OS
SEGREDOS DO GÓLGOTA
Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
INTRODUÇÃO
Introdução
OS ZELOTES
Os zelotes. Origem do movimento. As sucessivas insurreições.
O testemunho dos manuscritos do mar Morto.
Os filhos de Aarão. O duplo poder entre os zelotes. A verdade sobre
Zacarias.
Os filhos de David. Os irmãos e lugares-tenentes de Jesus. Os que
continuaram a luta contra Roma, e os que desertaram.
Ezequías-har-Gamala. O antepassado de Jesus. Suas operações
contra Síria. É capturado e mandado crucificar por Herodes,
o Grande.
Juda-har-Gamala. Filho de Ezequias, pai de Jesus. O que se sabe dele. Sua
morte no curso da Revolução do Censo, no ano 6.
Os irmãos Santiago. Sobre a incerteza reinante no que concerne a
seu posto dentro da família davídica. Sua morte na Palestina
e em Jerusalém. A mistificação de Santiago de Compostela.
André, aliás Eleazar, aliás Lázaro. Irmão
de Simão-Pedro e, portanto, de Jesus. Relacionado com um "tema
de ressurreição".
A ressurreição de Lázaro. Sobre a dúvida de
tal milagre, ignorado por Mateus, Marcos, Lucas e Paulo. Possível
explicação.
Judas-bar-Judas, o irmão gêmeo de Jesus, aliás Tomás,
aliás Lebeo, aliás Tadeu. O procurador Cuspio Fado o manda
decapitar.
Felipe. É dos que abandonaram o movimento depois da morte de Jesus.
O que a história ignora dele.
Mateus. É dos que desertam do movimento. Provavelmente tio de Jesus,
possivelmente pai de João da Gischala, outro chefe zelote que destacará
durante o assédio de Jerusalém.
Bartolomeu, aliás Bar-Thalmai. Executado por ordem do procurador
Cuspio Fado, depois de sua captura em Iduméia.
Iochanan ou João o Evangelista. Também irmão de Jesus.
Não esteve jamais em Roma, mas foi o chefe religioso dos zelotes.
Morreu em Jerusalém ao mesmo tempo que Santiago o Menor.
As "línguas de fogo" do Pentecostes. O que foi em realidade
o "dom de línguas". Significado psiquiátrico da
"glossolalia". O que era o ritual de Tikun Chabouth.
Menahem, o "consolador" anunciado por Jesus. Neto de Judas da
Gamala, toma Massada, logo Jerusalém, faz-se proclamar rei, cai em
uma tirania sangrenta e por último é executado pelos israelitas.
Simão-bar-Cleofás. Descendente de David também, é
crucificado em Jerusalém depois de um novo levantamento.
Simão-bar-Kokheba. Chamado o "filho da estrela", apoiado
pelo Rabbi Skiba, desencadeia a grande revolução do ano 135.
A princípio obtém a vitória, mas logo é esmagado
pelas legiões romanas, e será o responsável pelo fim
de Jerusalém como nação.
Maria, mãe de Jesus. Sua genealogia. Suas dúvidas referentes
à divindade de seu filho suscitaram a criação do personagem
imaginário de Maria de Magdala. Morreu também em Jerusalém.
As grandes famílias: asmonea, davídica, herodiana, disputam
o trono de Israel. A meio-irmã de Maria mãe de Jesus não
é outra que Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém,
novena esposa de Herodes o Grande. Seus complôs e seu final.
O verdadeiro Herodes Filipo II: Lysanias, meio-irmão de Salomé
II e seu marido real. O por que do embrulho criado pelos monges copistas.
SEGUNDA PARTE : OS SEGREDOS DO GÓLGOTA
Jesus-bar-Juda. Como se censurou a Tácito, Suetonio e Flavio Josefo,
para melhor sustentar a lenda de um deus encarnado.
Jesus-Barrabás. Impossibilidade de uma substituição
penal em Jerusalém naquela época. Por que se criou esse personagem
imaginário, destinado a mascarar a atividade zelote de Jesus.
O crime do Templo. O caminho de Jericó à Jerusalém.
O ataque dos mercados e dos peregrinos. A maquiagem das palavras nos relatos
iniciais.
A verdade sobre a Paixão. Impossibilidade da farsa da zombaria, contrária
às leis romanas, e sua explicação; os fatos reais sobre
os quais se abordou ulteriormente.
O segredo de Simão de Cirene. Uma controvérsia discreta entre
os exegetas dos primeiros séculos. O que mascarava essa discussão.
A evasão de Jesus. Capturado seis semanas antes de Pascal, evadido
com o acordo tácito de Pilatos, revolta a Samaria. É capturado
de novo em Lydda e devolvido à Jerusalém, onde é crucificado.
Duas quedas em desgraça bastante misteriosas. Pilatos é denunciado
pelos saduceus por ter permitido a evasão de Jesus e, por conseguinte,
a revolução dos samaritanos. É exilado à Vienne,
onde morre. Por sua vez, Herodes Antipas é também exilado
à Vienne. Motivos reais.
Quando morreu Jesus? Por que são errôneos os dados avançados
pelos exegetas oficiais. Como calcular exatamente o dia e o ano da morte
de Jesus.
O mistério da tumba. Teve Jesus o privilégio de contar com
uma tumba ritual, ou foi arrojado à fossa da infâmia, como
todos os condenados à morte?
Sobre a incineração do cadáver de Jesus em Makron,
Samaria, em 1 de agosto de 362, por ordem do imperador Juliano. Impossibilidade
de que se tratasse de João, o Batista.
Ressuscitados da sexta-feira santa. Impossibilidade de admitir tal conto.
Tratava-se de combatentes zelotes ocultos no cemitério ritual do
Monte das Oliveiras.
A sombra de Tibério. Por que o imperador pensava fazer de Jesus um
tetrarca, ou inclusive um rei de Israel. Jesus era um peão em sua
estratégia contra os partos.
Aos mortos da Massada
Reprova-me que, de vez em quando, entretenha-me com Tasso, Dante e Ariosto.
Mas é que não sabem que sua leitura é a deliciosa beberagem
que me ajuda a digerir a grosseira substância dos estúpidos
Doutores da Igreja? É que não sabem que esses poetas me proporcionam
brilhantes cores, com ajuda dos quais suporto os absurdos da religião?
...
BENEDICTO XIV, Papa
Resposta ao R.P. Montfaucon (1)
Introdução
Um iniciado pode ser o instrumento de uma fatalidade assassina, cujo fim
escapa a nossa compreensão...
MAURICE MAGRE, Priscilla d'Alexandrie
No recinto do Templo reservado aos homens, os judeus piedosos se reuniram
já, voltados para o este, com a cabeça coberta pelo taleth,
com os tephilim em mão, a ponto de salmodiar a oração
ritual logo que despontasse o sol: "Louvado seja, Oh Eterno, nosso
Deus, Rei do Universo, Você que criou a luz e conservou as trevas...
Louvado seja, Oh Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que deu ao galo a
inteligência para distinguir o dia da escuridão ..."
Na noite escura do último dia de Nisán, o escuro veludo azul
do céu estava salpicado ainda por mil diamantes. No poente, mais
escuro, declinavam as estrelas de Khus, o Arqueiro, enquanto que no levante,
mais claro já, viam-se ascender pouco a pouco as de Ab Menkhir, a
Baleia. Foi então quando o grande galo solitário do Templo,
o único tolerado na Cidade Santa, e ao que alimentavam com trigo
as mãos frágeis das filhas dos cohanim, aquele ao que chamavam
o Avisador, aquele galo cantou, advertindo deste modo aos levita de guarda
da saída do sol.
Então, de toda a cidadela Antonia se elevou um clamor ritmado. A
coorte da Legião I, formada em quadrados atrás de sua águia
e seus pendões, e conforme era costume em Síria, saudava a
aparição do sol, e os veteranos, com o braço direito
levantado, de cara ao astro rei, repetiam a tripla saudação
ao "sol invictus". Não era acaso ele, sob o nome de Mitra,
quem partia invisivelmente a cabeça deles, assegurando assim a glória
de Roma em todos os combates? (2)
Com tonalidades amareladas, amarantáceas e alaranjadas a crescente
luz alagava o horizonte em amplos mantos paralelos e ascendentes, e Jerusalém,
como respondendo à chamada do profeta: "recuperava sua luz ..."
(3) Logo chegaria a alvorada; o frescor noturno desvanecia-se progressivamente,
e mil aromas diversos se misturavam ao desejo da brisa e de suas mudanças
de humor, jogando como um gatinho jovem por ruelas e encruzilhadas. Ao aroma
de metzo, ferik, rechta ou difna, que coziam lentamente da véspera
no forno das famílias ricas (pois Judéia sofria o açoite
da fome), acrescentava-se o aroma, algo ácido, da intimidade das
mansões que ao fim tornaram-se a abrir ao exterior, e também
o perfume de ervas aromáticas procedentes dos bosques próximos.
Nos abrigos das velhas dependências do exterior da cidade, sacudindo-se
de sua pelagem poeirenta o frescor da noite passada, os pequenos asnos cinzas
sopravam sob os primeiros raios de sol, liberando o acre vapor de suas camas
de palha. E aqui, dominando tudo, flutuava esse poderoso aroma, formado
pelo suor, o couro e as armas engraxadas, que acompanham em qualquer parte
aos soldados.
Os cavaleiros do I Augusto estavam, efetivamente, ali, fiéis à
terra, completamente silenciosos, na cabeça de suas guarnições
alinhadas ao longo dos fossos de defesa. Atrás deles, à sombra
rosa e ocre das fortificações muradas, estava totalmente aberto
à porta de Damasco, que eles jamais franquearam montados em suas
cavalgaduras, dado que a entrada à Cidade Santa estava vedada aos
cavalos, tanto por respeito aos costumes religiosos judaicos, como por sua
inutilidade em uma cidade tão acidentada como Jerusalém. E
a asa legionária, acampada muito perto da cidade, acudira simplesmente
ao encontro do tribuno de cavalaria, seu chefe, que aconchegou-se no palácio
do procurador, em uma operação preliminar a uma mudança
de guarnição.
Os homens e seus chefes foram equipados exatamente igual à seus companheiros
fiéis. Um grande escudo oblongo cobria o flanco esquerdo do cavalo,
a longa espada regulamentar pendia da cela ao mesmo lado. A sua direita
o legionário conservava a adaga curta e larga. Mas além da
lança dos legionários fiéis, este levava em bandoleira
um aljava de couro com três flechas de ferro cortante como uma navalha
de barbear.
Separado deles, perto de um grupo de oficiais silenciosos, o Tribuno de
Cavalaria ia e vinha lentamente: parecia estar esperando algo. De repente
ouviram os passos de uma pequena tropa armada, chocando-se contra as pedras
do caminho, e pouco depois apareceram, à luz do amanhecer, uma trintena
de homens. Era o destacamento explorador que o Tribuno enviara em vanguarda.
A cavalaria do I Augusto devia abandonar seu acampamento próximo
à Jerusalém, onde era de pouca utilidade em caso de distúrbios
urbanos, para instalar-se em Cesaréia Marítima, nos limites
da planície do Saron, frente ao mar. E o Tribuno se alegrou de abandonar
Jerusalém, essa cidade de fanáticos, para encontrar-se de
novo com a tranqüilidade das guarnições romanas e também
com os corpos quentes e mórbidos das cortesãs iduméias.
Porque os quadros superiores de Roma não tinha direito a levar consigo
a suas esposas aos territórios de ultramar; o império temia,
e com razão, que o clima, ao que as sensuais romanas resistiam bem
pouco, e as influências sobre o caráter, abrandassem às
guarnições legionárias.
Não obstante, antes de empreender a marcha, à alvorada, pelo
caminho sinuoso que descendia através do vale do Terebinto, ainda
meio escuro, e no que tanto cavaleiros como cavalos constituíam uns
alvos ideais para os arqueiros da dissidência judia, o tribuno de
cavalaria mandou um destacamento a efetuar um reconhecimento até
uma certa distância. Depois, uma vez o sol estivesse no alto, a asa
legionária cavalgaria por um terreno descoberto, onde estaria em
condições de responder a qualquer emboscada, e de castigar
severamente a seus eventuais agressores.
O centurião que estava ao mando das três decúrias de
exploradores, reordenou as filas, ordenou o alto, e logo, rígido
sob sua capa escarlate, com o braço direito levantado, saudou o magistrado
militar:
- Centurião, como está o caminho?
- Tranqüilo e seco, tribuno ...
Nessas regiões mediterrâneas, bastante baixas de latitude,
as auroras e os crepúsculos são muito curtos. E o sol nascente
já começava a lançar seus brilhos pelo horizonte, irradiando
uma nova luz que abraçava com seus raios as avermelhadas muralhas
da antiga cidade de Adoni Tsedek.
No alto, dominando a Cidade Santa, o ouro e o cobre vermelho do teto e das
gigantescas portas do novo Templo lançavam um insuportável
e deslumbrante fulgor. E sob o ligeiro calor que insidiosamente se deixava
sentir, a brisa de repente levou um aroma ao mesmo tempo adocicado e nauseabundo.
Farejando esse ligeiro vento com um gesto de asco, o tribuno se dirigiu
lentamente para o ângulo do recinto novo, de onde podiam distinguir-se,
ao longe, as massas da torre Psephinos. Entre esta e a porta de Damasco
se elevava um montículo que os judeus chamavam Gólgota, uma
palavra hebréia que significa crânio. Segundo uma de suas inverossímeis
lendas, era ali onde repousava o corpo incorruptível de Adão,
e era precisamente o crânio deste o que estava revestido pela terra
daquela colina estéril. Calva como um lugar maldito pelo céu
e pelos homens, a colina tinha, tanto de dia como de noite, um aspecto sinistro.
Ali era onde, de dia, precipitavam-se em busca de pasto os corvos e abutres.
Ali era onde, de noite, rondavam com o mesmo fim o chacal e a hiena. Pois
assim é o destino dos lugares de execução, que faz
que a morte alimente à vida.
No topo do monte calvo se erguiam alguns postes patíbulos, que pareciam
esperar sua sinistra travessa, e também duas cruzes completas, recortando-se
sobre o céu claro da Judéia. O tribuno de cavalaria, seguido
por alguns oficiais, aproximou-se lentamente, e, ao chegar a curta distância,
deteve-se e olhou.
Nas cruzes havia dois crucificados. Estavam mortos. E possivelmente já
da antevéspera. Mas longe estavam já os tempos em que Roma,
em sua tolerância religiosa, permitia às famílias dos
condenados a morte não escravos que descessem do ignominioso patíbulo
o cadáver do ser querido antes do pôr-do-sol, para, segundo
a lei judia, "não manchar a terra Santa de Israel". (4)
Por isso era que, apoiados sobre sua lança, com o nariz tampado por
sua capa de sua classe marrom, alguns soldados da III Cyrenaica, embora
lhes revolvesse o estômago, montavam um guarda, apesar de tudo vigilante,
frente à Gólgota. E é que, por ordem do Tibério
Alexandre, os corpos tinham que permanecer nas cruzes patíbulas até
que a putrefação e os rapazes levassem a termo sua ação
natural. Assim, conforme tinha declarado o procurador, já não
se veria renascer jamais aquela absurda lenda que tinha seguido à
execução de Jesus, o "rei dos judeus", filho primogênito
de Judas o Galileu, e crucificado quatorze anos antes, em tempos do procurador
Poncio Pilatos. Porque seus faccionários, os zelotes, bem corrompendo
ou embebedando à tropa do Templo encarregada da vigilância
da tumba, conseguiram apartar a laje sepulcral, recuperando o cadáver,
previamente embalsamado com mirra e aloés para este fim, e o levaram
em segredo à Samaria, onde os judeus não podiam penetrar nem
efetuar pesquisa alguma. Ali o tinham inumado secretamente em uma tumba
na aparência ocupada já por um tal Ioannes, ao que os judeus
chamavam o Batista. E logo seus seguidores afirmaram que ressuscitara.
Esta vez os criadores de lendas o deixariam francamente difícil,
já que não havia muitas possibilidades de que, ante os imundos
despojos que ficassem fixados a cada um dos patíbulos, pudessem montar
semelhantes fantasias.
Cada uma das cruzes levava, atrás da cabeça do crucificado,
uma placa em que se gravou a fogo uma inscrição trilingüe.
Na da esquerda podia ler-se: "Simão-bar-Judá, crimes
e banditismo". Na da direita inscrito: "Jacob-bar-Juda, chefe
zelote, idem".
Complacente, o tribuno comentou para aqueles dos centuriões que não
sabiam ler:
- O da esquerda é o famoso Simão, chamado também "a
pedra"; era o irmão de Jesus, o rei dos judeus, e lhe aconteceu
como rival do Herodes Agripa, como pretendente ao trono de Israel. O da
direita é Jacobo, seu outro irmão, que ao final foi o preferido
de suas bandas, mas sua morte tampouco resolve nada, porque deixa um neto,
Menahem... Enquanto Roma não tenha aniquilado esta família,
não teremos paz nestas regiões.
Silenciosos, envoltos em suas capas vermelhas, os centuriões contemplavam
os corpos dos justiçados, pois a asa legionária aquartelada
na Betânia não havia nem assistido nem participado da execução,
já que lhe mantiveram em reserva para o caso de que se produzissem
possíveis distúrbios. Ao redor das duas cruzes, manchadas
pela urina e os excrementos dos condenados, formavam redemoinhos se enxames
de moscas zumbindo. E o tribuno de cavalaria, por sua parte, revivia a espantosa
cena dessa dupla crucificação.
Naquela manhã, muito cedo, a turma de guarda na cidadela Antonia
arrojou as notas de congregação geral, notas repetidas pelos
outros diversos aquartelamentos. Pouco depois, as grades de Antonia abriu-se
ao alto da dupla escada de pedra, e apareceram, em filas apertadas, os manípulos.
Os homens foram em equipe de assalto, levando unicamente a espada curta
e o pilum ou lança, e o escudo ao braço esquerdo. Tomaram
a direção do Gólgota, lugar incomum das execuções,
para o que convergiam deste modo todos os outros destacamentos. Centúria
atrás centúria, o som rítmico de seus passos sobre
o pavimento tinha congregado pelas ruelas e detrás das janelas às
multidões judias de todos os bairros próximos, silenciosas
e graves.
Formados em quadrado, os dois terços da coorte dos veteranos colocaram-se
ao redor da fúnebre colina, dando-lhe as costas e fazendo frente
à multidão, mantida a respeitosa distância. De Antonia
à Gólgota as tropas ordinárias estavam cotovelo a cotovelo,
apertando aos curiosos contra as muralhas, e bloqueando em tripla fila àqueles
que, em quantidades inumeráveis, vinham amontoar-se pelas ruelas
transversais. Esperaram longo momento. No intervalo, da cidadela tinha saído
uma carreta atirada por um escravo, escoltada por alguns legionários
ligeiramente armados. Na carreta havia dois braseiros, sacos de carvão
de lenha, foles, e meia dúzia de flagra, espécie de grandes
maços, cuja manga de madeira se convertia em ferro no extremo superior
e levava quatro caixas com bolas de bronze e cujos anéis eram planos
e oblongos. E um longo murmúrio temeroso tinha deslocado então
entre a multidão: "Os látegos de fogo... Os látegos
de fogo...".
