A Biografia Martinezista do Filósofo Desconhecido
Louis Claude de Saint-Martin, o ";Filósofo Desconhecido";, pensador profundo e grande iniciado, nasceu a 18 de janeiro de 1743 em Amboise, Tourraine, no centro da França, no seio de uma família nobre, mas pouco abastada e desconhecida. Logo depois do nascimento de Saint-Martin, sua mãe faleceu, e ele foi criado pelo pai e por uma madrasta, pessoa amável e de bom coração, que o iniciou na leitura de Jacques Abbadie, ministro protestante de Genebra. Com esse autor, apreendeu a conhecer a si mesmo, relegando a um plano secundário a análise decepcionante e estéril dos filósofos em voga na época.
"E à obra de Abbadie, A Arte de Conhecer a Si Mesmo, que devo
meu afastamento das coisas mundanas; é a Burlamaqui que devo minha
inclinação pelas bases naturais da razão; é
a Martinez de Pasqually que devo meu ingresso nas verdades superiores; é
a Jacob Böehme que devo meus passos mais importantes nos caminhos da
Verdade.";(1)
Outro autor que influenciou o Filósofo Desconhecido desde sua juventude
foi Pascal. Aos 18 anos, em meio às discussões filosóficas
dos livros que lia, deu-se conta de que, existindo o Criador do Universo
e uma alma, nada mais seria necessário para ser sábio. (2)
Foi com base nessas concepções que fundou sua doutrina posterior.
Na época de seus estudos no Colégio de Pontlevoi, o Ocultismo
já fazia parte de suas meditações. Na Faculdade, igualmente,
eram os estudos metafísicos que o atraíam. Estudou Direito
conforme a vontade de seu pai, e esse ambiente proporcionou-lhe maior contato
com o mundo filosófico e literário da época. Conheceu
as obras de Voltaire, Rousseau, Montesquieu e outros autores não
iniciados, mas sem ceder à inclinação dos enciclopedistas.
";Li, vi e escutei os filósofos da matéria e os doutores
que devastam o mundo com suas instruções; nenhuma gota de
seus venenos penetrou-me; nem as mordidas de uma só dessas serpentes
prejudicaram-me.";(3)
O jovem estudante procurava tudo o que pudesse conduzi-lo ao conhecimento
da Verdade, particularmente as ciências e princípios exatos.
Dedicou-se assim ao estudo filosófico dos números e, por algum
tempo, esteve ligado a Lalande e sua escola filosófica, sintetizada
em Ciência dos Números. Esse convívio, entretanto, não
foi longo, pois seus pontos de vista eram divergentes e nosso Filósofo
passou a estudar Jean Jacques Rousseau. Como ele, pensava ser o homem naturalmente
bom; mas entendia que as virtudes perdidas originalmente, em razão
da Queda, poderiam ser reconquistadas desde que o homem o desejasse ardentemente.
Acreditava que o naufrágio no materialismo era conseqüência
mais das associações viciosas e desvirtuadas do que do pecado
original. E, nisso, afirma-nos seu discípulo Gence(4), ele se diferenciava
de Rousseau, a quem considerava um misantropo por sua excessiva sensibilidade,
ao olhar os homens, não como eram, mas como gostaria que fossem.
Saint-Martin amava a humanidade e considerava-a melhor do que parecia ser;
e o encanto da sociedade da época levou nosso Filósofo a pensar
que a vivência nas rodas sociais poderia levá-lo ao melhor
conhecimento do homem e conduzi-lo à intimidade mais perfeita com
os seus princípios. Assim, agiu conforme seu pensamento: freqüentou
os saraus musicais e toda sorte de recreações da alta nobreza,
desde os passeios ao campo até as conversas com amigos; os atos de
gentileza eram a manifestação de sua própria alma.
";Foram de sua intimidade as pessoas da mais alta classe, dentre as
quais podemos citar o Marquês de Lusignan, o Marechal de Richelieu,
o Duque de Orléans, a Duquesa de Bourbon, o Cavaleiro de Fouflers
e tantos outros que seria longo enumerar. Devotou-se inteiramente à
busca da Verdade e à prática das Virtudes, que foram o objeto
constante de seus estudos, dos seus trabalhos e das suas realizações.";(5)
Iniciado, pois no estudo das leis e da jurisprudência, aplicou-se
mais à pesquisa das bases naturais da Justiça, relegando a
um plano secundário as regras da jurisprudência. Paralelamente,
desenvolvia seus estudos sobre os mistérios ocultos e logo descobriu
que não poderia dedicar-se inteiramente à magistratura, como
desejava sua família. Não encontrando sua vocação
no Direito, abandonou a magistratura que exerceu em Tours durante seis meses.
