Simplesmente estabelece esta curiosidade intelectual. Quando o homem reconheceu o Caminho que o leva à Verdade, pode entregar-se à meditação sobre os mistérios de Deus e do Universo. Mas não se podem combinar os jogos do espírito, ou mesmo os seus processos abstratos com a prioridade sobre a direção de nossa vida. Aliás não existe defazagem entre essas duas ordens de pesquisa, mas apenas, prioridade e dialética entre uma e outra. É digno de nota que, por conspiração universal, tudo esteja ligado, e que a solução do primeiro enigma conduza, também, à dos outros. Primeiramente é necessário tratar o ferimento e retirar a flecha. Mas, corresponde à necessidade imperiosa de nos salvar, descobrirmos a natureza do ferimento, a qualidade do dardo e, por assim dizer, sua marca de fábrica.
A questão de sua origem e procedência é esclarecida de imediato, mas a cura terá que ser procurada e os remédios terão que ser receitados em primeiro lugar. O Humanismo de Saint-Martin (76) não é coisa a priori, mas, procede da experiência mais exata e imediata que o homem possa realizar: a experiência própria da consciência de seu estado.
Persistamos um pouco sobre o caráter a priori que acabamos de negar no Martinismo. Convém não deixar alguma dúvida. É a natureza íntima de Saint-Martin que aqui está em causa. Pode-se dizer que sua filosofia é, a priori, porque explica o inferior pelo superior, o baixo pelo alto, os fatos por seu princípio. O materialismo seria, então, a posteriori, porque explica a matéria pela matéria, explica o que parece transcender à matéria, reduzindo o homem à própria matéria. Superando-a, encontraríamos aqui a fórmula de W. James: "O empirismo é um hábito de explicar as partes pelo todo". Todo espiritualismo é, pois, a priori - e o Martinismo mais do que qualquer outro sistema. O livro "Dos Erros e da Verdade", procura mostrar a fraqueza e a insuficiência de uma visão materialista do mundo. Essa oposição não é, em nenhuma parte, mais sensível do que na crítica do sensualismo perseguida por Saint-Martin durante toda sua vida. (77)
Saint-Martin disse a um amigo que o qualificava de espiritualista: "Não é o suficiente para mim ser espiritualista - e se ele me conhecesse, longe de restringir-se a isso, ele chamar-me-ia deísta: porque é o meu verdadeiro nome". (78) O Martinismo é espiritualista e seu objetivo principal é, portanto, um "a priori gigantesco", segundo a palavra de Henri Martin. (79) Mas que essa explicação, a priori, seja dada, a priori: que seja apresentada como um postulado, que se mostre inverificável e que se possa julgá-la o fruto de uma imaginação, eis aí, o contrário da essência da filosofia de Saint-Martin. Porque essa filosofia está baseada totalmente numa sentença e numa dialética que iremos examinar. Por não ser apoiada na matéria ou no sensível aos sentidos físicos, ela não é menos exata. Diríamos quase ao contrário. Saint-Martin não proclamou e não somos instados a experimentar junto a ele, a acharmos em nós provas mais convincentes, que não encontraríamos na Natureza inteira? (80) Essas breves reflexões sobre o método Martinista não tem a pretensão de determinar a sua essência. Esta, depreende-se da própria exposição da doutrina de Saint-Martin. Após fornecer algumas explicações da doutrina, destacaremos algumas características principais da mesma. Entretanto, convinha explicar, nitidamente, a base da reflexão Martinista. "Saint-Martin deseja crer, escreveu Matter, (81) mas com inteligência, apesar de ser um filósofo místico". A teosofia de Saint-Martin não é uma obra de imaginação, uma teia de afirmativas inverificáveis, nem de devaneios místicos. Para atingir os píncaros da metafísica e da espiritualidade, o pensador de Amboise, não se estabelece no plano das especulações abstratas, inacessível ao vulgar. Ele nos alcança no nosso nível - no nível do homem. Daí, nos reconduzirá até Deus, do qual nos sentimos tão cruelmente afastados.