Uma vez chegados à Gólgota, os soldados que, segundo o costume
romano, deviam exercer o ofício de verdugos, dispuseram os braseiros,
colocaram carvão, acenderam e atiçaram o fogo com ajuda dos
foles de couro. Quando o carvão já não era mais que
brasas ardentes inundaram nele as cadeias dos flagra, cuidando que as mangas
de madeira não estivessem ao alcance das faíscas acesas.
Bruscamente a multidão se agitou, e, voltando-se, os legionários
a retiveram e a fizeram retroceder a golpes de escudo ou de mangas de pilum.
Acabava de sair de Antonia um novo cortejo.
Precedidos e emoldurados pelos homens de um manípulo completo, dois
homens de idade avançada caminhavam lentamente, com o torso nu. Tinham-lhes
baixado as vestimentas até os rins, e avançavam com os braços
em cruz, atados a uma madeira que, à maneira de jugo, repousava sobre
seus ombros e sua nuca. Do pescoço de cada um deles pendurava uma
prancha que levava uma inscrição em latim, grego e hebreu:
a que devia figurar atrás de suas cruzes. Seus rostos estavam pálidos
e marcados, envoltos por uma cabeleira e uma barba hirsutas, seus olhos
ardiam de febre, e de seus flancos palpitantes sobressaíam das costelas.
O curto trajeto de Antonia à Gólgota realizou-se, em um silêncio
de morte, ao passo lento dos condenados. Para dar maior solenidade à
dupla execução, Tibério Alexandre tinha proibido o
habitual acompanhamento das chorosas. Ao pé da colina, o manípulo
deteve-se sob uma ordem breve, e só uns poucos soldados empurraram
com suas lanças aos dois homens para o topo, ao encontro com seus
verdugos.
Primeiro despiram completamente aos condenados, logo lhes conduziram para
o poste vertical de sua futura cruz. Ali, de uma rasteira, fizeram-lhes
cair de bruços, de cara contra a madeira.
Sujeitaram-lhes fortemente a cintura com uma cadeia, e o pescoço
com outra, os braços seguiam atados à travessa que levavam
em cima. Dois casais de verdugos tiraram, cada um, um flagrum do fogo do
braseiro e colocaram em ambos os lados de cada condenado. O situado à
esquerda devia golpear em primeiro lugar, e o outro devia seguir. Voltaram
a cabeça e esperaram; o centurião exactor mortis levantou
a mão, e baixou-a. Os verdugos situados à esquerda balançaram
suas cadeias, ao vermelho branco, e, com toda sua força, golpearam
os flancos dos dois condenados. Um horrível alarido brotou do peito
dos condenados, mas os verdugos, depois de um breve lapso de tempo, arrancaram
a carne viva dos flagra, e já os dos segundos executantes batiam
do outro lado, com o mesmo breve lapso de espera e o mesmo golpe para sua
extração da carne. E as elásticas e pesadas descargas
de ferro vermelho vivo continuariam abatendo-se com cadência, em meio
aos gritos de sofrimento e de um aroma de carne chamuscada, abrindo nos
flancos e rins dos condenados longos sulcos negruscos, onde, como magras
lágrimas, destilavam o soro e o sangue. A intervalos regulares voltavam
a introduzir seus flagra no fogo dos braseiros, e os recuperavam de novo
quando estavam bem vermelhos.
A lei judia (que em matéria de castigo não utilizava mais
que o látego de couro) limitava a trinta e nove o número de
chicotadas que um condenado podia receber. Mas a lei romana não fixava
nenhum limite no caso de uma condenação a morte. De todo modo,
e a fim de que os condenados não morressem sob os espantosos sofrimentos
do flagra e padecessem integralmente a crucificação que devia
seguir, o exactor mortis responsável pela execução,
ao ver que um dos dois homens se desvaneceu, ordenou ao fim: "Satis..."
(5). Os verdugos se detiveram, mas não obstante um deles cruzou uma
última vez as costas de sua vítima. O látego de videira
do centurião assobiou e lhe golpeou em pleno rosto. "Hei dito
bastante ...", exclamou irado. O homem se levou com a mão a
sua cara tumefacta, e não pronunciou palavra.
Desataram aos condenados e os separaram dos postes.
A continuação desenvolveu-se como todas as crucificações.
Fez-se beberem aos dois homens a bebida calmante oferecida pelas mulheres
de uma confraria judia que assistia aos condenados a morte. Continuando,
sem olhares, puseram-os de costas contra o chão, e a areia e o cascalho
sujo penetraram nas feridas supurantes, pelo próprio peso do corpo,
fazendo estalar as ampolas e arrancando longos gemidos dos dois desafortunados.
Simultaneamente cravaram os verdugos um grosso prego nas palmas de suas
mãos, e os dobraram a golpes de martelo, fazendo penetrar a cabeça
dos pregos na carne dos dedos. Depois levantaram cada homem, de maneira
que a madeira ao qual assim parecia introduzira-se no oco disposto para
tal fim no poste patíbulo. Ataram-no todo em diagonal, e, para que
o peso do corpo não rasgasse a palma da mão, cravaram, sempre
a martelada limpa, uma enorme espiga sob as partes sexuais de cada homem,
a fim de que suportasse a carga. E o fio do ângulo de semelhante suporte,
ao ferir o períneo, acrescentava ainda mais dor ao suplício
do condenado. Por último, e com ajuda de um novo prego para cada
um, fixaram ambos os pés, fazendo ranger os ossos, e logo desataram
os antebraços das ligaduras anteriores. A fim de que os futuros cadáveres
pudessem ser atacados comodamente pelos animais carnívoros, seus
pés estavam a menos de dois palmos do chão.
A tudo isso terei que acrescentar que os membros inferiores e superiores
dos dois rebeldes não foram previamente quebrados, sem dúvida
para que os condenados permanecessem mais tempo com vida. A sede, o calor,
as moscas deveriam aumentar os dores físicas, já terroríficas
por si mesmos, pois o sangue e o soro que destilava as costas faziam que
se aderissem à rugosa madeira as feridas em carne viva. Continuava
a febre.
Para o entardecer acenderam diante deles um abundante fogo de lenha, tanto
para iluminar o Gólgota para permitir aos legionários da legião
siria (6) que se esquentassem no frio das noites de Nisán. Além
disso, e por prudência, outras duas tochas ardiam permanentemente
detrás das cruzes, no alto de umas varas plantadas no chão.
E pouco a pouco, com a noite, as mãos dos crucificados se crisparam
ao redor das enormes pontas dos calvos, e os dedos, já mortos, produziam
o efeito de uma aranha encolhida sobre si mesmo. As cabeças pendiam
sobre o peito, e os corpos desabados, em ziguezague, causavam a impressão
de uma suprema renúncia à vida. Para os dois moribundos, que
tremiam de febre e aos que a asfixia ganhava pouco a pouco, cada hora equivalia
a um dia, e cada dia a uma semana.
Apesar disso, pela segunda vez lhes negou uma morte piedosa e doce. Por
volta do meio-dia seguinte, obedecendo às ordens recebidas, o chefe
da patrulha de controle deu uma ordem, e um legionário de rosto curtido
pela idade e as campanhas aproximou-se dos imóveis crucificados.
Fez deslizar-se e descer a ponta de seu pilum sob a axila direita e, apoiando-a,
o soldado foi encontrando o relevo das costelas. À altura de uma
delas se deteve e, lentamente, introduziu sua lança: da ferida fluiu
um pouco de sangue. O agonizante estremeceu-se ligeiramente e voltou a respirar.
A seguir o legionário dirigiu-se à segunda cruz, e repetiu
o processo. E assim o suplício durou mais.
Timidamente, um centurião perguntou: "Tribuno, não foi
a conseqüência do nascimento dessa superstição
judia sobre a pseudo-ressurreição daquele Jesus, por isso
Tibério César promulgou o decreto que castigava à pena
capital aos que deslocassem a laje das tumbas para tirar os cadáveres
delas ...?".
O tribuno refletiu um instante: "Sem dúvida, provavelmente foi
isso. Mas também para evitar que os da seita de Hécate se
apoderem dos despojos fúnebres que necessitam para suas invocações
maléficas ...".
Seguiu um silêncio. Logo, acompanhado por seus oficiais, o tribuno
de cavalaria retornou sossegadamente à Porta de Damasco, onde esperavam
os cavaleiros e cavalos, procedentes de seus aquartelamentos de Betfage
e Betânia. Fez um sinal a um centurião, ouviu-se uma breve
ordem, e todos montaram em suas cavalgaduras. Houve uma segunda ordem e,
em silêncio, a asa legionária ficou em movimento, ao passo,
na claridade da manhã, com o único ruído dos cascos
de seus cavalos ou o tinido de suas armas.
O fogo da noite acabava de morrer em suas brasas ainda avermelhadas, e dos
últimos ramos com que o alimentaram se elevava ainda, às vezes,
um magro fio de fumaça cheirosa e azul, símbolo de uma doçura
estranha a esses lugares, e que não chegava a cobrir o nauseabundo
aroma que chegava das cruzes patíbulas.
A certa distância, posados nos postes que ainda estavam livres, grasnaram
um casal de corvos, e logo alisaram suas plumas. Invisível, mas alegre,
um grilo lançou desde sua minúscula toca seu canto para o
sol.
Então uma sombra vaga pareceu descer ante a luz. Em um vôo
silencioso e elástico, levantando com suas asas o pó amarelo
do Gólgota, vários abutres abatiam-se pesadamente sobre os
crucificados. Os primeiros em chegar lançavam já para o abdômen,
à maneira de seu látego, seus pescoços largos e cortados
terminados em um pescoço farpado e cortante. E com raivosos grunhidos
os abutres pinçavam nos cadáveres, afundando sua cabeça
até o coração mesmo das vísceras, salpicando-se
mutuamente com as vísceras, e com sua plumagem já manchada.
Os legionários sírios contemplavam tranqüilamente este
terrível espetáculo, apoiados negligentemente em seu pilum.
E um deles, depois de ter bocejado de aborrecimento e de sono, pronunciou
o velho provérbio aramaico: "Esteja onde esteja a carniça,
os abutres se reunirão em volta dela ...".
Um pouco afastado, o decurião que estava ao mando do pequeno grupo
de guarda se voltou, com desprezo, e colocando sua mão por cima da
viseira de seu quepe, contemplou o céu.
Altíssimo, sobre as nuvens, acabava de aparecer um vôo de cegonhas.
Estas aves brancas, em formação, batiam suas asas negras a
um ritmo majestoso e regular, e se dirigiam por volta do mar. Vinham de
muito longe, de além das ruínas de Babilônia e de Persépolis,
e logo que começaram os dias de bonança, quando o clima era
ainda temperado, empreenderam a fuga para evitar o tórrido verão
dessas regiões.
O decurião seguia-as com o olhar, silencioso e grave. Era um grego,
um dos últimos descendentes dos bactríadas, destronados e
dispersados antigamente pela invasão dos Sakas, que desceram de uma
parte longínqua da Ásia, e nunca pisaram no chão da
Grécia. Oprimiu-lhe o coração, com seu pesar. As cegonhas
foram sobrevoar sua verdadeira pátria; elas atravessariam possivelmente
o céu de Hélade por cima de Corinto, ou, roçando a
harmonia dórica do Partenon, iriam aninhar no coração
da Acrópoles pelo Pelargikon das nove portas que, como suprema honra,
os atenienses tinham batizado como a "Muralha das Cegonhas". E
à manhã seguinte, quando remontassem o vôo, iriam beber,
sedentas, às águas proféticas do vale do Delfos.
Eram os símbolos viventes da Piedade e da Bondade no mundo antigo,
e conheceriam, sem compreendê-la e sem apreciá-la, uma paz
que o decurião ainda não conhecera jamais, em uma pátria
ainda não manchada por dogmatismos limitados nem por fanatismos sanguinários,
e onde o pensamento do sábio permanecia livre e imortal.
Por orgulho ante seus homens, o bactríada se tragou as lágrimas
que pugnavam por aparecer em seus olhos, e, com seu pesar, seus lábios
murmuraram, pensando nos formosos pássaros que se perdiam no espaço,
a saudação e o desejo da antiga Acaya: "Sede felizes
...".
Mas, devido à emoção daquele instante, não advertiu
o fúnebre presságio. Com efeito, as cegonhas voavam da mão
direita à mão esquerda, e isso era o anúncio de desgraça
para a terra que acabavam de sobrevoar.
NOTAS COMPLEMENTARES
Para falar a verdade, os cavalos não estavam absolutamente proibidos
na Cidade Santa, embora o Deuteronômio (17, 16) precisa: "O rei
não deverá multiplicar seus cavalos". Entretanto, parece
que sua circulação foi regulamentada e, sobretudo, proibida
nos bairros próximos ao Templo; isto era por causa de seus excrementos,
que sujavam as sandálias de quão fiéis subiam ao santuário.
Por isso as quadras de Salomão (se é que se tratava realmente
das quadras deste rei, e não simplesmente das dos templários,
coisa que em troca sim que é certa) foram construídas nos
limites do recinto sudeste da cidade, o mais longe possível do Templo,
e limítrofes com a Porta da Fonte, frente ao monte do Escândalo
(veja-se plano de Jerusalém, cap. 27).
Primeira parte - Os zelotes
Tudo está tirado de seus próprios autores! Para que necessitamos
de outros testemunhos, se já lhes contradizem bastante entre vós
mesmos ...
Celso, Discurso
verdadeiro
1 - Os zelotes
O mundo só será salvo, se o for, por insubmissos.
André Gide
Dá-se o nome de "discípulos" aos que estão
submetidos a uma disciplina. Esta palavra vem do latim disciplina, que significa
regra, lei. Entre os judeus, esta disciplina é a Lei, a Torá.
E agora sabemos que os messianistas, os zelotes ou os sicários eram
fanáticos da Lei. Queriam instaurar em Israel uma teocracia em que
não haveria mais rei que Deus, e não haveria Mestres, a não
ser juízes simplesmente. Rechaçavam rotundamente toda prestação
de juramentos. Releiamos os Evangelhos:
"Mas não lhes façam chamar rabbi, porque um só
é seu Mestre..." (Mateus, 23, 8).
"Mas eu lhes digo que não jurem de maneira nenhuma (...) Seja
sua palavra: sim, sim; não, não; tudo o que sucede disto,
do mal procede". (Mateus, 5, 34-37).
Pois bem, entre os manuscritos descobertos perto do mar Morto, nas grutas
do Khirbet-Qumran, encontra-se um "Manual de disciplina", espécie
de ritual de uma estratégia militar mesclada com ritos ocultos e
cabalísticos. Nele se "ordena" o combate, como uma liturgia
oculta, os estandartes levam nome de anjos, que são ao mesmo tempo
nomes de poder (como uma cabala), e esse ritual de uma batalha ao mesmo
tempo oculta e militar evoca indevidamente o local de Jericó (Josué,
6, 5).
Se o depósito de Qumran se realizou para pôr os manuscritos
portadores das Escrituras sagradas em lugar seguro, é porque importantes
distúrbios ameaçavam sua existência.
Essas Escrituras sagradas, compostas por manuscritos de diversas épocas
antes de nossa era, deveram gozar do privilégio de todas as Santas
Escrituras entre os judeus. Expressam a palavra divina, ou a dos profetas
do Senhor. Seriam transcritas sobre peles de animais puros, com a tinta
ritual, por escribas especialistas. Se estes cometiam algum engano de transcrição,
detinham-se imediatamente, não podia efetuar-se nenhuma retificação
(nem raspar), simplesmente se relegava o texto interrompido e imperfeito
a um lugar especial, chamado ginnza, junto com os quais lhe precederam,
e voltava a começar a citada transcrição. Uma vez terminada,
seria objeto de uma espécie de veneração por parte
dos fiéis da comunidade israelita. O leitor seguiria o texto linha
por linha, palavra por palavra, com ajuda de um instrumento especial, a
"mão da Torá". Esta consiste em uma vara de madeira
preciosa, terminada em uma minúscula mão de bronze, prata
ou ouro.
Uma vez efetuado o depósito de Qumran, as Escrituras sagradas seriam
envoltas cuidadosamente em um pano de linho, e depositadas em vasilhas de
terra cozida, no seio da gruta. Tendo em conta o respeito imenso que testemunham
os fiéis à tais Escrituras sagradas, é inimaginável
supor que para envolver tomassem qualquer trapo usado. Isso constituiria
uma autêntica mancha ritual para os manuscritos, que, assim profanados,
fossem inutizáveis. Portanto, o que se utilizaria para envolver os
citados textos seriam peças de linho novo. Prática que, em
realidade, é universal neste campo.
Pois bem, em janeiro de 1951, no Instituto de Estudos Nucleares da Universidade
de Chicago, procedeu-se a uma análise dos elementos vegetais que
formavam esse tecido, com ajuda do "carbono 14". Este procedimento,
descoberto pelo doutor W. Libby, é já clássico para
as investigações arqueológicas, e se apóia no
seguinte princípio: todo ser vivo, vegetal ou animal, absorve ao
respirar "carbono 14", corpo radioativo que permanece no organismo
inclusive depois da morte do vegetal ou do animal. Mas o grau de radioatividade
diminui de forma regular à medida que o tempo passa, e esse grau
pode medir-se. Ao apreciar desta maneira o resíduo, pode estabelecer-se
com uma considerável precisão a data em que a matéria
orgânica (vegetal ou animal) deixou de viver. Este método foi
suficientemente controlado como para que já não fique em dúvida
seu valor.
E no que concerne às malhas novas que serviram para envolver os manuscritos
do mar Morto, quando foram postos em lugar seguro nas grutas de Khirbet-Qumran,
o "carbono 14" permite afirmar que o linho com o qual estão
elaborados foi compilado 1917 anos antes do experimento de Chicago. Deduzamos
1917 de 1951, e teremos o ano 34 de nossa era, data média da crucificação
de Jesus pelos romanos (7). Mas com o "carbono 14" há uma
margem possível de engano de meio século, antes ou depois
dessa data. De modo que esses documentos puderam ser ocultos desde ano 15
antes de nossa era, aos 85 desta. Tenhamo-lo em conta.
Isto demonstra, não obstante, que posto em lugar seguro os manuscritos
foi efetuado em pleno período de distúrbios. Agora bem, os
Evangelhos não nos falam nem da sangrenta revolução
do Censo, quando teve lugar o pretendido nascimento de Jesus em Presépio,
nem de uma revolução que coroasse o período em que
foi crucificado em Jerusalém pelos romanos. E em lugar de uma época
bucólica, cheia de doçura e de paz, à beira do lago
do Genezaret, encontramo-nos historicamente inundados em uma das inumeráveis
e sangrentas revoluções judias. O leitor que estude a história
do cristianismo nos livros piedosos continuará ignorando que do ano
68 antes de nossa era ao ano 6 desta (a famosa Revolução do
Censo, da qual não se fala jamais) houve trinta e seis revoluções
judias, que essas revoluções representam milhares de judeus
messianistas crucificados por Roma, cidades e povos incendiados e arrasados
várias vezes, campos desolados, rebanhos aniquilados e uma fome sangrenta.
Esse leitor continuará ignorando que se estabeleceram oficialmente
governos judeus.
Entre o ano 66 e o 58 a.C., quer dizer, em oito anos, contam-se na Judéia
vinte e seis movimentos surgidos. E isso que as fontes que nos falam do
tema emanam de Flavio Josefo, partidário da colaboração
com Roma, cujos manuscritos perderam-se e foram substituídos por
cópias dos séculos IX e XII de nossa era, efetuadas no fundo
dos conventos pelos famosos monges copistas.
