Da fervorosa emenda de toda a nossa vida.

Tomás de Kempis



1. Sê vigilante e fervoroso no serviço de Deus; pensa muitas vezes a que vieste e porque abandonaste o mundo; não foi porventura afim de viver para Deus e ser homem espiritual? Afervora-te, pois, no desejo de progredir, porque em breve receberás a recompensa dos teus
trabalhos e não terás mais temores nem sofrimentos. Agora, pouco trabalho, mais tarde, grande descanso, ou melhor, alegria perpétua. Se continuares a proceder com fidelidade e fervor, Deus, por certo, será fiel e generoso em retribuir. Alimenta a santa esperança de alcançar a palma da glória, mas não te entregues à segurança demasiada para que não caias na tibieza ou na presunção.


2. Alguém que vivia ansioso, oscilando entre o medo e a esperança, certa vez, acabrunhado de tristeza entrou numa igreja prostrando-se ante o altar, para fazer oração, dizia de si para si: Oh! se eu soubera que haveria de perseverar! No mesmo instante, ouviu no íntimo d’alma esta
resposta divina: "Que farias se soubesses? Faze agora o que farias então e terás paz". E logo consolado e reconfortado entregou-se à vontade divina e cessaram as suas ansiosas perplexidades. Não quis mais perscrutar com curiosidade o que lhe haveria de acontecer no
futuro mas aplicou-se a conhecer o que era mais perfeito e agradável à vontade de Deus para começar e levar a termo santamente todas as suas ações.


3. "Espera no Senhor e faze o bem", diz o profeta, "e habitarás a terra e te alimentarás de tuas riquezas" (Salmos XXXVI,3). Uma coisa arrefece em muitos o fervor do progresso e da emenda: o horror às dificuldades ou o trabalho da luta. Com efeito, aproveitam mais na virtude
os que se empenham com coragem em vencer-se no que mais lhes custa e contraria as inclinações. Porque o homem tanto mais adianta e maiores graças merece quanto mais a si mesmo se vence e mortifica espiritualmente.


4. Mas nem todos têm igualmente em que se vencer e mortificar. Aquele, porém, que for diligente e zeloso, ainda que tenha mais paixões, fará maiores progressos que outro, de bom natural, porém, menos fervoroso na aquisição das virtudes. Duas coisas, particularmente,
contribuem para uma boa emenda: resistir com violência às inclinações da natureza viciada e trabalhar com ardor em adquirir a virtude de que mais carecemos. Procura também evitar e vencer em ti o que nos outros mais te desagrada.


5. Aproveita de tudo para teu aproveitamento: se vires ou ouvires bons exemplos anima-te a imitá-los; se perceberes, porém, alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, ou, se já a fizeste, trata de corrigir-te quanto antes. Como observas os outros, assim também os outros te
observam a ti. Como é agradável e consolador ver irmãos fervorosos e devotos, bem morigerados e observantes! Como, pelo contrário, é triste e penoso vê-los andar fora da regra, esquecidos daquilo a que foram chamados! Como é nocivo descuidarem os deveres da própria
vocação e inclinarem o afeto ao que não lhes pertence!


6. Lembra-te do que prometeste e tem sempre diante dos olhos a imagem do Crucificado. Bem te podes envergonhar ao considerares a vida de Jesus Cristo, por não haver feito mais esforço de te conformar com ela apesar de trilhares há tanto tempo o caminho de Deus. O religioso que
devota e atentamente medita na santíssima vida e paixão do Senhor, nela encontra, com abundância, tudo o que lhe é útil e necessário nem precisa procurar, fora de Jesus, coisa melhor. Oh! se Jesus Crucificado entrara em nosso coração quão depressa seríamos instruídos em tudo!


7. O religioso fervoroso suporta e aceita bem tudo o que se lhe manda. O tíbio e o negligente experimenta tribulação sobre tribulação e de todos os lados se vê angustiado porque lhe faltam as consolações interiores e não lhe é permitido buscar as de fora. O que não observa a sua regra
expõe-se à grave ruína. O que procura uma vida fácil e relaxada estará sempre em angústias; alguma coisa haverá sempre que lhe desagrade.


8. Como procedem tantos outros religiosos que vivem com austeridade na disciplina do claustro? Saem raras vezes, vestem burel grosseiro, trabalham muito, falam pouco, velam até alta noite, levantam-se de madrugada, prolongam a oração, entregam-se a leituras freqüentes e
em tudo observam exata disciplina. Considera os cartuxos, os cistercienses e tantos outros monges e monjas de várias ordens como se levantam todas as noites para a salmodia do Senhor. Bem vergonhoso seria que te deixasses vencer pela preguiça em exercício tão santo quando tantos religiosos começam a entoar louvores da Deus.


9. Oh! quem te dera não ter outra coisa que fazer senão louvar com o coração e com os lábios ao nosso Deus e Senhor! Oh! quem te dera não precisar de comer, nem beber, nem dormir para poderes louvar a Deus sem interrupção e entregar-te unicamente aos exercícios espirituais!
Muito mais feliz serias do que agora que deves servir ao corpo e suas necessidades! Prouvera a Deus fossemos isentos dessas necessidades e só tivéssemos que pensar no alimento da alma, que, infelizmente, tão raras vezes saboreamos!


10. Quando o homem chega a não buscar consolação em criatura alguma começa então a gostar perfeitamente de Deus, e vive sempre contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra com grandezas nem se entristece com ninharias mas abandona-se inteiramente e com toda a confiança nas mãos de Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada acaba nem morre, mas para quem vivem todas as criaturas e a cujo aceno obedecem todas sem demora.


11. Lembra-te sempre do fim e de que o tempo perdido não volta. Sem cuidado e sem esforço não hás de adquirir virtudes. Se principias a entibiar começarás a sentir-te mal. Se, porém, te deres ao fervor terás muita paz; a graça de Deus e o amor da virtude far-te-ão mais leve o
trabalho. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões do que suportar as fadigas do corpo. Quem não evita as faltas pequenas pouco a pouco cairá nas grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite quando houveres empregado
bem o dia. Vela sobre ti mesmo; anima-te; admoesta-te e aconteça o que acontecer aos outros, não te descuides de ti. Aproveitarás na medida da violência que te fizeres. Assim seja.