O
monge e o guerreiro ou a teologia da guerra
O Templo não tinha nada que ver com uma ordem religiosa normal. Os
seus privilégios eram exorbitantes, quer se tratasse do poder de
decisão, de organização, ou da criação
de um potentado financeiro e econômico, em sentido amplo. Os cavaleiros
cultivavam a pobreza pessoal, mas a Ordem via serem-lhe conferidas todas
as possibilidades para se tornar extremamente rica e, de certa forma, rica
a expensas do resto da Igreja, dado que estava isenta de dízimo.
Isto era justificado pela necessidade, para a Ordem, de manter um verdadeiro
exército na Terra Santa, mas, ao mesmo tempo, o fato de ser uma ordem
militar, com o que isso representa em termos de poderio, poderia tornar
esse um privilégio suplementar.
Aliás, isso levantava um problema terrível: não deveria
considerar-se que existia incompatibilidade entre as funções
de monge e as de soldado? Não deveria ver-se nas noções
de procura da santidade e procura cavalheiresca duas éticas radicalmente
opostas? Demurger escreve, a este propósito: Para as conciliar, era
necessária uma evolução espiritual considerável,
a mesma, aliás, que permitiu a cruzada. A Igreja teve de modificar
a sua concepção da teologia da guerra. Teve de aceitar a cavalaria
e arranjar-lhe um lugar na sociedade cristã, na ordem do mundo desejada
por Deus.
O cristianismo primitivo é representado amiúde como condenando
toda a guerra e toda a violência. Preconizava, como única resposta,
o amor e apenas o amor, mesmo em caso de agressão. Segundo Mateus,
quando Pedro puxou da espada para cortar a orelha do criado do Grão-Sacerdote,
não lhe disse Cristo: "Embainha a tua espada, porque aqueles
que matam com a espada morrerão pela espada"?
Numa abordagem destas, não há lugar para a batalha, mesmo
de modo defensivo. Mas as coisas não são assim tão
simples. Em primeiro lugar, a censura feita a Pedro é relatada de
uma forma muito diferente pelos outros evangelistas. Marcos não relata
esta frase e Lucas contenta-se com pôr Jesus a dizer: "Basta"
e com fazê-lo curar a orelha ferida. Quanto a São João,
atribui a Jesus esta reflexão: "Embainha a tua espada. Não
beberei eu o cálice que o meu Pai me deu?", o que é o
sinal da aceitação do seu destino, por Cristo, da sua submissão
ao necessário sacrifício, e não de uma censura a São
Pedro. Por outro lado, noutra ocasião, o próprio Mateus refere
uma outra palavra de Cristo: Não julgueis que vim trazer a paz à
Terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada. Do mesmo modo, encontramos
no evangelho apócrifo de São Tomás: Por certo que os
homens pensam que vim para lançar a paz sobre o Universo. Mas eles
não sabem que vim para lançar, sobre a Terra, as discórdias,
o fogo, a espada, a guerra. Paul du Breuil vê aí uma alusão
de Cristo à extrema subversão de toda a verdade.. Os teólogos
não estavam, pois, desprovidos de recursos para justificar atos guerreiros.
No entanto, era necessário escorar, mediante uma verdadeira teologia
da guerra, escolhas que teriam podido lançar a perturbação
nos espíritos. Evitou-se, portanto, considerar o fenômeno em
si mesmo, para, atribuindo apenas interesse às suas razões,
se chegar a uma noção de guerra justa. Baterse para se apoderar
das riquezas de outrem ou por simples bravata não podia ser admitido,
mas bater-se para se defender ou salvar os seus, para manter o direito e
a ordem, tornou-se legítimo, desde que todos os outros métodos
estivessem esgotados.
Santo Agostinho foi, sem dúvida, o primeiro a elaborar uma teologia
da guerra justa:
São chamadas justas todas as guerras que vingam as injustiças,
quando um povo e um Estado, a quem a guerra deve ser feita, descurou de
punir os delitos dos seus ou de restituir o que foi roubado por meio dessas
injustiças.
Escrevia também: O soldado que mata o inimigo, tal como o juiz ou
o carrasco que executam o criminoso, em meu entender, não pecam,
porque, ao agirem assim, obedecem à lei. Santo Agostinho dizia também:
"Devemos querer a paz e fazer apenas a guerra por necessidade, porque
não procuramos a paz para preparar a guerra, mas fazemos a guerra
para obter a paz. Sede, pois, pacíficos, mesmo ao combaterdes, a
fim de trazerdes, pela vitória, aqueles que combateis à felicidade
da paz." Demurger assinala que, no século VIII, Santo Isidoro
de Sevilha acrescentou, a esta definição, uma precisão
capital: É justa a guerra que é feita após advertência
para recuperar bens ou para repelir inimigos.
Isto irá permitir justificar as cruzadas, enquanto recuperação
dos lugares santos. Era preciso, a todo o preço, mesmo que fosse
o de uma guerra, manter na terra a ordem desejada por Deus. Recusar a violência
teria tido como conseqüência um recuo do cristianismo e teria
feito o jogo do demônio, entregando-lhe populações cujas
almas se teriam perdido. A partir de então, passou-se rapidamente
da noção de guerra justa à de guerra santa. Tratava-se
de defender o único Deus verdadeiro e a fé do seu povo. O
guerreiro batia-se por Cristo, defendendo o cristão contra o infiel.
Devia até permitir que os povos pudessem receber o ensinamento da
"verdadeira fé" e converter-se, uma vez destruído
o poder dos seus antigos amos.