O Lado Oculto do Cristianismo
Annie Besant
a) O Testemunho das Escrituras
Tendo visto que as religiões do passado reivindicaram uníssonas
ter um lado oculto, ser custódias de "Mistérios",
e que esta reivindicação foi endossada pela busca de Iniciação
pelos homens mais eminentes, devemos agora averiguar se o Cristianismo fica
fora deste círculo de religiões, sozinho sem uma Gnose, oferecendo
ao mundo uma fé simples e não um conhecimento profundo. Se
for assim, seria em verdade um fato triste e lamentável, provando
ser o Cristianismo apenas destinado a uma só classe, e não
a todos os tipos de seres humanos. Mas que isto não é assim,
seremos capazes de provar além da possibilidade de dúvida
racional.
E esta prova é a coisa que a Cristandade mais urgentemente necessita
nestes tempos, pois até a própria flor da Cristandade está
perecendo por falta de conhecimento. Se o ensino esotérico puder
ser restabelecido e angariar estudantes pacientes e dedicados, não
demorará muito para que o lado oculto também seja restaurado.
Discípulos dos Mistérios Menores se tornarão candidatos
aos Maiores, e com a reobtenção do conhecimento voltará
também a autoridade do ensinamento. E de fato a necessidade é
grande. Pois, olhando para o mundo em volta de nós, descobrimos que
a religião no Ocidente está sofrendo da mesma dificuldade
que teoricamente nós deveríamos esperar encontrar. O Cristianismo,
tendo perdido seu ensino místico e esotérico, está
perdendo terreno entre grande número das pessoas mais altamente educadas,
e a revivescência parcial durante os últimos anos é
coincidente com a reintrodução de alguns ensinamentos místicos.
É patente para todo estudante nos últimos 40 anos do século
passado (o século XIX), que multidões de pessoas inteligentes
e de alta moralidade tenham se desviado para fora das igrejas, porque os
ensinamentos que recebiam lá ultrajavam sua inteligência e
chocavam seu senso moral. É inútil pretender que o agnosticismo
disseminado deste período tenha suas raízes seja na falta
de moralidade ou na deliberada perversidade de mente. Qualquer um que estudar
com cuidado o fenômeno logo admitirá que homens de poderoso
intelecto foram levados para fora do Cristianismo pela crueza das idéias
religiosas apresentadas, as contradições nos ensinamentos
das autoridades, nas concepções sobre Deus, o homem e o universo,
que nenhuma inteligência treinada poderia chegar a admitir. Nem pode
ser dito que qualquer tipo de degradação moral esteja na raiz
da revolta contra os dogmas da Igreja. Os rebeldes não eram ruins
demais para a sua religião. Ao contrário, foi a religião
que ficou ruim demais para eles. A rebelião contra o Cristianismo
popular foi devida ao despertar e crescimento da consciência; foi
a consciência que se revoltou, assim como a inteligência, contra
ensinamentos desonrosos tanto para Deus quanto para o homem, que representavam
Deus como um tirano, e o homem como sendo essencialmente mau, obtendo a
salvação por submissão escrava.
A razão para esta revolta jaz no gradual rebaixamento do ensinamento
Cristão para uma alegada simplicidade, para que o mais ignorante
pudesse ser capaz de compreendê-lo. Os religiosos Protestantes assertaram
sonoramente que nada deveria ser pregado exceto aquilo que pudesse ser compreendido,
que a glória do Evangelho está em sua simplicidade, e que
a criança e o inculto deveriam ser capazes de entendê-lo e
aplicá-lo à vida. Bastante verdadeiro, se com isto se quisesse
dizer que existem algumas verdades religiosas que todos podem entender,
e que a religião falha se deixa o mais inferior, o mais ignorante,
o mais estúpido, de fora de sua influência elevadora. Mas falso,
completamente falso, se com isso se quiser dizer que a religião não
tem verdades que o ignorante não possa compreender, que é
uma coisa tão pobre e limitada a ponto de não ter nada para
ensinar que esteja acima do pensamento do não inteligente ou acima
do nível moral do degradado. Falso, fatalmente falso, se este for
seu sentido; pois à medida que esta visão se espalha, ocupando
os púlpitos e sendo proclamada nas igrejas, muitos homens e mulheres
nobres, cujos corações quase se partem quando rompem sua ligação
que os une à sua antiga fé, saem das igrejas, e deixam seus
lugares ser preenchidos pelos hipócrita e pelo ignorante. Eles ou
passam para um estado de agnosticismo passivo, ou - se são jovens
e entusiastas - para uma condição de agressão ativa,
não acreditando que aquilo que poderia ser a coisa mais elevada ultraje
tanto o intelecto como a consciência, e preferem a honestidade de
uma descrença aberta ao embotamento do intelecto e da consciência
sob imposição de uma autoridade em quem não reconhecem
nada que seja divino.