O itinerário desse percurso, eis o que precisamos, agora, determinar com exatidão, Poderemos constatar assim, a coerência do sistema Martinista. Em seguida, examinaremos, sucessivamente, as diferentes partes, que sem este trabalho preliminar, correriam o risco de parecer desprovidas de fundamento. Esbocemos, pois, o esquema de uma dialética Martinista.
O homem, inicialmente, toma consciência de seu estado. Entendemos pelo que foi dito supra, que o homem se conhece tanto em espírito como em corpo, ou, mais explicitamente, constata nele e fora dele, manifestações variadas. Na medida em que estas manifestações lhe pertencem ou lhe afetem - e como as conheceria sem ser por elas atingido - na proporção onde estas manifestações o afetam, de alguma maneira, elas contribuem para constituir seu estado.
"Ora, àqueles que não tivessem sentido a sua verdadeira natureza, só lhes pediria que se precavessem contra os desprezos. Porque no que eles chamam homem, no que denominamos moral, no que chamam ciência, enfim, no que se poderia chamar o caos e campo de batalha de suas diversas doutrinas, eles encontrariam tantas ações duplas e opostas, tantas forças que se degladiam e se destroem, tantos agentes, nitidamente ativos e tantos outros, nitidamente passivos e isto sem buscar fora de sua própria individualização, talvez, sem poder dizer, ainda, o que nos compõe, concordariam que, seguramente, tudo em nós não é semelhante e que não existimos senão numa perpétua diferença, seja conosco, seja com tudo que nos circunda e tudo o que possamos atingir ou considerar. Apenas seria necessário, em seguida, auxiliar com alguma ciência essas diferenças, para perceber seu verdadeiro caráter e para colocar o homem no seu devido lugar". (82)
Saint-Martin convida, pois, o homem a considerar-se e a analisar, com cuidado, a realidade que houvera atingido. Assim o homem descobrirá o seu verdadeiro lugar e, perceberá a harmonia do mundo de acordo com o famoso adágio de Delfus: "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses". A convite de Saint-Martin, procedamos pois, fazendo o exame que ele preconiza, o exame do homem.
O simples exame de sua presente situação lhe revela que esse estado assim se resume: a coexistência de elementos aparentemente contraditórios, ambos, objeto de uma experiência, igualmente exata.
I - O homem descobre em si um princípio superior. Observa seu pensamento, sua vontade, todos "estes atos de gênio e de inteligência que o distinguem sempre por características impressionantes e indícios exclusivos". (83)
Por que, pois, o homem pode afastar-se da lei dos sentidos? (84) "Por que o homem é dirigido por um maravilhoso senso de moral, infalível em seu princípio? Não é senão porque é essencialmente diferente devido ao seu Princípio intelectual (85) e é o único favorecido aqui em baixo por essa sublime vantagem... "(86)
A consciência de si dá ao homem uma certeza primordial. "Quando sentimos uma só vez nossa alma, não podemos ter nenhuma dúvida sobre suas possibilidades". (87) Mas, o que lhe surge, antes de tudo, é o sofrimento necessário de sentir-se exilado, é a nostalgia de uma morada edênica. "O homem, na verdade, na qualidade de Ser intelectual, leva sempre sobre os Seres corporais, a vantagem de sentir uma necessidade que lhe é desconhecida". (88) O Filósofo reuniu então essas múltiplas provas, esses testemunhos irrecusáveis e o espetáculo de sua alma inspira a Saint-Martin esta revelação: "Cidadão imortal das regiões celestes, meus dias são o vapor dos dias do Eterno". (89) Não atribuamos, de momento, nenhuma importância metafísica a este verso do Teósofo. Nele, não temos senão a afirmação de nossa grandeza, à qual Saint-Martin, vai opor o espetáculo de nossa miséria.