Membros da dinastia asmonea, expulsos do poder por Pompeyo, arrastaram ao
povo à revolução oito vezes entre o ano 58 e o 27 a.C.
Organizaram-se umas "guerrilhas" que tentavam periodicamente golpes
de força. No ano 43 a.C., Ezequías, pai de Judas da Gamala,
de estirpe real e davídica, já fazia tempo que perseguia às
legiões romanas. No final o capturaram e crucificaram. Costobaro
(27 a.C.), Bagoas (6 a.C.), Judas da Gamala e Matthiatas (5 a.C.) continuaram
a luta contra Roma.
No ano 6 a.C. Levantou-se um governo federal judeu, frente aos estabelecidos
por Roma, que agrupavam por uma parte a Traconítide, a Batania e
a Auranítide, por outra parte Galiléia e Perea, e por último
Judéia, Iduméia e Síria. Esse governo judeu é
o de Simão em Jericó, do pastor Athronge na Judéia
e de Judas da Gamala, filho de Ezequías, em Séforis.
As legiões romanas esmagaram este último movimento, e dois
mil patriotas judeus foram crucificados. Coponio, futuro procurador, aniquilou
aos combatentes Galileus dentro do mesmo Templo, onde se tinha entrincheirado.
No curso desse combate foi onde pereceu Zacarias, pai do futuro Batista,
"entre o Templo e o Altar".
Finalmente, a cidade foi tomada, incendiada, e seus habitantes deportados
e vendidos como escravos (Cf. Alphonse Séché: Histoire de
nation juive). Sem dúvida, Maria, seus filhos e suas filhas escaparam
a esta sorte mediante uma fuga organizada de antemão, já que
voltaremos a encontrá-los mais tarde, quando retornaram à
Galiléia. Não é menos evidente que, quando o imperador
Juliano declararia mais tarde a São Cirilo de Alexandria, seu antigo
condiscípulo, em uma carta citada por este último: "O
homem que foi crucificado por Poncio Pilatos era sujeito do César,
e vamos demonstrar...". (Cf. Cirilo de Alexandria: Contra Juliano),
empregou o termo servus, que significava escravo, ou obnoxius, que significa
o mesmo, porque o termo de sujeito, no sentido que lhe damos agora, traduziria-se
por civis, cidadão. E, evidentemente, Jesus não era cidadão
romano!
Por conseguinte, os habitantes de Séforis se converteram todos em
"escravos de César", quer dizer, em servos e servas do
Império romano, igual a todos os deportados. Este era o caso de todos
quão fugitivos foram então considerados como escravos contumazes.
Cirilo de Alexandria ressaltou a demonstração do imperador
Juliano, a fim de não revelar essa condição. Porque,
com efeito, ela implicava a crucificação inevitável
para Jesus e todos os seus, e mais ainda quando à este caso se acrescentava
o agravante de rebelião contra Roma. Mas naquela época terei
que fazer recair a responsabilidade da morte de Jesus sobre os desgraçados
judeus. Essa foi, provavelmente, uma das razões do segundo casamento
de Maria, desta vez com o misterioso Zebedeu. (8)
E essa condição de escravo contumaz, de deportado convertido
em servo do Império, é-nos confirmada pelo Comodiano de Gaza,
o mais antigo poeta cristão, que viveu no século III, e que
nos declara que Jesus era "inferior", que pertencia a uma classe
"abjeta" (em latim abjectus significa rechaçado, e aplica-se
a uma classe social, não a uma categoria moral), e precisa além
disso: "espécie de escravo" (cf. Comodiano: Carmen apologeticum).
Está muito claro. Jesus estava, pois, classificado pela polícia
romana dentro da categoria dos rebeldes contumazes, quer dizer, dos "escravos
de César" em fuga, por ter escapado à deportação
do ano 6.
Esta vida de guerrilheiros à margem da lei, tendo em conta as exigências
da sobrevivência, implicava por parte dos zelotes, indevidamente,
requisições ou inclusive pilhagens. Por isso Flavio Josefo,
como bom fariseu aristocrata, julga-os com severidade:
"Quando Festo chegou à Judéia, encontrou-a destroçada
por bandoleiros que incendiavam e saqueavam todos os povos. Aqueles aos
quais se chamava sicários -eram bandoleiros- fizeram-se então
muito numerosos. Serviam-se de adagas curtas, pouco mais ou menos da mesma
longitude que os acinaces persas, mas estavam curvados, como os que os romanos
chamam sicae, e com eles esses bandidos matavam muita gente, e a eles devem
seu nome". (Flavio Josefo: Antigüidades judaicas, XX, VIII. 10.)
Logo vem essa misteriosa revolução que o exame das malhas
da gruta de Khirbet-Qumran com a ajuda do "carbono 14" fez-nos
descobrir providencialmente, e cujo relato - coisa curiosa- desapareceu
de todas as cópias dos autores antigos. Essas malhas datam aproximadamente
dos anos 32-34 de nossa era.
Abramos aqui um parêntese. Entre os numerosos documentos chamados
"do mar Morto", existem uns cilindros de cobre cujo texto hebreu
pôde ser decifrado em 1456, em Grã-Bretanha, pelo Wright Baker,
na universidade de Manchester. São do século I de nossa era.
Estão redigidos em um dialeto coloquial, o de Michna, parte mais
antiga do Talmud, e não em hebreu neoclássico. Sabe-se (Dupont-Sommer
em seus Manuscrits de mer Morte) que os zelotes estiveram constituídos
pela fração política militante dos essênios,
dos quais por ultimo se separaram. Para Cecil Roth, os homens de Qumran
(lugar onde foram descobertos todas esses manuscritos) eram zelotes. Pois
bem, esses cilindros nos falam de um tesouro considerável, composto
de umas duzentas toneladas de ouro, prata e outras matérias preciosas,
oculto em sessenta pontos diferentes de Terra Santa. Compreende-se que Nero,
a quem apesar de tudo repugnava as execuções inúteis,
preferisse fazer pagar aos chefes enormes resgates, e aos militantes ordinários
os abandonasse às leis romanas e às terríveis práticas
que estas implicavam. Aqui, uma vez mais Flavio Josefo demonstra ser um
excelente historiador, pois como se vê, suas afirmações
estão corroboradas pelos cilindros de cobre de Qumran. Mas voltemos
para a luta dos zelotes.
Quatorze anos mais tarde, Judéia e Galiléia foram açoitadas
pela fome: o contrário seria de sentir saudades. E no ano 47 de nossa
era, nova revolução importante (houve outras e quanto a isso,
já as veremos). E Tibério Alexandre, procurador da Judéia,
cavaleiro romano, sobrinho de Filón, manda crucificar aos chefes
do movimento, em Jerusalém. Como se chamam? Chamam-se Jacobo (quer
dizer, Santiago...), e Simão, e também eles são "filhos
de Judas da Gamala". Conforme nos diz Flavio Josefo, e irmãos
de Jesus (Cf. Marcos, 6, 3). E a revolução do ano 47 é
a continuação da de 34, que era a continuação
da do ano 6 (revolução do Censo), que por sua vez era a continuação
das precedentes.
Observar-se-á que Judas da Gamala, ao proclamar uma espécie
de república judia, no ano 6 de nossa era, cunhou umas moedas que
levavam em enxerto esta qualificação. Deste episódio
permanece um eco discreto no seio dos Evangelhos:
"Então retiraram-se os fariseus e celebraram conselho para ver
o modo de surpreendê-lo em alguma declaração. Enviando
seus discípulos com herodianos para dizer-lhe: "Mestre, sabemos
que és sincero e que com verdade ensinas o caminho de Deus, e não
se te dá de ninguém, e que não fazes acepção
de pessoas. Dize-nos, pois, teu parecer: É lícito pagar tributo
ao Cesar, ou não?". Jesus, conhecendo sua malícia, disse:
"Por que me tentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo".
Eles lhe apresentaram um denário. E lhes perguntou: "De quem
é esta imagem e esta inscrição?". Responderam-lhe:
"De César". Disse-lhes então: "Pois dai a César
o que é de César, e a Deus o que é de Deus"..."
(Mateus, 22, 15-21).
Havia, pois, uma moeda que, aos olhos de Jesus, era "ortodoxa",
e outra que não o era. (9) Desta filiação davídica
Roma sempre desconfiará, muito ou pouco. É testemunho disso
a seguinte passagem de Eusébio da Cesárea: "Ficavam ainda,
da raça do Salvador, os netos de Judas, de quem se dizia que era
seu irmão carnal. Denunciou-lhes também como membros da raça
de David e o evocatus os transferiu ante o Domiciano César..."
(Eusebio da Cesárea, História eclesiástica, III, XX,
I).
Recordemos que Judas era o verdadeiro nome de taoma, o irmão gêmeo
de Jesus (10) como contam Taciano e São Efrén.
Mas é muito difícil desentranhar as verdadeiras personalidades
de todo este mundo confuso, ou que se fez intencionalmente confuso. Julgue-se:
"Depois da Ascensão de Jesus, Judas, chamado também Tomás,
enviou ao Abgar, rei de Edesa, ao apóstolo Tadeu, um dos setenta
discípulos ...". (Eusebio da Cesárea, História
eclesiástica, XXX, XX, I.) Como se vê, Eusebio confirma ao
Taciano e a São Efrén no que diz respeito ao verdadeiro nome
do gêmeo de Jesus.
Assim, quando lemos um episódio evangélico no que se fala
de um tal Judas, é possível que se trate de Tomás.
Porque havia dois personagens com tal nome entre os discípulos de
Jesus.
Do mesmo modo, quando nos encontramos com o nome do Alfeu, pai de Santiago
o Menor, não prestamos atenção a maioria das vezes
ao fato de que se tratava de um apelido, e de um apelido em língua
grega. Porque essa palavra designa a um homem afetado de psoriasis (alphos:
herpes branco). Seu verdadeiro nome possivelmente era Simão o Leproso,
o da Betânia (Mateus, 26, 6; Marcos, 14, 3).
E do mesmo modo, quando nos encontramos com um tal Simão o Cananeu
(Marcos, 3, 18; Lucas, 6, 15; Atos, 1, 13), não estabelecemos relação
alguma com Simão, o Zelote, aliás Simão o Sicário.
Pois bem, em hebreu um cananeu é o que é do Caná, e
Caná, em hebreu, significa zelo, fanatismo, ciúmes. Caná,
cidade da Galiléia onde têm lugar as famosas bodas, é,
portanto, o centro de reunião dos zelotes, os sicários, o
centro do integrismo judaico (do grego zelotes: ciumento, fanático).
E Simão o Cananeu e Simão o Zelote são um só
e único personagem. E, o que é mais, esse personagem é
um apóstolo (Atos, 1, 12-14) e um "irmão do Senhor"
(Marcos, 6, 3).
Em Caná se encontravam em família, como o prova o texto de
João: "Ao terceiro dia houve umas bodas em Caná da Galiléia,
e estava ali a mãe de Jesus. Foi convidado também Jesus com
seus discípulos à bodas..." (João, 2, 1-2.)
As relações entre galileus e zelotes são evidentes,
e inclusive indiscutíveis. Flavio Josefo nos diz deles: "Logo
os galileus, ao cessar a guerra civil, consagraram-se aos preparativos contra
os romanos". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo,
II, XI.)
Porque, conforme nos diz mais tarde: "Os galileus são guerreiros
..." (Op. cit., III, tt.)
Por outro lado, em nossa época, o cardeal Jean Daniélou nos
diz em sua obra Théologie du judéo-christianisme, que: "...Aqui
os galileus parecem ser outro nome dos zelotes..." (Op. cit., P. 84),
e "... Galiléia parece ter sido um dos principais focos do zelotismo."
(Op. Cit., P. 84.)
O historiador protestante Oscar Cullmann observa deste modo em seu livro
Dieu et César que "aos galileus mencionados em Lucas, 13, 1,
terá que identificá-los como zelotes ...".
Agora bem, antes de todas essas autoridades, o imperador Juliano, no século
IV, utilizava o termo de galileu para designar aos cristãos. Portanto,
zelotes, galileus, cristãos, foram os termos que designaram sucessivamente
aos primeiros partidários de Jesus, antes de que a heresia paulina
tivesse estendido sua confusão sobre os gentis e sobre os judeus
da Diáspora.
Nem sequer o verdadeiro nome de Batista deixou que ser matéria de
investigação: "O domínio de Arquelao foi confiado
por César a um de seus oficiais chamado Coponio, com poder de vida
e morte sobre o que quisesse. E houve em seus tempos um homem da Galiléia
que reprovava aos judeus descendentes de Abraham o que trabalhassem agora
para os romanos, que lhes pagassem tributo, e que tivessem assim uns donos
mortais, por haver-se privado do Dono imortal. O nome deste homem era Judas,
e tinha decidido viver afastado, sem parecer-se com ninguém mais..."
(Flavio Josefo, Guerra dos judeus. II, II). Esse Judas era, evidentemente,
Judas o Gaulanita.
"E naqueles tempos apareceu João, o Batista, pregando pelo deserto
da Judéia. Vestia uma pele de camelo, com um cinturão de couro
ao redor dos rins, e se alimentava de gafanhoto e também de mel silvestre
..." (Mateus, 3, 1 e 4.)
Não se apresenta aqui, enganosamente, ao mesmo personagem com outro
homem? A verdade é que alguém se perde, e essa é a
finalidade perseguida.
O outro Santiago, chamado o Maior, tem por pai a um tal Zebedeu. Agora bem,
esse nome é totalmente desconhecido na tradição judia
do Antigo Testamento. Encontramos Zabdi (que significa dotado), Zabud (filho
de Natan, I Reis, 4, 5), Zabulon (que significa morada), Zebul (Juízes,
9, 28), Zebach (Juízes, 5), Zeeb (Juízes, 7, 25), com o significado
de "mão direita", quer dizer, o membro viril paterno, e
isso é tudo.
Em sua versão francesa da Bíblia católica, Lemaistre
de Sacy traduz Zebedeu por dom, dotada (em feminino), mas o Dictionnaire
hébreu-français de Sander (Paris, 1859), destinado aos rabinos,
não conhece nenhum Zebedeu, e em hebreu traduz dom por três
letras: zain-beth-daleth, e isso se pronuncia Zabad. Depois vem Zabdiel,
que significa "Dom de Deus". Assim, há um mistério
sobre esse Zebedeu, pai de Santiago, o Maior (ou seja, de Jacobo o Primogênito),
quem também leva um nome que não é hebreu, como Alfeu,
pai de Santiago, o Menor (Jacobo, o Benjamim).
Toda esta embrulhada selva de nomes que às vezes se substituem por
apelidos, apelidos que trocam ao desejo dos copistas, ou inclusive nomes
que não têm nenhuma realidade em Israel, tudo isso não
tem outro objetivo que desviar o leitor que sinta, embora não seja,
senão um mínimo de curiosidade, e que esteja desejoso de verificar
dados. Porque não se trata de compreender mas sim de acreditar.
E aqui o que importa, já seja apagando o estado da Galiléia
e da Judéia sessenta anos antes de nossa era e sessenta depois (quer
dizer, cento e vinte anos de guerras, de rebeliões desumanas e de
repressões sangrentas, agravadas ainda pelo horror de uma guerra
civil permanente entre os terroristas integristas, zelotes-sicários,
e os judeus colaboradores, fariseus-saduceus), ou embrulhando as pistas
nominais e as genealogias, é impedir ao leitor perspicaz que desemboque
onde nós desembocamos: no fato de que Jesus é o filho legítimo
de Judas da Gamala e de Maria, sua esposa, o neto de Exequias, pai de Judas
da Gamala, e como tal, descendente de David, e rei legítimo de Israel.
Desde onde esta frase dos Atos dos Apóstolos: "Reunidos lhe
perguntavam: "Senhor, é agora quando vais restabelecer o reino
de Israel? Ele lhes disse: 'Não é para vós conhecer
os tempos e os momentos que o Pai fixou em virtude de seu poder...'."
(Atos, 1, 6-7).
O texto grego de quão feitos chegou até nós é
do século IV. Inicialmente estava "o Pai", ou simplesmente
"meu pai"? Porque neste ultimo caso teríamos uma alusão
evidente ao Judas da Gamala. Não esqueçamos que ao Jesus lhe
chama "filho do carpinteiro" (Mateus, 13, 55), mas em hebreu,
heresh significa ao mesmo tempo carpinteiro e mago. Se o termo que terá
que ter em conta é este último, teríamos uma alusão
a um aspecto particular do pai de Jesus, e não seria nada desatinado
supor que tinha deixado, de antemão, umas instruções,
das quais se afirmou que eram proféticas, que davam o desenvolvimento
cronológico das guerras zelotes, quer dizer, uma espécie de
plano de campanha que abrangia um período de tempo bastante longo.
Pilatos, que representava ao César e ao Império Romano, não
se equivocou ao fazer transcrever em três línguas (judia, grega
e latina) a identidade oficial de Jesus: "Jesus de Nazaréh,
rei dos judeus".
Por outra parte, observa-se que o vinho, na religião de Zoroastro,
fonte primitiva da de Mitra, e especialmente nesta última, simboliza
a realeza. Pois bem, o que é o que declara Jesus? O seguinte: "Eu
sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor..." (João,
15, 1)
E em Mateus (17, 24-26), pretende-se "filho de rei". De modo que,
ou Jesus copia seu simbolismo da religião de Mitra (religião
que para os judeus piedosos era maldita), ou um escriba que estava à
corrente desta imaginou tal passagem, no curso de sua redação
no século IV, e as palavras atribuídas ao Jesus são
inventadas. Assim, em quem confiar?
NOTAS COMPLEMENTARES
Sobre a analogia dos termos galileus e zelotes, possuímos outro exemplo,
extraído dos próprios Evangelhos. Lucas (13, 1-4) conta-nos
que na ocasião da queda da torre de Siloé, Pilatos mesclou
o sangue de dezoito galileus com a de seus sacrifícios.
Esta torre, próxima à piscina de Siloé, formava parte
do recinto sudoeste da cidade de Jerusalém, frente ao monte do escândalo.
Ao vir de Qumran, o centro zelote onde foram descobertos os manuscritos
chamados do mar Morto, desembocava-se na porta da Fonte, e ao penetrar na
cidade, na torre. Se esta se derrubou, matando assim a dezoito galileus,
e se Pilatos foi o responsável por isso, é que se entrincheiraram
ali, porque não se derrubou sozinha.
Esses homens eram, portanto, os zelotes, e como os únicos sacrifícios
admitidos pela Lei judia eram exclusivamente os oferecidos no Templo de
Jerusalém, a gente pode perguntar-se de que natureza eram esses sacrifícios
que os zelotes ofereciam no seio de uma torre fortificada, e que suscitaram
uma intervenção armada da potência ocupante.
2 - Os filhos de Aarão
Acaso não está seu irmão Aarão, o levita?...
Aarão, seu irmão, será seu profeta...
Êxodo, 4, 14, e 7, 1
Esta simples frase nos fala da existência de um sacerdócio
independente e individual, ao mesmo tempo adivinhatório e mágico,
muito antes de que Moisés tivesse instaurado um pontificado no seio
de Israel, ainda inexistente como nação organizada. O leitor
se convencerá disso se reler a história de Mica no Livro dos
Juízes, nos capítulos 17 a 19, ambos inclusive, porque: "Essa
Mica tinha uma capela para Deus; fez, portanto, um ephod e um teraphim,
isto é vestidura sacerdotal e ídolos: e consagrou a um de
seus filhos, que lhe serve de sacerdote.(11) Porque naquele tempo não
havia rei em Israel, e cada um fazia o que lhe parecia bom". (Juízes,
17, 5-6).
