Análise do Andrógino de Henry Khunrath
Stanislas de Guaita


O Grande Andrógino de meio corpo constitui, visivelmente, um pantáculo hermético ou de Crisopeu.
Este é, evidentemente, o sentido imediato e capital do emblema. É fácil convencer-se disso através do exame dos acessórios agrupados em torno da figura central, e, ainda que restasse alguma dúvida, bastaria a leitura dos textos latinos muito detalhados que revestem a gravura para dirimir qualquer incerteza, traindo a preocupação constante do teósofo, que é, antes de mais nada, a alquimia.
Mas, em Magia, as correspondências analógicas sendo absolutas, de um mundo para o outro, resulta que todo verbo oculto proferido em alguma das três esferas desperta, naturalmente, um eco nas outras duas: trata-se sempre da mesma nota, uma oitava acima ou abaixo. O sentido dos símbolos é, assim, múltiplo e pode estabelecer-se sobre uma escala rigorosamente determinável a priori.
A explicação hermética de nossa prancha corresponde ao sentido natural ou positivo. O sentido moral ou comparativo requer uma explicação psicológica, e o sentido espiritual ou superlativo, uma explicação de ordem metafísica.
Em nosso comentário sobre a Rosa-Cruz de Khunrath, propuséramos fazer, de certa forma, um amálgama das três significações. Nesta oportunidade tentaremos indicá-las à parte.
Aqui, além disso, o interesse concentra-se principalmente na interpretação alquímica, uma vez que, evidentemente, ela domina as duas outras no pensamento do autor.
Parece-nos lógico expor, em primeiro lugar, a interpretação alquímica - e pensamos surpreender agradavelmente nosso público dando a palavra, aqui, a um colega não só bem conhecido como também muito apreciado por ele. Papus, que bem antes de nós se lançou ao estudo prático da espagiria (até alcançar êxito em diversas experiências de ordem bastante particular). Papus nos brindará com algumas dessas páginas em que talvez seja o único a saber casar, de um modo primoroso, a profundidade das idéias com a limpidez de estilo.
Sentido positivo ou natural do emblema
por Papus
Atendendo ao desejo de nosso amigo e irmão Stanislas de Guaita, iremos expor, em algumas linhas, o sentido puramente alquímico da figura pantacular de Khunrath. Assim, o esquema que traçamos é estritamente limitado e devemos restringir-nos à exposição das grandes generalidades reveladas por esta magnífica síntese simbólica.
A Pedra Filosofal ofereceu provas irrefutáveis de sua existência, fato que outrora já nos esforçamos por demonstrar, com a história na mão(98).
Meu Deus, sim, cético leitor, sorris em vão ante o relato de todas essas legendas de velhos alquimistas usando sua vida e dilapidando sua fortuna na procura da Grande Obra. Não se trata de brilhantes quimeras. No fundo de tudo isso oculta-se um reverberante raio de verdade e os dez mil volumes que tratam dessas matérias não constituem obra de malabaristas indignos ou de impudentes falsários.
Os livros de alquimia são escritos de tal forma, que podereis, de maneira mais fácil, dar-vos conta de todos os fenômenos que se sucedem na preparação da Pedra Filosofal, sem jamais chegardes, vós mesmos, a prepará-la.
A razão disto é bastante simples. Os mestres escondem o nome da matéria-prima necessária à obra e o meio de elaborar e de preparar esta matéria-prima pelo emprego do Fogo Filosófico ou Luz Astral humanizada. Ora, é indispensável dizer duas palavras acerca dos fenômenos que assinalam a preparação da Pedra Filosofal, sob pena de jamais se chegar à compreensão do que iremos explicar com referência à figura simbólica de Khunrath considerada alquimicamente.
Quando colocais os dois produtos, sobre cuja origem os alquimistas silenciam prudentemente, no ovo de vidro do athanor e fazeis agir o fogo secreto sobre esta mistura, diversos fenômenos muito interessantes surgem aos vossos olhos.
A matéria contida no athanor torna-se, de início, absolutamente negra. Ela parece putrefata e completamente perdida, mas é neste momento que o alquimista se rejubila, uma vez que reconhece, aí, o primeiro estágio da evolução da Grande Obra, estágio designado pelos nomes de Cabeça de Corvo e Caos.