Neste estudo do pensamento de nosso tempo vemos que a questão de
um ensinamento oculto em conexão com o Cristianismo se torna de importância
vital. O Cristianismo há de sobreviver como a religião do
Ocidente? Viverá através dos séculos futuros, e continuará
a ter uma parte na formação do pensamento das raças
ocidentais em evolução? Se há de viver, deve recuperar
o conhecimento que perdeu, e ter de novo seus místicos e seus ensinamentos
ocultos; deve mais uma vez colocar-se como uma autoridade ensinando as verdades
espirituais, revestido da única autoridade que vale alguma coisa,
a autoridade do conhecimento. Se estes ensinamentos forem recuperados, sua
influência logo será vista nas novas e mais amplas concepções
da verdade; dogmas, que agora parecem apenas meras cascas e plumas, deverão
novamente ser apresentações de partes das realidades fundamentais.
Em primeiro lugar, o Cristianismo reaparecerá no "Lugar Santo",
no Templo, de modo que todos que sejam capazes de receber suas linhas de
pensamento divulgado em público; e em segundo lugar, o Cristianismo
Oculto descerá outra vez ao Ádito, residindo detrás
do véu que guarda o "Santo dos Santos", para dentro do
qual só os Iniciados podem passar. Então novamente o ensinamento
oculto estará ao alcance daqueles que se qualificarem para recebê-lo,
de acordo com as antigas regras, aqueles que desejam nos dias de hoje enfrentar
as antigas exigências, feitas a todos os que hão de alegrar-se
em conhecer a realidade e a verdade das coisas espirituais.
Mais uma vez voltemos nossos olhos para a história, para vermos se
o Cristianismo foi único entre as religiões em não
possuir nenhum conhecimento interno, ou se assemelhou-se a todas as outras
possuindo este tesouro oculto. Este problema é uma questão
de evidência, não de teoria, e deve ser decidido pela autoridade
dos documentos existentes e não pelo mero "assim se diz"
dos Cristãos modernos.
É fato que tanto o Novo Testamento e os escritos da Igreja Primitiva
fazem as mesmas declarações sobre a posse de tais ensinamentos
pela Igreja, e sabemos a partir deles do fato da existência dos Mistérios
- chamados Mistérios de Jesus, ou Mistério do Reino -, das
condições impostas aos candidatos, algo da natureza geral
dos ensinamentos dados, e outros detalhes. Certas passagens no Novo Testamento
ficariam inteiramente obscuras, não fosse pela luz lançada
neles pelas declarações definidas dos Padres e Bispos da Igreja,
mas debaixo daquela luz elas se tornam claras e inteligíveis.
Teria na verdade sido estranho se fosse diferente, quando consideramos as
linhas do pensamento religioso que influenciaram o Cristianismo primitivo.
Aliado aos hebreus, os persas, os gregos, tinto pelos antigos credos da
Índia, profundamente colorido pelo pensamento sírio e egípcio,
este último ramo do grande tronco religioso não poderia fazer
outra coisa senão reafirmar as antigas tradições, colocando
ao alcance das raças ocidentais todo o tesouro das tradições
antigas. "A fé antigamente confiada aos Santos" teria na
verdade sido esvaziada deste valor principal se, quando transmitida para
o Ocidente, a pérola do ensinamento esotérico tivesse sido
escamoteada.
A primeira evidência a ser examinada é a do Novo Testamento.
Para nossos propósitos podemos colocar de lado todas as enfadonhas
questões das diferentes redações e dos diferentes autores,
que só podem ser julgadas por eruditos. A erudição
crítica tem muito a dizer sobre a idade dos manuscritos, sobre a
autenticidade dos documentos, e assim por diante. Podemos aceitar as Escrituras
canônicas como demonstração do que era acreditado na
Igreja Primitiva a respeito do ensino de Cristo e de Seus seguidores imediatos,
e ver o que elas dizem sobre a existência de um ensinamento secreto
transmitido somente a uns poucos. Tendo visto as palavras postas na boca
do próprio Jesus, e consideradas pela Igreja como de suprema autoridade,
olharemos para os escritos do grande apóstolo São Paulo; então
consideraremos as declarações feitas por aqueles que herdaram
a tradição apostólica e guiaram a Igreja durante os
primeiros séculos. Ao longo desta ininterrupta linha de tradição
e testemunho escrito pode ser estabelecida a proposição de
que o Cristianismo tinha um lado oculto. Veremos ainda que os Mistérios
Menores de interpretação mística podem ser acompanhados
através dos séculos até o início do século
XIX, e que embora já não houvesse Escolas de Misticismo reconhecidas
como preparatórias para a iniciação depois do desaparecimento
dos Mistérios, ainda assim grandes Místicos, de tempos em
tempos, alcançaram os degraus inferiores do êxtase por seus
próprios esforços contínuos, auxiliados sem dúvida
pelos Instrutores invisíveis.