Consagrados por Moisés, Aarão e seus filhos converteram-se
no tronco da filiação sacerdotal e nos antepassados carnais
de todos os cohanim (em hebreu: sacerdotes, pontíficees).
A genealogia os mostra como primos dos filhos de David:
Abraham se casa com Sara
Isaac se casa com Rebeca
Jacob se casa com Lea
Judá se casa com Bath-Schua Leví se casa com X ...
David se casa com Bath-Scheba (12) Aarão se casa com Elischeba
Exequias se casa com X ...
Judá se casa com Myrhiam Zacarias se casa com Elischeba
Jesus-bar-Judá Iochanan-bar-Zacariah
Sabemos que a corrente integrista dos zelotes estava invariavelmente dirigida:
a) Por um descendente de David, em posse do poder temporário.
b) Por um descendente de Aarão, em posse do poder espiritual.
E assim, conforme nos diz Flavio Josefo, com o Judas da Gamala houve um
fariseu chamado Saddoc. Com o Simão-bar-Kokba esteve Rabbi Akiba.
E com o Jesus-bar-Juda esteve Iochanan-bar-Zacariah, aliás João,
o Batista. Por isso o primeiro se submeteu ao batismo, administrado pelo
segundo. Esta subordinação de Jesus ao João aparece,
além disso, sublinhada pela frase impaciente de Batista, que envia
à seus discípulos a repreender ao Jesus, quem, depois da detenção
de João, retirou-se à Galiléia (Mateus, 4, 12), logo
à Tiro e ao Sidón, em vez de passar à ação
direta: "É você o que tem que vir, ou (afinal) teremos
que esperar a outro...? (Mateus, 11, 1 a 4).
Essas diversas constatações vão permitir-nos agora
indagar quem podia ser esse misterioso Saddoc, nome que em hebreu significa
"o justo", e que portanto devia ser necessariamente cohen (sacerdote),
e descendente de Aarão. Para isso, estudaremos atentamente a vida
do pai de João, o Batista.
Trata-se de Zacarias, em hebreu Sacaria. O proto-evangelho de Santiago nos
fala dele, e associa sua morte, por ordem de Herodes, o Grande, à
famosa Matança dos Inocentes, sobre a que já fizemos luz na
obra precedente. (13) Vejamos o que diz disso esse apócrifo célebre:
"Herodes procurava João, e enviou a seus servidores junto ao
Zacarias, dizendo: "Onde escondeste a seu filho?...". Ele lhes
respondeu: "Estou ao serviço de Deus, e ligado ao Templo do
Senhor; não sei onde se encontra meu filho". Os servidores se
afastaram e contaram tudo isto ao Herodes. E este, irritado, disse-lhes:
"Seu filho deve reinar sobre Israel". E lhes enviou de novo junto
ao Zacarias, dizendo: "Diga a verdade! Onde está seu filho?...".
Os servidores partiram e contaram tudo isto ao Zacarias. E Zacarias disse:
"Eu serei mártir de Deus se derramas meu sangue. Porque o Todo-poderoso
receberá meu espírito, porque é um sangue inocente
a que você dispõe a derramar à porta do Templo do Senhor...".
E, ao amanhecer, deram morte ao Zacarias, e os filhos de Israel não
sabiam que lhe tinha dado morte. Na hora da saudação os sacerdotes
foram ao Templo. E Zacarias não veio, como era costume, ante eles
para benzê-los. Os sacerdotes se detiveram, esperaram ao Zacarias
para saudá-lo na oração e benzer ao Altíssimo.
Como demorava, todos foram presa do medo; um deles, mais valoroso, entrou
no Templo e viu, perto do altar, sangue coagulado. Uma voz dizia: "deram
morte ao Zacarias, e seu sangue não se apagará até
que chegue seu vingador". Ao ouvir estas palavras sentiu medo, e saiu
para levar a notícia aos outros sacerdotes".
Se tivéssemos alguma dúvida, aqui teríamos confirmação
de sobra que toda esta história refere-se na realidade, não
a pseudo Matança dos Inocentes de Belém da Judéia,
mas à agitação zelote. Porque nos diz: "Seu filho
deve reinar..." Portanto, Herodes está ciente da existência
desse duplo poder no partido zelote, porque o filho de um cohen como Zacarias
não pode acessar ao trono de Israel, por ser filho de Aarão,
e não filho de David. Mas Herodes sabe que o pretendente ao trono
temporário estará respaldado pelo pretendente ao pontificado,
e que os dois co-príncipes serão ipso ipso os adversários
da dinastia Iduméia dos Herodes.
Esse texto do Proto-evangelho de Santiago pode comparar-se com o de Lucas:
"Zacarias, seu pai, encheu-se do Espírito Santo e profetizou
dizendo: "Bendito o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu
a seu povo, e suscitou a nosso favor um poder salvador na casa de David,
seu servo, como tinha prometido pela boca de seu santos profetas desde antigamente,
um salvador que nos libera de nossos inimigos e do poder de todos os que
nos aborrecem..." (Lucas, 1, 67-71).
Pois bem, trata-se de seu próprio filho, o futuro Batista, e não
de Jesus. Além disso, El Salvador assim anunciado é nada menos
que um messias guerreiro, e não um cordeiro... Houve rivalidades
entre as duas famílias? Não seria impossível, ao menos
em um período dado. No século IV, os copistas de Eusebio fizeram
desaparecer tudo isso.
Por outro lado, nesse relato se fala de deixar a mancha de sangue de Zacarias
sobre as lajes do Santo Templo, até que chegue "seu vingador"...
Aqui do que se trata é, indubitavelmente, de represálias zelotes,
em virtude da lei mosaica de talião, porque o de um vingador não
tem nada de evangélico. (14)
Esse vingador será seu filho Iochanan, o Batista, e para convencer-se
disso, o leitor não terá mais que reler uma certa passagem
de Flavio Josefo que trata, justamente, do chamado Batista: "A seu
redor se reuniram gente, porque se sentiam muito exaltados para lhe ouvir
falar. Herodes (Antipas) temia que semelhante faculdade de persuasão
suscitasse uma rebelião, já que as multidões pareciam
dispostas a seguir em todo os conselhos desse homem..." (Flavio Josefo:
Antigüidades judaicas, XVIII, v, 118).
Herodes, o Grande, tinha mandado matar Zacarias por prudência. Seu
filho Herodes Antipas fará, pois, matar ao Batista pelo mesmo motivo.
Veja-se a este respeito o capítulo consagrado ao tema na obra precedente.
(15)
E nova confirmação de tudo o que está relacionado com
as atividades zelotes, imediatamente depois das passagens do Proto-evangelho
de Santiago citados antes. O texto termina assim: "Pois bem, eu, Santiago,
que tenho escrito esta história, como se produziram distúrbios
em Jerusalém à morte de Herodes, retirei-me ao deserto, até
que a agitação se acalmou em Jerusalém." (Cf.
Protoevangelio de Santiago, 25).
Herodes, o Grande, morreu no ano 6 antes de nossa era.
Esses distúrbios foram, em realidade, o resultado da primeira revolta
dirigida pelo Judas da Gamala, pai de Jesus, contra Arquelao, filho de Herodes
o Grande e seu sucessor designado; iniciaram-se no ano 5 antes de nossa
era. E essa foi a verdadeira "fuga ao Egito" de Maria e de seus
filhos menores. Foram enviados lá, em lugar seguro, longe dos combates
que liberava o chefe da família, Judas da Galiléia. Porque
naquela época, Santiago era ainda um menino, e não um homem
feito, como tende a fazer acreditar, ao silenciar a presença de sua
mãe e de seus irmãos e irmãs. Ele, ou os escribas anônimos
do século IV...
Ao redigir seu Apocalipse, Jesus recordará essa fuga: "E estando
grávida, gritava com as dores do parto e as ânsias de parir
(...) A mulher fugiu ao deserto, aonde tinha um lugar preparado por Deus,
para que ali a alimentassem durante mil duzentos e sessenta dias".
(Apocalipse, 12, 2 e 6). O que equivale a quarenta e dois meses.
Essa permanência no Egito foi, portanto, de uns três anos e
meio. O dragão vermelho que persegue à mulher simboliza Roma,
porque os pretorianos da guarda imperial tinham a cota de armas vermelhas
e os centuriões ordinários um manto da mesma cor. As sete
cabeças do dragão são as sete colinas da capital do
Império romano, e os dez chifres são os dez reis vassalos.
E, efetivamente, foram as legiões de Publio Quintilio Varo, legado
de Roma em Síria do ano 6 ao ano 4 de nossa era, quem reprimiu sem
piedade esta revolução. Foram crucificados mais de dois mil
rebeldes ao redor de Jerusalém. Portanto, foi no curso desta repressão
quando foi assassinado Zacarias, tio de Jesus, marido de Isabel, prima de
Maria. Morreu no 8° dia do mês de Thot, segundo um fólio
do manuscrito n° 1.305 da Biblioteca Nacional, redigido em copto sahídico.
Isto nos dá em 5 de agosto do ano 4 antes de nossa era, quer dizer,
o segundo ano da revolução, o de seu afastamento final por
Varo, e este abandonou a seguir Síria, com direção
à Germânia.
Como vimos, o combate final desenvolveu-se no Templo de Jerusalém,
transformado em fortaleça pelos insurretos, e Jesus fez alusão
à morte de Zacarias, se dermos crédito ao texto de Mateus:
"... Para que caia sobre vós todo o sangue inocente derramado
sobre a terra, do sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias,
filho de Baraquias, (16) a quem mataram entre o Templo e o altar... Na verdade
lhes digo que tudo isto virá sobre esta geração...".
(Cf. Mateus, 23, 35-36). Como se vê pelo texto, uma vez mais nos encontramos
em presença de um Jesus zelote, rancoroso, que em modo algum praticava
o perdão das ofensas, pelo contrário, a lei de talião,
coisa que politicamente constituía seu direito e seu dever. Mas é
muito provável que esse texto fora hábil pelos escribas do
século IV, que eram muito anti-semitas, e, além disso, estavam
obrigados a dar adulação aos romanos. Porque Zacarias não
foi assassinado pelos judeus, como lhe faz dizer ao Jesus no evangelho de
Mateus, mas sim pelos legionários de Varo ou pelos mercenários
gregos de Arquelao, filho e sucessor de Herodes, o Grande.
Sobre o fato de que o Zacarias assassinado "entre o Templo e o altar"
fora o pai de Batista, e não o profeta "filho de Baraquías,
filho de Addo", que viveu sob o Darío, quer dizer, no século
V antes de nossa era, basta-nos como prova o testemunho de Orígenes,
quem em seu tratado XXVI, capítulo XXIII, sobre "São
Mateus", diz-nos que o profeta foi lapidado (Cf. II Paralipomenos,
XXIV, 20 e seguintes), enquanto que o pai de Batista foi assassinado pelas
costas.
Em suas Antigüidades judaicas (XVII, IX, manuscrito grego), Flavio
Josefo nos diz que os rebeldes, tomando como pretexto que Arquelao não
mandava castigar aos oficiais de Herodes, o Grande, que queimaram vivos
a quão jovens arrancaram do frontispício do Templo a águia
de ouro que Herodes ordenara inserir, entrincheiraram-se no Templo de Jerusalém,
que, por sua colossal arquitetura, constituía uma verdadeira fortaleza.
Uma tropa de soldados mercenários, mandada por um quiliarca, foi
enviada ao Templo para apaziguar aos insurretos, mas estes mataram a todos
os soldados. Então foi quando se iniciou a repressão, no curso
da qual se combateu inclusive dentro do santo lugar, e resultou morto Zacarias
"entre o Templo e o altar", coisa que estritamente não
quer dizer nada, tão somente significa que sucumbiu entre o altar
e o santo, e por conseguinte, no próprio santuário. Segundo
Nicolás de Damasco, o número de insurretos superava os dez
mil. Quanto aos mortos, crucificados ou cansados em combate (como no caso
de Zacarias), estes se elevaram a mais de três mil. E aqui se expõe
um problema histórico, uma tentativa de recuperação
da verdade.
Agora é seguro que esse tal Zacarias desempenha, ao lado de Judas,
o Gaulanita, o papel de possuidor do poder espiritual, já que é
cohen (sacerdote), e portanto filho de Aarão, quão mesmo o
chamado Judas tem a autoridade temporária como filho de David.
Não é menos certo que Iochanan, o Batista, seu filho, desempenhou
o mesmo papel ao lado de Jesus, filho de Judas o Gaulanita. Por conseguinte,
seu companheiro de equipe (de Jesus) não foi Judas, seu irmão
gêmeo, aliás Tomás (tôama: gêmeo em hebreu),
a não ser o chamado João. E isto varre a hipótese que,
como último recurso, poderiam sustentar alguns de nossos leitores,
que, depois da revelação da existência de tal irmão
gêmeo, imaginariam um Jesus todo doçura (e além deificado)
e um Jesus, provavelmente Barrabás, todo violência, manchado
de numerosas mortes, pilhagens e saqueador desumano de pedágios e
prostitutas. Porque Jesus e João foram, como se viu, chefes tão
violentos tanto um como outro, do mesmo modo como fossem, irmanados pela
mesma paixão, Simão-bar-Kokba e Rabbi Akiba, e muito antes
que eles Judas da Gamala e Rabbi Saddoc. E esta nova constatação
nos abre horizontes inesperados. Qual era, então, o verdadeiro nome
de Zacarias, ou, melhor ainda, qual era o verdadeiro nome de Rabbi Saddoc?
Porque, evidentemente, trata-se do mesmo personagem... Zacarias significa
em hebreu "memória de Deus". É uma alusão
ao fato de que a mancha de sangue não deverá apagar-se até
que chegue "seu vingador". Em realidade, seria mais adequado dizer
Sakariel, nome de um dos sete arcanjos às ordens da justiça
divina.
Saddoc significa em hebreu "o justo", termo evocado pela frase
de Mateus (23, 35-36), é também cohen, e portanto filho de
Aarão, de modo que seu título oficial é o de Rabbi
Saddoc. E isso se lê: "Mestre Justo". Seria ele o "Mestre
de Justiça" dos manuscritos do mar Morto? Não. Porque
o que citam os textos de Qumran é submetido ao suplício pelo
"sacerdote ímpio", Aristóbulo II, rei e supremo
sacerdote de Israel por volta dos anos 65-63 antes de nossa era. Trata-se
provavelmente de Onías, e, segundo a lenda, também ele apareceu
a seus discípulos depois de morto. Mas como o "Mestre de Justiça"
recebe também o qualificativo de "Messias de Aarão e
de Israel" (enquanto que o liberador temporário espera-se simplesmente
sob o nome de Messias), pensamos que aqui se trata de um título que
designa uma função, e não de um nome, que qualificasse
uma individualidade. Flavio Josefo nos conta que, com efeito, o nome de
"Legislador" era, depois do de Deus, objeto de máxima veneração.
Quem blasfemasse sobre ele ou o injuriasse, no seio da comunidade dos essênios
seria réu de morte". (Cf. Guerra dos judeus, II, VIII, 145-152).
Por conseguinte, no seio dos zelotes, que como se sabe procediam da corrente
essênia primitiva, da qual constituíam a ala guerreira, o nome
do possuidor do poder espiritual não se pronunciava; utilizavam-se
circunlóquios, análogos à regra pitagórica:
autos épha, ou seja, "Ele há dito..." Assim, é
provável que esses nomes de Zacarias e de Saddoc fossem subterfúgios
que nos velem o verdadeiro nome do companheiro de guerra de Judas da Gamala.
Mas é bem certo que esse personagem foi o pai de Batista e o marido
de Isabel, prima de Maria.
Fica ainda um último ponto que precisamos dizer de Jesus que é
"sacerdote segundo a ordem de Melquisedec" (Salmos, 110, 4; Hebreus,
10, 6; 20; 7, 17), é reconhecer implicitamente que possuía
um sacerdócio comum a toda a descendência de Abraham, que foi
o primeiro investido com tal sacerdócio (Gênese, 14, 18), que
é quão mesmo não dizer nada. Porque em virtude desta
ordenação hereditária um israelita podia efetuar, no
seio de sua família, a cerimônia da noite sábado (sabbat),
com a bênção de Kidduch, efetuada sobre a taça
de vinho, e a do ha-Motzi, pronunciada sobre dois pães. E isso é
o que permitiu ao David comer os pães já consagrados ao Yavé
pelo pontífice Aquimelec (cf. I Samuel, 21, 1 a 6).
Observar-se-á que, no segundo livro de Enoc, diz-se que esse Melquisedec
foi o filho de Sophonim, esposa de Nir e irmã de Noé. Foi
concebido em sua velhice sem que ela houvesse "dormido com seu marido",
e o iluminou de forma milagrosa, porque estava destinado a ser "chefe
dos sacerdotes de outra raça". (41, 3-4) Agora bem, este apócrifo
é judeu, e foi descoberto também em Qumran. Portanto, dele
tirou a lenda de Jesus ao que se refere a sua concepção e
nascimento milagrosos.
Por outro lado, em função da filiação judaica
dos altos graus da franco-maçonaria tradicional, é pelo que
se pode celebrar O Jantar melquisedeciano nos capítulos do 18°
grau, onde se congregam os "Cavaleiros da Rosacruz". Porque o
fundador imaginário dos Rosacruzes, Rosenkreutz, não é
outra coisa que um epônimo, deformação do hebreu rocem
Koroz, que significa "príncipe arauto"...(17) Jesus, portanto,
não detinha a não ser uma espécie de sacerdócio
laico, se esses dois termos não se acoplarem.
3 - Os filhos de David
Todo homem é uma guerra civil ...
JEAN LARTÉGUY, Os Libertadores
Actus Apostolorum... Praxeis Apostolón ...
Quem quer que esteja, embora um pouco, versado em latim ou em grego, traduzirá
corretamente estes títulos por Atos dos Apóstolos. Mas esse
plural, ao ler a obra, resultará bastante decepcionante.
Com efeito, salvo a segunda parte dos Atos, que trata exclusivamente da
ação de Saulo, aliás Paulo, dos onze apóstolos
restantes só se trata na primeira parte; os quinze primeiros capítulos
são tipicamente petrinos, e só, e de forma muito breve, no
primeiro se fala deles. No curso do texto encontraremos simplesmente Simão,
chamado o Zelote, quer dizer, Pedro (e já demonstramos na obra anterior
que se trata do mesmo personagem, [18]) ao Santiago, o Maior (Jacobo em
hebreu) e Santiago, o Menor. Porque o Felipe chamado em 7,5 e em 21,8, não
é outro que o diácono, eleito com outros seis em 6,5. Não
é portanto o apóstolo, chamado entretanto, em 1, 13, e que
desaparecera não se sabe onde nem como. Quão mesmo André,
Tomás, Bartolomeu e Judas, sobre os quais não subsistiu no
corpus neotestamentário nada que seja historicamente válido.
Por isso, sobre todos esses homens que não foram nunca outra coisa
que irmãos e parentes de Jesus, e agentes da resistência judia
nacional, (19) um não pode a não ser somar-se à conclusão
de monsenhor Dúchense, membro do Instituto, que em sua obra Les origines
du culte chrétien nos diz que: "Os apóstolos missionários,
com a única exceção de São João, tinham
desaparecido sem deixar nenhuma lembrança concreta. A lenda que logo
se apoderou deles, parece havê-lo feito com tanta mais liberdade,
quanto que não chocavam a não ser com tradições
muito fugazes..." (Cf. Dúchense, Les origines du culte chrétien,
Paris 1903, pp. 14 e 15).