II - Ao mesmo tempo, que, reconhece a transcendência do seu espírito, o homem percebe o conjunto dos males e das desgraças dos quais está cercado. A realidade do sofrimento de nos impõe, com efeito, da maneira mais trágica. Inútil é pintar o quadro das fraquezas e das desgraças dos homens. Nenhum, entre eles, os ignora porque ninguém pode viver sem tomar parte nelas. "Não existe uma pessoa de boa fé, disse Saint-Martin, que não considere a vida corporal do homem uma privação e um sofrimento contínuo". (90) A aproximação entre essa evidência e essa certeza anteriormente adquirida, se evidência, ao mesmo tempo, inevitável e surpreendente.
"Tanto é verdade que o estudo do homem faz-nos descobrir, em nós, relações com o primeiro de todos os princípios e os vestígios de uma origem gloriosa, quanto o mesmo estudo deixa-nos perceber uma horrível degradação". (91) Saint-Martin explicou na sua belíssima análise da miséria espiritual, como a união destas duas conclusões caracteriza o nosso estado. Para explicar uma passagem do Ecce Homo, o Filósofo, põe em questão a ambivalência do homem, a dualidade de sua natureza.
"A miséria espiritual, diz ele, é o sentimento vivo da nossa privação Divina aqui na terra, operação que se combina: 1º com o desejo sincero de reencontrar nossa pátria; 2º com os reflexos interiores que o sol Divino nos irradia, algumas vezes, a graça de enviar-nos até o centro de nossa alma; 3º com a dor que experimentamos quando, após ter sentido alguns desses Divinos reflexos tão consoladores, recaímos em nossa região tenebrosa, para aí, continuarmos nossa expiação". (92) Retomando outra formula de Saint-Martin: "Existem seres que só são inteligentes; existem outros que só são sensíveis; o homem é ao mesmo tempo, um e outro, eis aí a palavra do enigma". (93)
A contradição brota desse aspecto, desse duplo aspecto da existência humana, como surge entre o desejo de saber e o fracasso freqüente das tentativas para chegar até aí. "O homem, um Deus! Verdade; não é uma ilusão? Como o homem, esse Deus, esse prodígio espantoso, definharia no opróbrio e na fraqueza! (94) O problema está apresentado. Os dados estão expressos. O encontro das duas experiências, sua simultaneidade, eis o ponto de partida da dialética Martinista. A tristeza de nosso destino não forneceria material para alguma reflexão se não houvesse, justamente aí, o espírito para tomar conhecimento.
"O temor, disse Aristóteles, é o começo da filosofia". Ele entendia que a atenção se dirigia assim para os problemas que o vulgo ignora. Mas, o temor é, também, objeto de meditação. Por sua própria existência o temor ou a angústia, se quisermos, assinala uma oposição entre aquele que se espanta e aquilo do qual ele se espanta. É a mais irretorquível réplica ao materialismo. Ele impede de considerar o mundo material como única realidade, autosatisfazendo-se, existindo só, porque existe sempre o mundo e aquele que o julga. O mundo não pode ser uma máquina noturna, porque encontrará o homem para observá-lo girar. Destarte, seu assombro, que é indiscutível e parece um nó de contradições, faz parte da situação do homem. Miséria humana, experiência de todo momento. Grandeza do homem que se sabe infeliz. Grandeza e miséria humana se interpenetrando. A primeira permitindo a segunda e a segunda levando o espírito a se elevar à instrução da primeira.
