O Martinezismo segundo Fernando Pessoa
titulo original : Reflexões de Fernando Pessoa sobre a Maçonaria Cristã
Antes de iniciar
este trabalho quero fazer uma reflexão. É a de que Fernando
Pessoa considera, nestas suas notas, a Maçonaria como uma ordem iniciática
com uma doutrina esotérica específica, preparatória
para outras vias mais altas de Ocultismo.
Feito este reparo, e considerando todavia o grande interesse destas reflexões,
entro na matéria do trabalho.
Conforme bem sublinhou Yvete Centeno na sua obra Fernando Pessoa e a Filosofia
Hermética, o interesse pelo ocultismo e pelas tradições
herméticas despertou no poeta por volta de 1906, quando tinha dezassete
anos e vivia ainda na África do Sul.
Cedo Fernando Pessoa se afastou da religião católica em que
tinha sido criado, como se pode constatar pelos fragmentos Excomunhão
a todos os sacerdotes e sectários de todas as religiões do
mundo, assinado por Charles Anon (1907) e Pacto com Satanás, feito
por Alexander Search no mesmo ano.
Destas duas personagens literárias inglesas, só Search deixa
umas centenas de poemas, entre os quais o poema Circle, de raiz nitidamente
mágica.
A sua vinda para Lisboa em 1908 e a frequência da Faculdade de Letras
levam o poeta a interessar-se pelo estudo da filosofia. A sua produção
dessa data é constituída por apontamentos, anotações
de leituras e sinopses de livros de filósofos. O poeta e pensador
exprime-se então com a generosidade de quem procura o conhecimento
com fins altruístas. Em 1910, numa lúcida auto-análise,
Fernando Pessoa desabafa: "Eu era um poeta animado pela filosofia e
não um filósofo com faculdades poéticas".
A procura de uma "divindade" que estivesse relacionada com a razão,
leva-o a escrever, em 1912, um poema às forças da natureza
que acaba com o apelo: "Torna-me puro como a água e alto como
o céu. Que não haja lama na estrada dos meus pensamentos nem
folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Fase com que eu saiba
amar os outros como irmãos e servir-te como um pai."
No ano seguinte faz uma série de poemas a que dá o título
de "Além Deus" que podem ser sintetizadas na seguinte frase:
" O universo está já onde estará, e já
isso, é Deus" / "Deus é o sentido para onde tendem
todas as inteligências que governam este mundo contra a vontade satânica
da matéria inerte".
Pessoa afasta-se cada vez mais dos caminhos da religião tradicional:
longe da igreja organizada, segue uma via pessoal, sentindo a necessidade
de percorrer um caminho iniciático, definindo-o como um estádio
neo-pagão, que influencia a produção dos seus heterónimos
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e António Mora.
Em 1914 escreve uma carta à sua tia Anica, irmã de sua mãe,
em que confessa as suas capacidades mediúnicas. Praticamente na mesma
altura começa a interessar-se pela Teosofia e confessa ao seu amigo
Mário de Sá-Carneiro que os princípios que esta doutrina
defende "o incomodam tal como os Ritos e os Mistérios dos Rosa
Cruz".
A partir desta data o poeta empenha-se a fundo nos estudos da Cabala, da
Alquimia, da Astrologia, da Magia, da Geometria Sagrada, dos Mistérios
Antigos, do Hermetismo em geral e do pensamento de Hermes Trimegisto em
particular, tentando assim atingir a Gnose.
Em 1920, quando acaba a primeira fase do namoro com Ophélia Queiroz,
Fernando Pessoa escreve na carta de ruptura: "O meu destino pertence
a outra Lei cuja existência a Ophélinha nem sabe, está
subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não
permitem nem perdoam."
Supomos serem desta data as reflexões sobre Maçonaria e Iniciação
Maçónica que passamos a transcrever:
(
) Iniciar alguém, no sentido hermético, é conferir-lhe
conhecimentos que ele não poderia obter por si, quer pela leitura
de livros, quer pelo exercício da sua inteligência, por forte
que ela seja, quer pela leitura de livros à luz dessa mesma inteligência.
