A IMPORTÂNCIA DA ORAÇÃO
PARA APOLONIO DE TIANA
Apolônio
acreditava na oração, mas quão diferentemente da vulgar!
Para ele a idéia de que os Deuses pudessem ser desviados da senda
da estrita justiça pelas súplicas dos homens era uma blasfêmia;
que os Deuses pudessem se tornar partidários de nossas esperanças
e temores egoístas, para nosso filósofo era algo impensável.
Só sabia de uma coisa: que os Deuses eram os ministros do direito
e os rígidos administradores do justo merecimento. A crença
comum, que persiste até em nossos dias, de que Deus pode ser desviado
de Seu propósito, de que pactos poderiam ser feitos com Ele ou Seus
ministros, era inteiramente desprezível para Apolônio. Seres
com quem pactos podiam ser feitos, que podiam ser influenciados e obrigados,
não seriam Deuses, mas menos que homens. Assim encontramos Apolônio
jovem conversando com um dos sacerdotes de Esculápio nos seguintes
termos:
"Já que os Deuses conhecem todas as coisas, imagino que alguém
que entre no templo com uma consciência correta em si rezaria assim:
'Dai-me, oh Deuses, o que me cabe!' " (i, II)
E assim também ele rezou, em sua longa jornada à Índia,
na Babilônia: "Deus do Sol, envia-me sobre a Terra até
onde for bom para Ti e para mim; e que eu possa conhecer o bem, e jamais
conhecer o mal ou ser conhecido por ele" (i, 31).
Uma de suas preces mais comuns era, segundo Damis, assim: "Concedei,
oh Deuses, que eu tenha pouco e não precise de nada" (i, 34).
"Quando entrais nos templos, pelo que rezais?", perguntou para
nosso filósofo o Pontífice Máximo Telesino. "Eu
rezo", disse Apolônio, "para que a retidão possa
imperar, para que as leis permaneçam intactas, para que o sábio
seja pobre e os outros, ricos, mas honestamente" (iv 40).
A fé de nosso filósofo no grande ideal de nada ter e ainda
assim possuir todas as coisas, é exemplificada em sua réplica
ao oficial que demandava como ele pretendia entrar nos domínios da
Babilônia sem permissão. "Toda a Terra", disse Apolônio,
"é minha, e me é dado que eu a percorra" (i, 21).
Há muitos exemplos de somas de dinheiro sendo oferecidas a Apolônio
por seus serviços, mas ele invariavelmente as recusava; e não
só isso, mas seus seguidores também recusavam todos os presentes.
Quando o Rei Vardan, com verdadeira generosidade oriental, ofereceu-lhe
presentes, foram devolvidos; e nisto disse Apolônio: "Vêde,
minhas mãos, ainda que muitas, são todas parecidas".
E quando o rei perguntou a Apolônio qual presente ele traria para
ele da Índia, nosso filósofo replicou: "Um presente que
vos agradará, Sire. Pois se minha estada lá me tornar mais
sábio, voltarei a vós melhor do que sou agora" (i, 41).
Quando estavam cruzando as grandes montanhas em direção à
Índia, diz-se que teve lugar uma conversa entre Apolônio e
Damis, a qual nos fornece um bom exemplo de como nosso filósofo sempre
usava os incidentes do dia para inculcar as mais elevadas lições
de vida. A questão dizia respeito a "embaixo" e "em
cima". "Ontem", diz Damis, "estávamos embaixo
no vale; hoje estamos em cima, alto nas montanhas, não muito distantes
do céu". "Então isto é o que tu queres dizer
por 'embaixo' e 'em cima' ", disse Apolônio gentilmente. "Mas
é claro!", replicou Damis impaciente, "se penso claramente;
que necessidade temos de tais questões inúteis?". "E
adquiriste um conhecimento maior da natureza divina estando mais perto do
céu sobre o topo das montanhas?", continuou seu mestre, "Pensas
que os que observam o céu das alturas montanhosas estão algo
mais perto do entendimento das coisas?". "Para falar a verdade",
disse Damis, um tanto desconcertado, "eu pensei mesmo que desceria
mais sábio, pois estive numa montanha mais alto do que qualquer outro
homem, mas temo não saber mais do que antes de subir nela".
"Tampouco os outros homens saberão", replicou Apolônio;
"tais observações os fazem ver o céu mais azul,
as estrelas maiores, e o sol a nascer da noite, coisas sabidas por aqueles
que conduzem as ovelhas e cabras; mas como Deus realmente se interessa pelo
gênero humano, e como Ele tem vero prazer em seu serviço, o
qual é a virtude, a retidão e o senso-comum, eis que nem [o
monte] Athos o revelará àqueles que escalam seu cume, nem
o Olimpo, que suscita a admiração do poeta, a não ser
que a alma o perceba; pois quando a alma, pura e sem mistura, ascender a
estas altitudes, juro-te, ela voará muito, muito mais alto do que
este Cáucaso altaneiro" (ii, 6).