As palavras do próprio Mestre são claras e definidas, e foram,
como veremos, citadas por Orígenes como referentes ao ensinamento
secreto preservado na Igreja. "E quando estava sozinho, aqueles que
estavam com Ele, os doze, faziam-Lhe perguntas sobre as parábolas.
E Ele lhes disse: 'A vós é dado conhecer o mistério
do Reino de Deus, mas a eles que estão de fora, todas estas coisas
são dadas em parábolas' ". E mais adiante: "Com
muitas parábolas semelhantes Ele pregava a palavra à multidão,
pois só assim podiam ouvir. Mas sem parábolas Ele não
lhes falava; e quando eles estavam sozinhos Ele explicava todas as coisas
aos Seus discípulos" (Marcos, IV, 10, 11, 33, 34. Vide também
Mateus, XIII, 11, 34, 36, e Lucas, VIII, 10). Percebam as significativas
palavras "quando estavam sozinhos", e a frase "aqueles que
estão de fora". Também na versão de São
Mateus: "Jesus despediu a multidão, e entrou na casa; e Seus
discípulos foram com Ele". Estes ensinamentos dados "na
casa", os significados mais recônditos de Suas instruções,
considera-se que eram transmitidos de instrutor a instrutor. O Evangelho
dá, note-se, as explicações místicas alegóricas,
aquilo que chamamos Os Mistérios Menores, mas o significado mais
profundo diz-se ter sido dado somente aos iniciados.
Novamente, Jesus diz até mesmo aos Seus apóstolos: "Eu
ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas ainda não sois capazes
de as receber" (João, XVI, 12). Algumas delas provavelmente
foram ditas depois de Sua morte, quando Ele foi visto pelos discípulos
"falando das coisas pertencentes ao Reino de Deus" (Atos, 1, 3).
Nenhuma delas foi registrada publicamente, mas quem pode acreditar que foram
deixadas de lado ou esquecidas, e não preservadas como algo inestimável?
Havia uma tradição na Igreja que Ele visitou Seus apóstolos
durante um considerável período após Sua morte, para
dar-lhes instrução - um fato a que faremos menção
mais tarde - e no famoso tratado Gnóstico Pistis Sophia, lemos: "chegou-se
a dizer que, depois de ressuscitar dos mortos, Jesus passou onze anos falando
com Seus discípulos e instruindo-os" (loc. cit., trad. G.R.S.
Mead, I, I, 1). Então vem a frase, que muitos gostam de amenizar
e explicar evasivamente: "Não deis o que é santo aos
cães, nem lanceis vossas pérolas ao porcos" (Mateus,
VII, 6) - um preceito que é de aplicação geral, na
verdade, mas foi considerado pela Igreja Primitiva referir-se aos ensinamentos
secretos. Deveria ser lembrado que as palavras não tinham a mesma
dureza naqueles dias como têm agora, pois a palavra "cães"
- significando o vulgo, o profano - era aplicada por aqueles de um determinado
círculo a todos os que eram de fora de seu grupo, seja por uma sociedade
ou associação, ou por uma nação - como pelos
Judeus a respeito dos Gentios (assim como sobre as mulheres gregas: "Não
é lícito tirar o pão das crianças e jogá-lo
para os cães" - Marcos, VII, 27). Algumas vezes era usada para
designar aqueles que estavam fora do círculo dos Iniciados, e a encontramos
aplicada neste sentido na Igreja Primitiva; aqueles que, não tendo
sido iniciados nos Mistérios, eram considerados como fora do "Reino
de Deus", ou da "Israel espiritual", e tinham este nome aplicado
a eles.
Havia diversos nomes, além do termo "O Mistério",
ou "Os Mistérios", usados para designar o círculo
sagrado de Iniciados ou ligados à Iniciação: "O
Reino". "O Reino de Deus", O Reino dos Céus",
A Vereda Estreita", "A Porta Estreita", "O Perfeito",
"O Salvo", "Vida Eterna", "Vida", "O
Segundo Nascimento", "O Pequenino", "A Criancinha".
O significado é tornado claro pelo uso destas palavras nos primeiros
escritos Cristãos, e em alguns casos fora do círculo Cristão.
Assim, o termo "O Perfeito" era usado pelos Essênios, que
tinham três graus em suas comunidades: os Neófitos, os Irmãos,
e os Perfeitos - sendo estes os Iniciados; e é empregado geralmente
neste sentido nos antigos escritos. "A Criancinha" era o nome
comum para um candidato recém iniciado, isto é, aquele que
recém teve seu "segundo nascimento".