Alistou-se aos 22 anos de idade no Regimento de Foix, então aquartelado
em Boudeaux, onde pode encontrar mais tempo para dedicar-se ao estudo do
Ocultismo, que era sua verdadeira vocação. Após ter
lido os autores mais em evidência no gênero, procurou a iniciação
de uma maneira mais efetiva.
Foi graças a um colega do Regimento, Grainville, que bateu às
portas do Templo. Grainville era iniciado em uma sociedade oculta muito
importante, cujo chefe era Martinez de Pasqually. Este era casado com uma
sobrinha do maior, comandante do Regimento, que se encontrava na mesma cidade
de residência de Martinez. A Escola de Pasqually, seu iniciador nas
práticas teúrgicas, era a Ordem dos Elus Cohens do Universo
(Sacerdotes Eleitos), revigorada mais tarde pela ação de Saint-Martin
e Jean Baptiste Willermoz, sob a inspiração das obras de M.
Pasqually e de J. Böehme e a partir de suas próprias pesquisas.
Em fins de 1768, Saint-Martin foi iniciado nos três primeiros graus
simbólicos da referida Ordem pela espada de Balzac, avô de
Honoré de Balzac, o famoso romancista francês das primeiras
décadas do século XIX. Com efeito, em carta de 12 de agosto
de 1771, dirigida a seu colega Willermoz, de Lyon, confirmou ter sido iniciado
por Balzac e que recebera de uma só vez os três graus simbólicos.
";Não é comum darem-se os três graus simbólicos
ao mesmo tempo; deixam-se, ao contrário", prosseguiu Saint-Martin
na referida carta, "grandes intervalos de tempo entre um grau e
outro, segundo o progresso de cada um.";(6)
Assim, Saint-Martin submeteu-se em seguida ao método iniciático
de Pasqually, de quem se tornou secretário particular e discípulo
zeloso. Mas não deixou, logo depois, de criticar seu primeiro Mestre,
por não concordar com tudo o que era feito em tal sistema. Considerava
supérfluas todas as manifestações físicas exteriores
e todos os detalhes do cerimonial Cohen: ";São necessárias
todas essas coisas para orar a Deus?";, perguntou Saint-Martin a seu
mestre Martinez. ";É preciso que nos contentemos com o que temos";(7),
respondeu o Grão-Mestre.
Na realidade, era necessário trabalhar mais profundamente no sentido
interior para produzir a luz. Isso certamente Martinez teria feito dentro
de seu próprio sistema, se não tivesse partido da França
e falecido em seguida. Sua semente ficou, no entanto, e coube a Saint-Martin
e a Willermoz cuidar da planta que deveria nascer. A Providência Divina
não os deixou abandonados; inspirou-os constantemente, colocando
em seu caminho homens que os ajudaram, direta ou indiretamente, e proporcionando-lhes
o conhecimento do sistema de Jacob Böehme. Esse sistema confirmou as
descobertas que tinham feito e abriu as portas para a obtenção
das chaves ainda não encontradas.
Na época em que conheceu Pasqually, tinha pouco mais de vinte e cinco
anos e acabava de debutar no Ocultismo, de sorte que nem todas verdades
da Iniciação pode receber de seu primeiro mestre, com o qual
permaneceu cinco anos. Soube reconhecer mais tarde sua grandeza (porque
é bom que se afirme que Martinez de Pasqually foi um adepto de grande
iluminação).
