Os apólogos da santa infância
ELIPHAS LÉVI
segunda parte
DÉCIMA-OITAVA
LENDA
Pedro e João. Jesus tinha um discípulo pouco inteligente,
pelo qual se sentia amado e que acreditava fervorosamente nele. Tinha o
caráter simples e ardente do trabalhador; tinha todas as virtudes
e todos os defeitos do povo, igualmente pronto ao desânimo e ao empenho,
mas, em suma, sempre amigo de seu mestre e disposto a dar a vida por ele.
Esse discípulo era um homem do porto chamado Simão. Jesus
considerou-o como o modelo vivo do trabalho corajoso e lhe disse: Tu és
a pedra sobre a qual fundarei minha associação (ecclesiam),
e as portas do inferno, isto é, os poderes desse mundo não
prevalecerão jamais contra ela. A pedra bruta que foi rejeitada pelos
arquitetos da sociedade presente tornar-se-á a pedra angular de uma
sociedade nova. Dar-te-ei as chaves do reino da inteligência e do
amor, que é o reino dos céus, e és tu que realizarás
as vontades de Deus na terra. Somente aqueles serão acorrentados
e tu os acorrentarás, e outros serão livres, visto que os
libertarás, porque tu és o homem do trabalho e te faço
meu representante diante do futuro. A Igreja, antes da chegada do espírito
de inteligência, acreditou ver nessas palavras a consagração
do poder absoluto e infalível dos papas, e um certo Alexandre VI
pretendeu ser o herdeiro legítimo das promessas feitas a Pedro, o
homem de fé, o trabalhador e o mártir. Todavia, os primeiros
papas eram apenas os representantes do povo perante Deus e, por isso mesmo,
de Deus perante o povo, visto que era o povo quem os escolhia; e é
por esse motivo que os grandes pontífices dos bons tempos do catolicismo
foram tribunos que resistiam aos imperadores, puniam os crimes dos grandes
e defendiam os povos contra os vícios de seus mestres. Enquanto o
papado reinou ele foi santo; a corrupção para ele devia ser
a decadência. Quando fores velho, disse Jesus a Pedro, um outro te
cercará e te fará ir onde tu não queres. Triste quadro
da servidão temporal a que se reduziu o papado decaído! Entretanto,
o papado é um princípio, é a primeira monarquia cristã,
e o cristianismo não se regenerará sem ele. O apóstolo
Pedro foi até o fim a imagem do gênio laborioso e desconhecido;
crucificaram-no como a seu mestre e o puseram de cabeça para baixo,
tanto os carrascos tinham medo de vê-lo em pé. Jesus havia
milagrosamente profetizado o que narra a lenda, porque quando Pedro saíra
de Roma para fugir da perseguição de Nero, o Salvador lhe
apareceu carregando sua cruz, e lhe disse: Vou a Roma onde devo ser crucificado
uma segunda vez. Pedro compreendeu que o cristianismo devia conquistar sua
liberdade pelo martírio; retornou pois sobre seus passos e
voltou para morrer. Jesus tinha um outro discípulo que foi chamado
de discípulo do amor e que sempre é representado jovem porque,
segundo a lenda, ele não deveria morrer. João é o evangelista
da síntese e liga ao cristianismo todo o gênio de Platão
na filosofia do Verbo. Jesus havia resumido toda a lei em duas palavras:
Amai Deus, amai-vos uns aos outros. São João faz cumprir o
amor a Deus no amor ao próximo e afirma que ninguém jamais
viu Deus, mas que vemos os homens e que neles devemos amar a divindade que
os anima. Amar Deus na humanidade, tal é pois toda a religião;
nosso século, adotando essa fórmula, só fez resumir
a doutrina de São João. São Paulo diz que a fé
e a esperança passarão, mas que a caridade não acabará
jamais. Essa palavra é a promessa do reino da fraternidade, e é
porque o futuro pertence ao amor que o personagem místico de São
João é considerado imortal pelos legendários. Dizia-se
que ele dormia em seu ataúde e que sua respiração agitava
docemente a poeira da sepultura. Ele esperava a volta de seu mestre, como
as virgens sábias que tiveram o cuidado de se apoderar do óleo
da caridade para avivar sua lâmpada, para quando Deus desejasse manifestar-se
novamente. Dizia-se, com efeito, que um óleo maravilhoso vertia do
sepulcro de São João e devolvia a saúde aos doentes.