Essa cor persiste durante vários dias ou várias horas, conforme a habilidade do artista, e, em seguida, quase sem transição, a matéria assume uma coloração branca muito cintilante. Esta cor indica que a combinação entre os dois produtos colocados no athanor está efetuada, a metade do trabalho realizada.
A esta cor branca seguem-se cores variadas, segundo uma progressão ascendente relacionada com o espectro solar, ou seja, começando pelo violeta para elevar-se, passando por uma diversidade de nuanças, ao vermelho púrpura, que indica o fim da Obra.
A esses fenômenos de coloração, estão ligados outros fatos puramente físicos: alternativas de volatilização e de fixação, de solidificação e de semiliqüefação da matéria; fatos que levaram os alquimistas a comparar a criação da Pedra Filosofal pelo homem com a criação do Universo por Deus (fenomenalmente falando). A grande lei da Ciência Oculta, a Analogia, dá a razão de ser de todas as deduções, mas sairíamos do esquema que traçamos se nos detivéssemos mais nesse ponto.
Guardemos simplesmente os três grandes estados por que passa a matéria: o negro, o branco, o vermelho, e, munidos desses dados, vamos à explicação de nossa imagem.
No primeiro relance, aparecem três grandes círculos, cada um deles subdivididos em três outros. O círculo inferior traz, ao centro, escrita em letras maiúsculas e em língua grega, a palavra (Caos).
O círculo médio deixa sobressair sobretudo a palavra REBIS.
Enfim, o círculo superior apresenta a palavra AZOTH.
Caos, Rebis, Azoth são, portanto, os três termos que nos darão o sentido geral de nossa figura.
CAOS (1° Círculo)
O círculo inferior indica a criação da Matéria-prima e nos mostra a imagem do Universo. Ele simboliza particularmente a COR NEGRA da obra, ou a Cabeça de Corvo.
Não nos cabe entrar em todos os detalhes da preparação, revelados pelas palavras contidas no círculo; mostremos simplesmente a verdade de nossa explicação através de um excerto do Dicionário mitohermético de Pernety:
"Desenvolvendo-se este caos pela volatização, este abismo de água deixa ver pouco a pouco a terra, à medida que a unidade se sublima no alto do vaso. Eis porque os químicos herméticos acreditaram que pudessem comparar sua obra, ou o que se passa durante as operações, com o desenvolvimento do Universo quando da criação" (Pernety).
REBIS (2° Círculo)
O segundo círculo apresenta-nos a figura misteriosa do Andrógino hermético (o Sol e a Lua). Nosso sábio irmão Guaita exporá o sentido cabalístico dessa importante figura. Quanto a nós, basta que digamos que ela exprime alquimicamente a COR BRANCA da obra, resultante da união dos dois princípios, positivo e negativo.
O adágio Etiam Mundus Renovabitur Igne, que corresponde ao famoso Igne Natura Renovatur Integra INRI da Franco-Maçonaria Oculta, indica que é nesse momento que começa a aplicação do fogo filosófico sobre a matéria. O quadrado dos elementos (Ignis, Aqua, Terra, Aer), compreendendo o triângulo da constituição de todo ser (Anima, Spiritus, Corpus), indica a teoria do 2° grau da Obra.
O triângulo Separa, Dissolve, Depura, dominado pelo quaternário Solve, Fige, Coagula, Compone, indica a prática deste segundo grau da obra hermética. Enfim, todas essas operações redundam na criação de uma única e mesma coisa, REBIS, conforme define Pernety:
"O espírito mineral, crescendo como que da água, diz o bom Trévisan, mistura-se com seu corpo, na primeira decocção, dissolvendo-o. Eis porque se dá a ele o nome de REBIS, pois é feito de duas coisas, a saber, do macho e da fêmea, isto é, do dissolvente e do corpo dissolúvel, embora no fundo se trate de uma mesma coisa e de uma mesma matéria" (Pernety).