Terá que acreditar que este bispo letrado não era um historiador
muito curioso, já que se fosse tão tenaz como nós,
terminaria por descobrir a verdade. A menos que, no interesse do corpo ao
qual pertencia, preferisse silenciar seus próprios descobrimentos.
Melhor ainda, Clemente de Alexandria, discípulo de Pantenio, que
era por sua vez um discípulo imediato do apóstolo Marcos (portanto,
não há mais que dois elos entre Clemente e Marcos), diz-nos
o seguinte, que confirma a opinião de monsenhor Dúchense,
mas que nos põe no caminho de futuros descobrimentos sensacionais:
"Escolhidos, não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e
não todos morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe,
Tomás, e muitos outros... (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates,
IV, IX).
Terá que entender que este autor, um dos grandes escritores eclesiásticos
dos primeiros séculos (foi o Mestre de Orígenes), sugere com
meias palavras que esses homens, tanto apóstolos como discípulos,
desinteressaram-se rapidamente da missão que lhes confiara Jesus?
Porque nos Atos dos Apóstolos não se conta nada deles, e é
verdadeiramente curioso.
Possivelmente possuamos a explicação desta prudente retirada
por sua parte em uma passagem muito curiosa do Evangelho segundo Mateus:
"Os onze discípulos foram à Galiléia, ao monte
que Jesus lhes indicara, e, vendo-lhe, prostraram-se, embora alguns vacilaram...
Aproximando-se, Jesus lhes disse...". (Mateus, 28, 16-17).
Assim, ao vê-lo enfim a plena luz, ele ou seu sósia, o irmão
gêmeo (20), alguns deles, os menos ingênuos, acreditam que pode
tratar-se de um engano. Não é exatamente Jesus, ao menos não
o que foi crucificado em Jerusalém. Há diferenças,
a maquiagem das pseudo-chagas não é perfeita, ou se diluiu
um pouco, e alguns estigmas da Paixão, do rosto ou à frente,
estão ausentes ou são diferentes; e possivelmente o irmão
gêmeo não é um sósia rigorosamente exato. E daí
essa dúvida discreta, essa reticência cortês mas significativa,
que condicionará logo sua retirada da lenda que já está
em curso de elaboração. Agora se compreende o motivo do desaparecimento
do primeiro Evangelho de Mateus, simples recopilação em aramaico
de sentenças, máximas, frases lapidárias, pronunciadas
por Jesus enquanto ainda estava vivo. O desaparecimento desse texto se produziu
já na época em que o grande Orígenes recolhia todo
o hábeas judeu-cristão existente. Naquela época deplora
e reconhece não ter à mão a não ser o segundo
Mateus, o nosso, o pseudo-Mateus. E mais ainda, há um fato muito
estranho: sobre a pretendida chegada de Simão-Pedro à Roma
e sobre sua crucificação de cabeça para baixo, a seu
pedido, (21) as Epístolas de Paulo, de João, de Santiago,
e os Atos dos Apóstolos, guardam um mutismo total. E no século
VI, Eusebio da Cesaréia poderá nos dizer, cheio de dúvidas:
"Os assuntos dos judeus estavam nesse ponto. Quanto aos Santos apóstolos
e discípulos de nosso Salvador, estavam dispersos por toda a terra
habitada. Tomás, segundo conta a tradição, obteve na
partilha o país dos Partos, André a Escitia, João a
Ásia, onde viveu. Morreu em Éfeso. Pedro parece ter pregado
em Ponto aos judeus da Diáspora, e na Galacia, Bitinia, Capadocia
e Ásia". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica,
III, I, 1).
Rufino, em sua tradução latina da obra de Eusebio da Cesaréia,
acrescenta o seguinte depois de Tomás: "Mateus obteve Etiópia,
e Bartolomeu a Índia anterior". Pouco antes, Eusebio nos assinalou,
possivelmente involuntariamente, a ambigüidade da tradição
petrina: "Conta-se que sob seu reinado (de Nero César), ao Paulo
cortaram a cabeça na mesma Roma, e que aparentemente Pedro foi crucificado
ali. E isto confirma o fato de que, até agora, dá-se os nomes
de Pedro e Paulo aos cemitérios de tal cidade". (Cf. Eusebio
da Cesaréia, História eclesiástica, II, XXV, 5).
Suponhamos que um cataclismo destruíra nossas bibliotecas. Dentro
de dois milênios aproximadamente se deduziria que as ruínas
do Arco do Triunfo albergam a tumba de um general chamado De Gaulle, apoiando-se
com todo argumento em:
a) a presença de uma tumba e de um esqueleto, ou de suas cinzas;
b) o culto rendido em 11 de novembro de cada ano, durante lustros, ao homem
ali inumado;
c) o fato de que semelhante monumento não podia em modo algum ter
sido ereto sobre a tumba de um soldado de segunda classe, e para o cúmulo,
completamente desconhecido de identidade e de comportamento guerreiro;
d) o nome mesmo, dado ao lugar sobre a que tinha sido ereto o Arco.
E isso é o que aconteceu, pouco a pouco, com o nome dado a esse cemitério
em Roma, quatro séculos depois da morte dos interessados.
De fato, os "Santos apóstolos do Senhor" não escreveram
jamais nada de todo o legendário que nos apresenta e administra há
vinte séculos bem cumpridos. Se duvidássemos disso nos bastaria
relendo o Dictionaire de théologie catholique: "Clemente de
Alexandria conheceu também algumas tradições orais
procedentes, não dos próprios apóstolos, mas sim do
meio apostólico..." Em outras passagens recorda esse caráter
oral: "Os presbíteros não escreviam". (Cf. Clemente
de Alexandria, Ecogloe propheticae, XXVII). "Esta doutrina chegou até
nós verbalmente (não escrita) dos apóstolos..."
(Cf. Clemente de Alexandria, Stromates, VI, VII, 61). Por essas declarações
sem ambigüidade se vê o que terá que acreditar sobre a
autenticidade dos pseudo-Evangelhos redigidos pelos mesmos apóstolos.
4 - Ezequias-har-Gamala
Os mortos das batalhas perdidas são as razões para esperar
que tenha vencidos ...
MARCEL PAGNOL: La Fille du puisatier
No ano 46 antes de nossa era, Herodes, segundo filho de Antipater, é
o governador da Galiléia por ordem de César. Tem então
uns vinte e sete anos. Depois de inumeráveis perseguições
e combates, seus mercenários idumeus e sírios conseguem capturar
Ezequias, que causa estragos em Síria, então província
romana, desde seus inexpugnáveis redutos da Alta Galiléia;
Herodes o manda crucificar. (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas,
XVII, X). Este episódio situa-se, provavelmente, no ano 43 antes
de nossa era.
Em seguida, Herodes é chamado a comparecer ante Hircano II, pontífice
e rei de Israel, da dinastia asmonéia (os macabeus), quem lhe reprova
verbalmente a morte de Ezequías. Herodes consegue fazer-se absolver,
tanto graças a uma boa defesa, como à sombra enfurecida de
Roma, que Hircano não se atreve a confrontar apesar de tudo (cf.
Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIV, XVII); com efeito, o legado
imperial intervém em seguida em seu favor: "Que fique isento
Herodes de todo processo, tanto se tiver incorrido em falta como se não".
Esta é a imperativa ordem que Sexto César, governador de Síria
e parente de Julio César, dirigiu nesta ocasião ao Hircano
II. (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, I, IV).
Tanto se tiver incorrido em falta como se não... Sexto César
reconhecia aqui implicitamente o caráter legítimo do combate
levado a cabo por Ezequías. E então se expõe outra
questão: Como Hircano II, pontífice e rei de Israel, pôde
sentir-se indignado pelo fato de que Herodes mandasse executar ao cabeça
de uns bandoleiros? Pois simplesmente porque esse "bandoleiro"
era, em realidade, o chefe da estirpe real, um "filho de David";
esse rei "em potência" provavelmente tinha recebido já
a unção entre seus seguidores, e seu banditismo era, de fato,
a manifestação da resistência judia. Hircano II, embora
tinha um sucessor legítimo na pessoa de seu irmão Aristóbulo
II, não esqueceria que a dinastia asmonéia era uma usurpadora
do trono de Israel, e que a legitimidade real e religiosa, associadas, repousavam
no seio da filiação davídica. Porque, como pontífice
supremo, não esqueceria a promessa divina, essa promessa que o profeta
Natan recebeu do Eterno e que tinha ordem de comunicar ao David: "Quando
seus dias tenham chegado ao cúmulo e tenha repousado com seus pais,
eu farei subsistir a semente que sairá de suas vísceras...
Por isso serão estáveis sua casa e seu reino para sempre ante
mim... (Cf. II Samuel, 7, 12, 16). Pois bem, esse Ezequias tinha um filho,
que lhe sucederia em cabeça do movimento.
5 - Juda-har-Gamala
A Guerra e a Fome vagavam por nossas cidades,
E nós gritávamos, desesperados, nos suplícios:
Quando virá a nosso lado, Liberdade?
Quanta demora, Justiça!
MAURICE MAGRE, Le Poète et la Cité, la Liberté
"Havia deste modo um tal Judas, filho de Ezequías, aquele temível
cabeça de bandoleiros a quem antigamente Herodes não conseguisse
apreender a não ser depois das maiores dificuldades. Esse Judas reuniu
ao redor de Séforis, na Galiléia, uma tropa de desesperados,
e efetuou uma incursão no palácio real. Apoderou-se de todas
as armas que se encontravam ali, equipou com elas a todos quantos lhe rodeavam,
e se levou todas as riquezas que recolhera de tal lugar. Aterrorizava a
todos em volta por causa de suas invasões e seus saques, que tinham
como meta alcançar uma elevada fortuna e inclusive as honras da realeza,
já que esperava elevar-se a tal dignidade, embora não mediante
a prática da virtude, a não ser precisamente mediante os excessos
da injustiça" (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas,
XVII, X).
Deixemos ao Flavio Josefo e seu rancor (porque as teve com os zelotes),
e constatemos que, de fato, ao apoderar do palácio real de Séforis,
e ao expulsar dele àqueles aos quais considerava usurpadores (Herodes,
o Grande, e toda sua corte), Judas-bar-Ezequías não fez a
não ser vingar a seu pai e recuperar seus legítimos bens.
Ainda mais que há uma zona de sombras bastante misteriosa em tudo
isso. Logo o veremos. Maria-Bath-Ioachim, a mãe de Jesus e a esposa
de Judas da Gamala, nascera em Séforis, e nessa primeira fase que
entrou em guerra, Judas-bar-Ezequías possivelmente tinha outras contas
que arrumar das quais já não sabemos nada, pois Maria era
também de filiação davídica, e sua família
era rica, como logo veremos. E isto tende a demonstrar que Judas da Gamala
e seu pai Ezequías não foram uns bandoleiros ordinários,
como pretende Flavio Josefo, mas sim existiu uma doutrina, que foi elaborada
por ele e que logo se converteu na de todo seu movimento. Em suas Antigüidades
judaicas, Flavio Josefo nos descreve quatro seitas que se repartem o povo
hebreu. Primeiro cita aos fariseus e os saduceus, logo aos essênios.
E a seguir uma quarta: "Mas um tal Judas o Gaulanita, da cidade da
Gamala, acompanhou-se de um fariseu chamado Saddoc, e se precipitou na rebelião.
Pretendiam que tal censo não trazia consigo a não ser uma
servidão completa, e apelavam ao povo a que reivindicasse sua liberdade...
A quarta seita filosófica teve como autor a esse Judas, o Galileu.
Seus sectários concordam em geral com a doutrina dos fariseus, mas
sentem um invencível amor pela liberdade, já que julgam que
Deus é o único chefe e o único senhor".( Cf. Flavio
Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, I).
Esse Judas da Gamala, chamado também Judas da Galiléia ou
Judas, o Galaunita, cujo nome de circuncisão era Judas-bar-Ezequias,
morreu no curso da segunda revolução do ano 6 de nossa era.
Teve vários filhos, dos quais pelo menos seis pereceram de morte
violenta, em mãos de Roma e de seus procuradores. O mais célebre
foi, evidentemente, Jesus, seu filho primogênito.
6 - Simão-Pedro
Alguns eruditos dizem que São Pedro não esteve jamais em Roma;
e o Papa se viu em dificuldades na hora de replicar a tais sábios...
Só São Paulo é indubitável que esteve ali...
MARTIN LUTERO, Wider das Papsttum vom Teufel gestiftet
De fato, a lenda da morte de Simão-Pedro em Roma não apareceu
nem tomou corpo até princípios do século III. Já
precisamos as circunstâncias em uma obra precedente. (22) Por isso
é que o Papa Pio XI (cardeal Achille Ratti, 1857-1939) pôde
declarar, em privado, naturalmente, que em sua opinião "era
seguro que São Pedro não pôs jamais os pés em
Roma...". É evidente.
E, com efeito, Simão-Pedro desaparece bruscamente, em só algumas
linhas, dos Atos dos Apóstolos. Fora detido por ordem de Herodes
Agripa I (rei da Judéia desde ano 37, rei da Judéia e de Samaria
desde o ano 41, morto em 44). Simão-Pedro estava encadeado, dormindo
entre quatro soldados do chamado Herodes Agripa. Um anjo lhe apareceu no
curso da noite, e as cadeias se soltaram. Seguiu ao anjo, e as comportas
abriram-se sozinhas, misteriosamente, ante ele. Uma vez na rua, o anjo desapareceu
e Pedro recuperou o contato com a realidade. dirigiu-se então, a
toda pressa, a casa de "Maria, mãe de João, de apelido
Marcos", deu-se a conhecer à servente Rodeh através da
porta, e mandou aviso ao Santiago e a seus irmãos de sua liberação.
Isso significa que: "Depois saiu e se foi a outro lugar...". (Cf.
Atos dos Apóstolos, 12, 6 a 17). E já está... (23)
Isso é tudo, e nunca mais ouviremos falar de Simão-Pedro no
relato apostólico. E Dom J. Dupont O. S. B., cuja versão dos
Atos dos Apóstolos seguem na Bíblia de Jerusalém, conclui,
tranqüilizado no que se refere à sorte de Simão-Pedro,
mas sem demonstrar tampouco muita curiosidade pelo que segue: "Encontramos
aqui uma pequena história cheia de vida, de detalhes pitorescos,
de prodígios populares...". (op. cit., pág. 115). De
prodígios populares. Recordemos o termo, é perfeito. Ao menos
este exegeta não é vítima de toda essa perpétua
fantasmagoria. Porque relatar o fim de Simão-Pedro e de Jacobo-Santiago,
crucificados ambos no ano 47 em Jerusalém, por ordem de Tibério
Alexandre, procurador de Roma, "por ser filhos de Judas de Gamala,
(24)" seria descobrir o bolo. Mas é evidente que o tal Simão,
como todos outros, morreu na Palestina.
Por tratar-se de uma região submetida por excelência à
revoluções esporádicas, esta província estava
sujeita a uma vigilância especial por parte das autoridades romanas.
E se se têm em conta os postos militares, com barreiras, e às
vezes inclusive leva (como as famosas Portas cilícias que separavam
Síria de Cilícia e obturavam um estreito desfiladeiro), postos
que cortavam todas as vias de comunicação, e que terei que
franquear necessariamente para passar de uma província a outra (abonando
as inevitáveis taxas de passagem, como é óbvio, tanto
para os homens como para os animais), tendo em conta que terei que justificar
de maneira válida uma petição de embarque com destino
à Itália, a causa do decreto de Tibério César
(no ano 19), confirmado pelo de Claudio (em 49), pelo que se expulsava da
Itália aos judeus livres, e não se permitia que permanecessem
ali mais que os escravos do lugar e que eram propriedade de um dono, tendo
em conta todas essas consideráveis dificuldades, não vemos
como Simão-Pedro, chamado o Zelote, quer dizer, o Sicário,
ou também Simão Ishkarioth, quer dizer, o "matador"
(Lucas, 6, 15, e Atos, 1, 13), com tal reputação, obteria
das autoridades romanas ocupantes a permissão e o visto que facilitassem
uma viagem à Roma, capital do Império Romano.
E além disso, a que teria ido ali? Todo o movimento zelote, que desde
que se produzira a morte de Jesus, seu irmão maior, (25) o dirigia
ele, ajudado por Jacobo-Santiago, "irmão do Senhor" (Cf.
Paulo, Epístola aos gálatas, 2, 9), tinha seus interesses
e seus motivos, assim como as atividades políticas que resultavam
de tudo isso, exclusivamente na Palestina. Recordemos a recomendação
de Jesus: "Não vão aos gentis nem penetrem em cidade
de samaritanos; mas vão às ovelhas perdidas da casa de Israel
..." (Mateus, 10, 5-6, e 15, 24).
E Clemente de Alexandria (Stromates, VI, V, 43), e Eusebio de Cesaréia
(História eclesiástica, V, XVIII), contam que Jesus ordenou
aos apóstolos que não se afastassem de Jerusalém durante
doze anos. Isto nos leva ao ano 47 de nossa era, e este ano é precisamente
o da morte de Pedro e de Santiago, crucificados em Jerusalém. Como
se vê, esses versículos constituem a negação
mesma da missão que se atribuirá logo Saulo-Paulo, e justificarão
a desconfiança, e logo a hostilidade, que lhe testemunharão
os sucessores de Jesus na cabeça do messianismo político.
Por outro lado, tentando afirmar essa estadia de Pedro em Roma, o Papa Pio
XII fez efetuar longas e custosas escavações a fim de provar
que seus restos foram descobertos sob a basílica de São Pedro
de Roma. De fato, só se encontraram, em um esconderijo das muralhas
da base, algumas ossaturas não identificadas. Também podia
tratar-se dos vestígios de um sacrifício de fundação,
rito trágico que os colégios romanos de construtores conservaram
durante longo tempo, já que, inclusive sob os imperadores cristãos,
as famílias proibiam aos meninos e aos adolescentes que, ao cair
a noite, aproximassem-se das grandes pedreiras de construção.
Por certo que, depois desta burla oficial, o R.P. Maxime Gorce, arqueólogo
e provincial dos dominicanos, abandonou indignado a Igreja católica,
e passou à Igreja anglicana.
De todo modo, esses restos tão penosamente descobertos seriam a contradição
do que se oferece à veneração dos fiéis na basílica
de São João de Letrán, ou seja, um tabernáculo,
em cima do altar papal, que encerra, segundo a tradição da
Igreja, os crânios de Pedro e de Paulo. Tal basílica, construída
originariamente pelo Papa Milcíades por ordem de Constantino, destruída
e restaurada várias vezes, incendiada no ano 1308, reconstruída
por Clemente V, volta a incendiar em 1360, volta a reconstruir sob Urbano
V, deve possivelmente todas suas desgraças ao bem conhecido antagonismo
desses dois apóstolos, que não podiam sofrer-se mutuamente.
E essa inflamada antipatia se perpetuaria então post mortem, sobretudo
se Saulo-Paulo estava detrás da detenção e a execução
de Pedro e de Santiago, como tudo tende a fazer acreditar.