É assim que a lenda segue-se ao Evangelho e adota suas imagens, como
o Evangelho reproduz, explicando-as, as grandes figuras da Bíblia.
Mas em todo o conjunto dos livros sagrados e da tradição mística,
um apóstolo tem o cuidado de nos prevenir disso, a letra mata e o
espírito vivifica. É por isso que, quando os cultos têm
que morrer, eles se materializam ligando-se à letra da palavra, e
o espírito lhes escapa ampliando sua expansão, como o homem
faz quando abandona as roupas de sua infância. O signo característico
de São João, o último dos evangelistas, é uma
águia, símbolo de liberdade, de inteligência e de soberania,
porque o reino do amor, facilitando o progresso, deve tornar todos os homens
livres por seu trabalho e sua virtude, cada um por sua vez, os primogênitos
da família humana, sacerdotes, reis e proprietários do mundo.
Fecisti non reges et sacerdotes et regnabimus super terram. (São
João) Vós nos fizestes sacerdotes e reis, e reinaremos sobre
a Terra. É por isso que, nesses últimos tempos, a águia
reapareceu no mundo. É por isso que a guerra será apenas a
preparação do império universal. O verdadeiro império
é a paz: a águia vitoriosa repousará sobre o trovão
e fixará o sol. Não será mais a águia do conquistador,
será a águia do evangelista.
DÉCIMA-NONA LENDA
A visão de Aaswerus. - Anda! dissera o judeu Aaswerus a Cristo oprimido
sob sua cruz. - Anda! respondeu-lhe o Salvador do mundo, até que
eu volte aqui e te diga: Repousa! Desde esse tempo, Aaswerus não
pára de fazer a volta ao mundo; e todos os anos, em meados da Páscoa,
ele volta para onde foi sua casa maldita para ver se ali reencontra Jesus.
Ele anda, anda, chega quebrado, ofegante, prestes a cair morto de cansaço;
chega e não encontra ninguém. Ele eleva os olhos e vê
no céu sempre implacável uma mão que lhe mostra o Ocidente!
Anda! grita-lhe uma voz que parece ser um eterno eco da sua, no dia do crime,
e o velho Aaswerus curva a cabeça; o soluço de salvação
que cresce em seu coração recai silencioso e sem lágrimas;
ele recomeça sua viagem eterna. Na época em que os cruzados
tomaram Jerusalém, o Judeu Errante tinha ouvido dizer que Cristo
havia retomado à montanha santa; ele só encontrou ali um padre
cercado de soldados. - Um judeu! um judeu! gritaram alguns homens com mãos
sangrentas... Anda! Anda! disseram os soldados batendo no velho com seus
bastões e o aguilhoando com a ponta de suas lanças. Aaswerus
meneou a cabeça e voltou a caminhar, em meio às maldições
da multidão. - Ai de mim! murmurou ele, a cruz ainda não me
pode absolver, visto que ela não ensinou ainda o perdão a
seus defensores. Os homens só a adoram como um instrumento de suplício
e uma lembrança de vingança! Insensatos, querem vingar aquele
que os salvava perdoando, e não sentem que se condenam eles mesmos
ao destruírem o perdão do Homem-Deus! Eles não sabem
que a perseguição exercida pelos cristãos é
a negação dos mártires e a reabilitação
de seus algozes. Também, quando Aaswerus reencontrou depois os judeus
perseguidos pelos cristãos, ele os incitava a morrer ao invés
de abjurar as crenças de seus pais, e ele próprio, com seu
bastão secular na mão, a barba e os cabelos eriçados
ao vento, os conduzia de exílio em exílio... E no entanto,
melhor que ninguém, ele compreendia que Jesus é o filho único
de Deus! Mais tarde ele viu caírem as cruzes e se levantarem os cadafalsos,
ouviu falar da santa guilhotina e não ficou surpreendido; os inquisidores
não haviam ainda inaugurado as festas da morte em nome da Cruz santa?