";Havia coisas preciosas em nossa primeira Escola";, relata Saint-Martin
a seu discípulo Kircheberger. ";Sou mesmo induzido a pensar
que o Sr. Martinez de Pasqually, que era nosso mestre, possuía a
chave ativa referente a tudo o que nosso prezado Jacob Böehme expõe
em suas teorias, mas não julgava que fôssemos capazes de entender
tão altas verdades, naquela época. Ele era sabedor de alguns
pontos que nosso amigo Böehme não conhecia, ou pelo menos não
revelou, como a resipiscência do ser perverso, contra o qual o primeiro
homem teria tido a missão de trabalhar... Quanto à Sofia e
ao Rei do Mundo, ele nada nos revelou, deixando-nos com as noções
comuns de Maria e do Demônio. Mas não afirmarei que ele não
teve conhecimento delas e estou convicto de que chegaríamos a esse
conhecimento, se o tivéssemos conosco por mais tempo...";(8)
Saint-Martin nunca concordou com a iniciação realizada fora
do silêncio e da realidade invisível, que chamava de centro
ou via interior. Para ele, o interior deve ser o termômetro, a verdadeira
pedra de toque do que passa fora...; e o estudo da Natureza exterior só
teria sentido se conduzisse à senda interior, ativa. Esse estudo
poderia, pois, ser útil na medida em que conduzisse à Verdade,
mas a Iniciação, explicava ele a Kircheberger, deve agir no
ser central.
";Não lhe ocultarei que anteriormente entrei nesse caminho externo,
e através dele me foi aberta a porta de minha carreira. Meu condutor
era um homem de muitas virtudes ativas, e a maioria daqueles que o seguiram,
inclusive eu, receberam confirmações que talvez tenham sido
úteis para nossa instrução e desenvolvimento. Todavia,
em todos os instantes, eu sentia forte inclinação para o caminho
intimamente secreto, o externo nunca me seduziu, nem em minha juventude.";(9)
Entendia Saint-Martin que todo o aparato exterior não era necessário
para encontrar Deus e que, ao contrário, em muitas ocasiões
dificultava essa busca. Discordava das numerosas e freqüentes comunicações
sensíveis de todos os tipos, manifestadas nos trabalhos de que tomava
parte na sua primeira Escola, embora o signo do Reparador sempre estivesse
presente, manifestando a ação da Causa Ativa e Inteligente
no mundo objetivo. Afirmava, no entanto, que sua senda interior, desenvolvida
depois, proporcionava-lhe resultados mil vezes superiores aos produzidos
pela senda que denominava exterior e que era preconizada por Pasqually.
Afirmava, no entanto, e é bom repetir, que deveria haver trabalhos
internos da Ordem que não lhes foram transmitidos por causa de sua
curta passagem pelo sistema e por não terem ainda passado pelos estágios
iniciais. O Mestre não poderia ter agido de modo diferente, revelam-lhes
os mistérios de ordem mais elevada. Acreditava, ademais, que os Princípios
Divinos poderiam mesmo nascer naquele sistema, mas os trabalhos para esse
efeito deveriam ser mais alguns anos com Pasqually.
Não apenas Saint-Martin discordava do sistema de Martinez, uma vez
que os resultados não se produziam de imediato; todos os discípulos
reclamavam resultados espirituais que, em verdade, dependiam deles próprios.
Willermoz parece ter sido o primeiro a manifestar a Saint-Martin seu descontentamento
no que dizia respeito ao desenvolvimento das faculdades adormecidas do ser
humano; é o que constatamos através da leitura de uma carta
endereçada por Saint-Martin, do Oriente de Bordeaux, com data de
25 de março de 1771.
";Quanto à confiança que vos dignais a testemunhar-me,
abrindo-me sem escrúpulos vosso pensamento sobre nossas cerimônias,
não me compete, tendo em vista nossa dignidade, fazer qualquer observação
a respeito; e, diante de meu juiz, eu só deveria escutar e calar.
Entretanto, as disposições puras que trazeis à Sabedoria
fazem-me supor que poderíeis perdoar-me antecipadamente se ouso acrescentar,
às vossas, algumas idéias próprias. Procuro, como vós,
esclarecer-me... Confesso que o objetivo que buscamos na iniciação
parece-me muito difícil de ser atingido.
Acredito que, mesmo nos encontrando nas melhores condições,
quando todas as cerimônias são empregadas com a maior regularidade,
a Coisa pode ainda guardar seu véu para nós tanto quanto quiser;
ela está tão pouco à disposição do homem
que ele não pode, jamais, apesar de seus esforços, estar certo
de obtê-la. Ele deve esperar e orar sempre, eis nossa condição.