AZOTH (3° Círculo)
É a fênix alquímica que simboliza o terceiro círculo. O Fogo astral com todos os seus mistérios é claramente indicado nesta maravilhosa figura. As penas de pavão simbolizam as cores variadas que toma a matéria sob a influência deste fogo filosófico que chamusca sem arder, este fogo úmido e sutil representado pelas asas da Fênix. De resto, o vocábulo Azoth, indica por si mesmo, o sentido de toda a imagem.
"Azoth, segundo Planiscampi, significa meio de união, de conservação ou medicina universal. Observa também que o termo Azoth deve ser visto como o princípio e o fim de todo corpo e que encerra todas as propriedades cabalísticas, já que contém a primeira e a última letra das três línguas mães, o Aleph e o Thau dos hebreus, o Alpha e o Ômega dos gregos, o A e o Z dos latinos" (Pernety).
ELOIM
Acima desses três círculos, resplandece no triângulo místico o nome sagrado ELE-OS-DEUSES, Eloim, símbolo da Pedra Filosofal perfeita. Entramos aqui, inteiramente, no domínio da cabala. Assim, julgamos conveniente limitar aqui esta exposição já longa demais que o leitor mesmo poderá desenvolver a seu modo, com o auxílio de alguns elementos que lhe fornecemos.
PAPUS
Acrescentaremos pouca coisa a esta explicação hermética, tão ampla quanto precisa. Nós nos limitaremos a esboçar, em linhas o mais concisas possível, os dois sentidos cabalísticos da figura central.
Sentido comparativo ou psicológico
do emblema
O ANDRÓGlNO constitui a mais cativante imagem do Reino Hominal reconduzido ao seu princípio inteligível. Trata-se, em linguagem puramente hieroglífica, do símbolo absoluto do Ser Virtual que se exterioriza por meio daquilo que Fabre d'Olivet denomina "faculdade volitiva eficiente"; - do Ser Universal que se particulariza por sua submultiplicação indefinida através do espaço e do tempo; - do Ser Espiritual, enfim, que se corporifica e cai na matéria, por haver pretendido tornar-se centro e por se ter afastado da Unidade Divina, princípio central e fonte essencial de toda espiritualidade.
Segundo Moisés esotericamente interpretado(99), são as seguintes as etapas da queda; o Universal Adão FI} desdobra Aishah UV} ; desde então, ele próprio torna-se Aish VY} ; é o Intelecto Potencial do homem que se Realiza desenvolvendo a Vontade. Porém, o mau emprego dessa vontade faz com que ambos, homem e mulher, Intelecto e Vontade, caiam no mundo elementar: Aishah metamorfoseia-se em HEVAH UYU, a Vida Materializada, de que Adão se converte em esposo.
Voltemos à explicação que demos, em outra parte, sobre Hevah ou Heve UYU. Para não complicar mais ainda a nota, já bastante extensa, a respeito de I-eve e de Adam-eve(100), deixamos de assinalar, naquela oportunidade, a conversão em U Heth do primeiro U He de UYU (Hevah), que se torna UYR (Havah). Esse endurecimento da vogal inicial marca hieroglificamente a queda de Adão e sua conseqüência: a materialização, nele, da vida universal.
Ora, o Andrógino de Khunrath representa Adam-Eve ou o Homem Universal destroçado na matéria e naufragado no devir. Isso é expresso pelo globo elementar de Hilé (gLH)(101) que o Andrógino sustenta em suas mãos. Nesse globo acha-se inscrito o quadrado dos elementos, e no quadrado, por sua vez, o triângulo adâmico: corpo, alma, espírito.
Este esquema geométrico equivale e corresponde estritamente ao hieróglifo que os alquimistas usam como emblema da obra hermética realizada, da pedra filosofal obtida. A Grande Obra consiste, com efeito, em comprimir o Espírito (simbolizado pelo triângulo) sob a pressão da matéria (simbolizada pela cruz dos 4 elementos). O enxofre dos alquimistas, pelo contrário, é a Matéria dominada pelo Espírito. Também os adeptos, que são lógicos, exprimem-no pelo mesmo signo invertido.(102)
Para voltar ao triângulo aprisionado por um quadrado inscrito em um círculo, seria possível representar melhor a decadência do homem, encarcerado entre as quatro paredes de sua masmorra sinistra?... Passando do geral para o particular, os iniciados porventura não o entreverão, neste ternário vivo que comprime e retém cativo o quaternário dos elementos, o emblema de um temível arcano? Não lhes virá à mente a alma adâmica individual, primeiramente arrastada ao vertiginoso vórtice das gerações, depois se debatendo, presa das quatro torrentes elementares que a disputam? Pobre alma, aquartelada entre essas quatro potências de perdição, luta desesperadamente para atingir e conquistar o ponto central, equilibrado; a intersecção crucial, única; o lugar salvador em que sua encarnação poderá efetuar-se pelo menos sob a forma harmoniosa, ponderada e sintética do homem!