Quando passamos a conhecer este uso, muitas passagens de outro modo obscuras
e rudes se tornam inteligíveis. "Então um disse-lhe:
Senhor, serão poucos os salvos? E Ele respondeu-lhes: Esforçai-vos
para entrar pela porta estreita; pois digo-vos, muitos procurarão
entrar e não serão capazes" (Lucas, XIII, 23, 24). Se
isto for aplicado, do modo Protestante usual, à salvação
do fogo eterno do inferno, a afirmação se torna incrível,
chocante. Não se pode supor que nenhum Salvador do mundo possa afirmar
que muitos procurarão evitar o inferno e entrar no céu, mas
não serão capazes de fazê-lo. Mas se aplicado à
estreita porta de entrada na Iniciação e sua conseqüente
salvação do renascimento, é perfeitamente verdadeiro
e natural. E novamente: "Entrai pela porta estreita; pois larga é
a porta e amplo é o caminho que conduz à destruição,
e muitos serão os que andarão neles; porque estreita é
a porta e apertado é o caminho que conduz à vida; e poucos
o encontrarão" (Mateus, VII, 13, 14). A advertência que
se segue imediatamente contra os falsos profetas, os mestres dos Mistérios
tenebrosos, é muito própria em relação a aquilo.
Nenhum estudante pode esquecer o som familiar destas palavras usadas no
mesmo sentido em outras passagens. A "antiga vereda estreita"
é familiar a todos; a senda "tão difícil de trilhar
como se fosse o fio de uma navalha" (Kathopanishad, II, IV, 10, 11)
já mencionado; a perambulação "de morte em morte"
daqueles que seguem o florido caminho dos desejos, daqueles que não
conhecem Deus; pois só se tornam imortais e escapam da bocarra da
morte, da repetida destruição, aqueles homens que eliminaram
todos os desejos (Brhadâranyakopanishad, IV, IV, 7). A alusão
á morte, é claro, é feita aos repetidos nascimentos
da alma na existência material grosseira, considerada sempre como
"morte" quando comparada à "vida" dos mundos
mais elevados e sutis.
Esta "Porta Estreita" era o portal da Iniciação,
através dele o candidato entrava no "Reino". E sempre foi
e deve ser verdadeiro que somente uns poucos podem passar por aquele portal,
embora miríades - uma excepcionalmente "grande multitude, que
ninguém poderia contar" (Apocalipse, VII, 9), e não uns
poucos - adentrem a felicidade do mundo celeste. Assim também falou
um outro grande Instrutor, há quase três mil anos atrás:
"Dentre milhares de homens talvez só um se esforce pela perfeição;
dentre os milhares que a obtém talvez só um Me conheça
em essência" (Bhagavad Gita, VII, 3). Pois são poucos
os Iniciados em cada geração, são a flor da humanidade;
mas nenhuma frase terrível de condenação eterna é
pronunciada nesta declaração sobre a vasta maioria da raça
humana. Como Proclo ensinou (vide ante, p. 23), os salvos são os
que escapam do ciclo da geração, ao qual está atada
a humanidade.
Em conexão a isto podemos lembrar da história do jovem que
veio a Jesus, e chamando-lhe de "Bom Mestre", perguntou como ele
poderia obter a vida eterna - a bem reconhecida liberação
dos renascimentos através do conhecimento de Deus (deve ser lembrado
que os Judeus acreditavam que todas as almas imperfeitas voltavam para viver
novamente na Terra). Sua primeira resposta foi o preceito exotérico
usual: "Observa os mandamentos". Mas quando o jovem respondeu:
"Todas estas coisas eu tenho observado desde minha juventude",
então, para aquela consciência livre de toda a transgressão,
veio a resposta do verdadeiro Mestre: "Se queres ser perfeito, vai
e vende tudo o que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro
nos céus, depois vem e segue-Me". "Se queres ser perfeito",
ser um membro do reino, devem ser abraçadas a pobreza e a obediência.