(
)
(
) É essencial em primeiro lugar, que o profano seja, de índole
e mentalidade, um simbolista, isto é, um indivíduo para quem
os símbolos são coisas, vidas, almas e para quem paralelamente
as coisas e os homens tenham, em certo modo, a vida irreal e analógica
dos símbolos. (
)
(
) Aquilo a que se chama "Iniciação" é
de três espécies: Há, primeiro, e no nível ínfimo,
a Iniciação exotérica, análoga à Iniciação
Maçónica, e de que esta é o tipo mais baixo: É
a Iniciação dada a quem propriamente se não encaminhou
para ela, nem para ela se preparou, e que serve para pôr o indivíduo
em condições de poder dar-se o caminho exotérico de
poder buscar, pelo contacto, embora exotérico, com símbolos
e emblemas, o verdadeiro caminho. O mais exterior e nulo dos sistemas iniciáticos
- como é hoje a Maçonaria - serve este fim, logo que tenha
conservado os símbolos pelos quais em nós se infiltra o primeiro
conhecimento do oculto. (
)
(
) A Maçonaria é um esquema simbólico, através
de cuja linguagem, uma vez gradualmente compreendida, certos conhecimentos
se vão obtendo, que fariam pasmar os Maçons vulgares, ainda
os de alto grau. Ora os dirigentes superiores da Maçonaria forçosamente
são aqueles que entendem e usam o que está contido nesses
símbolos. E o que está contido nesses símbolos são
os ensinamentos comuns à Cabala e ao chamado Budismo Esotérico.
(
)
(
) O Templo de Salomão é a alma humana. A sua expressão
interna e suprema. O Mestre Hiran, é morto pelos três assassínios.
O Mundo (o desejo dos outros), a Carne (o desejo de si) e o Diabo (o desejo
de mais que si) e é este último que dá ao Mestre na
fronte o golpe mortal. A Grande Obra é o elaborar em nós no
sentido estrito e pessoal, a transmutação do chumbo do nosso
ser perecível no ouro do nosso ser que não parece. (
)
(
) São três os caminhos da Iniciação -
pela emoção, pela vontade e pela inteligência (ou seja
pelo enxofre, pelo sal, e pelo mercúrio). A Iniciação
pela emoção adquire-se pela imersão em qualquer religião
e pelo misticismo que haja nela. A Iniciação pela vontade
adquire-se pertencendo a uma Ordem Iniciática qualquer, a Iniciação
pela inteligência faz-se solitariamente, sem contacto fluido ou sólido
com qualquer religião ou ordem, o único contacto é
aquele, angélico com os Superiores Incógnitos. (
)
(
) A expressão "Vale" de que se usa para definir
um lugar de instituições maçónicas é
um acto de humildade e verdade, que a Ordem seguiu por indicação
superior. É a definição da baixa qualidade da iniciação
que ela ministra, em relação à alta iniciação
nas altas Ordens onde é referida sempre uma montanha, seja a de Heredon
seja a de Abiegno. Pode ser que estas coisas nunca houvessem sido combinadas
em palavras, mas ficaram certas nos factos. (
)
(..) No último e excelso sentido a Loja é o Arcano ou a arca
da Verdade. O Mestre e os Dois que estão com ele no governo da Loja
são o símbolo das três verdades fundamentais ou Cabalísticas.
Os Dois que, com estes três, formam os Cinco que completam a Loja
são o símbolo dos princípios externos ou de relação,
por meio dos quais a Verdade é o único que conta (
).
(
) Os últimos dois princípios pelos quais a Loja se
torna perfeita são: O que está em cima é como o que
está em baixo, e Quando o discípulo está pronto o Mestre
está pronto também. (
)
(
) E é evidente para todos que desde que a Palavra se perdeu,
quantos maus caminhos e fingimentos de caminhos surgiram.
Os que mentem, mentem por devoção a um anseio de busca. Ainda
os que viciam, viciam para fingindo que encontraram, e satisfazerem a sua
sede de encontrar. O filtro da Palavra Perdida tornou-os seus amantes, e
seguem atrás dela como cavaleiros errantes sem dama certa, por vias
e florestas de sonho e erro, na eterna selva escura do conhecimento imperfeito.