Se, por desventura, ela se deixar levar à deriva de uma das correntes, qual será sua sorte? Que se tornará? Algum elementar na natureza ou, caso se encarne, uma pobre inconsciência, centelha divina obscurecida por longo tempo e cativa sob uma das formas analíticas desmensuradas, anárquicas da animalidade.(103)
Reportemo-nos à figura mágica, à esfera substancial do Hyle, elaborada e renovada perpetuamente pela Luz secreta do universo: Etiam mundus renovabitur igne... Do princípio da encarnação, correspondente à mencionada esfera, passemos à realização, à efetivação desse princípio. Isso significa descer à esfera inferior em que Khunrath delineou continentes e mares; significa fixar nossos olhos no globo terrestre, considerado como tipo de todos os centros de condensaçao material, em que o universal Adam-Eve dispersa seus submúltiplos.
É lá o reino desse XLOS, a substância primeira criada: desse Tohou w'bohou YUPY YUZ ; desse abismo potencial (Thom JYUZ), gerador dessas duplas águas (Maim JWK) sobre cuja face o sopro gerador (Rouach Elohim JWUL} RYB) exerce seu poder Fecundante. O teósofo de Lípsia revela, aqui, para aqueles que sabem compreendê-lo, diversos arcanos relacionados à gênese material dos mundos. As fórmulas gravadas são, aliás, límpidas, e é proveitoso consultá-las atentamente...
O universal Adão, desintegrando-se, rolou até os confins; precipitou-se na cloaca da substância diferenciada, produzida por sua própria queda; disseminou-se, inexaurivelmente, semeando em profusão almas de vida cada vez menos inteligentes, cada vez menos morais e conscientes, até nas formas mais humildes da existência e do devir. Mas isso não é tudo. Uma vez dividido ao infinito, seu destino quer que ele se reconstitua em sua unidade ontológica; depois de ele ter descido, seu destino quer que ele ascenda, que ele evolua, enfim, depois de ter involuído.
Não abordaremos o problema - tão perturbador em sua profundidade oculta - das redenções mineral, vegetal e animal: esse mistério jamais será totalmente desvendado(104). Porém, tomando o ser adâmico nos dois terços de sua viagem de retorno, enquanto ele, já parcialmente livre dos estreitos e despóticos entraves com que a natureza física o sobrecarregou, pôde evoluir até a condição de homem. Permitimo-nos examinar, em linhas gerais, seu retorno à sua síntese verbal, o Adão celeste.
Por que esforços pode o homem carnal trabalhar para a reconquista do éden de sua divindade coletiva? Antes de tudo, pelo estabelecimento, desde esta esfera inferior, de um Estado Social hierárquico.
Em que se funda tal Estado Social? Antes de tudo, na Família.
Em que repousa a Família? Antes de tudo, no Amor.
O Amor aparece-nos, sob suas diversas formas, como sendo o princípio essencial da redenção e o instrumento primordial da reintegração.
Com relação aos indivíduos, o Amor é, com efeito, o elo moral que liga o homem à mulher; com relação às almas, ele é, ainda, o apelo magnético à vida objetiva; é ele que, infundindo nelas uma perturbação deliciosa, concita-as a encarnar-se e as faz rolar, vencidas, no turbilhão fatal das gerações. Com relação ao Estado Social, o Amor é, enfim, o irresistível procurador das raças: obseda, possui e cativa os amantes. Instilando neles um furor apenas saciável pela união dos sexos, ele abre incessantemente às pobres almas a porta estreita da existência física e terrestre.