E então para os seus próprios discípulos Jesus explica
que dificilmente um homem rico pode entrar no Reino dos Céus, sendo
tal entrada mais difícil que um camelo passar pelo buraco de uma
agulha; pelos homens esta entrada não poderia ocorrer, por Deus todas
as coisas são possíveis (Mateus, XIX, 16-26). Somente Deus
no homem pode ultrapassar aquela barreira. Este texto tem sido explicado
de várias maneiras, sendo obviamente impossível conseguí-lo
tomando seu significado superficial, que um homem rico não pode entrar
em um estado de felicidade pós-morte. Neste estado entram tanto o
rico como o pobre, e as práticas universais dos Cristãos mostram
que eles nem por um momento acreditam que a riqueza impeça sua felicidade
após a morte. Mas se o significado real de "Reino dos Céus"
for aplicado, temos a expressão de um fato simples e direto. Pois
aquele conhecimento de Deus que é Vida Eterna (João, XVII,
3) não pode ser obtido até que tudo o que for terreno seja
abandonado, não pode ser aprendido até que tudo tenha sido
sacrificado. O homem deve desistir não só da riqueza terrena,
que daí em diante pode passa por suas mãos só para
administrá-la, mas ele deve desistir também de sua riqueza
interna, até onde ele a guardar como sua contra o mundo; antes que
ele seja desnudado não poderá passar pela porta estreita.
Este tem sido sempre um requisito para a Iniciação, e o voto
do candidato tem sido sempre "pobreza, obediência, castidade".
O "segundo nascimento" é um outro termo bem conhecido para
Iniciação; mesmo hoje na Índia as castas mais elevadas
são chamadas "duas vezes nascidas", e a cerimônia
que os torna duas vezes nascidos é uma cerimônia de Iniciação
- na verdade mera simulação, nos dias de hoje, mas segue "o
padrão das coisas que está no céu" (Hebreus, IX,
23). Quando Jesus está se dirigindo a Nicodemos, Ele fala que "a
não ser que um homem nasça duas vezes, não pode ver
o Reino de Deus", e este nascimento é dito como sendo aquele
"da água do Espírito" (João, III, 3, 5);
esta é a primeira Iniciação; uma ulterior é
a "do Espirito Santo e do fogo" (Mateus, III, 11), o batismo do
Iniciado em sua maturidade, assim como a primeira é a do nascimento,
que o recebe como "uma Criancinha" que entra no Reino (ibid.,
XVIII, 3). Quão totalmente familiares eram estas imagens entre os
místicos dos Judeus é indicado pela surpresa demonstrada por
Jesus quando Nicodemos se embaraçava com Sua fraseologia mística:
"Tu és um mestre de Israel e não conheces estas coisas?"
(João, III, 10).
Um outro preceito de Jesus que permanece como "um ditado rude"
para seus seguidores é: "Sêde perfeitos, assim como vosso
Pai no céu é perfeito" (Mateus, V, 48). O Cristão
comum sabe que possivelmente não conseguirá obedecer a este
mandamento; cheio como está com as fragilidades e fraquezas humanas,
como poderá ser perfeito como Deus é perfeito? Vendo a impossibilidade
da meta posta diante dele, ele discretamente a põe de lado, e não
pensa mais nisso. Mas vista como o esforço coroador de muitas vidas
de melhoras constantes, como o triunfo do Deus interno sobre a natureza
inferior, a meta parece então dentro do alcance, e lembramos as palavras
de Porfírio, sobre como o homem que atinge as "virtudes paradigmáticas
é o Pai dos Deuses" (vide ante, p. 24) e que nos Mistérios
aquelas virtudes são adquiridas.
São Paulo segue nas pegadas de seu Mestre, e fala exatamente do mesmo
sentido, mas com uma explicitude e clareza maiores, como poderia ser esperado
a partir de seu trabalho organizador na Igreja. O estudante deveria ler
com atenção os capítulos II e III, e o versículo
1 do capítulo V da Primeira Epístola aos Coríntios,
lembrando, à medida que lê, que as palavras são endereçadas
aos membros batizados e comungantes da Igreja, membros plenos no sentido
moderno, embora, descritos como bebês e carnais pelo Apóstolo.
Eles não eram catecúmenos ou neófitos, mas homens e
mulheres que estava em plena posse de todos os privilégios e responsabilidades
como membros da Igreja, reconhecidos pelo Apóstolo como estando apartados
do mundo, e dos quais não esperava que se portassem como homens do
mundo. Eles estavam, de fato, de posse de tudo o que a Igreja moderna dá
aos seus membros. Resumamos as palavras do Apóstolo:
"Eu venho
a vós trazendo o testemunho divino, e não vos enganando com
sabedoria humana, mas venho com o poder do Espírito. Em verdade 'falamos
sabedoria entre os que são perfeitos, mas não é sabedoria
humana'. Falamos da sabedoria de Deus em mistério, mesmo a sabedoria
oculta, que Deus ordenou antes que o mundo existisse, a qual nem os príncipes
deste mundo conhecem. As coisas daquela sabedoria estão além
do entendimento dos homens, 'mas Deus as revela a eles por Seu Espírito...
as coisas íntimas de Deus', 'ensinadas pelo Espírito Santo'
(Note-se como isto se alinha com a promessa de Jesus em João, XVI,
12-14: "Eu tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas ainda não
as podeis suportar. Porém quando Ele, o Espírito da Verdade,
vier, Ele vos guiará em toda a verdade... Ele vos mostrará
as coisas do porvir... Ele as receberá de Mim e as mostrará
a vós"). Estas são coisas espirituais, a serem discernidas
somente pelos homens espirituais, em quem está a mente de Cristo.