O culto era o mesmo e só o altar estava mudado. Falava-se então
também de humanidade, de progresso; era justo: o machado é
mais diligente e menos cruel que o pelourinho sangrento do Gólgota.
Ele viu em seguida recomeçarem as solenidades do bezerro de ouro;
há muito tempo sabia como terminavam tais orgias, e quando lhe perguntam:
Que faz a esta hora o filho do carpinteiro? - ele responde, meneando a cabeça:
Um ataúde! Porque ele sente que o tempo está próximo
e seu andar parece tornar-se mais lento; olha por sua vez o século
que passa e os acontecimentos que se precipitam. No dia em que o sucessor
de Pedro caiu por se ter apoiado num cetro, e saiu da cidade eterna por
sua vez amaldiçoado e exilado, Aaswerus entrou no Vaticano deserto,
e, com o cotovelo apoiado na cadeira vazia dos papas, deixou a cabeça
cair sobre sua mão, parecendo cochilar por um instante. Reviu em
sonho o campo de Jerusalém revestido de sua fertilidade primeira:
a vinha com gigantescas uvas da Terra prometida, as oliveiras carregadas
de frutos cobriam as colinas e os vales estavam cheios de loendros e de
roseiras em flor. A montanha de Mória estava coberta de um povo inumerável,
formado por deputados de todos os povos da terra, e no cimo do monte sagrado
elevava-se um imenso altar. No meio do altar, subia até as nuvens
um gigantesco candelabro de ouro, encimado por um sol radioso, e no meio
desse sol aparecia, branca e transparente, a divina hóstia do sacrifício
do amor, a síntese do trigo, o símbolo da unidade divina e
humana, o pão da união social e da comunhão universal.
Em frente ao altar, um velho estava em pé, segurando numa das mãos
um pão branco e leve, como o da alfaia, e na outra um cálice.
Uma música celeste se fez ouvir e da fronte de todas as falanges
elevaram-se nuvens de incenso. Muitos homens, vestidos com hábitos
esplêndidos, trouxeram um quadro que cobriram com um pano branco.
Um desses homens usava a roupa dos soberanos pontífices da lei cristã,
um outro, a do chefe dos iman, um terceiro estava vestido como os grandes
sacerdotes da lei judaica, um quarto portava os ornamentos do grande Lama
e todos os quatro agiam e oravam combinados e pareciam amar-se como irmãos.
