A manifestação da Divindade através da criação dos anjos
e homens a partir da Essência Divina.

Jacob Boehme



1. Visto que houve um mistério desde a eternidade, consideraremos agora a sua manifestação. Podemos falar da eternidade somente como se falássemos de um espírito, pois o todo era unicamente espírito; mesmo assim, da eternidade gerou a si mesmo em substância, através da ânsia e do desejo. Não podemos dizer que na eternidade não havia substância, pois nenhum fogo existe sem substância. Tampouco há brandura, sem a produção de substância. Pois a brandura produz a água e o fogo a absorve, transformando-a em si mesmo, uma parte nos céus e firmamento, e a outra parte no súlfur, onde o espírito-ígneo com sua roda de essências, produz um mercúrio e desperta o Vulcão (lança fogo), através do qual o terceiro espírito ou o ar é gerado. No meio encontra-se a tintura pura, como um lustre de cores, e que possui sua origem da sabedoria de Deus. Cada cor permanece com sua essência, na brandura da fonte de água, obscura, a qual tem sua origem da ferocidade amarga.

2. Cada forma anseia pela outra, e pela ânsia do desejo, uma forma é impregnada pela outra, sendo que uma traz a outra à existência, de forma que a eternidade permanece num perpétua magia, onde a natureza encontra-se num processo de crescimento e fortalecimento, o fogo a consome e a origina, formando um laço eterno. Mas a luz da Majestade e da Trindade de Deus é imutável; pois o fogo não pode apreender a luz, que vive livre em si mesma.

3. Reconhecemos e observamos, contudo, que a luz do amor deseja as maravilhas e imagens na sabedoria; em tal desejo, este mundo foi percebido, desde a eternidade, como um modelo (forma espelhada), na sabedoria, na profunda e oculta magia de Deus; pois o desejo de amor busca o fundamento e o não fundamento. O desejo da cólera, ou seja, da fonte severa e amarga na natureza e propriedade do Pai, aqui encontra-se misturado, desde a eternidade. Assim, a imagem dos anjos e homens na propriedade divina, assim como na propriedade da cólera, os demônios, foram vistos na sabedoria de Deus desde a eternidade: ainda não como algum ser, mas da mesma forma que um pensamento surge nas profundezas da mente, sendo trazida diante de seu próprio espelho da alma, onde um objeto que não tem ser, aparece freqüentemente.

4. Assim as duas genetrixes, a da cólera no fogo e a do amor na luz, trouxeram sua forma na sabedoria, onde o coração de Deus desejou, no amor, produzir sua forma espelhada numa imagem angélica, composta pela essência divina, a fim de que estas formas pudessem ser imagem e semelhança da Divindade e habitar na sabedoria de Deus, preenchendo a ânsia da Divindade e para o eterno deleite do divino reino da alegria.

5. Precisamos considerar agora o Verbum Fiat, que os abarcou e os trouxe a uma substância e a um ser corporal, pois a vontade desta imagem surgiu do Pai, da propriedade do Pai, no Verbo ou coração de Deus desde a eternidade, como uma vontade que deseja a criatura e a manifestação da Divindade. Porque, contudo, Deus não colocou-se em movimento até o momento da criação dos anjos; portanto, não ocorreu criação alguma até a criação dos anjos. Mas a razão e causa disto não cabe a nós conhecermos; Deus guardou em seu poder, como foi que alguma vez se colocou em movimento, sendo que é, de fato, um Deus imutável. Não devemos ir além nesta questão, o que iria nos confundir.