'E Eu, irmãos, não vos poderia falar como falo aos espirituais,
mas falo como aos carnais até mesmo para os bebês em Cristo...
Eles não eram capazes de o suportar, como vós não o
suportaríeis ainda. Pois sois ainda carnais'. Como um mestre-construtor
[um outro termo técnico nos Mistérios] Eu deixei as fundações'
e 'vós sois o Templo de Deus, e o Espírito de Deus habita
em vós'. 'Que um homem nos considere assim, como ministros de Cristo,
e guardiães dos Mistérios de Deus' ".
Alguém pode ler esta passagem - e tudo o que foi dito no resumo é
para enfatizar os pontos importantes - sem reconhecer o fato de que o Apóstolo
possuía uma sabedoria divina dada nos Mistérios, que seus
seguidores coríntios ainda não eram capazes de receber? E
notem a recorrência de termos técnicos: a "sabedoria",
a "sabedoria de Deus em mistério", a "sabedoria oculta",
conhecida somente pelos homens "espirituais", falada somente entre
os "perfeitos", sabedoria da qual eram excluídos os não-"espirituais",
os "bebês em Cristo", e só conhecida dos "mestres
construtores", os "guardiães dos Mistérios de Deus".
Repetidas vezes ele se refere a estes Mistérios. Escrevendo aos Cristãos
de Éfeso ele diz que "pela revelação", pelo
desvelamento, tinha sido feito "sabedor dos Mistérios",
e daí seu "conhecimento dos mistérios de Cristo";
todos podiam saber sobre a "irmandade dos Mistérios" (Efésios,
III, 3, 4, 9). Sobre este Mistério, ele repete aos colossenses que
foi "feito ministro", "o Mistério que esteve ocultos
das idades e das gerações, mas que agora era tornado manifesto
aos Seus santos"; não ao mundo, nem mesmo aos Cristãos,
mas somente aos Santos. Para eles era revelada "a glória deste
Mistério"; e o que era isso? "Cristo em vós"
- uma frase significativa, que veremos, logo, pertencer à vida do
Iniciado; assim finalmente todo homem deve aprender a sabedoria, e se tornar
"perfeito em Cristo Jesus" (Colossenses, i, 23, 25-28. Mas São
Clemente, em seu Stromata, traduz "todo homem" como "o homem
todo". Vide o Livro V, cap. X). A estes Colossenses ele ordena orar
"para que Deus nos abra aporta da profecia, para falar o Mistério
de Cristo" (Colossenses, IV, 3), uma passagem à qual São
Clemente se refere como sendo uma em que o Apóstolo "revela
claramente que o conhecimento não pertence a todos" (Clemente
de Alexandria, Stromata, Livro V, cap. X; A.-N.C.L. Alguns ditos adicionais
dos Apóstolos serão encontrados nas citações
de Clemente, mostrando qual significado tinham para as mentes daqueles que
sucederam os Apóstolos, e que viviam na mesma atmosfera de pensamento).
Da mesma forma também escreve ao seu bem-amado Timóteo, ordenando-lhe
selecionar seus diáconos dentre aqueles que "mantinham o Mistério
da fé em uma consciência pura", aquele "grande Mistério
da Piedade", que ele havia aprendido (I Timóteo, III, 9, 16),
cujo conhecimento era necessário para os instrutores da Igreja.
Porém São Timóteo está em uma posição
importante como representante da geração seguinte de instrutores
Cristãos. Ele foi discípulo de São Paulo, e foi indicado
por ele para guiar e dirigir uma porção da Igreja. Ele havia
sido, sabemos, iniciado nos Mistérios pelo próprio São
Paulo, e é feita referência a isto, e os termos técnicos
mais uma vez servem como chave. "Esta função te delego,
meu filho Timóteo, de acordo com as profecias que foram feitas sobre
ti" (I Timóteo, I, 18), a bênção solene
do Iniciador, que admitia o candidato; mas o Iniciador não estava
sozinho: "Não descureis o dom que está em vós,
o qual vos foi dado pela profecia, abandonando o Presbitério"
(ibid., IV, 14) dos Irmãos Maiores. E ele lhe adverte preservar aquela
"vida eterna, à qual também fostes chamado, e professastes
um bom voto diante de muitas testemunhas" (ibid., VI, 13) - o voto
do novo Iniciado prestado na presença dos Irmãos Maiores e
da assembléia dos Iniciados. O conhecimento dado então era
a incumbência sagrada sobre a qual São Paulo fazia tanta ênfase:
"Oh Timóteo, preserva aquilo que te foi confiado" (Ibid.