Era o dia em que Cristo saiu outra vez do túmulo e já mais
de duas mil vezes o mundo havia celebrado o aniversário, mas nenhum
fora tão esplêndido como aquele. A música cessou; o
silêncio se fez na multidão e todos os olhos se voltaram em
direção ao Ocidente. Então, viu-se aparecer um outro
velho cujos cabelos e a barba cobriam-lhe o peito e os ombros; ele jogou
seu bastão de viagem, endireitou-se com um grande suspiro e se deixou
vestir com uma túnica branca, levantando em direção
ao céu os olhos cheios de lágrimas. Ele olhou a hóstia
e exclamou chorando: É ele! Olhou o sacerdote que, escolhido pelo
sufrágio de todos, fazia nesse dia o ofício de pontífice
universal, e repetiu: É ele! Olhou a multidão silenciosa e
recolhida, e estendeu os braços em ação de graças,
dizendo ainda: É ele! é ele vivo em tudo, é ele só
em todo lugar e sempre! Então o sacerdote do povo desceu do altar,
uma cadeira foi colocada diante da Mesa santa sobre a qual depositou-se
a hóstia e o cálice, e o pastor disse, dirigindo-se ao velho:
Repousa, Aaswerus! Em seguida os pontífices de todos os cultos passados
vieram, após o sacrificador da associação universal,
dar o beijo de paz na barba branca do maldito reconciliado. Depois, todos,
em pé ao redor da mesa, comungaram com ele. Aaswerus então
sentiu-se viver uma vida nova, pareceu-lhe que era o próprio Cristo
e que, dividindo ele mesmo os pães que se multiplicariam sobre a
Mesa santa, ele os distribuiria à multidão. Assim acabou o
sonho do Judeu Errante; um barulho de armas e de gritos de angústia
o acordou: eram os salteadores das nações que dividiam entre
si a cidade santa. Ele saiu do palácio dos papas que oscilava sobre
os túmulos entreabertos e voltou a caminhar para continuar a volta
ao mundo que, talvez brevemente, ele não mais recomeçará.
Não o lastimeis, vós todos que o encontrareis curvado, ofegante
e poeirento; ele é mais feliz que todos os grandes políticos
de nosso século e que os últimos reis desse mundo; ele sabe
para onde vai.
VIGÉSIMA LENDA
O reino do Messias. Quando o espírito de inteligência se espalhar
sobre a terra, virá um tempo em que o espírito do Evangelho
será a luz das nações. Compreender-se-á que
o princípio do poder é a soberana razão, como está
dito no início, por tanto tempo mal compreendido, do Evangelho segundo
São João. Então Cristo renascerá todos os dias,
não mais simbolicamente nos altares, mas realmente e corporalmente
em toda a superfície da Terra. Ele não disse que o menor entre
nós é ele? Assim, então, o nascimento de cada criança
será um Natal, e todos os homens respeitarão o Salvador uns
nos outros. Cristo não mais será apenas pobre, faminto, proscrito,
sem mulher e sem filhos, perseguido e crucificado; será rico como
Jó após sua provação, estará na abundância
de todas as coisas, será esposo, será pai, reinará
e perdoará soberanamente aqueles que o tiverem perseguido. Porque,
um dia, todas as nações serão apenas uma nação,
todos os tronos serão submetidos a um só trono e sobre esse
trono sentar-se-á um justo que terá o espírito de Jesus
Cristo e que será assim o próprio Jesus Cristo, como nós
todos podemos ser ele quando ele está em nós. Esse rei reconciliará
o Oriente com o Ocidente e o Norte com o Sul. Ele dará aos povos
a verdadeira liberdade porque tornará inabaláveis as bases
da justiça. Reprimindo a libertinagem ele suprimirá a miséria.