Que ambivalência de nosso ser induz a dividir os seres e as coisas em duas classes que a crença em um princípio mau e poderoso, embora submetido ao Princípio do Bem, tenha surgido da mesma reflexão. Isto é certo e confirma a importância desta consideração. Aqui só examinamos as arestas da doutrina Martinista. Antes de tudo, destinada a instruir o homem sobre si próprio, poderá, em seguida, ensinar-lhe a Ciência do Mundo e de Deus. Mas é, primeiramente, o método do seu próprio estudo. O homem, inicialmente, se interessa por ele mesmo. Se o auto conhecimento permite abordar as pesquisas das leis que regem o Universo, se este conhecimento nos eleva até Deus, não tem menos por objeto a solução do problema do homem. É deste problema que é necessário, em primeira instância, ocupar-se, porque ele é, em essência, o único. Nunca o homem se aperceberá demasiadamente disso.
Admitamos, pois, como base da doutrina Martinista, esta contradição, esta dualidade da pessoa humana. Será ai que reside a originalidade de Saint-Martin? Absolutamente não. Numerosos foram os pensadores que descobriram na condição humana um tema rico em ensinamentos. Aristóteles após Platão, sabia bem que a essência do homem, sua alma, era algo de Divino. De São Paulo a Pascal, a luta das duas leis a da carne e a da alma, constituíram argumentos clássicos para a apologia cristã. "Sinto nos meus membros, disse São Paulo, uma outra lei que se opõe à lei do Espírito e me aprisiona na lei do pecado que está nos meus membros".(95)
"A grandeza do homem é grande na medida em que ele se reconhece miserável", lemos nos Pensamentos. (96) A descoberta pelo homem de sua queda e a consciência de sua filiação Divina, para explicar seu atual estado, é exposto em várias etapas da história da filosofia. E, aliás Saint-Martin não procura inovar em toda sua doutrina. Ao contrário, se felicita por reencontrar, sem cessar, os ensinamentos tradicionais ou as descobertas dos filósofos. A tradição ocupa lugar muito importante para ele. E, se de bom grado, citamos Pascal, é que sua doutrina se mescla, às vezes, ao pensamento Martinista. O próprio Saint-Martin assinalou estes parentescos intelectuais: "Lede, nos diz num texto pouco conhecido, os Pensamentos de Pascal... Ele disse com termos próprios o que vos disse e o que publiquei: saber que o dogma do pecado original resolve melhor nossas dificuldades que todos os reacionários filosóficos".(97) Com efeito, chegamos, tanto com Saint-Martin como com Pascal, a resolver o enigma que o homem traz consigo. Após ter pintado o homem e, subtilmente tê-lo analisado, competiu ao Teósofo, deduzir de acordo com seu método, as conseqüências dos fatos que acabou de conhecer. Vemos manifestar aqui o seu esforço de síntese. Saint-Martin vai conciliar os elementos opostos que formam o homem, mostrar que eles podem ser resolvidos numa explicação. O método será sempre o aprofundamento destas contradições que constituem o homem.
III - "Pelo sentimento de nossa grandeza, concluímos que somos senão Pensamentos Deus, ao menos, Pensamentos de Deus". (98) Pelo sentimento doloroso da horrível situação que é a nossa, podemos formar uma idéia do estado feliz onde estivéramos anteriormente".
"Quem se acha infeliz por não ser rei, diz Pascal, senão um rei destronado".(99) E Saint-Martin: "Se o homem não tem nada é porque tinha tudo". (100)
De uma parte, a certeza de nossa origem sublime, quer que nós tenhamos a intuição da nossa faculdade essencial ou quer que a deduzamos da nossa miséria atual; de outra parte, essa própria miséria. Só a queda pode explicar essa posição, essa passagem. Só uma doutrina da queda explicará o fato do homem ter caído. Pois que, tanto o estado primordial de felicidade é uma certeza que adquirimos e que a miséria na qual nos debatemos é uma realidade não menos evidente, é preciso admitir uma transição de um estado para outro. Tal é a queda.
Sugerimos uma análise mais sutil do sublime estado que tornava o homem tão grande e tão feliz. Compreendemos como Saint-Martin, que ele podia nascer do conhecimento íntimo e da presença contínua do bom Princípio. Conseguiremos a terceira norma do que se pode chamar dialética Martinista. Podemos então resumir o desenvolvimento dessa dialética utilizando as próprias palavras do Teósofo:
1. "O homem um Deus! Verdade".