Novamente, quando em Termópilas, seus seguidores estavam disputando
sobre qual seria o local mais alto da Grécia, estando então
o Monte Eta em vista. Acontecia de eles estarem bem ao pé da colina
onde os espartanos foram derrotados crivados de flechas. Subindo ao cume,
Apolônio exclamou: "E eu acho que este é o ponto mais
alto, pois aqueles que aqui tombaram por amor à liberdade fizeram-no
tão alto como o Eta, e o elevaram muito acima de mil Olimpos"
(iv, 23).
Um outro exemplo de como Apolônio transformava acontecimentos casuais
em boas ilustrações é o seguinte: Certa vez em Éfeso,
em uma das estradas pavimentadas perto da cidade, ele estava falando sobre
dividirmos nossos bens com os outros, e como deveríamos naturalmente
ajudar uns aos outros. Ocorria que um grupo de pardais estava pousado numa
árvore próxima em perfeito silêncio. Subitamente um
outro pardal chegou voando e começou a chilrear, como se quisesse
dizer aos outros qualquer coisa. Imediatamente todo o bando começou
a pipilar também, e voaram todos atrás do recém-chegado.
A supersticiosa audiência de Apolônio ficou muito impressionada
pelo comportamento dos pardais, e viu nisso um augúrio de alguma
coisa importante. Mas o filósofo continuou seu sermão. O pardal,
disse ele, convidou seus amigos para um banquete. Um garoto escorregou em
um campo próximo e esparramou-se algum grão que ele carregava
em uma bolsa; ele recolheu a maior parte e foi-se embora. O pequeno pardal,
calhando de encontrar os grãos que sobraram, imediatamente voou para
convidar seus amigos para o festim.
Então a maior parte da audiência correu para ver se era verdade,
e quando voltaram todos gritando e gesticulando maravilhados, o filósofo
continuou: "Vêde que cuidado os pardais têm uns para com
os outros, e quão felizes ficam em compartilhar seus bens. Mas nós
homens não o aprovamos; antes, se vemos um homem dividindo seus bens
com outros homens, chamamo-lo de esbanjador, extravagante, e de outros nomes,
e acusamos os homens que recebem a partilha de serem aduladores e parasitas.
O que nos resta então senão encerrarmo-nos em casa como aves
de engorda, e empanturrarmos nossos estômagos na escuridão
até que rebentemos de gordura?" (iv, 3).
Em outra ocasião, em Esmirna, Apolônio, vendo um navio ser
carregado, usou a ocasião para ensinar às pessoas a lição
da cooperação. "Olhai a marujada!", ele disse. "Vêde
como alguns aprontaram os botes, alguns subiram as âncoras e as prenderam,
alguns dispuseram as velas para aproveitar o vento, como outros ainda verificaram
a proa e a pôpa. Mas se um único homem falhar em desempenhar
uma só de suas tarefas, ou negligenciar suas atribuições,
sua navegação será ruim, e terão a tempestade
no meio deles. Mas se rivalizarem entre si, tentando equiparar-se cada um
a seus companheiros, tal barco terá céus favoráveis,
e um bom tempo e boa viagem sucederão" (iv, 9).
Novamente, em outra ocasião, em Rodes, Damis perguntou-lhe se ele
conhecia algo maior que o famoso Colosso. "Sim", replicou Apolônio;
"o homem que anda nos honestos sendeiros da sabedoria que nos dá
a saúde" (v, 21).
Também há um número de exemplos de respostas satíricas
ou sarcásticas dadas por nosso filósofo, e de fato, a despeito
de seu temperamento usualmente grave, ele não infreqüentemente
zombava de seus ouvintes, e às vezes, se podemos dizer assim, ironizava
sua estultice (vide especialmente iv, 30).
Mesmo em tempos de grande perigo esta característica se mostrava.
Um bom exemplo é a resposta à delicada pergunta de Tigelino:
"O que pensais de Nero?". "Penso melhor dele do que vós",
redargüiu Apolônio, "pois vós acreditais que ele
deveria cantar, e eu penso que ele deveria manter-se em silêncio"
(iv, 44).
Também sua resposta a um jovem Creso [Creso, rei da Lídia,
ficou famoso por sua enorme riqueza - NT] da época é tão
irônica quanto sábia; "Jovem senhor", disse ele,
"penso que não sois vós que possuís vossa casa,
mas que vossa casa vos possui" (v, 22).