Todos terão o direito e os meios de fazer o bem; ninguém terá
o direito de se embrutecer e de ser vicioso. A penalidade será substituída
pela higiene moral, os culpados serão vistos como doentes e submetidos
ao tratamento dos alienados. A grande expiação da Cruz é
suficiente para todas as ofensas humanas e suprimirá um dia o cadafalso,
execrável desde que inútil. Não mais se permitirá
a existência real do erro, porque somente a verdade existe e a mentira
é fugidia como o sonho. Não haverá, pois, mais do que
uma religião no mundo e o pontífice universal declarará,
do alto da suprema autoridade, que os judeus, os maometanos, os budistas,
etc., são cristãos mal instruídos, dos quais ele é
chefe e pai. Ele os abençoará e os convocará ao grande
concílio das nações. Ele lhes abrirá o tesouro
inesgotável das indulgências e das preces e dará realmente
e em verdade sua benção à cidade e ao mundo. Será
então a época da volta do filho pródigo; ele não
tem mais nada, mas seu irmão lhe emprestará e ele trabalhará
para reconquistar sua riqueza. Será a hora em que as virgens loucas,
tendo enfim o óleo em suas lâmpadas, voltarão a bater
na porta, e se o esposo se recusar a abrir, as virgens sábias lhes
estenderão a mão e as farão entrar pela janela; porque
a última palavra do cristianismo é solidariedade, reversibilidade,
caridade universal; e em verdade vos digo que não há um santo
no céu que não esteja pronto a descer ao inferno para livrar
dele as pobres almas, mesmo que seja preciso lá ficar só,
em lugar delas, e fechar para sempre as portas sobre ele. Concebeis um céu
sobreposto a um inferno? Um banquete eterno em frente a uma eterna fogueira,
uma casa de paz e de preces sobre um porão cheio de soluços
e de torturas? Um sonho apenas deve preencher o sono eterno de cada justo:
a libertação de um condenado; e se este sonho fosse sem esperança,
tornar-se-ia um pesadelo mais terrível que os próprios suplícios
do inferno. É dessa forma que os gnósticos, isto é,
aqueles que sabiam, em outros termos, os iniciados do cristianismo primitivo,
interpretavam os oráculos dados pelo espírito de Jesus Cristo;
eles foram seguidos pelos discípulos de Orígenes, mas a Igreja
os condenou, e tinha razão em condená-los, porque divulgavam
as doutrinas secretas e profanavam os mistérios do Mestre. Não
se deve, exagerando a esperança do vulgo, suprimir da lei a sua sanção
terrível, e o dogma da eternidade do inferno só exprime, afinal,
o divórcio eterno entre o bem e o mal. Os apócrifos são
o lado revolucionário do espírito de Jesus; seu lado hierárquico,
edificante e constituinte, pertence de direito à Igreja docente,
da qual não nos cabe usurpar as funções. Em continuação
a essas lendas tão singelamente orientais, poderíamos apresentar
as narrações, evidentemente simbólicas, da lenda dourada,
os atos apócrifos dos apóstolos, a história do gigante
Cristóforo dobrado em dois sob o peso misterioso de um menino, o
martírio de santa Fé, de santa Esperança e de santa
Caridade, e tantas outras inspiradas pelo mesmo espírito e todas
brilhantes, com as mesmas cores maravilhosas. Um sopro de inspiração
nova passara sobre o mundo e esse sopro era o de Jesus Cristo. O que distingue
os evangelhos apócrifos dos evangelhos canônicos é,
talvez, a maior audácia nas suas ficções e a menor
prudência na indicação das tendências revolucionárias
e radicais; mas está em toda parte o mesmo gênio emancipador
do pobre, protetor do fraco, a mesma ternura maternal pelos órfãos
da sociedade, a mesma fé, humana porque é divina e divina
porque é humana. As histórias maravilhosas variam porque a
forma da parábola é arbitrária. É somente o
espírito que vivifica. Essas histórias, aliás, são
essencialmente judaicas e podemos compará-las com os apólogos
do Talmude; podemos acusá-las de misticismo e idealismo exagerados;
mas que sonhos magníficos, quando os tomamos somente por sonhos!
São fotografias de aspirações coletivas; são
as parábolas póstumas de Jesus inteiramente reavivadas em
seus discípulos; são os oráculos, não são
mesas giratórias, mas mesas eucarísticas, e eis como os espíritos
divinos falam após sua morte, se é que podem morrer. Mas não,
os grandes pensamentos não morrem e não têm necessidade,
para serem transmitidos, de bater contra as paredes. Eles movem as almas
e não os móveis, eles batem nos corações e não
nas pedras ou nas tábuas; eles são como árvores que
lançam a semente e reproduzem florestas. Em vão, querse escravizá-los
e circunscrevê-los; eles têm uma energia que faz rebentar as
barreiras e que destrói as prisões; correm como o incêndio
em madeira morta. Não mais procureis Jesus no túmulo onde
os padres o haviam colocado; ele ressuscitou; ele não está
mais aqui, não procureis o vivo entre os mortos! O que querem de
nós pois essas larvas e esses vampiros que, nos círculos de
pretensos espíritos, procuram diminuir o Homem-Deus! Que faremos
de um Jesus sem divindade e sem milagres? Não são seus maiores
milagres aqueles de seu espírito? Quereis escrever sua história?
