O
Julgamento
ELIPHAS LÉVI
O julgamento
de Jesus. Não repetiremos aqui os fatos narrados pelos quatro evangelistas
pois eles são conhecidos de todo o mundo. O grande drama da paixão
é, há dezoito séculos e meio, o julgamento escrito
dos sacerdotes e reis, a condenação sangrenta das leis do
velho mundo e o protesto imortal dos condenados contra uma sociedade deicida.
Somente um dos evangelhos apócrifos ou secretos, o de Nicodemos,
acrescenta à narração dos quatro algumas circunstâncias
muito notáveis; são elas: Quando Pilatos fez Jesus entrar
no pretório para interrogá-lo, as águias de Roma e
as imagens dos deuses que portavam os estandartes inclinaram-se diante do
rei
do futuro. Os judeus irritados exclamavam: César foi traído.
Eis que são rendidas a este homem as honras do império. O
próprio Pilatos ficou pasmado e perguntou aos vexilários o
que significava aquilo que acabava de acontecer: eles protestaram dizendo
que o faziam contra sua vontade e que não podiam evitá-lo.
Pilatos fez vir os homens mais robustos do pretório e os mais hostis
a Jesus (pois foram esses que, uma hora depois, flagelaram-no e o coroaram
de espinhos); em seguida confiou-lhes as insígnias recomendando que
as mantivessem firmemente; e os simulacros divinos inclinaram-se uma segunda
vez diante de Jesus à vista de todo mundo e ficou provado que a força
dos homens nada pode contra a mudança das idéias e que os
signos religiosos mais protegidos pelo poder caem por si mesmos e se inclinam
diante dos símbolos proscritos que o progresso revela, protestando
contra o julgamento dos homens e simpatizando com a agonia dos mártires.
Jesus foi, pois, interrogado em segredo por Pilatos, em seguida foi conduzido
até os judeus, e seus acusadores foram ouvidos; eram, como se sabe,
os príncipes dos sacerdotes, os anciões do povo, os fariseus,
os escribas e os doutores, isto é, tudo o que havia de considerável
e de respeitado na nação judaica.
Pilatos perguntou se ele não tinha também algumas testemunhas
que o absolvessem. Fez-se, de início, um grande silêncio porque
os raros amigos de Jesus tiveram medo. Finalmente Zaqueu, o publicano, levantou
timidamente a voz para dizer que Jesus bebera e comera em sua casa, e depois
lhe tocara o coração pela sabedoria de seus discursos. Os
risos e as algazarras da multidão não o deixaram completar,
porque os publicamos eram vistos como homens infames, e os fariseus fizeram
valer o testemunho de Zaqueu como uma prova a mais contra Jesus. Depois
de Zaqueu, foi uma mulher toda chorosa que se lançou aos pés
do procônsul; não deixaram que ela proferisse nem mesmo uma
só palavra; um grito de reprovação elevou-se de toda
a multidão: É Madalena, a prostituta, é esta que derrama
aos pés desse vagabundo os perfumes preciosos que ela paga com sua
pessoa; ela é digna dele e ele não é indigno dela!
Excomunhão para os infames! Entretanto, o cego de Jericó acabava
de atravessar a multidão e gritava, estendendo as mãos para
se fazer escutar: Nasci cego e Jesus me devolveu a visão! - É
um imbecil! gritaram os padres; não o escutem, ele não merece
crédito: nós o expulsamos da Sinagoga. - Estava morto e ele
me ressuscitou, disse então um homem de Betânia chamado Lázaro.
Pilatos e os romanos começaram a rir: os judeus saduceus soltaram
gritos selvagens; e Lázaro foi expulso pelos lictores. Então
uma senhora rica e considerada adiantou-se e disse: Sou viúva, meu
nome é Seraphia; afligia-me um fluxo de sangue que me fazia morrer
aos poucos.
Um dia Jesus estava passando, acompanhado de uma multidão de pobres
que ele instruía, de mulheres do povo que consolava e de doentes
que havia curado. Aproximei-me dele sem nada dizer e apenas toquei na franja
de sua roupa: então fui tomada de veneração e de susto,
porque me senti curada. A essas palavras os judeus começaram a murmurar;
todavia continham seus clamores porque Seraphia era rica e respeitada. Pilatos
então tomou a palavra e disse: Façam retirar esta senhora,
ela não pode ser admitida como testemunha neste processo, porque,
segundo vossas leis, que são as de todo o Oriente, o testemunho de
uma mulher é nulo em justiça. Depois de Seraphia, ninguém
ousou levantar a voz a favor de Jesus; os que eram considerados pessoas
honestas acusavam-no e ele só tinha em sua defesa pessoas sem reconhecimento,
pessoas suspeitas de lepra ou de devassidão, pessoas da população
e mulheres.
Ele foi, pois,
condenado e não se encontraram expressões para resumir seus
crimes; escreveram por escárnio. É o rei dos judeus. Seraphia,
que foi depois chamada Verônica, vendo que seu testemunho não
podia salvar seu Salvador, foi chorando esperá-lo no caminho quando
ele saía da cidade carregando sua cruz, e apesar dos gritos dos algozes
e das pancadas dos soldados, ela se aproximou dele e lhe enxugou o rosto
com uma toalha fina, que guardou a marca de sangue dos traços de
Jesus. E os mártires dos primeiros séculos não tinham
outra imagem de seu mestre que não os traços de sangue que
marcavam o lugar dos traços de Jesus sobre a toalha de Seraphia.