Estudamos em outra obra a técnica das "interpolações
com reengaje" que utilizaram (e das que abusaram) nossos falsificadores
anônimos do século IV. (26)
Aqui nos limitaremos a pôr de manifesto a que foi utilizada pelos
mesmos para fazer acreditar que Jesus confiou a direção de
sua "igreja" ao Simão-Pedro. Pretensão que, por
outra parte, cai por si mesmo se se recordar que, para ele, a criação
de uma organização religiosa com projeção no
futuro era absolutamente impensável, já que o chamado Jesus
afirmava que o fim do mundo estava próximo e que tudo isso devia
acontecer "antes de que esta geração passe". (Mateus,
24, 34; Marcos, 13, 30; Lucas, 21, 32).
Coloquemos, pois, em evidência a impostura dos escribas "às
ordens de...". Tomamos nossas citações da versão
católica romana de Lemestre de Sacy: Marcos, 8, 27-30; Mateus, 16,
13-20; Lucas, 9, 18-21: "Ia Jesus com seus discípulos às
aldeias de Cesaréia de Filipo, e no caminho lhes perguntou: Quem
dizem os homens que sou eu? Eles lhe responderam: Uns, que João Batista;
outros que Elias, e outros, que um dos profetas. Ele lhes perguntou: E vós,
quem dizem que sou eu? Respondendo Pedro, disse-lhe: Você é
o Messias".
Fragmento interpolado
"E lhes encarregou que a ninguém dissessem isto Dele".
"Vindo Jesus à região de Cesaréia de Filipo, perguntou
a seus discípulos:
Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?
Eles responderam: Uns, que João o Batista; outros, que Elías,
outros, que Jeremías ou outro dos profetas. E Ele lhes disse: E vós,
quem dizem que sou eu? Tomando a palavra Simão-Pedro, disse: Você
é o Messias, o Filho de Deus vivo".
"E Jesus, respondendo, disse: Bem-aventurado você, Simão-bar-jona,
porque não é a carne nem o sangue quem isto te revelou, a
não ser meu Pai, que está nos céus. E eu digo a tí
que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei eu minha Igreja,
e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela".
"Então ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem
que Ele era o Messias".
"Aconteceu que, orando Ele a sós, estavam com Ele os discípulos,
aos quais perguntou: Quem dizem as multidões que sou eu? Respondendo
eles, disseram-lhe: João Batista; outros, Elías; outros, que
um dos antigos profetas ressuscitou. Disse-lhes Ele: E vós, quem
dizem que sou eu? Respondendo Pedro, disse: O Ungido de Deus".
"Jesus lhes proibiu com ameaças dizer isto".
É fácil constatar que a famosa passagem conhecida como o das
"chaves" foi interpolada, e isso em uma época em que terá
que impor a supremacia do bispo de Roma sobre todas as demais. O Evangelho
de João, por sua parte, ignora tudo isto. Em conclusão, além
do princípio dos Atos dos Apóstolos (1, 13), onde se evoca
sua existência embora de forma muito rápida, não sabemos
nada canonicamente válido sobre esses onze homens, já que
o que compunha doze fora executado por eles ou por ordem deles, como conseqüência
de sua traição (sobre a morte de Judas Iscariotes remetemos
ao leitor à obra precedente). (27)
Tal como assinala monsenhor Duchesne, e antes dele Clemente de Alexandria,
todos desapareceram de repente e sem fazer ruído na história.
Esse silêncio foi intencionado. Muitos séculos depois, um dominicano
italiano, Jacques de Voragine, que morreu em 1298, redigiu um amplo compêndio
hagiográfico ao qual intitulou, com toda franqueza, Legenda áurea,
quer dizer, A lenda dourada. Portanto, não se trata mas sim de lendas
e de nada mais, do contrário teria intitulado seu livro História
aurea, História dourada. Além disso, a gente pode perguntar-se
de que documentos, ignorados ou desconhecidos, disporia no século
XIII, além dos arquivos secretos do papado. E se essas peças
existissem como deve ser, e fossem conservadas, não deixariam de
nos expor isso ainda em nossos dias. E tal não é o caso.
Mas o método histórico deve ser implacável, e não
se deve deter nem limitar por nenhum tabu. Além disso, o verdadeiro
historiador e curioso por natureza; há nele um pouco de juiz de instrução.
E, como deformação profissional, todo silêncio lhe parece
suspeito, pois é uma negativa a dar resposta. Por conseguinte, essa
negativa oculta algo muito importante, e portanto é aí onde
terá que afundar. Em contrapartida, o historiador conformista não
é mais que um simples historiógrafo, um dócil compilador,
e seu papel é muito diferente.
Partindo desses princípios básicos, nós aprofundaremos
na segunda parte o "secreto da Igreja" (28), esse segredo evocado
pelo juramento do bispo o dia de sua consagração, e é
tão secreto que o pontifical romano só fala em singular: concilium
vero ...
Esta segunda parte do segredo tem relação com os "filhos
de David", portanto, é conveniente estudar antes suas características
genealógicas.
Voltemos, pois, agora aos outros filhos de Judas da Galiléia, e vejamos
o que diz a respeito Flavio Josefo: "Foi sob este último precursor
(Tibério Alexandre) quando sofreu Judéia a enorme carência
de mantimentos que fez que a rainha Elena (rainha de Abdiadena) comprasse
trigo do Egito a elevado preço para distribui-lo aos indigentes,
tal como disse antes. Foi também naquele momento quando capturaram
aos filhos de Judas da Galiléia, que incitaram ao povo a rebelar-se
contra os romanos quando Quirino procedia ao censo de Judéia, como
contamos precedentemente. Esses dois eram Jacobo e Simão. Alexandre
ordenou crucificá-los..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, XX, V, 2).
É evidente que Jacobo, nome hebraico, é nosso Santiago apóstolo
(em latim: Jacobus; em grego: Jacobos). Seu companheiro é nosso Simão,
por apelido Pedro. E por esta razão é que não se encontra
já nenhum rastro mais dele depois do sínodo de Jerusalém
(Atos dos Apóstolos, 15), nem tampouco de seu irmão Santiago,
aliás Jacobo.
Eusebio da Cesaréia, em sua História eclesiástica,
quão único confirma é que se achava em Jerusalém
"durante a época da fome" (op. cit., III, VII, 8), o que
nos confirma que se trata, efetivamente, de nosso personagem. Encontramo-nos,
pois, nos anos 46-47, e tudo coincide à perfeição.
Assim, Simão-Pedro e Santiago, o Maior, (29) aliás Simão-bar-Juda
e Jacobo-bar-Juda segundo seus nomes de circuncisão, foram crucificados
juntos, em Jerusalém, sob o procurador Tibério Alexandre.
Observe-se também que sempre lhes cita como inseparáveis:
"Logo, passados três anos, subi à Jerusalém para
conhecer Cefas (aliás Simão-Pedro), a cujo lado permaneci
quinze dias. A nenhum outro dos apóstolos vi, se não foi ao
Santiago, o irmão do Senhor". (Cf. Paulo, Epístola aos
Gálatas, 1, 18-19).
Simão-Pedro não morreu, portanto, em Roma no ano 64 ou 67
(não se está muito seguro da data), crucificado de cabeça
para baixo a pedido dele. Faltaria, pois, saber onde esteve e o que fez
durante os dezessete ou vinte anos que separam o ano 47, em que desaparece
do novo Testamento, sob o Claudio César, de sua pretendida morte
em Roma, no 64 ou 67.
Agora bem, Simão-Pedro e Santiago, seu irmão, têm outros
vários irmãos mais, e isto não o inventamos: "Não
é acaso o carpintero, (30) filho de Maria, e o irmão de Santiago,
de José, de Judas e de Simão? E suas irmãs não
vivem aqui entre nós...? (Marcos, 6, 3).
Jesus, por outro lado, faz uma alusão muito clara à suas relações
familiares e de sangue com Simão-Pedro, quando lhe diz: "Bem-aventurado
você, Simão-bar-jona (em acádio: o anarquista, o fora
da lei), porque não é a carne nem o sangue quem isto te revelou,
a não ser meu Pai, que está nos céus ..." (Mateus,
16, 17).
O que quer dizer claramente que o fato de que Jesus seja o Cristo, em hebreu
o Messiah tão esperado, Simão-Pedro o reconhece não
por efeito de uma simples tradição familiar, por causa dos
laços da carne e do sangue, mas sim por uma verdadeira intuição
espiritual de origem divina. O que implica, por outra parte de Jesus, a
confissão implícita dos laços familiares e de sangue
com Simão-Pedro, coisa que nos ocultou sempre cuidadosamente.
Sobre a absoluta certeza de que os termos de irmãos e irmãs
não devem tomar-se no sentido de primos e primas, e sobre a demonstração
que disso fizemos, remetemos à obra precedente. (31)
Esse "carpinteiro" do qual fala Marcos é Jesus.
E então, silogismo inatacável, se Santiago (Jacobo) e Simão
(Simão) são irmãos de Jesus, e se forem deste modo
filhos de Judas da Galiléia, é que este último também
o é. E se este descobrimento satisfaz ao historiador equilibrado
e sincero, é porque pode concluir que Maria, sua mãe carnal,
concebeu-o como se concebe a todos os filhos dos homens. Nenhum arcanjo
veio a fecundá-la em nome de um Espírito Santo, terceira "pessoa"
de uma trindade divina desconhecida em Israel, já que semelhante
hipótese constituiria uma blasfêmia sobre a unicidade divina.
E, o que é mais, os discípulos de João, o Batista ignoraram
sempre que houve um Espírito Santo: "Ele (Paulo) achou ali alguns
discípulos e lhes disse: "recebestes o Espírito Santo
ao abraçar a fé?". Eles lhe responderam: "Nem sequer
ouvimos que exista um Espírito Santo?..." (Cf. Atos dos Apóstolos,
19, 1-3).
Observemos de passagem que Maria foi milagrosamente fecundada pela orelha,
como assegura às vezes o povo ordinário em são de brincadeira:
"No mesmo instante, enquanto a virgem Santa dizia essas palavras e
se humilhava, o Verbo de Deus penetrou nela por sua orelha ... E no mesmo
momento começou o embaraço da Santa virgem". (Cf. O livro
armênio da infância, V, 9).
Terá que confessar que para a população judia, imbuída
da célebre salmodia ritual: "Schema Israel! Adonai elohenou!
Adonai echad!...", quer dizer, "Escuta, Oh Israel! Yavé
é nosso Deus, Yavé é UM SÓ..." (Deuteronômio,
6, 4), ver que lhes ensinassem que há três deuses diferentes
em um só representaria pura e simplesmente uma blasfêmia. Por
outra parte, a afirmação injuriosa, lançada ulteriormente
por alguns talmudistas, de que Jesus foi o bastardo adultério de
Maria e de um legionário sírio chamado Bar-Panteros, não
tem fundamento, uma vez descoberto seu marido real, pai legítimo
de seus filhos.
E agora vamos poder estabelecer a ficha de filiação de cada
um dos outros apóstolos, e ver o que foi deles. Para relembrar à
memória, recordemos seus nomes dados por Mateus (10, 2), Lucas (22,
14), e Atos (1, 2). São: Simão, André, Santiago, o
Maior, João, Felipe, Bartolomeu, Mateus, Tomás, Santiago,
o Menor, Tadeu, Judas Iscariotes.
Não fazemos figurar ao décimo segundo, chamado Simão,
porque já demonstramos sua identidade como Simão-Pedro. Não
obstante, parece-nos necessário efetuar um último resumo em
relação a ele, já que há contradições
que não podem reduzir-se ao silêncio se não se contribuírem
com argumentos apropriados: por lógica, o Simão apelidado
o Zelote (Lucas, 6, 15; Atos,1, 13), o Cananeu (Marcos, 3, 18), ou o Iscariotes
(João, 6, 70), ao que Jesus chama bar-jona (em acádio: fora
da lei), ao que Herodes Agripa I faz capturar em Jerusalém no ano
45 de nossa era (Atos, 12, 3), é o mesmo personagem que Simão
filho de Judas da Gamala, e portanto, zelote como seu pai, e a quem o procurador
Tibério Alexandre mandou crucificar com seu irmão Jacobo (Santiago)
no ano 47 em Jerusalém (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas,
XX, c, 2). Negar esta identidade parece-nos, portanto, uma grande imprudência,
já que seria sublinhar que Jesus não se rodeava mas sim de
extremistas, partidários de toda violência.
Não podemos deixar o personagem de Simão-Pedro sem mostrar
uma vez mais a desavergonhada falsificação sofrida pela história,
ao passar pelo cálamo dos escribas anônimos do século
IV. Vejamos um mesmo episódio, relatado primeiro por Flavio Josefo,
e logo por eles: "Aconteceu que um judeu de Jerusalém, chamado
Simão, que tinha a reputação de conhecer bem a lei,
convocou à multidão a uma assembléia enquanto o rei
(Herodes Agripa I) tinha partido para à Cesaréia, e ousou
acusá-lo de impuro e de merecer ser expulso do Templo, cujo acesso
não estava permitido a não ser às pessoas do país.
Uma carta do prefeito da cidade fez saber ao rei que Simão discutira
assim ao povo, o rei lhe mandou acudir à Cesaréia e, como
então se encontrava no teatro, fez-lhe tomar assento a seu lado.
Logo, com calma e suavidade, disse-lhe: "me diga se houver aqui algo
que esteja proibido pela Lei..." O outro, não sabendo o que
responder, rogou-lhe que lhe perdoasse. Então o rei se reconciliou
com ele mais rápido do que se esperava, posto que julgava que a suavidade
era mais digna de um rei que a cólera, e sabia que à grandeza
convém mais a moderação que o arrebatamento. E deixou
ir Simão, depois de lhe haver devotado inclusive um presente".
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIX, VIII, 4).
É evidente que este episódio é o equivalente daquele
dos Atos no que vemos o Simão-Pedro e aos outros que "estando
todos reunidos no pórtico de Salomão, ninguém dos outros
se atrevia a unir-se a eles, mas o povo os tinha em grande estima".
(Cf. Atos dos Apóstolos, 5, 12-13). Porque se não se atreviam
a unir-se a eles, é que suas arengas eram muito comprometedoras,
não se tratava dos lugares comuns sobre o amor ao próximo
ou a boa conduta moral. E por isso o prefeito de Jerusalém, que representava
ao rei Herodes Agripa I, acreditou-se na obrigação de advertir
a este último. A continuação, como acabamos de ler
em Flavio Josefo, reza com aquilo de que bem está o que bem acaba,
e esse relato está dentro da plausibilidade mais evidente. Mas vejamos
no que se converte essa história sob a pluma de nossos piedosos falsificadores:
"Por aquela mesma época, o rei Herodes maltratou alguns membros
da Igreja, e deu morte, pela espada, ao Santiago, irmão de João.
(32) Vendo que isto era do agrado dos judeus, mandou capturar também
ao Pedro. Isto acontecia durante os dias do pão ázimo. Depois
de havê-lo capturado e encarcerado, pô-lo sob a guarda de quatro
esquadras de quatro soldados cada uma, com a intenção de fazê-lo
comparecer ante o povo depois de Páscoa. Assim, Pedro estava na prisão,
e a Igreja não cessava de dirigir orações a Deus, rogando
por ele.
"A noite que precedeu ao dia em que Herodes ia fazê-lo comparecer,
Pedro, preso por duas cadeias, dormia entre dois soldados; e havia uns sentinelas
diante da porta, guardando a prisão. E eis que apareceu um anjo do
Senhor, e uma luz brilhou na masmorra. O anjo despertou Pedro, dando-lhe
uns toques no flanco e lhe dizendo: "te levante rápido!".
As cadeias caíram de suas mãos. E o anjo lhe disse: "Ponha
o cinturão e as sandálias". E assim o fez. O anjo lhe
disse ainda: "te envolva com seu manto e me siga". Pedro saiu
e o seguiu, sem saber que o que fazia o anjo era real, e imaginando que
era vítima de uma visão. Quando passaram pelo primeiro guarda,
e logo o segunda, chegaram à porta de ferro que conduz à cidade,
e esta se abriu sozinha diante deles, saíram e entraram em uma rua.
E em seguida o anjo abandonou Pedro.
"Então Pedro, voltado em si, disse: "agora me dou conta
de que realmente o Senhor enviou seu anjo e me arrancou das mãos
de Herodes e de toda a espera do povo judeu". Depois de ter refletido,
foi à casa de Maria, a mãe de João, por apelido Marcos,
onde estavam muitos reunidos e orando. Golpeou a porta do vestíbulo
e saiu uma serva chamada Rodeh, que logo reconheceu a voz de Pedro, fora
de si de alegria, sem abrir a porta, correu a anunciar que Pedro estava
no vestíbulo. Eles lhe disseram: "Está louca". Insistia
ela em que era assim, e então disseram: "Será seu anjo".
Pedro seguia golpeando, e quando lhe abriram e lhe conheceram, ficaram estupefatos.
lhes fazendo sinal com a mão de que calassem, Pedro lhes contou como
o Senhor lhe tirara do cárcere, e acrescentou: "Contem isto
ao Santiago e aos Irmãos". Depois saiu e foi a outro lugar".
(Cf. Atos dos Apóstolos, 12, 1-17). Todo comentário seria,
evidentemente, inútil. Mas ainda assim, permitimos nos assombrar
de que Simão-Pedro, que estava tão severamente vigiado, conservasse
ao alcance da mão toda seu pequeno equipamento: manto, cinturão
e sandálias. E do mesmo modo, é igual a surpresa que o redator
anônimo dos Atos dos Apóstolos, que nos afirma que foi Lucas,
secretário de São Paulo (33), quem freqüentou ao Pedro,
ignore tudo que se refere ao lugar aonde acudiu este último, assim
como as atividades posteriores deste. Porque jamais volta a aparecer Pedro
nos relatos dos Atos, e tão somente nos inteiramos de sua sorte última
através de Flavio Josefo.
Há ainda um ponto a assinalar sobre a inexistência da noção
de um pontífice a princípio do século IV: Eusebio da
Cesaréia, ao redigir sua célebre História eclesiástica,
em sua primeira metade, não conhece outra coisa em Roma que um bispo
como outros. Julgue-se: "Os mesmos recomendaram ao Irineu, que então
era o sacerdote da cristandade de Lyon, ao bispo de Roma do que se acaba
de tratar... (op. cit. V, IV, 1).
O cônego Bardy, em suas notas às traduções de
Eusebio, observa (op. cit, V, IV, 2): "O título de padre não
é aqui a não ser um termo de respeito. Sabe-se que, mais tarde,
sob a forma de "Papa", converter-se-á no título
reservado ao bispo de Roma".
Isto aparece sublinhado ainda por outra passagem de Eusebio: "Para
mim, recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado Papa Heraclas"
(Op. cit. VII, VII, 41).
Agora bem, Heraclas era simplesmente bispo de Alexandria. Daí a nota
do cônego Bardy: "A palavra Papa aplica-se ainda nesta época
a todos os bispos".
Sobre o de "bispo de Roma", simplesmente, e não "o
Papa", citemos ainda, do mesmo Eusebio da Cesaréia: História
eclesiástica, V, XXIV, 9; XXV, 14; XL, III, 3; VI, XLVI, 3; IV, V,
2; VII, V, 3, VI; VII, VII, 6; V, 21, etcétera.