6. Mas sobre a criação temos o poder de falar, pois trata-se de uma obra no ser de Deus. Compreendemos, que a vontade do Verbo ou o coração de Deus, é retida pelo Fiat amargo, no centro da natureza do Pai, com seus sete espíritos e formas da Natureza eterna, e que na forma de um trono, através do qual o Fiat amargo apareceu não como um realizador, mas como um agente na propriedade de cada essência, ou seja, nas grandes maravilhas da sabedoria. Assim como as imagens foram retidas, desde a eternidade na sabedoria, foram agora abarcadas pelo Fiat na Vontade-espírito de Deus, e não foram tomadas de forma alienatória, mas da essência de Deus, ou da natureza do Pai. Elas foram, com a Vontade-espírito de Deus, introduzidas na luz da Majestade, onde passaram a ser os filhos de Deus e não estranhos; nasceram e foram criadas, da natureza e propriedade eterna do Pai, e o espírito de sua vontade foi direcionada à natureza e propriedade do Filho. Eles podiam se alimentar e deveriam fazê-lo do amor e essencialidade de Deus, na luz da Majestade; com isso, sua propriedade feroz, proveniente da natureza do Pai, era transformada em amor e alegria. Assim procederam todos, com exceção de um trono e reino, que se voltou para longe da luz do amor, e desejou, na severa natureza-ígnea, reinar sobre a brandura e o amor de Deus. Consequentemente, este trono foi dirigido para fora da propriedade do Pai, fora do lugar próprio da criatura para as trevas eternas, para o abismo do Fiat adstringente; ali deve permanecer em sua própria eternidade; desta forma, a cólera da Natureza Eterna também foi satisfeita.

7. Mas não se deve pensar que o Rei Lúcifer não poderia ter permanecido firme. Ele possuía a luz da Majestade diante dele, da mesma forma que os outros anjos-tronos. Se sua imaginação tivesse ocorrido na luz, teria permanecido um anjo; mas ele se retirou do amor de Deus, e penetrou a cólera, passando a ser um inimigo do amor de Deus e de todos os santos anjos.

8. Além do mais, precisamos considerar aqui, a hostil inflamação dos espíritos expulsos, quando ainda encontravam-se na propriedade do Pai; como acenderam, através da imaginação, a natureza da essencialidade, fazendo com que a terra e as pedras fossem produzidas da Essência celeste, e o espírito brando da água, na qualificação do fogo, tornou-se o firmamento abrasador. Imediatamente sucedeu-se a criação deste mundo como o terceiro Princípio; este mundo foi provido de uma outra luz, ou seja, o sol; com isso, o demônio foi privado de sua pompa, sendo fechado nas trevas como um prisioneiro, entre o reino de Deus e o reino deste mundo, a fim de que seu domínio neste mundo não se estenda além da turba, onde a cólera e a ira de Deus é despertada, e ali ele é um carrasco. Ele é um perpétuo mentiroso, caluniador e enganador das criaturas; ele transforma tudo o que é bom naquilo que é mal, assim que tem a oportunidade. O que quer que seja terrível e resplandecente, ali ele exibe seu poder, desejando sempre estar acima de Deus. Mas o céu, criado do meio das águas como um firmamento brando, abate sua pompa e orgulho, assim ele não é um príncipe soberano deste mundo, mas um príncipe da cólera.

9. Mas visto que o demônio foi expulso de seu lugar, este lugar ou trono (destituído de sua hoste angélica) desejou enormemente o seu príncipe; mas ele havia sido expulso. Deus então, criou um novo príncipe para este lugar, Adão, o primeiro homem, que também era um príncipe-trono diante de Deus. É preciso considerarmos aqui esta criação corretamente, assim como sua queda, o que fez com que o coração de Deus se movimentasse e se tornasse homem.

10. A criação do homem não é uma questão trivial, pois foi por causa de sua queda que Deus tornou-se homem, a fim de poder restaurá-lo. Portanto, sua queda não consiste no simples ato de se morder uma maçã; sua criação não ocorreu da forma que a razão acredita, na medida em que compreende o primeiro Adão, em sua criação, como sendo um mero torrão de terra. Não, cara alma, Deus não tornou-se homem por causa de um torrão de terra; também não foi uma mera questão de desobediência, diante da qual Deus tornou-se tão colérico a ponto de sua cólera não ser apaziguada, a menos que ele se vingasse de seu Filho e o matasse.

11. Para nós homens, após a perda da imagem paradisíaca, isto é um mistério e permaneceu oculto, exceto para alguns que conseguiram apreender novamente o mistério celeste; para estes, algo foi revelado, de acordo com o homem interior. Pois, em Adão estamos mortos para o Paraíso e devemos, através da morte e da putrefação do corpo, florescer novamente no Paraíso, como num outro mundo, na vida de Deus, na essencialidade e corporalidade celeste. Mas ainda que o mistério possa estar em alguns, para terem adquirido novamente na alma, a essencialidade de Deus (ou o corpo de Cristo), ainda assim o Adão terrestre e corrupto encobriu o santo e puro mistério, sendo que o grande segredo permaneceu oculto da razão. Deus não habita neste mundo, no Princípio externo, mas sim no Princípio interno. Certamente, ele habita no lugar deste mundo, mas este mundo não o apreende. Como então poderia o homem terrestre apreender os mistérios de Deus? Se algum homem pretende apreendê-los, deve fazê-lo de acordo com o homem interior, nascido novamente de Deus.