1. "Como o homem esse Deus, esse prodígio espantoso, definharia no opróbrio e na
fraqueza".
3. "Por que esse homem definharia, presentemente, na ignorância, na fraqueza e na miséria, se não é porque está separado deste princípio que é a única luz e o único apoio de todos os Seres?(101)
Tais são os princípios. Tal é o caminho pelo qual o homem chega à compreensão de seu estado. Pode-se construir sobre esse esquema a doutrina Martinista completa. Ele é o fundamento psicológico indispensável da múltiplas explicações que inspirará o pensamento do Filósofo Desconhecido. Não está esclarecido daí em diante o destino do homem? "Acorrentado sobre a terra como Prometeu", (102) exilado do seu verdadeiro reino, que meta poderia propor senão a de reconquistar e de reintegrar-se em sua pátria?
E o meio de reencontrar o paraíso perdido, não o possuímos também? Sabemos como o homem foi banido. Ora, a mera descrição desse éden, mostrar-nos-á que está disposto "com tanta sabedoria que, retornando sobre seus passos, pelos mesmos caminhos, esse homem deve estar seguro de recuperar o ponto central, no qual, apenas ele pode gozar de alguma força e de algum repouso". (103) E a teoria da Reintegração deve, necessariamente, girar em torno da figura central do Reparador. É todo o Martinismo, magnificamente coerente e sólido, que se desenvolve no entendimento, a partir das intuições fundamentais.
Vimos a dialética de Saint-Martin e, descrito sob este termo, o percurso do homem na direção do conhecimento de sua origem e de seu destino. É interessante notar que essa marcha do pensamento, reproduz a própria marcha do ser. Comparemos, com efeito, a apreensão do homem por si mesmo com suas conseqüências e a aventura humana que esta apreensão permite reconstituir.
1º - O Homem goza, inicialmente, da felicidade edênica. O menor toma consciência de sua imperfeição atual e da aspiração de seu espírito, em uma palavra, a idéia da beatitude original. Ele se recorda disso em primeiro lugar.
2º - Depois medita sobre o sofrimento que é seu quinhão nesta vida. Descobre o estado após a queda. Assim o Homem no seu périplo cai do Céu, para vir à Terra.
3º - Enfim, o Homem miserável compreende o mistério da passagem, a distância que separa os dois estados. Assim, o Homem decaído transporá novamente a distância infinita, refará o trajeto que conduz à Felicidade e obterá sua Reintegração.
Tese, antítese, síntese. Felicidade primordial, queda e reintegração. O menor espiritual possui o traçado de seu destino. Ele reconheceu, seguramente, através de um procedimento lógico baseado sobre sua curva ontológica. Cada homem reencontra em seu espírito a eterna epopéia do Homem.
"Tenho por verdadeiro o que me é dado por verdadeiro no fundo íntimo de minha alma". (104) Assim, Salzmann define a verdade. Sem dúvida, Saint-Martin não teria negado essa profissão de fé de um iluminado. Mas teria ele julgado suficiente para fundar uma doutrina, para presidir uma iniciação, isto é, a um começo? É o que se pretendeu por várias vezes. Alguns quiseram construir o conjunto do sistema Martinista sobre esse único critério subjetivo. E é porque o quadro do qual tentamos traçar as grandes linhas, parecerá, talvez, muito intelectual, muito intelectualista. Censurar-nos-ão, talvez, por termos insistido sobre o aspecto racional do Martinismo. Seria fácil responder que este aspecto é o único que se pode expor ou discutir e que além de tudo, a pura mística não se descreve nem se prega, que a exortação, pelo próprio fato de ser formulada, sofre o impacto da razão e, reconhece implicitamente o seu poder.