Assim, no século IV, para o historiador oficial da Igreja dos primeiros
séculos, não existe nenhuma Papa cabeça da Igreja,
só há um bispo de Roma, sem mais, igual, mas não superior,
a todos outros. E necessitar-se-ão séculos e séculos
para chegar a ver os fiéis, ignorando tudo da história de
sua religião, prosternar-se ante um homem quase deificado, e beijar
devotamente sua sandália, com grande escândalo dos primeiros
doutores da Reforma.
NOTAS COMPLEMENTARES
Nos Atos dos Apóstolos (9, 36-42), vemos Simão-Pedro ressuscitando
a um tal Tabitha-Dorcas, que figura "entre os discípulos"
(sic) e que vive em Joppe.
Agora bem, em Guerra dos judeus, de Flavio Josefo, vemos um tal João
(Iochanan), da cidade de Gischala da Galiléia, chefe zelote insurreto,
levantado contra Roma, que "... querendo matar também àqueles,
enviou a um assassino chamado Tabitha...". (op. cit., IV, II, manuscrito
eslavo). E o manuscrito grego da mesma obra o diz: "... filho de Dorcas",
quer dizer, em hebreu: X...-bar-Tabitha. A partir daí é fácil
estabelecer nosso silogismo.
a) maior: Tabitha-Dorcas é um discípulo de Jesus (Atos, 9,
36), e figura entre eles, em Joppe;
b) menor: este Tabitha-Dorcas tem um filho, chamado X...-bar-Tabitha, que
é um sicário, sob as ordens de João da Gischala, chefe
zelote insurreto;
c) conclusão: esses "discípulos de Jesus" não
são, pois, outra coisa que zelotes, que contam entre eles elementos
ainda mais extremistas (sicários), coisa que a continuação
nos confirmará (veja o capítulo 8), já que, segundo
Flavio Josefo, esse João era: Galileu, mago e aspirante à
realeza, o que demonstra que era, mais que provavelmente, "filho de
David" ele também.
Como se vê, caímos sem cessar nos mesmos ambientes, e não
saímos da mesma família.
Sobre a pseudo-tumba de Pedro em Roma, cf. MAXIME GORCE, La verité
avant tout (Paris, 1959, J. Vitiano édit.).
7 - Os irmãos Santiago
São os ricos os que lhes oprimem e lhes arrastam ante os tribunais,
e são eles os que blasfemam do formoso Nome que foi invocado sobre
vós.
Epístola de Santiago, II, 6-7
Se duvidássemos de que Santiago da Epístola é um zelote,
bastar-nos-ia continuando a leitura, pois é muito edificante sobre
este particular: "Agora lhes toca a vós, ricos! Chorem, gritem
pelas desgraças que vai abater sobre vós! Suas riquezas estão
podres, e suas vestimentas roídas pelos vermes. Seu ouro e sua prata
estão oxidados, e sua ferrugem se elevará em testemunho contra
vós: como um fogo devorará sua carne. Amassastes seus tesouros
nos últimos dias! Grita contra vós o salário dos operários
que têm feito a colheita em seus campos e do que lhes privastes! E
os gritos desses colhedores chegaram até os ouvidos do Senhor dos
Exércitos..."(34) (Op. cit. V, 1-5).
Está muito claro, e tão mais que a citada Epístola
está dirigida "às doze tribos que estão dispersas",
quer dizer, a toda a Diáspora. Como observa muito exatamente Charles
Guignebert: "...O interesse que lhe concede é grande, porque
aparece como muito pouco cristão, muito judaizante, e antipaulino).
(Cf. Charles Guignebert, O Cristo, I, I.)
Sobre os dois apóstolos que levam esse nome, o Maior e o Menor, reina
uma confusão provavelmente intencionada, e organizada para o século
IV. Eusebio da Cesaréia nos diz, com efeito, o seguinte: "Houve
dois Santiagos: um era o Justo, que foi precipitado do pináculo do
Templo e golpeado até a morte com uma fortificação
de batanear, e o outro, que foi decapitado". (Cf. Eusebio da Cesaréia,
História eclesiástica, II, I, 5.)
Seja o que for, para o Teofilacto, bispo de Acrida, em Bulgareia, antes
de 1078, a "Maria, mãe de Santiago" citada em Lucas (24,
10), e evocada em João (19, 24-27), não é outra que
a "Théotokôs", quer dizer, Maria mãe de Jesus
(cf. Seu Comentário sobre o Protoevangelio de Santiago, citado pelo
abade Emile Amann em Protévangile, Paris, 1910, Letouzey édit.,
Imprimatur Paris, 1910).
Temos, pois, um bispo do Oriente que, no século XI, ignora, ou nega,
a perpétua virgindade de Maria, e o que é pior, sabe que Jesus
e Santiago são verdadeiros irmãos, no sentido de consangüinidade
da expressão.
O cônego G. Bardy, tradutor, comentarista e anotador da obra de Eusebio
da Cesaréia (Imprimatur: Divione, 1951), ao pé da página
50 do quarto tomo acrescenta as seguintes nota: (9) "Nesta passagem,
Clemente (Hypotyposes, livro VII) parece não conhecer mais que a
dois Santiagos: o Justo e o irmão de João. Haveria, pois,
que concluir que identifica ao Justo com o filho de Alfeu, que é
mencionado nos Evangelhos como um dos Doze; cf. M-J. Lagrange, op. cit.,
página 87. Esta conclusão não se impõe absolutamente.
Em outro lugar (Stromates, VII, 93-94), Clemente faz de Santiago, o Justo,
um filho de José. E o mesmo Adumbrat.in epist. Canonicas, fragmento
13, Staehlin edit., III, 206". "(10) Clemente de Alexandria, Hypotyposes,
fragmento 13, Staehlin edit., III, P. 199. Staehlin atribui inclusive a
frase seguinte a Clemente. Pelo contrário, os editores de Eusebio
atribuem-na ao historiador. Sobre estes fragmentos das Hypotyposes, veja-se
Th. Zahn, Forschungen, III, P. 73 e ss."
Tentemos ver claro, embora não seja nada fácil.
Herodes Agripa I morreu em Cesaréia, na primavera, e provavelmente
em 10 de março do ano 44 (no calendário gregoriano, quer dizer,
o 1 no calendário Juliano), de uma morte muito digna, como nos precisa
Flavio Josefo (Antigüidades judaicas, XIX, VIII), e não escandalosa,
como pretendesse o anônimo autor dos Atos dos Apóstolos (12,
21-24). Seria ele quem mandou decapitar ao Santiago "irmão de
João", e portanto "filho de Zebedeu", se dermos crédito
aos mesmos Atos (12, 1-2), e isso teria lugar em Jerusalém, ao mesmo
tempo que procedia à detenção de Simão-Pedro.
Já vimos que tudo isso era falso (veja o capítulo 6).
Desde esse momento, permitimo-nos expor algumas questões bastante
embaraçosas:
a) Se Santiago (Jacobo), filho de Zebedeu e irmão de João,
foi segundo os Atos dos Apóstolos, decapitado em finais do ano 43
ou princípio do ano 44 em Jerusalém, por ordem de Herodes
Agripa I, como pôde evangelizar a Espanha e morrer nela, se sua tumba
se encontrar oficialmente na basílica de Santiago de Compostela,
na extrema ponta noroeste da Espanha atlântica, o que implica que
tinha que passar necessariamente pelas "colunas de Hércules"
(Gibraltar), coisa que, naquela época, era uma verdadeira aventura
marinha?
Na realidade, até o século VII não começaria
a difundir a lenda de Santiago evangelizando a Espanha, e foi na primeira
metade do século IX quando uma estrela resplandeceu acima de um campo,
assinalando assim a tumba do apóstolo, até então ignorada.
O rei Alfonso II de Astúrias aproveitou em seguida a ocasião
e mandou erigir uma igreja que os árabes infiéis, insensíveis
ao piedoso engano, fizeram demolir a seguir.
b) Se foi só seu cadáver o que foi milagrosamente transportado
pelos ares ao famoso campo de "compostella", como pôde evangelizar
a Espanha uma vez morto?
c) Se de verdade evangelizou em vida a Espanha, depois da morte de Jesus,
e se, depois de retornar imediatamente à Judéia, foi decapitado
ali nos anos 43 ou 44, expõem-se outras perguntas:
1) Como pôde em tão pouco tempo evangelizar essa mesma Espanha,
e uma região desconhecida, onde a própria Roma logo que tinha
acesso?
2) Por que retornou imediatamente à Judéia, para que ali lhe
decapitassem, ignorando assim a sorte que lhe esperava?
3) Por que, depois dessa execução, foi transferido milagrosamente
seu cadáver à ponta atlântica extrema dessa "província"
romana, que não o era mais que de nome, e que virtualmente se limitava
à suas regiões mediterrâneas?
Porque, afinal de contas, o santuário de Compostela representa, há
numerosos séculos, um imenso ingresso para a cristandade, e a venda
do Livro dos Atos dos Apóstolos também. Então, pois,
qual dos dois obtém uma arrecadação ilícita,
e portanto impura?
Como se vê por tudo isto, os escribas iniciais, desejosos de velar
a qualquer preço a verdadeira personalidade dos dois Jacobo-Santiago,
embrulharam-se mutuamente em suas redações trucadas. E isso
aconteceu por falta de uma sincronização de seus trabalhos
comuns, impossível de obter naquela época pela ausência
de comunicações regulares. A verdade, como sempre, é
muito mais singela. Recapitulemos.
Santiago, o Maior, foi crucificado no ano 47, com Simão-Pedro, à
saída do sínodo de Jerusalém, durante a época
de fome que seguiu à nova insurreição dos zelotes (veja
o capítulo 6).
Não foi absolutamente decapitado por ordem do rei Herodes Agripa
I, porque o rei benevolente e generoso que nos descreve Flavio Josefo, o
rei que perdoa injúrias e as calúnias de Simão-Pedro
e o deixa partir logo após dando-lhe inclusive alguns presente (veja
o capítulo 6), não tinha nenhuma razão para fazer cortar
a cabeça a seu irmão, e é ao Tibério Alexandre,
procurador de Roma, a quem terá que imputar esta dupla crucificação.
E se dermos crédito à Clemente de Roma em sua I Epístola
e à carta de Ignacio de Antioquía aos romanos, Simão-Pedro
foi executado depois de ser denunciado (cf. Clemente de Roma, I Epístola,
V). Não é necessário procurar nada, o responsável
por tal denúncia foi Saulo-Paulo (35), e nela estava incluído
também Santiago.
Santiago, o Menor, por sua parte, foi lapidado no ano 63, por ordem de Ananías,
pontífice de Israel e saduceu, quer dizer, da casta conservadora
e pró-romana, e bastante materialista, já que rechaçava
a imortalidade da alma e as recompensas póstumas. Esta execução,
como teve lugar durante a suspensão do jus gladii, por ordem de Roma,
e situou-se no intervalo de tempo que separou a saída do procurador
Festo e a chegada de seu sucessor Albino, foi a causa da destituição
de Ananías. De todo modo, a condenação foi aplicada
por crimes de direito comum: banditismo, saques, ataque a mão armada,
embora inspirados por motivos indiscutivelmente políticos, e os crimes
de direito comum dependiam da justiça romana, não da do Sanedrín,
pois este não julgava a não ser os delitos religiosos. Daí
a sanção contra Ananías. E aqui temos a prova: "Uma
vez morto Festo, Nero deu o governo da Judéia ao Abino, e o rei Agripa
tirou o supremo sacerdócio de José, para dar ao Ananías,
filho de Ananías. Esse Ananías pai foi considerado como um
dos homens mais afortunados do mundo, já que gozou tanto como quis
de tal dignidade, e teve cinco filhos, que a possuíram, todos, depois
dele, coisa que jamais aconteceu a nenhum outro. Ananías, um deles,
e de que falamos agora, era um homem audaz e empreendedor, e da seita dos
saduceus, que, como dissemos, são os mais severos de todos os judeus,
e os mais rigorosos em seus julgamentos. Escolheu o período em que
Festo tinha morrido, e Albino ainda não tinha chegado, para reunir
um conselho ante o que fez apresentar-se ao Santiago, irmão de Jesus,
de apelido o Cristo, e a alguns outros, acusou-os de ter transgredido à
Lei, e os condenou a ser lapidados. Esta ação desagradou extraordinariamente
a todos aqueles habitantes de Jerusalém que tinham piedade e um verdadeiro
amor pela observância de nossas leis. Enviaram secretamente ao rei
Agripa, para lhe rogar que ordenasse ao Ananías que não voltasse
a fazer nada semelhante, já que o que fizera não tinha desculpa.
Alguns deles foram ante Albino, que fora à Alexandria, para lhe informar
do que acontecera, e lhe comunicar que Ananías não poderia
nem deveria reunir esse conselho sem sua permissão. Ele entrou em
seus sentimentos e escreveu ao Ananías encolerizado e ameaçando-lhe
com que o faria castigar. Agripa, ao lhe ver tão irritado contra
ele, retirou-lhe o supremo sacerdócio, que não tinha exercido
mais que durante quatro meses, e o concedeu ao Jesus, filho de Damneus.
"Quando Albino chegou à Jerusalém, empregou toda sua
atenção em devolver a calma à província, mediante
a morte de uma grande parte desses ladrões. Nesses mesmos tempos,
Ananías, que era um supremo sacerdote de grande mérito, ganhava
o coração de todo o mundo. Não havia ninguém
que não o honrasse, por causa de sua liberalidade". (Cf. Flavio
Josefo, Antigüidades judaicas, XXI, VIII).
É perfeitamente evidente que todo esse fragmento do manuscrito de
Flavio Josefo sofreu modificações dos monges copistas, e além
modificações pouco inteligentes. Porque:
a) Nos diz que Ananías e seus filhos sucederam no supremo sacerdócio,
e ao mesmo tempo que um deles sucedeu a um tal José. Há, portanto,
contradição;
b) Nos diz que Santiago, irmão de Jesus (é Santiago, o Menor,
porque o Maior morrera com Simão-Pedro no ano 47), foi lapidado junto
com alguns outros por ter transgredido à Lei judia. Agora bem, essa
mesma Lei judia, da qual os saduceus eram observadores tão estritos,
proíbe pronunciar várias condenações de morte
no mesmo dia. Contra isso é contra o que protestaram os habitantes
de Jerusalém, mas não contra o fato de condenar a violadores
da Lei, porque o fato de protestar por isso seria violar também a
Lei... Santiago, o Menor, e esses "outros" foram, pois, julgados
e condenados por outros motivos? Quais? Aqui estão:
c) O último parágrafo dessa citação nos diz
que Albino "empregou toda sua atenção em devolver a calma
à província, mediante a morte de uma grande parte desses ladrões."
Mas, onde se tinha falado de ladrões em todo o texto precedente?
Em nenhuma parte. Ao menos não no relato dos monges copistas, porque
no de Flavio Josefo sim que se falava! Quão mesmo nos capítulos
precedentes, já que nos detalha as exações dos sicários.
De fato, a passagem que os monges copistas suprimiram cuidadosamente nos
dava, com efeito, o relato da execução de "Santiago (Jacobo),
irmão de Jesus, de apelido o Cristo", mas não se tratava
somente da violação dos usos religiosos da Lei judia, mas
sim de uma violação do direito comum puro e simples. Nessa
passagem retirada pelos copistas figurava o termo de "ladrões",
já que a ele se refere a continuação. Mas nossos copistas
mais ou menos ignorantes, tendo em conta a época (alta Idade Média),
soletrando penosamente linha por linha, seguindo com o dedo, palavra a palavra,
não liam tão comodamente como nós, e não viram
que sua interpolação não enquadrava com a continuação
do texto.
A fim de evitar utilizar uma tradução contemporânea
que pudesse refletir os apliques ideológicos e as preferências
religiosas dos tradutores, tomam o texto de Flavio Josefo na tradução
de Arnauld d'Andilly (1588-1674), tradutor de várias obras religiosas,
irmão maior de Antoine Arnauld, o "grande Arnauld", defensor
dos jansenistas contra os jesuítas, e de Angélique, sua irmã,
abadessa de Port-Royal.
Santiago, o Maior, morreu, pois, numa idade bastante avançada, por
volta do ano 63 de nossa era. E sua morte será muito rapidamente
vingada por seu sobrinho Menahem, neto de Judas da Gamala, e esse Menahem
fará dar morte ao Ananías, em Jerusalém no curso da
revolução de março do ano 64, que preludiou a grande
guerra judia que se declarou oficialmente no ano 66. (36)
"Toda sua vida -conta-nos Epifano- Santiago se absteve de banhos, e
não cortou nem os cabelos nem a barba". Sua morte foi a de um
judeu ortodoxo somente, segundo Flavio Josefo. Mas Hegesippo, citado por
Eusebio da Cesaréia (cf. História eclesiástica, II,
XXIII), assegura-nos que foi a de um bom cristão. Pouco limpo, em
todo caso. E fica o "irmão Santiago", chamado o Maior.
Segundo os Atos dos Apóstolos (12, 1), Herodes Agripa I o mandou
decapitar em Jerusalém. Isso é pouco provável, dado
que tal soberano era piedoso, indulgente e bom (cf. Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, XIX, VII). "A natureza desse rei o inclinava a ser benevolente
por seus dons e a tentar dar a seus vassalos um alto conceito de sua soberania...
Alegrava-lhe agradar às pessoas, gostava que lhe elogiassem seu modo
de vida, coisa em que era totalmente diferente do rei Herodes (o Grande),
seu predecessor". (Op. Cit.) Seu comportamento com Simão-Pedro
confirma o fato por Flavio Josefo (veja o capítulo 6).
Como conclusão diremos que Santiago, o Menor, foi lapidado, efetivamente,
por ordem de Ananías, pontífice de Israel, por atividades
zelotes e como guerrilheiro mais ou menos misturado com atos de banditismo,
no ano 63 de nossa era, e que Santiago, o Maior, fora crucificado no ano
47, por ordem de Tibério Alexandre.
8 - André, aliás Lázaro
Santo André, crucificado, prega durante dois dias à vinte
mil pessoas. Todos lhe escutam, cativados, mas ninguém pensa em liberá-lo...
JULES RENARD, Journal
Este fim em uma cruz em forma de sinal de multiplicação concorda
com a tradição mais comum. De todo modo, São Pedro
Crisólogo, em seu Sermão 133, assegura que foi pendurado numa
árvore.
Veremos no que segue que houve uma terceira solução, a crucificação
romana, provavelmente.
Esse personagem aparece citado em Mateus (4, 18, e 10, 2), Marcos (1, 29;
3, 18; 13, 3), João (1, 41; 6, 9; 12, 22), e nos Atos (1, 13).
Eusebio da Cesaréia o cita deste modo em sua História eclesiástica,
em III, I; II, e em III, XXXIX, 4. Este autor declara que os Atos de André
são considerados como apócrifos em sua época, dado
que só o receberam seitas heréticas cristãs já
separadas da grande Igreja geral.
Em III, 2, 1, já citado, diz simplesmente que André, "por
isso conta a tradição, obteve a Escitia". Citado também
ao Papías, "ouvinte de João e discípulo de Policarpo",
diz-nos Irineu, mas cujas obras, claro está, desapareceram, o que
faz com que possa ficar em sua boca o que alguém queira. E a prova
é: "Papías, no prefácio de seus livros, não
se mostra jamais a si mesmo como se fosse alguma vez ouvinte ou espectador
dos Santos apóstolos. Mas nos diz que ele recebeu quanto se refere
à fé dos que os conheceram... Se em algum lugar chegava alguém
que estivera em companhia dos presbíteros, eu me informava das palavras
dos presbíteros: o que dissera André, ou Pedro, ou Felipe,
ou Tomás, ou Santiago, ou João, ou Mateus, ou algum outro
dos discípulos do Senhor; e o que dissera Aristion, e o presbítero
João, discípulo do Senhor". (Eusebio da Cesaréia,
História eclesiástica, III, XXXIX, 2-4). E isso é tudo
o que nos diz sobre André. É pouco.