O espírito conduz seu sopro onde quer, quando quer, sem que saibamos
de onde vem e para onde vai... Se o poder não se manifesta agora,
ele poderá ocorrer mais tarde; se não se opera pela visão,
ele prepara a forma daquele que se mantém puro para receber as impressões
salutares, quando o espírito assim quiser. Não atribuais,
então, o estado em que vos encontrais a algum problema de vossa parte
ou à invalidade das cerimônias.";(10)
Willermoz procurava obter por carta maiores esclarecimentos acerca dos problemas
que iam surgindo no transcorrer de sua jornada iniciática. Pelo que
constatamos, os resultados práticos da iniciação não
apareciam tão rapidamente como os discípulos desejavam. Era
necessário muito trabalho, como em qualquer sistema de iniciação,
para que surgisse alguma manifestação de aprimoramento espiritual.
A correspondência entre Saint-Martin e Willermoz, iniciada em 1768,
estendeu-se até 1773. Em 1771, Saint-Martin abandonou a carreira
militar para dedicar-se exclusivamente ao Ocultismo. Durante dois anos empregou
todo o tempo disponível para trabalhar ao lado do mestre; foi durante
esse período que se familiarizou com a ritualística dos Cohens
e com a doutrina de Martinez, bem como com todas as suas práticas
iniciáticas.
Partiu de Bordeaux em maio de 1773, na ocasião em que Martinez preparava-se
para viajar para as Antilhas. Antes de se despedir, entretanto, Saint-Martin
foi recebido no último grau dos Cohens, aquele de Réaux-Croix,
como atesta uma carta de Martinez, datada de 17 de abril de 1772: ";Após
ter examinado e reexaminado os candidatos Saint-Martin e Seres, por nossa
votação ordinária e em conseqüência das
ordens que recebemos, nós os ordenamos Réaux-Croix...";(11)
Em 1773, finalmente, Saint-Martin conheceu Willermoz, em Lyon, após
terem trocado correspondência durante cinco anos. Seu círculo
de amizade limitava-se aos irmãos da Ordem: Grainville, Balzac, Hauterive,
Bacon de la Chevalerie, o Abade Fournier e Willermoz. Permaneceu um ano
em Lyon, seguindo para sua cidade natal e, posteriormente, para Paris. Em
abril de 1785, Willermoz obteve sucesso com suas operações:
a ";Coisa ativa e inteligente"; finalmente mostrou-se aos homens.
Saint-Martin, sabendo da notícia, partiu de Paris em junho do mesmo
ano, com destino a Lyon, levando consigo uma bíblia em hebraico e
um dicionário, para entreter-se na viagem. Ficou seis meses em Lyon,
partindo mais tarde para Nápoles e Londres, onde tomou conhecimento
das publicações de Willian Law, morto em 1761, e que pertencia
à tradição de Jacob Böehme.
";Seríamos excessivamente prolixos se procurássemos seguir
as pegadas do nosso Filósofo Desconhecido, ao longo de sua jornada
terrena, onde a cada passo, não obstante, encontraríamos o
exemplo dignificante e o traço indelével da imensa esteira
de luz que marcou sua trajetória neste mundo. Difícil ainda
seria penetrarmos na profundeza do seu pensamento, da sua filosofia, da
sua doutrina de elevação e regeneração do homem
na busca da iluminação e da paz...";(12)
Foi inicialmente de Lyon que o Filósofo Desconhecido procurou irradiar
a luz, após a partida de Martinez para o Oriente Eterno. A direção
da Ordem dos Elus Cohen não ficou com Saint-Martin nem com Willermoz,
mas nas mãos de pessoas menos preparadas para levar adiante um sistema
que ainda necessitava de aperfeiçoamento. Coube a Saint-Martin e
a Willermoz a resignação de continuarem ocultamente a pesquisa
da Verdade por suas próprias forças. O ";Agente Incógnito";
teria ditado inúmeras instruções e partes de um livro
que Louis Claude de Saint-Martin publicou, destinado a lutar contra o materialismo
vigente na época. (13)
Talvez por esse motivo Saint-Martin tenha iniciado uma série de viagens,
verdadeiros apostolados, para realizar propaganda das idéias espiritualistas,
recolher dados e informações iniciáticas e entrar em
contato com discípulos e homens de ciência. Em todos esses
contatos sempre conquistava novas amizades e discípulos para continuarem
sua obra. Saint-Martin tinha uma conversa muito agradável, uma vez
que seu verbo não fazia senão expressar sua paz interior,
seus conhecimentos e a nobreza de sua alma.
Os salões mais aristocráticos de Paris disputavam sua presença.
Essas qualidades eram agradáveis às mulheres, que não
hesitavam em convidá-lo para as festas, pensando em casar suas filhas.