Mas isso não é tudo: a estranha propagação dos tipos individuais ao longo da cadeia das filiações, esse fenômeno cujo vago nome de atavismo, na mente de tantos pensadores, designa apenas um impenetrável mistério - tudo isso só encontra solução no Amor!... Veremos oportunamente que, sob a forma sublimada da Caridade, é ainda o Amor que opera, pela ascensão primeiramente individual das almas, depois, por sua adição nupcial por grupos bissexuados e complementares, cuja fusão harmoniosa, em progressão matemática, resume a síntese relativa, que só encontra seu termo absoluto em Deus.
O Amor é a Terceira pessoa da trindade adâmica, pois, constituindo a relação comum dos dois esposos, sua relatividade sentimental, seu meio termo, em uma, procede do homem e da mulher, como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho(105). Não é o Amor também o verdadeiro agente da encarnação? Aquele de quem o filho é verdadeiramente concebido? Do mesmo modo, misticamente nos é ensinado que, embora engendrado pelo Pai, o Cristo é concebido pelo Espírito Santo. Todas essas analogias são do mais alto rigor.
O Espírito Santo, aliás, é, por sua vez, o Amor-divino, o Amor exaltado no Mundo Espiritual: como a atração é apenas o Amor cósmico, o amor refratado no Mundo Elementar.
O que é verdade para os Mundos Divino ou superlativo e Natural ou positivo não é menos verdade para o Mundo Moral ou comparativo. O Amor é o terceiro termo da Trindade humana, pois é dele, como vimos, que é concebido o filho, nascido do Pai e da Mãe; e eis por que a fênix, que renasce de suas cinzas, irrompe e bate as asas entre as duas cabeças de mulher e de homem. Emblema da fecundidade eterna, a fênix simboliza, cabalisticamente, o Amor, no pantáculo de Khunrath.
Naturalmente, ao se considerar o grande andrógino, a cabeça de homem figura como solar, enquanto a cabeça de mulher se apresenta selênica. Do seio direito, marcado pelo signo sulfuroso , e do seio esquerdo, marcado pelo signo salino , jorram duas fontes perpétuas: símbolo das duas energias, ativa e passiva, que reagem mutuamente, para animar e reafirmar a substância prolífica do composto filosofal. O signo mercurial , colocado sobre o umbigo, indica o fator mediano de por .
Os dois braços, em que se acham inscritos os dois preceitos misteriosos - Coagula, Solve - sustentam a esfera dos elementos ocultos. Com isso, Khunrath nos ensina que o Mago, ou o homem completo, designado pelo Andrógino, pode dominar inteiramente o mundo elementar e agir sobre a Natureza naturada com uma espécie de onipotência, projetando ou atraindo para si a Luz Astral, substrato da quintessência.
Considerada como instrumento das transmutações universais, de que o homem pode tornar-se mestre e regulador, a Luz Astral revela-se em toda a extensão de sua ação pela fórmula dividida em caracteres de sombra sobre o feixe de fogo, tríplice e sêxtuplo, que se irradia e flameja na base da esfera central.
Porém, tomada como a própria substância da Alma vivente universal (Nephesh-ha-Haiah UWRU VAH ), que se distingue e se especifica sob inúmeras formas para gerar os seres dos quatro reinos(106), a Luz Astral torna-se o Azoth dos Sábios, e Khunrath a exprime pelo hieróglifo da fênix, instalada como um diadema singular sobre a dupla fronte do andrógino. A cauda do pavão, de que esse estranho pássaro ainda se vê bizarramente revestido, é, em alquimia, como disse Papus, o símbolo da obra, em determinado ponto de sua evolução espagírica. Uma variedade de cores cambiantes surgem então aos olhos, reverberando e parecendo irisar-se de infinitos reflexos enganadores. No sentido comparativo, a cauda de pavão, rica e multicor, simboliza as inúmeras formas e nuanças, infinitamente variadas, de que a matéria penetrada, elaborada, reanimada pelo espírito - reveste-se na progressão ascendente de todos os seres até o Ser. É o reino de Ionah (UHYW), a inexaurível fecundidade que, segundo a multiplicação quaternária, desenvolve a alma de vida distribuída indistintamente a todas as criaturas do universo(107). A hierografia é precisa nesse ponto: O Pássaro de Hermes significa o bem-aventurado princípio da vida vegetativa, que, agindo na profundidade espiritual das coisas corporais, é a própria alma da Natureza, ou a quintessência apta a fazer germinar todas as coisas.