Do mesmo estilo também é a resposta a um glutão que
jactava-se de sua gulodice. Ele copiava Hércules, dizia, que era
famoso tanto pela comida que comia quanto por seus trabalhos.
"Sim", disse Apolônio, "pois ele era Hércules.
Mas vós, que virtude tendes, oh montanha de gordura? A única
coisa que chama a atenção em vós é a possibilidade
de explodirdes" (iv, 23).
Mas voltemos a momentos mais sérios. Em resposta à ardente
súplica de Vespasiano, "ensina-me o que deveria fazer um bom
rei", Apolônio diz-se que respondeu algo nestes termos:
"Vós me pedis o que não pode ser ensinado. Pois a realeza
é a maior coisa ao alcance do mortal; e não é ensinada.
Mas vos direi o que, se fizésseis, faríeis bem. Não
considereis a riqueza que é acumulada - em que ela é superior
à areia reunida casualmente? Nem aquela que provém de pesadas
taxações que oprimem os homens - pois o ouro que vem das lágrimas
é vil e negro. Empregareis melhor do que qualquer rei a riqueza,
se atenderdes às necessidades dos desfavorecidos e garantirdes a
riqueza dos que possuem muito. Temei o poder de fazer o que vos aprouver,
assim o usareis com maior prudência. Não apareis as espigas
que sobressaem dentre as outras - pois Aristóteles não é
justo neste ponto (vide Chassang, op. cit., p. 458, para uma crítica
desta declaração) - mas antes separai sua animosidade como
o joio dentre o grão, e intimidai os agitadores em disputa não
dizendo 'Eu vos puno', mas 'Irei fazê-lo'. Submetei-vos à lei,
oh Príncipe, pois fareis leis mais sábias se vós mesmos
não desprezardes a lei. Sê mais reverente do que nunca aos
Deuses; grandes são as dádivas que recebestes deles, e orai
por grandes coisas (Isto foi antes de Vespasiano tornar-se Imperador). No
que tange ao estado, agi como rei; no que tange a vós mesmos, agi
como um homem comum" (v, 36).
E assim sempre do mesmo modo, dando bom conselho e demonstrando um profundo
conhecimento dos assuntos humanos. E se vamos supor que se trata de mero
exercício retórico de Filóstrato e não é
baseado na substância do que Apolônio disse, então devemos
ter uma opinião melhor do retórico do que o resto de seus
escritos afiança.
Existe um diálogo Socrático extremamente interessante entre
Tespésion, o abade da comunidade Gimosofista, e Apolônio, sobre
os méritos relativos dos modos grego e egípcio de representar
os Deuses. Segue-se algo como assim:
"Mas! Vamos imaginar", disse Tespésion, "que os Fídias
e os Praxíteles foram ao céu e tiveram impressões das
formas dos Deuses, e assim fizeram simulacros deles, ou foi outra coisa
que os fez esculpí-los?"
"Sim, foi outra coisa", disse Apolônio, "algo prenhe
de sabedoria".
"O que foi? Certamente não podeis dizer que foi algo além
de mera imitação!"
"A imaginação os conduziu - um trabalho mais sábio
que a imitação; pois a imitação somente apresenta
o que foi visto, enquanto que a imaginação apresenta o que
jamais foi contemplado, concebendo-o em relação à coisa
que realmente existe".
A imaginação, diz Apolônio, é uma das mais poderosas
faculdades, pois nos habilita a chegar mais perto das realidades. Geralmente
se supõe que a escultura grega era meramente uma glorificação
da beleza física, e bastante desespiritual em si mesma. Era uma idealização
das formas e feições, membros e músculos, uma glorificação
vazia do físico com nada é claro correspondendo a ela realmente
na natureza das coisas. Mas Apolônio declarou que ela traz-nos para
mais perto do real, como Pitágoras e Platão disseram antes
dele, e como todos os sábios ensinaram. Ele queria dizer isto literalmente,
e não vaga e fantasticamente. Ele declarou que os protótipos
e idéias das coisas são as únicas realidades. Ele queria
dizer que entre a imperfeição terrena e o mais excelso arquétipo
divino de todas as coisas existiam graus de crescente perfeição.
Queria dizer que dentro de cada homem existe uma forma da perfeição,
embora é claro que ainda não absolutamente perfeita; que o
anjo no homem, seu daimon, era de uma beleza divinal, o resumo de todos
os mais finos traços que apresentou em suas muitas vidas na Terra.
