As associações
e comunidades cristãs primitivas
primeiro século
No campo da religião é bem verdade que os cultos estatais
e instituições nacionais do Império estavam quase sem
exceção num estado lamentável, e deve ser notado que
Apolônio devotou muito tempo e trabalho para os reviver e purificar.
De fato, a força havia há muito se esvaído das instituições
religiosas gerais do estado, onde tudo era agora perfunctório; mas
longe isto de não haver uma vida religiosa na região, pois
na medida em que os cultos oficiais e instituições ancestrais
já não satisfaziam às suas necessidades religiosas,
mais diligentemente o povo se devotava aos cultos privados, e avidamente
se fazia batizar em todo aquele afluxo de entusiasmo religioso que derivava
cada vez com maior força do oriente. Sem dúvida em toda essa
fermentação houve muitos excessos, e mesmo abusos penosos,
de acordo como nossa atual concepção de decoro religioso;
mas ao mesmo tempo muitos encontravam nisto a devida satisfação
para sua emoção religiosa, e, se excetuarmos aqueles cultos
que eram nitidamente viciosos, temos em grande medida diante de nós
o espetáculo, em círculos populares, do que, em última
análise, são fenômenos similares aos entusiasmos que
em nossos dias podemos encontrar freqüentemente em seitas como os Shakers
e Ranters [seitas inglesas surgidas no século XIX, caracterizadas
por sua pregação veemente, seus cultos onde havia grande agitação
místico-física, e seus preceitos de pureza e sobriedade de
vida - NT], e nas assembléias de revivescência religiosa das
pessoas simples.
Não se deve pensar, contudo, que os cultos privados e os atos das
associações religiosas fossem todos desta natureza ou confinados
a esta classe; longe disto. Havia irmandades, comunidades e clubes religiosos
- thiasi, erani, e orgeônes - de todos os tipos e condições.
Havia também sociedades de benefício mútuo, grêmios
para funerais, e companhias onde havia refeições grupais,
os protótipos de nossos atuais Maçons, Oddfellows, e etc.
Estas associações religiosas não eram só privadas
no sentido de que não eram mantidas pelo Estado, mas também
em sua maior parte eram privadas no sentido de que o que faziam permanecia
secreto, e talvez esta seja a razão principal para que delas tenhamos
registros tão falhos.
Entre elas devem ser enumeradas não somente as formas inferiores
dos cultos de mistérios de vários tipos, mas também
as maiores, como os Mistérios Frígios, Báquicos, Isíacos
e Mitraicos, que estavam espalhados por todo o Império. Os famosos
Mistérios de Elêusis, entretanto, estavam sob a égide
do Estado, mas ainda que fossem tão famosos, como cultos estatais,
eram muito mais perfunctórios.
Além disso, não deve ser pensado que os grandes tipos de cultos
de mistérios acima mencionados fossem uniformes mesmo entre eles
mesmos. Não havia somente vários degraus e graus dentro deles,
mas também com toda a probabilidade havia muitas formas em cada linha
de tradição, boas, más e indiferentes. Por exemplo,
sabemos que era considerado obrigatório para todo cidadão
respeitável de Atenas ser iniciado nos Eleusinia, e por isso os testes
não poderiam ser muito exigentes; enquanto que no trabalho mais recente
sobre o assunto, De Apuleio Isiacorum Mysterirorum Teste (Sobre o Teste
de Apuleio nos Mistérios de Ísis - Leyden, 1900), o Dr. K.H.E.
De Jong demonstra que numa forma dos Mistérios de Ísis o candidato
era convidado à iniciação através de um sonho;
isto é, ele devia ser psiquicamente impressionável antes que
fosse aceito.
Aqui, então, temos um vasto terreno intermediário para o exercício
religioso entre as formas mais populares e indisciplinadas de culto e as
formas mais altas, que poderiam ser abordadas somente através da
disciplina e treinamento da vida filosófica. O lado superior destas
instituições de mistérios despertou o entusiasmo de
todos os melhores na antigüidade, e aplauso irrestrito foi dado a uma
ou outra de suas formas pelos maiores pensadores e escritores da Grécia
e Roma; de modo que não podemos senão pensar que aqui o instruído
encontrava aquela satisfação para suas necessidades religiosas
que era necessária não só para os que não poderiam
se elevar ao ar rarefeito da razão pura, mas também para aqueles
que já haviam subido tão alto aos píncaros da razão
que poderiam captar um vislumbre do outro lado. Os cultos oficiais eram
notoriamente incapazes de lhes dar esta satisfação, e eram
tolerados pelos ilustrados apenas como um auxílio para o povo e um
meio de preservar a vida tradicional da cidade ou estado.
Era pensamento geral que as pessoas mais virtuosas da Grécia fossem
membros das escolas Pitagóricas, tanto homens quanto mulheres. Após
a morte de seu fundador, os Pitagóricos parecem ter gradualmente
se misturados às comunidades Órficas e a "vida Órfica"
era o termo reservado para uma vida de pureza e auto-negação.
Sabemos igualmente que os Órficos, e portanto os Pitagóricos,
estavam ativamente engajados na reforma, ou mesmo na reformulação
completa, dos ritos Baco-Eleusinos; eles parecem ter recuperado o lado puro
do culto Báquico com a reinstituição ou reimportação
dos Mistérios Báquicos, e é muito evidente que tais
ascetas e profundos pensadores não poderiam ter-se contentado com
uma forma inferior de culto. Sua influência também se espalhou
amplamente nos círculos Báquicos em geral, de modo que vemos
Eurípides colocando as seguintes palavras na boca do coro dos iniciados
Báquicos: "Envolto em vestes brancas eu fujo da raça
dos mortais, e jamais me aproximarei do vaso da morte novamente, pois eu
criei com alimento aquela alma sempre habitada" (de um fragmento de
Os Cretenses. Vide Aglaophamus, de Lobeck, p. 622). Tais palavras poderiam
bem ser colocadas na boca de um asceta Brâmane ou Budista, ávido
por escapar dos laços de Samsâra [a roda dos eternos nascimentos
e mortes - NT]; e tais homens não poderiam com justiça ser
classificados indiscriminadamente junto com álacres dissolutos -
a concepção comum de uma companhia Báquica.
Mas, alguém poderia dizer, Eurípides e os Pitagóricos
e os Órficos não constituem evidência para o primeiro
século; qualquer bem que tenha havido em tais escolas e comunidades,
tinha terminado há muito. Ao contrário, a evidência
é toda contra esta objeção. Filo, escrevendo em torno
de 25 d.C., nos fala que em seus dias numerosos grupos de homens, que em
todos os aspectos levava esta vida de religião, que haviam abandonado
suas propriedades, se retirado do mundo e devotado-se completamente à
procura da sabedoria e ao cultivo da virtude, estavam largamente espalhados
por todo o mundo. Em seu tratado Sobre a Vida Contemplativa, ele escreve:
"Esta classe natural de homens é encontrada em muitas partes
do mundo habitado, tanto grego como não-grego, comungando no bem
perfeito. No Egito há multidões deles em cada província,
ou nomo, como eles chamam, e especialmente em torno de Alexandria".
Esta é uma declaração importantíssima, pois
se havia tantos devotados à vida religiosa em seu tempo, segue-se
que a época não era de pura depravação.
Não se deve pensar, contudo, que estas comunidades fossem todas de
natureza exatamente similar, ou de uma e mesma origem, a menos que fossem
todos Terapeutas ou Essênios. Temos só que lembrar das várias
linhas de descendência das doutrinas mantidas por inumeráveis
escolas classificadas em bloco como Gnósticas, como esbocei em meu
último trabalho, Fragments of a Faith Forgotten (Fragmentos de uma
Fé Esquecida), e então voltarmo-nos aos belos tratados das
escolas Herméticas, para nos persuadirmos que no primeiro século
a procura pela vida religiosa e filosófica era largamente disseminada
e multiforme.
Não estamos, porém, entre aqueles que acreditam que a origem
das comunidades dos Terapeutas de Filo, e dos Essênios de Filo e Josefo,
deva ser derivada da influência Órfica ou Pitagórica.
A questão da origem precisa ainda está além do poder
da pesquisa histórica, e não somos daqueles que amplificam
um elemento da massa até que se torne uma fonte universal. Mas quando
lembramos da existência de todas estas comunidades tão amplamente
disseminadas no primeiro século, quando estudamos os registros imperfeitos
mas importantes das mui numerosas escolas e irmandades de natureza semelhante
que passaram a contatar intimamente com o Cristianismo em suas origens,
não podemos senão sentir que havia o fermento de uma forte
vida religiosa agindo em muitas partes do Império.
Nossa grande dificuldade é que estas comunidades, irmandades e associações
se mantiveram à parte, e com raras exceções não
deixaram registros de suas práticas e crenças íntimas,
ou se deixaram algum, foi destruído ou se perdeu. Para a maior parte
temos então que nos fiar em indicações gerais de caráter
muito superficial. Mas este registro imperfeito não é escusa
para negarmos ou ignoramos sua existência e a intensidade de suas
práticas; e uma história que se propõe a formar uma
imagem da época é inteiramente insuficiente na medida em que
omitir de sua perspectiva este assunto tão vital.
Apolônio circulou neste ambiente; mas quão pouco seu biógrafo
parece ter-se apercebido do fato! Filóstrato tem uma apreciação
retórica de uma vida filosófica palaciana, mas nenhum sentimento
para a vida religiosa. É só indiretamente que A Vida de Apolônio,
como agora é descrita, pode jogar alguma luz sobre estas interessantíssimas
comunidades, mas mesmo um clarão ocasional é precioso onde
tudo está em tamanha obscuridade. Fosse possível apenas entrar
na memória viva de Apolônio e ver com seus olhos as coisas
que viu quando viveu dezenove séculos atrás, quão inestimável
página da história poderia ser recuperada! Ele não
só percorreu todos os países onde a nova fé estava
assentando raízes, mas viveu durante anos na maioria deles, e estava
intimamente relacionado com diversas comunidades místicas do Egito,
Arábia e Síria. Certamente ele deve ter visitado também
algumas das primeiras comunidades Cristãs, deve ter palestrado até
mesmo com alguns dos "discípulos do Senhor"! Mas nenhuma
palavra é dita sobre isso, nem obtemos sequer um simples fragmento
de informação sobre estes pontos do que foi registrado sobre
ele. Certamente ele deve ter-se encontrado com Paulo, se não em outro
lugar, pelo menos em Roma, em 66, cidade que ele teve de deixar por causa
do edito de banimento contra os filósofos, no mesmo ano em que segundo
alguns Paulo foi decapitado!