Extrato
do Umbral dos mistérios
Guaita
Dilacerada pela queda do Supremo Pontificado universal, a centralização hierárquica não mais opunha ao transbordamento das paixões a sua barreira tutelar: os sacerdotes tornaram-se homens novamente. A pior das rotinas - a da inteligência - elegeu os templos como domicílio e o espírito passa a ser substituído pela letra. Os pontífices logo perderam até mesmo a chave tradicional dos hieróglifos sagrados, para realizar-se, assim, em todo o mundo conhecido, a profecia de Thoth, o Trismegisto: "Egito, Egito! De tuas religiões restarão apenas vagos relatos em que a posteridade não mais acreditará, palavras gravadas sobre a pedra, relatando tua piedade... O Divino retornará ao céu, a humanidade, abandonada, perecerá por inteiro, e o Egito será deserto e vazio de homens e de deuses!... Ela, que outrora fora a terra santa, amada pelos deuses por sua devoção a eles, será a perversão dos santos, a escola da impiedade, o modelo de todas as violências. E então, cheio de desgosto pela matéria, o homem não mais terá pelo mundo qualquer admiração ou amor(34)"...
Esta será, verdadeiramente, a palavra vibrante do legendário
personagem que passa, sob o nome de Hermes Thoth, por tríplice fundador
da religião, da filosofia e da ciência egípcias? A crítica
moderna inclina-se a contestar a autenticidade do Poimandres (Poemander),
de Asclépio e da Koré Kosmu (Minerva mundi), bem como de outros
fragmentos herméticos. Com efeito, não há erro quanto
à pessoa? Sabe-se que os hierofantes conferiam a si próprios,
juntamente com a tiara, o nome de Hermes e o sobrenome de Trismegisto. Posteriormente,
tais dogmas, próximos da doutrina cristã, parecem denunciar
a autoria de um neoplatônico... Portanto, é preciso ter cuidado!
Se o cristianismo é apenas um modo novo da antiga ortodoxia universal,
essas semelhanças justificam-se de outra forma que não pelo
plágio. Aliás, dificilmente poderíamos ver nos filósofos
alexandrinos os autores desta Tábua de Esmeralda, de um conteúdo
iniciático magistral. Acreditamos, assim, na antiguidade dos fragmentos
de Hermes. [A forma, sem dúvida, pode ter sofrido alteração
ou ter sido rejuvenescida pela pena dos tradutores e dos copistas, mas o
essencial data de época mais remota e não variou](35). Trata-se,
então, de um hierofante da época áurea que, mergulhando
nos confins da posteridade, prediz desventuras para a terra dos faraós,
como Jeremias para a cidade santa dos Hebreus. Lamentamos ter de mutilar
esta grandiosa página. Entretanto, todos poderão lê-la
no Asclépios.
Jamais uma predição se realizou de modo tão estranho.
Tanto isso é verdade, que, segundo "homens sérios"
deste século, os antigos egípcios adoravam a esfinge e outros
animais fantásticos cujas figuras podemos encontrar sobre os restos
de seus monumentos. Dia virá, sem dúvida, conforme supõe
Eliphas, em que algum ocidentalista definirá o objeto de nosso culto:
um deus tríplice, composto de um velho, um supliciado e um pombo.
Ah! Antes os iconoclastas do que os imbecis! Quebremos todas as imagens
simbólicas, se é que se degenerarão em ídolos!
De qualquer forma, os pensadores podiam contar com essa materialização
do culto: prescrevendo a transmissão dos altos mistérios apenas
com bom conhecimento de causa e mediante ensinamento oral, a lei mágica
expunha seus adeptos negligentes à possibilidade de perder a inteligência
dos mitos sagrados. "É a pura justiça", talvez respondesse,
a essa censura, um hierofante dos velhos tempos. "Antes a ciência
perecer, um dia, do que cair em mãos indignas!..."
Se é verdade que os santuários ortodoxos desmoronaram após
uma agonia de grande duração, algumas sociedades de adeptos
laicos perpetuaram-se, ao menos, até os nossos dias. Não vemos
aqui, necessariamente, a franco-maçonaria, cuja origem dita adonhiramita
e salomônica, não fez senão homens ludibriados conscientes
e encantados por assim serem. Trata-se, na realidade, de raros colégios
- aquela associação dos Mahatmas, por exemplo, que nos assinala
um Louis Dramard em sua brochura intitulada A Ciência e a Doutrina
Esotérica(36). Apaixonados por um ascetismo panteísta, talvez
errôneo, mas notáveis por sua síntese cósmica
e sua ciência espantosa de realização, os Mahatmas sucedem-se,
diz ele, desde tempos imemoriais, sobre os altiplanos do Himalaia. É
lá que vivem no retiro e mergulhados nos estudos. A Sociedade Teosófica,
muito próspera nas Índias Inglesas e em todo o império
britânico, estendendo diversas ramificações até
Paris, reivindica esses mestres orientais, inspiradores diretos da interessante
revista (O Teosofista) que foi fundada em Madras sob os seus auspícios.
Mas retomemos ao mundo antigo. Quando Moisés, sacerdote de Osíris,
deixou o Egito levando consigo a multidão bastante miscigenada, que
guiou pelo deserto até Canaã, a decadência sacerdotal,
que mal se notava em Mizraim, acentuou-se entre os outros povos em que a
usurpação cismática dissolvera a autoridade arbitral.
A gangrena moral invadiu sobretudo o país de Assur, tiranizado, desde
o advento de Ninus (2200 a.C.), por uma seqüência ininterrupta
de déspotas conquistadores.