Da
doutrina da verdade
Tomás de Kempis
1. Feliz aquele a quem a Verdade por si ensina, não por figuras ou
palavras que passam, senão por si mesma, mostrando-se tal qual é.
Nossa razão e nossos sentidos vêem pouco e muitas vezes nos
enganam. Que aproveitam estas discussões sutis de coisas ocultas
e obscuras de que
não seremos argüidos no juízo de Deus por as havermos
ignorado? Grande insensatez descuidarmos o que é útil e necessário
para nos aplicarmos com gosto ao curioso e nocivo. Em verdade, temos olhos
e não vemos.
2. Que se nos dá dos gêneros e das espécies? De muitas
opiniões se desembaraça aquele a quem fala o Verbo eterno.
Deste único verbo procedem todas as coisas, e todas O proclamam;
e Ele é o Princípio que também dentro de nós
fala (João VIII, 25). Sem Ele, ninguém entende ou julga retamente.
Aquele que tudo encontra na Unidade soberana, a ela tudo refere e nela tudo
vê por ter o coração firme e descansar na paz de Deus.
Oh! Verdade! Oh! Deus! uni-me a Vós em caridade perpétua!
Enfastia-me muitas vezes ler e ouvir tanta coisa; em Vós se acha
quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores; emudeçam em Vossa
presença as criaturas todas; falai-me Vós só!
3. Quanto maior progresso fizer cada um na unidade e simplificação
interior, tanto mais numerosas e mais sublimes coisas entenderá sem
esforço, porque do alto receberá a luz da inteligência.
A alma pura, simples e constante não se dissipa ainda que entenda
em muitas
ocupações; porque todas refere à glória de Deus
e, tranqüila, em coisa alguma busca a si própria. Que há
que mais te embarace e perturbe do que os afetos imortificados de teu coração?
O homem bom temente a Deus dispõe primeiro no seu interior as obras
que depois há de fazer
externamente; assim elas não o arrastam ao desejo de alguma inclinação
viciosa mas ele as submete ao arbítrio da reta razão. Quem
peleja com mais vigor do que aquele que trabalha por vencer a si mesmo?
Este deverá ser o nosso maior empenho: vencermo-nos a nós
mesmos,
tornarmo-nos cada dia mais fortes e fazermos algum progresso no bem.
4. Toda perfeição nesta vida anda mesclada de alguma imperfeição
e na nossa inteligência não há luz sem sombras. O humilde
conhecimento de ti mesmo é caminho que leva a Deus com mais segurança
que as investigações profundas da ciência. Não
é que a ciência ou o simples
conhecimento das coisas sejam condenáveis, porque em si são
bons e ordenados por Deus; sempre, porém, se lhes há de preferir
a boa consciência e a vida virtuosa. Mas porque muitos se empenham
mais em adquirir ciência do que em bem viver, por isso erram a cada
passo e pouco ou nenhum fruto colhem do seu trabalho.
5. Oh! Se eles pusessem tanto ardor em extirpar vícios e plantar
virtudes como põem em agitar questões, não se veriam
tantos males e escândalos entre o povo nem tanta desordem nos mosteiros.
Por certo, no dia do Juízo não se nos perguntará o
que lemos mas o que fizemos;
nem se falamos com eloqüência senão se vivemos com piedade.
Dize-me: onde estão agora todos aqueles mestres e doutores que bem
conheceste quando ainda viviam e floresciam nas escolas? Já outros
possuem as suas prebendas e talvez nem deles se lembrem; quando vivos
pareciam alguma coisa, hoje deles nem se fala.
6. Oh! Quão depressa passa a glória do mundo! Prouvera a Deus
que a vida lhes concordasse com a doutrina; teriam então lido e estudado
com proveito. Quantos perecem no mundo, entregues a uma ciência vã
e descuidados do serviço de Deus! Esvaeceram em suas cogitações
(Ad Rom I, 21) porque antes quiseram ser grandes que humildes. Verdadeiramente
grande é quem tem grande caridade! Verdadeiramente grande, aquele,
que, pequeno aos próprios olhos, em nada estima as maiores honras.
Verdadeiramente sábio, aquele que considera "todas as
coisas da terra como lodo para ganhar a Cristo"(Filip. III, 8). E verdadeiramente
douto, aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria.