ESPÍRITOS HIPOTÉTICOS
ELIPHAS LÉVI
Sobre as coisas que nossa ciência nesta vida não conseguiria
alcançar só se pode raciocinar por hipóteses. A humanidade
não pode saber nada de sobre-humano, visto que o sobre-humano é
o que ultrapassa o alcance do homem; os fenômenos de decomposição
que acompanham a morte parecem protestar em nome da ciência contra
essa necessidade inata de crer numa outra vida que gerou tantos sonhos.
A ciência, todavia, deve dar-se conta dessa necessidade, porque a
natureza, que não faz nada de inútil, não dá
aos seres necessidades que não devam ser satisfeitas. A ciência
pois, forçada a ignorar, deve supor pelo menos a existência
de coisas que não conhece, e não poderia colocar em dúvida
a continuação da vida após o fenômeno da morte,
visto que nada se nota de bruscamente interrompido na grande obra da natureza,
que, segundo a filosofia de Hermes, jamais opera por sobressaltos. As coisas
que estão além dessa vida podem ser vistas de duas maneiras,
ou pelos cálculos da analogia, ou pelas intuições do
êxtase; em outros termos, pela razão ou pela loucura. Os sábios
da Judéia escolheram a razão e nos deixaram nos livros, geralmente
ignorados, suas magníficas hipóteses. Lendo-os compreendemos
inicialmente que nossas crenças saíram deles como fragmentos
inexplicáveis e que o absurdo aparente de nossos dogmas desaparece
quando os contemplamos pelas grandes razões desses velhos mestres.
Admiramo-nos também por encontrarmos ali realizadas e completadas
filosoficamente todas as mais belas e grandiosas aspirações
de nossa poesia moderna. Goethe estudou a Cabala, e a epopéia de
Fausto é extraída das doutrinas do Zohar. Swedenborg, Saint
Simon e Fourier parecem ter visto a divina síntese cabalística
através das sombras e alucinações de um pesadelo mais
ou menos estranho, segundo os diferentes caracteres desses sonhos. Esta
síntese é, na realidade, o que o pensamento humano pode abordar
de mais completo e de mais belo. Os livros que tratam dos espíritos
segundo os cabalistas são a Pneumatica Kabbalistica que se encontra
na Kabbala denudata do barão de Rosenroth, o Liber de revolutionibus
animarum por Isaac de Loria, o Sepher Druschim, o livro de Mosché
de Corduero e alguns outros menos célebres. Apresentamos aqui não
somente o resumo, mas de alguma forma a quintessência. Juntamos aqui
os trinta e oito dogmas cabalísticos, tal como os encontramos na
coleção dos cabalistas publicada por Pistorius. Esses dogmas
resumem quase toda a ciência, e se não nos contentamos em acrescentar
aí uma rápida explicação é porque em
nossas obras precedentes desenvolvemos a ciência da qual esses dogmas
são a expressão.
Unidade e solidariedade dos espíritos. Segundo os cabalistas, Deus
cria eternamente o grande Adão, o homem universal e completo, que
encerra em um só espírito todos os espíritos e todas
as almas. Os espíritos vivem pois duas vidas ao mesmo tempo, uma
geral, que é comum a todos, e a outra especial e particular. A solidariedade
e a reversibilidade entre os espíritos faz com que vivam realmente
uns nos outros, todos iluminados das luzes de um só, afligidos todos
por causa das trevas de um só. O grande Adão era representado
pela árvore da vida; estendesse em cima e embaixo da terra em galhos
e raízes; o tronco é a humanidade, as diversas raças
são os galhos e os indivíduos inumeráveis são
as folhas. Cada folha tem sua forma, sua vida particular e sua parte de
seiva, mas só vive através do galho, como o próprio
galho só vive através do tronco. Os maus são as folhas
secas e as cascas mortas da árvore. Elas caem, apodrecem e se transformam
em estrume que retorna à árvore pelas raízes. Os cabalistas
comparam ainda os maus ou os condenados às excreções
do grande corpo da humanidade. Essas excreções servem de adubo
à terra que dá frutos para alimentar o corpo; assim a morte
retorna sempre à vida e o próprio mal serve de renovação
e de alimento para o bem. A morte, assim, não existe e o homem não
sai jamais da vida universal. Aqueles que chamamos de mortos vivem ainda
em nós e nós vivemos neles; eles estão sobre a terra
porque nós aqui estamos, e nós estamos no céu porque
eles lá estão, Quanto mais vivemos nos outros, menos devemos
temer a morte. Nossa vida após a morte, prolonga-se na terra naqueles
que amamos, e servimo-nos do céu para lhes dar a serenidade e a paz.
A comunhão dos espíritos do céu na terra, e da terra
no céu, faz-se naturalmente, sem perturbação e sem
prodígios; a inteligência universal é como a luz do
sol que repousa ao mesmo tempo sobre todos os astros e que os astros refletem
para iluminar uns aos outros durante a noite. Os santos e os anjos não
necessitam de palavras nem de sons para se fazer ouvir; eles pensam em nosso
pensamento e amam em nosso coração.O bem que não tiveram
tempo de concluir eles o sugerem e nós o fazemos por eles, eles o
desfrutam em nós, e repartimos com eles a recompensa, porque a recompensa
do espírito se engrandece quando a dividimos, e o que damos ao outro
multiplica-se em nós mesmos. Os santos sofrem e trabalham em nós
e só serão felizes quando a humanidade inteira for feliz,
visto que fazem parte da indivisibilidade humana. A humanidade tem no céu
uma cabeça que resplandece e que sorri, na terra um corpo que trabalha
e que sofre, e no inferno, que para nossos sábios não é
senão um purgatório, pés que estão acorrentados
e que queimam. Ora, a cabeça de um corpo cujos pés queimam
só pode sorrir à força de coragem, resignação
e esperança; a cabeça não pode estar alegre quando
os pés queimam. Somos todos membros de um só corpo e o homem
que procura suplantar e destruir outro homem é como a mão
direita que, por inveja, procuraria cortar a mão esquerda. Aquele
que mata, se mata, aquele que injuria, se injuria, aquele que rouba, se
rouba, aquele que fere, se fere, porque os outros estão em nós
e nós estamos neles. Os ricos se enfadam, odeiam-se uns aos outros
e se desgostam da vida; sua própria riqueza os tortura e os abate
porque há pobres que carecem de pão. Os aborrecimentos dos
ricos são as angústias dos pobres que sofrem neles. Deus exerce
justiça por intermédio da natureza e misericórdia pela
intervenção de seus eleitos. Se puseres tua mão no
fogo, a natureza te queimará sem piedade; mas um homem caridoso poderá
tratar e curar tua queimadura. A lei é inflexível, mas a caridade
é sem limites. A lei condena, mas a caridade perdoa. Por si mesmo,
o inferno nunca rende sua presa, mas pode-se lançar uma corda àquele
que se deixou cair.