Dir-se-á que Saint-Martin é um místico. A doutrina Martinista é uma doutrina mística. Certamente, mas seria trair a memória de Saint-Martin, apresentá-lo como um puro discípulo de Madame Guyon.
Balzac critica violentamente certos escritos místicos: "São escritos sem método, sem eloqüência e, sua fraseologia é tão bizarra que se pode ler mil páginas de Madame Guyon, de Swedenborg e, sobretudo de Jacob Böehme sem nada depreender daí. Vós ides saber porque, aos olhos destes crentes, tudo está demonstrado". (Prefácio do livre Mystique. Obras completas, Calmann Levy, XXII, 423). Se essas censuras podem, a rigor, aplicar-se a Jacob Böehme, elas não atingem Saint-Martin. Os impulsos do Homem de Desejo repousam sobre as considerações filosóficas Dos Erros e da Verdade, ou do Tableau Naturel. (105)
É preciso nos entendermos sobre a expressão mística. A palavra mística, como a hindu yoga, serve para designar duas idéias diferentes: por um lado, união com Deus, a vida que os cristãos chamam unitiva, de outra parte, um caminho, um método, uma técnica (às vezes, muito próxima do plano físico como na Hatha Yoga) que conduzem a essa união. De um lado a meta, de outro os meios para atingi-la. (106) Para retomar a terminologia Martinista, diferenciamos: a Reintegração e o Caminho Interior que conduz a ela. No esboço do caminho para Deus, podem figurar aspectos racionais que não terão mais vez na existência do homem reintegrado. Quanto à ascese, quanto a essa preparação moral à vida unitiva, ela ocupa lugar no quadro dos elementos racionais. Ainda melhor, apoia-se neles. Convém, pois, tratar dos mesmos em primeiro lugar.
Encontraremos em Saint-Martin, a idéia de Deus sensível ao coração. Mas, esta relação, apenas constitui mais seguidamente, um ideal ou fruto do amor e seu coroamento. O conhecimento de Deus, corolário do conhecimento do homem, pode também ser adquirido através do caminho intelectual. "No que se refere às duas portas, o Coração e o Espírito, creio, escreve o filósofo, que a primeira é muito mais preferível do que a outra, sobretudo, quando se tem a felicidade de participar dela. Mas ela não deve ser, absolutamente exclusiva, principalmente quando é necessário falar a pessoas que só possuem a porta do Espírito apenas entreaberta, e é preciso ser muito escrupuloso sobre esse ensinamento, até que surja a luz". (107)
O método é, em ambos os casos, de inspiração idêntica. É no homem que encontramos Deus. Mas enquanto a descoberta mística se revela estritamente pessoal e às vezes infrutífera, o procedimento racional reverte-se de um valor universal. O Tableau Naturel, por exemplo, mostrará que o exame do espírito, a formação das idéias, em uma palavra, que a psicologia supõe Deus. (108) Descobrir-se-á, assim, um novo elemento a integrar-se na dialética Martinista e que justificará o empréstimo da senda interior.
Por mais inesperada que pareça essa aproximação, o iluminismo de Saint-Martin se acha bem caracterizado pelas observações de um Maurice Blondel. O que é mística? Interroga esta autor, e responde: "A mística não nos conduz para o que é obscuridade e iluminismo, para o que é subliminal ou supraliminal, para um jogo de perspectiva subjetiva, mas para um modo determinado positivamente e metodicamente determinável da vida espiritual e da luz interior, isto quer dizer que ela implica no emprego prévio e concomitante de disposições intelectuais e inteligentes, um querer muito consciente e muito pessoal, uma ascese moral segundo graduações observáveis e reguláveis". (109)
Reprovamos, como Maurice Blondel, esse falso iluminismo. O próprio Saint-Martin, denunciou-o, vigorosamente em Ecce Homo. E nós o reprovamos porque ele está em contradição com o verdadeiro iluminismo, do qual, o Martinismo representa o tipo acabado. Uma palavra não deve lançar o descrédito sobre uma doutrina que ela não designa senão por confusão. "Em geral, olham-me como um iluminado, dizia Saint-Martin, sem que o mundo saiba, todavia, o que se deve entender por essa palavra". (110)
J. de Maistre observará, também, nos seus Soirées de Saint-Petersbourg, (111) até que ponto esse nome foi desviado de seu verdadeiro significado.