Os Deuses também pertencem ao mundo dos arquétipos, dos modelos,
das perfeições, o mundo celeste. Os escultores gregos conseguiram
entrar em contato com este mundo, e a faculdade que usaram foi a imaginação.
Esta idealização da forma era um modo digno de representar
os Deuses; "mas", diz Apolônio, "se entronizardes um
falcão ou uma coruja ou um cão em vossos templos, para representar
Apolo ou Atena ou Hermes, podeis dignificar os animais, mas fareis os Deuses
perder dignidade".
A isto Tespésion replicou que os egípcios não pretendiam
dar nenhuma forma específica aos Deuses; eles lhes atribuíam
meramente símbolos aos quais era associado um significado oculto.
"Sim", responde Apolônio, "mas o perigo é que
as pessoas comuns adorem estes símbolos e concebam idéias
deformadas sobre os Deuses. O melhor seria não ter representação
alguma. Pois a mente do adorador pode formar e adequar para si uma imagem
do objeto de sua adoração melhor do que qualquer arte".
"Certamente", contrafez Tespésion, e então acrescentou
maliciosamente: "Havia um velho ateniense por aí - não
tolo - chamado Sócrates, que jurava pelos cães e gansos como
se fossem Deuses".
"Sim", replicou Apolônio, "ele não era tolo.
Ele jurava por eles não como sendo Deuses, mas para evitar de jurar
pelos Deuses" (iv, 19).
Esta é uma encantadora passagem de sagacidade, do egípcio
contra o grego, mas todos estes diálogos podem ser considerados como
sendo os exercícios retóricos de Filóstrato antes do
que de Apolônio, que ensinava "como tendo autoridade", como
se "de uma trípode". Apolônio, o sacerdote da religião
universal, poderia ter apontado o lado bom e o lado ruim tanto da arte religiosa
grega quanto da egípcia, e certamente ensinou o caminho mais elevado
do culto desprovido de símbolos, mas ele não defenderia um
culto popular contra um outro. No diálogo acima há um nítido
preconceito contra o Egito e uma glorificação da Grécia,
e isto ocorre de modo marcante em diversos outros diálogos. Filóstrato
era um campeão da Grécia contra todas as outras terras; mas
Apolônio, cremos, era mais sábio que seu biógrafo.
A despeito da roupagem literária que é posta sobre os discursos
mais longos de Apolônio, eles contêm muitos nobres pensamentos,
como podemos ver pelas seguintes citações das conversas de
nosso filósofo com seu amigo Demétrio, que estava tentando
dissuadí-lo de enfrentar Domiciano em Roma.
"A lei", disse Apolônio, "nos obriga a morrer pela
liberdade, e a natureza ordena que morramos por nossos pais, nossos amigos,
ou nossos filhos. Todos os homens estão ligados por estes deveres.
Mas um dever superior é imposto sobre o sábio; ele deve morrer
por seus princípios e a verdade que defende mais cara que a vida.
Não é a lei que lhe impõe a escolha, não é
a natureza; é a força e coragem de sua própria alma.
Mesmo que o fogo e a espada lhe aflijam, não sobrepujarão
sua resolução ou o obrigarão à menor falsidade;
mas ele guardará os segredos das vidas alheias e tudo o que lhe for
confiado à honra tão religiosamente como os segredos da iniciação.
E eu sei mais que os outros homens, pois sei que de tudo o que sei, algumas
coisas são para o bom, outras para o sábio, outras para mim
mesmo, outras para os Deuses, mas nada para os tiranos.
"Além disso, penso que um homem sábio não faz
nada sozinho ou por si mesmo, e nenhum pensamento seu é secreto,
pois ele mesmo é sua testemunha. E se o ditado famoso 'conhece-te
a ti mesmo' é de Apolo ou de algum sábio que aprendeu a conhecer-se
e proclamou-o como um bem para todos, penso que o homem sábio que
conhece a si mesmo e traz seu espírito em constante camaradagem,
para lutar à sua destra, não temerá o que o vulgo teme,
nem condescenderá em fazer o que a maioria dos homens faz sem a menor
vergonha" (vii, 15).
Nisto temos o verdadeiro desdém filosófico diante da morte,
e também o calmo conhecimento do iniciado, do confortador e do conselheiro
de outros, a quem os segredos de suas vidas foi confessado, e que nenhuma
tortura poderia jamais extrair de seus lábios. Aqui, também,
temos a plena percepção do que é consciência,
da impossibilidade de ocultar o menor traço de mal no mundo interior;
e ainda o fulgurante brilho de uma ética superior que faz a conduta
habitual das massas parecer surpreendente - "o que eles fazem, e sem
vergonha alguma".