Escrevei a história do mundo transfigurada por seu gênio. Sua
vida é sua doutrina e sua doutrina ainda vive. Eu vos dou um Jesus
de mármore, disse Renan. E daí! O que temos a ver com teu
mármore? temos um Jesus de espírito e de carne, seu espírito
está em todo lugar. Sua carne palpita no peito inocente de nossos
filhos, seu sangue aquece e rejuvenesce o coração de nossos
velhos. Filósofo de mármore, guarda tua estátua sem
alma e deixa-nos nosso Homem-Deus! Alfredo de Vigny escreveu que a lenda
é, muitas vezes, mais verdadeira que a história, porque a
lenda conta, não os atos freqüentemente incompletos e abortados,
mas o próprio gênio dos grandes homens e das nações.
É sobretudo ao Evangelho que se deve referir esse belo pensamento.
O Evangelho não é simplesmente a narração do
que aconteceu, é a revelação sublime do que é
e do que será sempre. Sempre o Salvador do mundo será adorado
pelos reis da inteligência, representados pelos magos; sempre multiplicará
o pão eucarístico para nutrir e consolar as almas; sempre,
quando o invocarmos na noite e nas tempestades, ele virá a nós
caminhando sobre as ondas, ele nos estenderá a mão e nos salvará
ao fazer-nos passar sobre as ondas; sempre curará nossas apatias
e devolverá a luz a nossos olhos; sempre aparecerá a seus
crentes luminoso e transfigurado sobre o thabor, explicando a lei de Moisés
e regulando o zelo de Elias. Os milagres do Eterno são eternos. Admitir
o simbolismo das maravilhas do Evangelho é ampliar a luz, é
proclamar a sua universalidade e duração. Não, esses
acontecimentos não constituem passado, tal como nos dizem; eles jamais
passarão, eles ficam eternamente. As coisas que passam são
acidentes que passam, as coisas que o gênio divino revela pelo simbolismo
são imutáveis verdades. Lede os Padres dos primeiros séculos,
passai as grandes épocas do cristianismo, escutai Santo Agostinho
aspirando ao infinito e São Jerônimo sonhando com o céu,
sob o barulho do império romano que desaba; escutai clamar a eloqüência
de São João Crisóstomo e de Santo Ambrósio,
em seguida descei às divagações espirituais de Home
ou às elocubrações panteísticas de Allan Kardec;
vós sorrireis de piedade e de desgosto. E então, a morte seria
uma amarga decepção! As realidades da outra vida seriam a
irrisão de nossas aspirações nesta vida! O verdadeiro
paraíso seria menos resplandecente que o de Dante e o verdadeiro
inferno menos terrível que seu inferno! Ora, os espíritos
desencarnados passeariam como os de Swedenborg, com chapéus na cabeça,
e viriam importunar os vivos para lhes fazer escrever misérias! Mas
então não vedes que o inferno da Idade Média com seus
horrores surpreendentes seria preferível a esta ridícula decadência
das almas! Que Deus me torture, se é que existe um deus capaz de
me torturar, mas que ele não me torne idiota. Amaria mais o diabo
e seus chifres do que as casas de Victorien Sardou construídas em
claves de sol e em traços de letras finas e mal feitas, e que essas
flores ideais abertas sob o lápis dos Médiuns e que parecem
pústulas de lepra vistas ao microscópio. Despertai, pobres
espíritos, não sentis pois que estais tendo um pesadelo?