"Chamam de iluminados a delinqüentes que ousaram, hoje, conceber e mesmo organizar na Alemanha a mais criminosa associação, medonho projeto de extinguir o Cristianismo e a Monarquia na Europa. (112) Dá-se esse mesmo nome ao discípulo virtuoso de Saint-Martin, que não professa somente o Cristianismo, mas que trabalha para elevar-se às mais sublimes alturas dessa lei Divina".
O iluminismo é, em resumo, o sistema, a maneira de agir do espírito, que oferece a salvação na iluminação. Mas que o iluminismo pressupõe essa iluminação, nada de menos seguro. Sem dúvida, Deus poderá manifestar-se, precocemente e sem preparação. A certeza será manifestada, e mais do que a certeza de uma doutrina, a meta será alcançada. Mas, Saint-Martin possui a mais fiel e a mais exata imagem do homem. Nós o vimos extrair dessa percepção aguda da essência humana seus mais fortes argumentos. A busca de Deus, o caminho para a reintegração; ele admite que nós possuímos a sua chave para uma revelação imediata. É preciso procurá-la, pedi-la, solicitá-la. É por meio dessa finalidade, para responder a essa necessidade racional que erguer-se-á hostil senão a satisfizermos, que o Martinismo usa uma dialética. Saint-Martin declara que o maior erro do homem seria desinteressar-se pela verdade, e também de julgá-la inacessível.
"Tu não me buscarás se tu já não tiveres me encontrado", disse Pascal. E Santo Agostinho, demonstrava que à base do pedido de graça havia já uma graça que permitia formular a oração. Mas qualquer que seja a gratuidade da salvação, da Reintegração, não permanece menos, no início, um movimento voluntário. O Martinismo não desconhece a vontade mesmo quando ela procura identificar-se com a vontade de Deus. Porque é lá que encontra sua plena expansão. No primeiro passo que conduz ao Caminho, o Homem deve contribuir com o seu esforço. E como não age sem razão e sem motivação, cabe à dialética Martinista, lhe indicar a estrela que o conduzirá até Deus, seu Princípio.
Feliz daquele que verá a iluminação esclarecer a conclusão racional com os raios da certeza. Estará próximo da meta. A dialética terá conduzido à mística, pois terá revelado o homem a si mesmo.
"Nosso ser, sendo central, deve encontrar no centro onde estão todos os socorros necessários à sua existência". (113) Que ele aí se encontre com o segredo de seu destino e da sua origem, com os meios de realizar um, retornando à outra. Tal é o grande ensinamento do Martinismo.


69 - Erreurs, prefácio, pág. V.
70 - Erreurs, 1782 I, pág. 9.
71 - Tableou Naturel, 1900, pág. 2.
72 - Erreurs, I, pág. 56.
73 - Tableau Naturel, 1900, pág. 2.
74 - Masshima Kikaya, 63.
75 - Tableau Naturel, 1900, I, pág. 1.
76 - A palavra "humanismo" foi aplicada a Saint-Martin num estudo original de Paul Salleron (Chronique de Paris, nº 9, julho de 1944). O autor, depois de Jacques Maritain, diferencia com sutil inteligência o "humanismo teocêntrico". É, evidentemente, por esta última expressão que Salleron designa a doutrina Martinista.
77 - O acontecimento mais estrepitoso desta luta incessante testemunhada pelos livros e os apontamentos históricos de Saint-Martin, é a controvérsia com Garat, quando de sua permanência na Escola Normal.