12. Mas, visto que o Mistério divino irá então, revelar-se inteiramente, apresentando-se ao homem de forma compreensível, a fim de que ele compreenda o segredo claramente, é preciso refletir bem sobre o que isso significa, - nada menos do que a colheita deste mundo. Pois o início encontrou o fim e o meio foi colocado em separação. Que isto seja dito a vós, sim aos filhos, que herdarão o reino de Deus: É hora de grande seriedade; o campo deve ser preparado; o bem e o mal devem ser separados; o dia se vai; isto é um fato!

13. Se iremos falar do homem, compreendê-lo corretamente, do que foi feito, devemos considerar a Divindade como Ser de todas os seres, pois o homem foi criado à semelhança de Deus, a partir dos três princípios, uma imagem completa e semelhante a toda esfera de existência. Ele não era para ser somente uma imagem deste mundo, pois a imagem deste mundo é animal, e não foi por causa de uma imagem animal que Deus tornou-se homem. Nem Deus criou o homem para viver assim, na propriedade animal, como vivemos agora, após a queda, mas Ele o criou no Paraíso, na Vida eterna. O homem não tinha esta carne animal, mas a carne celestial; com a queda, ela tornou-se terrestre e animal. Não devemos, no entanto, entender que o homem nada tinha deste mundo em si, mas os quatro elementos não reinavam nele, pois estavam reunidos em um, e o reino terrestre permanecia oculto. Ele deveria viver na qualidade celestial; embora tudo estivesse despertado no homem, ele deveria reinar com a qualidade celeste do segundo Princípio; a qualidade terrestre, o reino e a qualidade das estrelas e elementos deveriam estar sujeitas à qualidade paradisíaca. Nenhum calor, frio, doença ou miséria, nenhum temor deveria atingi-lo ou amendontrá-lo. Seu corpo poderia passar através das pedras e da terra sem prejudicar nenhum deles. Não havia nenhum homem eterno, que pudesse ser controlado terreamente e que fosse frágil.

14. Portanto, é preciso considerar o homem corretamente. Não se trata de uma questão de sofisticação ou imaginação, mas de saber e compreender no espírito de Deus. É dito: "É preciso renascer, se quiseres ver de novo o reino de Deus, o qual abandonastes". A ciência nada ajudará, senão o espírito de Deus, que abre a porta do céu à imagem do homem, para que ele veja com os três olhos. Pois o homem vive numa vida ternária, se é filho de Deus; caso contrário, vive somente uma vida binária. Sabemos, muito bem, que Adão abandonou, com a reta e santa imagem, que era a semelhança da Santa Trindade, o Ser Divino e imaginou na terrenidade, introduzindo o reino terrestre na imagem divina, o que provocou a sua corrupção e obscuridade; com isso, perdemos também a vista paradisíaca. Além do mais, Deus retirou o Paraíso do homem, o que o deixou frágil, fraco e sem poder ; imediatamente, os quatro elementos e as estrelas tornaram-se poderosos no homem; portanto, com Adão caímos sob a sua influência. Esta foi também a causa da mulher; Deus dividiu Adão quando não pode permanecer firme, trazendo-o para duas tinturas, de acordo com o fogo e a água, uma fornecendo a alma, outra o espírito. Após a queda, o homem tornou-se uma entidade animal, devendo propagar-se através de uma propriedade animal, já que o Céu, o Paraíso e a Divindade tornaram-se um mistério para ele; aquilo que é eterno no homem , ou seja, a alma pura, ainda existe, mas coberta por uma vestimenta terrestre, obscura e infectada pela qualidade terrestre, envenenada pela falsa imaginação, o que o impede de ser reconhecido como filho de Deus; foi por causa disso que Deus tornou-se homem, a fim de libertar a alma da obscura terrenidade e introduzi-la novamente na essencialidade celestial, na carne e sangue de Cristo que preenche os céus.