20) - e não o conhecimento comumente possuído pelos Cristãos,
a respeito do qual não havia obrigação nenhuma sobre
São Timóteo, mas o depósito sagrado confiado a ele
como Iniciado, e essencial ao bem da Igreja. São Paulo mais tarde
volta a isto, enfatizando a suprema importância do assunto de um modo
que teria sido exagerado se o conhecimento fosse a propriedade comum dos
homens Cristãos: "Guarda bem a forma das sérias palavras
que ouvistes de mim... Aquela boa coisa que te foi confiada, guarda-a pelo
Espírito Santo que reside em nós" (II Timóteo,
I, 13,14) - uma adjuração tão séria quanto seria
possível por lábios humanos. Mais ainda, era seu dever prover
a devida transmissão deste depósito sagrado, para que pudesse
transmitido ao futuro, e a Igreja nunca fosse deixada sem Instrutores: "As
coisas que ouvistes de mim entre muitas testemunhas" - os ensinamentos
orais sagrados dados na assembléia dos Iniciados, que testemunhava
a precisão da transmissão - "confia o mesmo a homens
dignos, que sejam também capazes de ensinar aos outros" (Ibid.,
II, 2).
O conhecimento - ou, se preferirmos o termo, a suposição -
de que a Igreja possuía estes ensinamentos ocultos lança uma
torrente de luz sobre estas diversas passagens de São Paulo sobre
si mesmo, e quando as reunimos, temos um perfil da evolução
do Iniciado. São Paulo diz que embora ele já estivesse entre
os perfeitos, os Iniciados - pois ele diz: "Que nós, portanto,
que somos perfeitos, tenhamos esta mentalidade" - ele ainda não
tinha "atingido", ainda não era em verdade inteiramente
"perfeito", pois ainda não havia recebido Cristo, ele ainda
não havia atingido o "alto chamado de Deus em Cristo",
"o poder de Sua ressurreição, e a companhia de Seus sofrimentos,
sendo tornado conforme à Sua morte"; e ele estava tentando,
diz, "se por algum meio puder alcançar a ressurreição
dos mortos" (Filipenses, III, 8, 10-12, 14, 15). Pois esta era a Iniciação
que libertava, que fazia do Iniciado um Mestre perfeito, o Cristo Ressurrecto,
libertando-o finalmente dos "mortos", da humanidade presa ao ciclo
da geração, dos laços que atavam a alma à matéria
grosseira. Novamente aqui temos um número de termos técnicos,
e mesmo o leitor superficial deveria perceber que a "ressurreição
dos mortos" mencionada aqui não poderia ser a ressurreição
comum dos modernos Cristãos, suposta ser inevitável para todos
os homens, e portanto não requerendo obviamente nenhuma luta especial
da parte de ninguém para conseguí-la. De fato a própria
palavra "conseguir" estaria fora de lugar ao referir-se a uma
experiência humana universal e inevitável. São Paulo
não poderia evitar esta ressurreição, de acordo com
o ponto de vista dos Cristãos modernos. Qual seria então a
ressurreição a ser conseguida para a qual ele estava fazendo
tão estrênuos esforços? Uma vez mais a única
resposta vem dos Mistérios. Neles o Iniciado se aproximava da Iniciação
que libertava do ciclo do renascimento, o ciclo da geração,
era chamado de "o Cristo sofredor", ele compartilhava dos sofrimentos
do Salvador do mundo, era crucificado misticamente, "tornado conforme
à Sua morte", e então conseguia a ressurreição,
a companhia do Cristo glorificado, e, depois, a morte já não
tinha poder sobre ele (Apocalipse, i, 18. "Eu sou Aquele que vive,
esteve morto e ressurgiu, e vive eternamente. Amen"). Este era o "prêmio"
em direção ao qual o Apóstolo estava se esforçando,
e ele urge "todos os que são perfeitos", não o crente
comum, para que também se esforcem deste modo. Que não se
contentem com o que já obtiveram até então, mas que
se esforcem por mais.
Esta semelhança com Cristo do Iniciado, de fato, é o próprio
trabalho dos Mistérios Maiores, como veremos em maior detalhe quando
estudarmos "O Cristo Místico". O Iniciado já não
devia ver o Cristo como fora de si mesmo. "Embora tenhamos conhecido
o Cristo na carne, deste modo já não o conhecemos" (II
Coríntios, V, 16).
O crente comum havia sido "revestido de Cristo, assim como todos de
vós que fostes batizados em Cristo se revestiram de Cristo"
(Gálatas, III, 27). Então eles se tronavam os "bebês
em Cristo", a quem já se fez referência, e Cristo era
o Salvador de quem eles buscavam ajuda, conhecendo-O "na carne".