78 - Portrait nº 576, I, pág. 72. Conforme ibid, nº 362 "Minha obra tem a sua base e o seu desenvolvimento no divino, não deixará, espero, de ter o seu encerramento no mesmo Divino".
79 - Henri Martin: Histoire de France, Paris, Furne, 1860 t. XVI, p. 530.
80 - Conf. Le Ministère de l'Homme-Esprit. pág. 1,3,7 e 8. "Todos os recursos extraídos da ordem deste mundo, da ordem da natureza, são precários e frágeis... Para nós é bem mais fácil, atingir as luzes e as ceretexas que brilham no mundo onde nós habitamos, do que nos tornarmos familiares com as obscuridades e as trevas que envolvem o mundo onde nós estamos; ... enfim, estamos mais próximos daquilo que chamamos o outro mundo, do que deste".
81 - Matter: Saint-Martin, le Philosophe Inconnu, pág. 219.
82 - Le Nouvel Homme.
83 - Tableau Naturel, 1900, I, pág. 6. "O homem, apesar de sua degradação fatal, traz em si sempre sinais evidentes de sua origem Divina". J. de Maistre. Les Soirées de Saint-Pettersbourg. VII. Palestras.
84 - Erreurs, I, 51.
85 - Ibid. I, 55.
86 - Ibid. I, 61.
87 - Correspondance, pág. 31.
88 - Ibid.
89 - Stances, I, pág. 19.
90 - Erreurs, 1782 I, pág. 31.
91 - Tableau Naturel, V, 1900, pág. 53.
92 - Correspondance, pág. 36, 37. O texto de Ecce Homo que Saint-Martin esclareceu nesta carta está situado na pág. 56.
93 - Erreurs, I, pág. 49.
94 - Stances, 5, pág. 20.
95 - Romanos, VII, 23.
96 - Edição Brunschwieg n 165.
97 - Carta de 27 Fructidor, publicada pela "A Initiation" em fev. de 1912. Tomemos aqui o exemplo de Pascal porque o próprio Saint-Martin nos convida a fazê-lo. Mas, este procedimento que lhe é comum, é o mesmo do cristianismo. Conforme, por exemplo, Calvin: Institution Chretienne (Edição Lefranc, Paris, Champion, 1911, pág. 32) que J. de Saussure assim resume: "A revelação de Deus divide, assim, a alma em duas convicções opostas: a da sua dignidade quanto às suas próprias origens e seu fim supremo, e a da indignidade quanto ao seu estado atual". (Na l'ecole de Calvin, Paris. "Je sers", 1930, pág. 62.
98 - Ecce Homo, 2, pág. 19.
99 - Pensèe. Edição Brunschwieg, 409.
100 - Erreurs, 1782, pág. 30.
101 - Erreurs, 1782, pág. 31.
102 - Tableau Naturel, 1900, pág. 57.
103 - Erreurs, 1782, pág. 37, 38.
104 - Carta ao Sr. Herbot.
105 - Que Balzac, na época, Martinista fevoroso, evita citar.
106 - "O Yoga é o conjunto de processos físicos,mentais e espirituais que tem por finalidade, a transformação profunda do Ser humano, o despertar nele do Homem Novo que, em estado normal é transcendental e inacessível". (J. Marquès-Rivière: Le Yoga Tantrique, pág. 16, Paris, 1937). Poderíamos fornecer uma definição mais detalhada da mística Martinista do que o despertar do Homem Novo?
107 - Carta a Willermoz, 3 de fev. de 1784. Papus, pág. 170.
108 - Tableau Naturel, pág. 8, 9, 10 e 11.
109 - Cahiers de la Nouvelle Journée "O que é a mística" (Bloud e Gay, editores), pág. 19.
110 - Portrait nº 743, pág. 97.
111 - Soirées, XI Palestra (II, 165).
112 - Esta organização é a dos Iluminados da Baviera, discípulos de Jean Weishaupt. (R.A.).
113 - Correspondência, pág. 15.