Enfim, o triângulo supremo, que representa a pedra filosofal perfeita, esse triângulo em que Papus lê Elohim (JWUL}, Ele-os-Deuses) e em que julgamos, antes, decifrar o nome Aourim JWBY}, as Luzes (isto é, o princípio de todas as luzes: natural, hiperfísica e espiritual), é a manifestação ternária do fogo divino que se irradia do alto: V} Esch. Esse fogo dissimula para sempre, sob um véu de impetrável esplendor, a própria essência da incomunicável Unidade: princípio final onde, para concluir a evolução geral dos seres, ele deve, enfim, reintegrar-se e se ocultar.
Sentido superlativo ou metafísico
do emblema
Para a obtenção do significado de nosso pantáculo, do ponto de vista metafísico, é necessário revelar todos os mistérios do Tetragrama incomunicável UYUW (iod-he-vau-he), síntese divina do Universo vivo.
Ora, por um lado, seria desnecessário repetir aqui as explicações bastante detalhadas e precisas, já fornecidas anteriormente; por outro lado, o caráter inefável do Absoluto, esse Inominável manifestado pelo nome de UYUW desafia o esforço de nossas línguas analíticas e relativas.
Seremos, pois, extremamente sóbrio ao escrever: convém limitar esta nota a algumas indicações bastante breves.
Que nos baste observar que Esch V} representa o Espírito puro, universal, principalmente, que tece uma veste de luz inteligível ao místico Ain-Soph >YJ GW}, o ser-não-ser: Ser absoluto com relação a si próprio, pois ele é só, no sentido primordial(108), não-ser em relação a nós, que somos finitos e contingentes, pois o Relativo não pode compreender o Absoluto.
O triângulo de Aourim JWBY} figura o Verbo, indestrutível conjunção do Espírito e da Alma Universal: como Adão-princípio produz Eva-Faculdade, constituindo com ela uma unidade; como o Fogo V} produz a Luz BY}, constituindo com ela uma unidade; assim, o Espírito Universal produz a Alma Coletiva, constituindo com ela uma só e única coisa: o Verbo.
Este arcano parece ainda mais perfeitamente expresso pela figura central do grande Andrógino. Do macho W, emana a fêmea U. Sua síntese Iah UW constitui uma assimilação homogênea, coesa: símbolo eterno do Pai engendrando o Filho (por intermédio da Mãe Celeste ou Natureza-Naturante) e se reproduzindo na pessoa desse Filho. Quanto ao pássaro de Hermes, pairando acima do Andrógino, deve-se ver nele o Espírito Santo, Y, que procede do Pai e do Filho, de Deus e da Humanidade. Enfim, os globos que figuram abaixo representam o Reino ZYPLK (Malkuth), esfera de ação do segundo U, onde se exerce a exaurível fecundidade do Tetragrama no domínio da natureza naturada, mundo da substância plástica, das formas sensíveis, das imagens.
Assim como o quaternário Iod-heve UYUW, o quaternário Agla }LO} pode servir de chave a nosso emblema:
O primeiro Aleph (} = 1) exprime, assim, a Unidade principiante do Universo; Ghimel (O = 3), o ternário das pessoas em Deus; Lammed (L = 12), o desenvolvimento do ternário espiritual multiplicado pelo quaternário sensível (3 x 4 = 12), e a difusão do Ser Universal no Tempo e no Espaço. Enfim, o último Aleph, a Unidade principiante e final, ponto de partida e ponto de chegada; a unidade suprema para onde tudo retorna após o duplo movimento hemicíclico da Descida e da Ascensão(109), da Desintegração e da Reintegração, da Queda e da Redenção.
Fazendo um paralelo do que foi dito acima com as noções desenvolvidas anteriormente, será lícito ao leitor engenhoso desenvolver e completar para seu próprio benefício o sentido superlativo ou divino do Grande Andrógino cabalístico.
Nada negligenciamos de essencial; mas, colocando os princípios, não pretendemos demonstrá-los e, menos ainda, elucidá-los até as conseqüências que se podem deduzir.