(
)
(
) É impossível chegar a qualquer entendimento íntimo
da Maçonaria sem ter conhecimento da chamada Ciência Hermética,
que vai desde as especulações hiper-metafísicas da
Cabala até às semi-metafísicas da Astrologia. Se um
Maçon, por instruído que seja no que é pensamento maçónico
e meditador que tenha sido da simbólica da sua Ordem, não
tiver levado os seus estudos até aos vários ramos da Ciência
Hermética - alguns dos quais sem relação alguma aparente
com a Maçonaria - ficará perenemente um profano de dentro.
(
)
(
) Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes
desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando-se até chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente
criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que
hajam criados outros Universos, e que esses Universos coexistam com o nosso
interpenetradamente ou não. Por essas razões, e ainda outras,
a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto
a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão "Deus",
dadas as suas implicações teológicas e populares, e
prefere dizer "Grande Arquitecto do Universo", expressão
que deixa em branco o problema se Ele é Criador, ou simples Governador
do Mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação
com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, podemos
ir comunicando com seres cada vez mais altos. (
)
Como ressalvei no principio, nas centenas de fragmentos do espólio
do poeta que abordam a temática maçónica, importa sublinhar
um elemento: para Fernando Pessoa, a Ordem Maçónica é
uma ordem iniciática com uma doutrina esotérica específica,
preparatória para outras vias.
Para o poeta, o Templarismo é o prolongamento imediato da iniciação
maçónica. Ora é sabido que os altos graus de todos
os Ritos, com excepção do Francês, contêm graus
de inspiração cavaleiresca templária a partir do 9º
grau. A nível da Maçonaria não temos conhecimento de
que este projecto iniciático seja cumprido a não ser que o
segredo esteja incomunicável e para além da pompa e circunstância
das cerimónias. Segundo informa José Manuel Anes só
o Regime Escocês Rectificado possuiu hoje um Templarismo ou Templismo
iniciático baseado numa doutrina cristã gnóstica, de
que parece ter feito parte o nosso Irmão Gomes Freire de Andrade
e provavelmente o que levou o rei D. Fernando a candidatar-se, tendo sido
derrotado, a Grão-mestre da nossa Augusta Ordem.
O que me leva a supor que, entre 1910 e 1935, terá havido algum círculo
restrito que manteve viva esta tradição iniciática
Templária com a qual Pessoa teve alguma relação. Isto
explicaria o circuito iniciático e o Templo da Quinta da Regaleira,
não restando pois qualquer dúvida sobre este filho da viúva
nosso irmão.
Duas Adendas Esclarecedoras
Fernando Pessoa - Últimas Estrofes do Poema S. João (1935)
(recolhido por Alfredo Margarido)
(
)
(E) foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assignado,
mas cuja assignatura se erra
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.
Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambolico.
Eu a julgar-te até catholico,
E tu sahes-me maçon.
Bem, ahi é que ha espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vario.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Prompto a fazer fallar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo que torna o homem precario.
Se és maçon,
Sou mais do que maçon - eu sou templarío.
Esqueço-te santo
Deslembro o teu indefinido encanto.
Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.
Excerto da "Nota Biográfica" de Fernando Pessoa, 30 de
Março de 1935 (
)
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por
enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais.
O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte:
"35 Sonnets" (em inglês), 1918; "English Poems I -
II" e "English Poems III" (em inglês também),
1922, e o livro "Mensagem", 1934, premiado pelo Secretariado de
Propaganda Nacional, na categoria "Poemas". O folheto "O
Interregno", publicado em 1928, e constituindo uma defesa da Ditadura
Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há
que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe
ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o comandante João
Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado.
Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade
do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos
15 anos.
Ideologia política: Considera que o sistema monárquico seria
o mais próprio para uma nação organicamente imperial
como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente
inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes,
votaria, com pena, pela República. Conservador de estilo inglês,
isto é, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente anti-reaccionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico, e portanto
inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à
Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos,
à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas
relações com a tradição Secreta em Israel (a
Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação
directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente
extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo
mítico, de onde seja abolida toda infiltração católico-romana,
criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua
espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma
vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: "Tudo
pela Humanidade; nada contra a Nação".
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se
do que vai dito acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na
memória o mártir Jacques de Molay, Grão-mestre dos
Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três
assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.
Lisboa, 30 de Março de 1935