Observemos, entretanto, que esse vocábulo não é um
nome judeu de circuncisão. Deriva do grego Andrôs (homem),
e mais concretamente de Alexandrôs (homem vencedor). Agora bem, segundo
opinião de Dom J. Dupont, O. S. B., professor da abadia de Saint-André,
que traduziu e anotou os Atos dos Apóstolos no marco da Bíblia
de Jerusalém, esse nome não seria em realidade a não
ser a forma helenizada de Eleazar (cf. Os Atos dos Apóstolos, Editions
du Cerf, Paris, 1964, P. 58, nota referente ao IV, 17). Em Dom J. Dupont,
beneditino, podemos confiar! Alexandrôs, em grego, deu Andreas em
latim, e Alexis e Alex em diversas línguas, especialmente eslavas,
e em grego seguiu como Andreas. Pois bem, Eleazar, no Novo Testamento, nos
apresenta sempre sob a forma contraída de Lázaro. (37) Ele
foi o compadre da famosa "ressurreição"; voltaremos
para isso no próximo capítulo. E não em vão
as diversas correntes do iluminismo dos Rosacruzes fizeram dele o patrão
dos iniciados, quer dizer, daqueles que estão no segredo.
Por conseguinte, e primeira constatação, o misterioso André,
cujo nome de circuncisão nos oculta, não é outro que
Eleazar, aliás Lázaro. Ele é o pseudo-ressuscitado.
Desde onde seu papel esotérico no corpus dos alquimistas, onde se
encontram símbolos como o Phenix, que renasce de suas próprias
cinzas, e, como por acaso, sobre uma pira composta por quatro ou dois troncos
de madeira, dispostos em forma de cruz de Santo André. Também
é o "X", imagem da incógnita em um problema sem
resolver. Para nós, leitor, esse problema por fim já está
resolvido.
A Epístola de Clemente de Roma menciona a lenda de fênix para
simbolizar a ressurreição: "Consideremos o estranho prodígio
que se opera nas regiões do Oriente, quer dizer, na Arábia.
Ali se vê um pássaro, chamado fênix. É o único
de sua espécie, e vive quinhentos anos. Quando se aproxima seu fim,
constrói-se com incenso, mirra e outros aromas, um sepulcro, onde
penetra para morrer nele, quando se cumpriu seu tempo. De sua carne em putrefação
nasce um verme que se alimenta da podridão do pássaro morto,
e logo se cobre de plumas. Quando se fez forte, levanta o féretro
onde repousam os ossos de seu progenitor e, com esse casulo, voa da Arábia
ao Egito, até a cidade de Heliópolis. Ali, em pleno dia, aos
olhos de todos, vai voando a depositá-lo sobre o altar do Sol, depois
do qual empreende o vôo de volta. Então os sacerdotes, consultando
seus anais, constatam que retornou após quinhentos anos". (Cf.
Clemente de Roma, Epístola aos Corintios, XXV).
Assim, na época da redação da Epístola (século
I) não se ignorava que André e Lázaro não eram
a não ser uma mesma pessoa, já que a fênix constituía
a chave esotérica da lenda. Por outro lado, a partir do século
XVIII e a aparição dos graus elevados da franco-maçonaria,
vemos que os manuscritos rituais mais velhos nos representam um grau hierárquico
que leva esse vocábulo: "Cavaleiro Rosacruz, e é o título
que lhe convém melhor); Cavaleiro da Águia (...), Cavaleiro
do Pelicano (...), Maçom de Heredom (...), Cavaleiro de Santo André
(...)". (Cf. Manuscrito da Instruction générale du grade
de Chevalier Rosacruz, pelo Devaux D'Hugueville, datado de 1746, no G. Bord,
La Francmaçonnerie le France, Paris, 1908, P. 512 e ss.). Em seu
Introduction, Devaux D'Hugueville recorda que a jóia habitual, que
representa ao santo em sua cruz típica, às vezes é
substituída em certos Estados por "uma medalha da Ressurreição"
(sic). A jóia maçônica que adorna o sautor vermelho
vivo distintivo desse grau representa, além disso, um compasso coroado,
apoiado sobre um quarto de círculo, que leva em sua cara um pelicano
alimentando a seus pequenos, e na outra cara uma fênix sobre sua fogueira
de ressurreição.
Observar-se-á que o manuscrito transcreve Rosacruz com um z, e não
Rose-Croix. Lembrança discreta da verdadeira origem do termo. O hebreu
"rosen-koroz" significa "príncipe arauto", e
rôz (rosah) significa secreto, quer dizer, "arauto secreto"
ou "arauto do segredo". Desde aí é de onde nasceu
o nome, puramente imaginário, do personagem chamado Rozenkreutz ou
Rosenkreutz.
Assim, os franco-maçons do século XVIII, ou ao menos os que
codificaram o ritual iniciático, não ignoravam que o apóstolo
André estava associado em sua lenda a um tema de ressurreição.
E quem no Novo Testamento, além de Jesus, ressuscitara, a não
ser Lázaro? (38) E mais ainda quando Jesus estava representado na
outra cara da jóia como o pelicano que se sacrificava por seus pequenos.
(39)
Sobre o fato de que ele fora também o patrão dos iniciados
(latim: initium, começo) temos a prova nos Evangelhos canônicos.
Ele é, com efeito, quem vai se ver antes, quando deseja ser apresentado
ao Jesus. Para este, rei legítimo, senão legal, de Israel,
Eleazar-Lázaro é algo assim como o grande chambelán.
Isto nos precisa João (12, 20-22). Mas além disso tem em seu
poder umas temíveis chaves, e os escribas anônimos que no século
IV, sob a vigilância de Eusebio da Cesaréia e de outros diversos
bispos, compuseram por ordem de Constantino os atuais Evangelhos canônicos
(fazendo desaparecer a seguir os antigos, chamados apócrifos), esses
escribas enredados nas redes de suas censuras, interpolações
e extrapolações, sem querer deixaram subsistir algumas palavras
da verdade. Julgue-se: Nos diz que André é o irmão
de Simão-Pedro: "Caminhando, pois, junto ao mar da Galiléia,
viu dois irmãos: Simão-Pedro, e André, seu irmão..."
(Mateus, 4, 18, e Marcos, 1, 16). Está muito claro. Esses dois irmãos
o são no sentido familiar do termo.
Muito embaraçados, como é de supor, pelo assunto, os exegetas
modernos pretendem que esse irmão não seja a não ser
um associado. Mas subsistem outros textos que provam que se tratava de perfeitos
irmãos no sentido carnal e familiar do termo, já que em princípio
inclusive tinham a mesma moradia familiar: "Logo, saindo da sinagoga,
vieram à casa de Simão e André, com Santiago e João.
A sogra de Simão estava deitada, com febre". (Marcos, 1, 29-31).
Assim, esses dois irmãos tinham a mesma moradia familiar.
Por outra parte, as Homilias clementinas confirmam que tinham o mesmo pai,
e que a morte deste os deixara órfãos. "Porque eu e André,
meu irmão ao mesmo tempo carnal e ante Deus, não só
fomos criados como órfãos..." (Cf. Clemente de Roma,
Homilias clementinas, XII, VI). Que mais faltaria?...
E o Evangelho de Pedro nos diz o mesmo: "Quanto a mim, Simão-Pedro,
e André, meu irmão, tomamos as redes e fomos ao mar".
(Cf. Evangelho do Pedro, 58 a 60).
Agora recapitulemos de forma definitiva:
a) André, aliás Eleazar, aliás Lázaro, é
o irmão de Simão-Pedro, e ambos são órfãos.
Porque, com efeito:
b) Simão é o filho de Judas da Gamala, morto no ano 6 de nossa
era, no curso da célebre revolução do Censo.
c) Agora bem, Simão é o irmão de Jesus: "Não
é acaso o carpinteiro, filho de Maria, e o irmão de Santiago,
de José, de Judas e de Simão? E suas irmãs não
vivem aqui entre nós?" (Marcos, 6, 3).
Por conseguinte:
d) Jesus, Simão, Santiago, André, José e Judas são,
portanto, todos irmãos, e todos filhos de Judas da Gamala.
Por outra parte, tiveram irmãs (Marcos, 6, 3). Quais são?
Voltemos para os Evangelhos:
"Havia um doente, Lázaro, da Betânia, da aldeia da Maria
e da Marta, sua irmã. Era esta Maria a que ungiu ao Senhor com ungüento
e lhe enxugou os pés com seus cabelos, cujo irmão Lázaro
estava doente. Enviaram, pois, as irmãs a lhe dizer: "Senhor,
que amas está doente"... (João, 11, 1-4).
"Marta, pois, assim que ouviu que Jesus chegava, saiu-lhe ao encontro;
mas Maria ficou sentada em casa. Disse Marta ao Jesus: 'Senhor, se tivesse
estado aqui, não tivesse morrido meu irmão',"... (João,
11, 20-21).
"Assim Maria chegou onde estava Jesus, vendo-lhe, ajoelhou-se a seus
pés, dizendo: 'Senhor, se estivesse aqui, não morreria meu
irmão'..." (João, 11, 32-33).
Agora bem, como acabamos de ver, João nos fala da unção
que Maria tinha conferido ao Jesus. Mas onde comunicou antes este acontecimento?
Em nenhuma parte! Temos que dar um salto para diante, para encontrar o relato
da união nos versículos 1 a 7 do capítulo 12. Além
disso, os textos antigos não pareceram tomar-se muito a sério
seu trabalho.
E tanto mais que as duas passagens de João citados são absolutamente
contraditórias no que se refere à atitude de Maria...
E aqui é onde nos espera a maior surpresa, e também o maior
escândalo! Evocamo-lo discretamente na obra precedente. Ao final do
presente capítulo levantaremos o véu. Aí o leitor poderá
constatar a veracidade do que dizíamos ao princípio deste
estudo, ou seja, que André tinha as chaves de muitos mistérios...
Vamos agora a sua sorte final, e para isso joguemos à mão
de nosso Flavio Josefo.
"Quando o rei Agripa morreu, como contamos no livro precedente, o imperador
Claudio enviou ao Cassio Longino, (40) para suceder ao Marso, rendendo assim
comemoração à memória do rei que, estando com
vida, tinha-lhe pedido em numerosas cartas que Marso não presidisse
mais os assuntos de Síria.
"Quando Fado chegou como procurador à Judéia, encontrou
aos judeus de Perea em luta contra os Filadelfos (41) por causa de uma aldeia
chamada Zia, cheia de pessoas belicosas, e cujos limites eram disputados
por uns e por outros. As pessoas de Perea tinham tomado as armas, contra
o parecer de seus chefes, e mataram numerosos filadelfos. Ao inteirar-se
disto, Fado se irritou muito porque não lhe deixaram a seu cuidado
decidir se foram ultrajados pelos filadelfos, e porque não temessem
recorrer às armas.
"Fez-se, pois, com três de seus notáveis, que eram também
responsáveis pela revolução, e os mandou encadear.
A seguir mandou matar um deles, chamado Aníbal, e castigou com o
exílio aos outros dois, Amram e Eleazar. Fez perecer deste modo ao
Tholomaios, cabeça dos bandoleiros que, pouco depois, fora encadeado,
e que causara os maiores males à Iduméia e aos árabes.
A partir desse momento, Judéia ficou inteiramente purgada de bandoleiros
graças ao zelo e à prudência de Fado. Este então
mandou ir aos grandes pontífices e aos príncipes de Israel,
e lhes convidou a depositar na cidadela Antonia as vestimentas sagradas
e as roupas pontificais que o costume permitia revestir ao supremo sacerdote,
para que estivessem, como antes, em poder dos romanos...". (Cf. Flavio
Josefo, Antigüidades judaicas, XX, I, 1 a 6).
Mas as coisas não acabam aí. Sigamos relendo ao Flavio Josefo:
"Na Judéia as coisas adotavam, de dia em dia, uma aparência
pior, já que o país estava de novo cheio de bandoleiros e
de impostores que enganavam ao povo. Cada dia Félix capturava a muitos
destes e os fazia perecer como a bandidos. Eleazar, filho de Dinaios, que
reunira a seu redor uma equipe de bandoleiros, foi capturado com vida graças
a um estratagema. Depois de lhe dar sua palavra de que não lhe faria
nenhum dano, persuadiu-lhe de que se apresentasse ante ele, e logo, depois
de lhe fazer encadear, enviou-o à Roma..." (Cf. Flavio Josefo,
Antigüidades judaicas, XX, VIII, 5).
Vejamos agora o manuscrito grego da Guerra dos judeus: "Apenas Félix
ocupou seu cargo, declarou a guerra a esses ladrões que causavam
estragos em todo o país desde fazia vinte anos, capturou ao Eleazar,
seu chefe, e a outros vários com ele, e os enviou prisioneiros a
Roma, e deu morte a outro número incalculável de bandidos..."
(Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXI, manuscrito grego).
Antonio Félix foi procurador da Judéia no ano 51 de nossa
era, e fazia já vinte anos que o chamado Eleazar causava estragos
no país. A coisa remontava-se, por conseguinte, ao ano 30 aproximadamente,
ano em que começa a revolução judia dirigida por Jesus,
quem seria crucificado no ano 35. Tudo concorda cronologicamente, e mais
ainda quanto que o ano 31 é o da detenção de João,
o Batista. Ao inteirar-se Jesus, refugiou-se prudentemente em Tiro e Sidón.(42)
Notemos, por outro lado, em que os manuscritos eslavo e grego da Guerra
dos judeus não levam indicação alguma sobre um suposto
pai de Eleazar chamado Dinaios, ou Dineus no manuscrito de Antigüidades
judaicas. Nós afirmamos que se trata aí de uma interpolação
dos monges copistas medievais (os manuscritos são da Idade Média,
não há outros). Porque que plausibilidade há em que
Flavio Josefo desse a indicação referente ao pai de Eleazar
nas Antigüidades judaicas, e não a repetisse na Guerra dos judeus,
que foi posterior?
E como um judeu chamado Eleazar pode ter um pai chamado Dinaios ou Dineus,
que são nomes respectivamente grego e latino, admitindo, além
disso, que esses nomes estivessem em uso na Grécia e na Itália?
Em hebreu há um nome feminino desse tipo: DINA, que significa "justa"
(Gênese, 30, 21, e 34, 1). Há também um nome comum,
ao mesmo tempo hebreu e caldeu: din', que significa "justiça"
e "justo". E se tentamos reconstruir o vocábulo que designa
ao chefe desses zelotes, temos então Eleazar-bar-ha-Din', quer dizer,
Eleazar-filho-do-Justo. Dinaios ou Dineus não são então
a não ser a tradução de apelidos hebraicos em grego
e em latim, e não nomes. E esse "justo", que é o
pai de Eleazar, irmão de Simão-Pedro, de Jacobo-Santiago,
e dos outros irmãos, é evidentemente Judas da Gamala, o "herói"
(em hebreu geber) da revolução do Censo.
Voltemos agora para a sorte de Eleazar aliás André, e sigamos
com o Flavio Josefo: "Ele também (Nero César) nomeou
procurador a esse mesmo Félix que capturou seiscentos bandidos com
seu chefe e uma multidão de cúmplices deles, e os enviou ao
César (Nero). Este fez crucificar a essa gentinha; quanto aos chefes,
retirou-lhes incalculáveis riquezas e os deixou em liberdade".
(Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, II, V).
Traduzamos: Os "cúmplices" desses seiscentos "bandidos"
não eram outros que os camponeses que lhes abasteciam, e esses "bandidos"
eram os guerrilheiros zelotes. De todo modo, é difícil imaginar
o traslado por mar de semelhante multidão naquela época. Foram,
efetivamente, crucificados, mas na Judéia, por ordem do procurador
Félix, e só os chefes foram enviados à Roma, dado que
Félix lhes prometera astutamente que ele não lhes faria mal.
Eleazar-André caiu nesta armadilha. Não obstante Nero, a quem
repugnavam as execuções inúteis, preferiu lhes fazer
pagar fortes resgates, em troca da promessa de que se mantivessem tranqüilos,
como acabamos de ver.
E a prova de que isto aconteceu efetivamente assim a temos em que aqui perdemos
o rastro nominal de Eleazar-André. Dele nunca mais se voltou a ouvir
falar, e para paliar esta carência da história verídica,
entrou em cena a lenda, como declara monsenhor Dúchense em seu livro
Les Origines du culte chrétien. E daí a aceitação
cortês mas reticente do alto clero ortodoxo quando o Vaticano lhe
fez restituir o crânio do apóstolo André, depois do
encontro de Paulo VI e Atanágoras.
Entretanto, uma vez retornados à Judéia, depois de pagarem
o resgate exigido por Nero, nossos zelotes não se mantiveram tranqüilos
por muito tempo, e suas vinganças se exerceram imediatamente. Julgue-se:
"Quando retornaram, entregaram-se à crimes de outro estilo,
golpeando às pessoas em pleno dia em meio da cidade (Jerusalém),
e sobretudo durante as festas; mesclavam-se com o povo, e sob suas vestimentas
ocultavam umas adagas agudas (a sicca palestina), com os quais atravessavam
seus adversários; a seguir plantavam-se diante da vítima e
fingiam lamentar o que lhe acontecera e procurar o assassino. Sua primeira
vítima foi o supremo sacerdote Jonathan, e seguiram muitos outros.
Um medo horrível apoderou-se de todos, e cada um esperava cada dia
a morte, como na guerra". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II,
V, manuscrito eslavo).
No que concerne às riquezas que serviram para pagar o enorme resgate
desse irmão de Jesus e de seus discípulos imediatos durante
seu curto cativeiro em Roma, procediam do imenso saque acumulado pelas lutas
zelotes desde fazia quase um século. Demonstramos sua existência
real, documentos em mão, no capítulo referente aos zelotes
(capítulo 1).
Tudo isto, entretanto, demonstra-nos que:
a) Eleazar-André, seus seiscentos "bandidos" e a "multidão
de cúmplices" deles, não eram bandidos ordinários
e de direito comum, a não ser simplesmente guerrilheiros zelotes.
b) A natureza de suas atividades e o parentesco os relaciona ipso ipso com
os zelotes do movimento anteriormente dirigido por Jesus, já que
este último era seu chefe indiscutível, como demonstramos
na obra precedente (segundo a obra do historiador protestante Oscar Cullmann,
em seu livro Dieu et César). São os mesmos, o que explica
que esse Eleazar-André, irmão de Jesus e de Simão-Pedro,
fora também um de seus dirigentes, e com maior razão depois
da crucificação de seus dois irmãos Simão e
Santiago em Jerusalém, no ano 47.
Com eles estava também outro membro do estado maior primitivo de
Jesus, e membro também, sem lugar a dúvida, da grande família
davídica, já que formava parte dos Doze; nomeamos ao Bartolomeu,
que durante as atividades de Eleazar-André ocupava-se de "evangelizar"
a Iduméia e a Ambatenha de uma maneira muito peculiar. Logo estudaremos
seu destino, depois da morte de Jesus.
Quanto à cruz em crucifica sobre a que teria morrido no Patras, aparece
no século VIII, quando se converteu em patrão de Escócia.
CONTINUA