Mas quando eles haviam vencido a natureza inferior e já não
eram "carnais", então eles entrariam em um caminho mais
elevado, e se tornariam eles mesmo Cristo. Isto que ele mesmo já
havia conseguido era o desejo do Apóstolo para os seus seguidores.
"Meus filhos, de quem sofro as dores do parto até que Cristo
seja formado em vós" (Gálatas, IV, 19). Ele já
era seu pai espiritual, "tendo-vos gerado através do evangelho"
(I Coríntios, IV, 15). Mas agora ele era como aquele que gera "novamente",
como se fosse sua mãe para levá-los ao segundo nascimento.
Então o Cristo Infante, a Santa Criança, nascia na alma, "o
homem oculto no coração" (I Pedro, III, 4), e o Iniciado
se tornava assim "a Criancinha"; daí por diante ele devia
viver em sua pessoa a vida do Cristo, até que se trinasse o "homem
perfeito", crescendo "até a medida da plena estatura de
Cristo" (Efésios, IV, 13). Então ele, como São
Paulo estava fazendo, repetia em sua própria carne os sofrimentos
de Cristo (Colossenses, I, 24) e sempre tinha "junto a si a morte do
Senhor Jesus", para que pudesse dizer com verdade "sou crucificado
com Cristo; não obstante eu vivo; embora não seja eu, mas
é Cristo que vive em mim" (Gálatas, II, 20). Assim o
Apóstolo estava ele mesmo sofrendo; assim ele descrevia si próprio.
E quando a luta termina, quão diferente é o tom calmo de triunfo
sobre árduos esforços dos primeiros anos: "Agora estou
pronto para ser oferecido, e o tempo de minha partida está próximo.
Eu lutei a boa luta, terminei minha carreira, guardei a fé; por isso
me espera uma coroa de justiça" (II Timóteo, IV, 6-8).
Esta era a coroa dada " a ele que vencera", de quem é dito
pelo Cristo Ressurrecto: "Eu farei dele um pilar no Templo de meu Deus;
e dali não sairá mais" (Apocalipse, III, 12). Pois após
a "Ressurreição" o Iniciado se tornava o Homem Perfeito,
o Mestre, e já não sai do Templo, mas dali serve e guia os
mundos.
Pode ser bom assinalar, antes de encerarmos este capítulo, que o
próprio São Paulo sanciona o uso do ensinamento teórico
místico na explicação dos eventos históricos
registrados nas escrituras. A história escrita ali não é
considerada por ele um mero registro de fatos, que ocorreram no plano físico.
Verdadeiro místico, ele via nos eventos físicos as sombras
das verdades universais sempre ocorrendo nos mundos mais altos e internos,
e sabia que os eventos escolhidos para serem preservados nos escritos ocultos
eram aqueles mais típicos, cuja explicação serviria
à instrução humana. Assim ele toma a história
de Abraão, Sarai, Hagar, Ismael e Isaac, e dizendo que "aquelas
coisas são alegorias", ele passa a dar a interpretação
mística (Gálatas, IV, 22-31). Referindo-se à fuga dos
israelitas do Egito, ele fala do Mar Vermelho como um batismo, do maná
e da água como comida e bebida espirituais, da rocha de onde a água
fluiu como sendo o Cristo (I Coríntios, X, 1-4). Ele vê o grande
mistério da união de Cristo com Sua Igreja na relação
de marido e mulher, e fala dos Cristãos como sendo a carne e os ossos
do corpo de Cristo (Efésios, V, 23-32). O autor desta Epístola
aos Hebreus alegoriza todo o sistema de culto Judeu. No Templo ele vê
um espelho do Templo celeste, no Sumo Sacerdote ele vê Cristo, nos
sacrifícios vê a doação do Filho imaculado; os
sacerdotes do Templo não passam de "exemplos e sombras das coisas
celestes", do sacerdócio celeste servindo no "verdadeiro
tabernáculo". Uma alegoria muito elaborada é assim desenvolvida
nos capítulos III a X, e o escritor alega que o Espírito Santo
significava assim o sentido mais profundo; tudo era "uma imagem para
esta época".
Nesta visão dos escritos sagrados não é alegado que
os eventos registrados não tenham tido lugar, mas apenas que sua
ocorrência física era coisa de menor importância. Uma
explicação como esta é o desvelar dos Mistérios
Menores, o ensinamento místico que é permitido dar ao mundo.
Não é, como muitos imaginam, um mero jogo de imaginação,
mas é a atividade de uma verdadeira intuição, vendo
os protótipos nos céus, e não somente as sombras lançadas
por eles na tela do tempo terreno.