Mas o Filósofo Desconhecido quis dedicar-se integralmente à
sua obra de divulgação do Espírito. Em 1778, em Toulouse,
esteve prestes a se casar; contudo, esse projeto desvaneceu-se como todos
os demais a esse respeito. Afirmava sentir uma voz no seu interior que lhe
dizia ser ele originário de um lugar onde não existem mulheres.
Agente Incógnito desapareceu de cena em 1788, época em que
Saint-Martin retornou à Lyon, mas reapareceu em 1790 para destruir
uma série de cadernos de instruções por ele próprio
ditados: ";Eu devolvi ao Agente";, conta-nos Willermoz, ";a
seu pedido, mais de 80 cadernos manuscritos inéditos, que destruiu.";
Com a morte de Pasqually, ocorrida em 1774 em São Domingos, o centro
oculto da iniciação Cohen passou a Lyon e foi lá, como
contam seus biógrafos, "que o Filósofo Desconhecido,
armado com a Sabedoria Divina, passou a fazer oposição à
doutrina materialista dos Enciclopedistas. Combatendo o materialismo revolucionário
e sua doutrina errônea inserida em uma pretensa filosofia da natureza
e da história, Saint-Martin chamou o homem de volta à Verdade,
fundamentando-se no princípio do conhecimento de si mesmo e na natureza
do ser inteligente".(14)
Saint-Martin, entretanto, nunca ficou muito ligado ao rigor das instituições
iniciáticas, mas, em razão da problemática da época,
em pleno desenvolvimento da Revolução Francesa, procurou,
para a salvaguarda das suas próprias doutrinas e das tradições
de que então já era depositário, unir-se a grupos ou
formar grupos cujos membros desejassem, sinceramente, dedicar-se ao culto
da Verdade e à prática das Virtudes. Estudava, paralelamente,
as doutrinas de Pasqually e de Swedenborg, as primeiras mostrando-lhe a
ciência do Espírito e as segundas a ciência da Alma.
"A Revolução, em todas as suas fases, encontrou Saint-Martin
sempre o mesmo, dedicado a seu objetivo. Por princípio, esteve acima
das considerações de nascimento e opiniões, por isso
não emigrou; enquanto se mantinha ao seu redor todo o horror das
desordens e dos excessos, acreditou sempre que o bem podia surgir do terrível
advento da Revolução Francesa, pela intermediação
da Divina Providência; pensou ver um grande instrumento temporal no
homem que se levantou para suprimir seus excessos.
"Foi em 1793, quando a família e a sociedade dissolviam-se,
que vendeu as suas últimas posses para manter e cuidar de seu pai,
velho e paralítico. Na mesma época, não obstante os
estreitos limites a que ficou reduzida a sua fortuna, contribuiu para as
necessidades públicas de sua comunidade. Retornando à capital,
foi atingido pelo decreto de expulsão dos nobres. Saint-Martin submeteu-se
e deixou Paris.(15)
Durante o terror revolucionário, era necessária muita prudência,
mesmo para os assuntos iniciáticos. Saint-Martin recebeu um mandado
de prisão, embora vivesse mergulhado nos estudos e na meditação,
sem nunca ter feito política. Não subiu ao cadafalso porque
Robespierre caiu em seguida. Havia a proteção do Alto, que
o guiava na terra, obscurecida pela agitação dos homens.
"Uma corrente de prestígios inundou a inteligência humana
em geral, e a dos parisienses em particular, porque a cidade, que comporta
sábios e doutores de toda espécie, possui poucos que orientam
seu pensamento na direção dos conhecimentos verdadeiros, e
há menos ainda que buscam esses conhecimentos com um espírito
reto. A maior parte deles não fazem mais que dissecar as cascas da
Natureza, medir, pesar e enumerar todas as suas moléculas. Eles tentam,
insensatos, a conquista de tudo que se encontra em composição
no Universo, como se isso lhes fosse possível. Esses sábios,
tão célebres e tão ruidosos, não sabem que o
Universo (ou o Templo) é a imagem reduzida da indivisível
e universal eternidade; eles podem contemplar e admirar, pelo espetáculo
de suas propriedades e de suas maravilhas, ... mas jamais poderão
conquistar o segredo de sua existência."(16)
Saint-Martin, para cumprir seu dever cívico, serviu na Guarda Nacional
e, em Amboise, foi escolhido para ser um dos instrutores da Escola Normal
Superior, que formava jovens professores; tomou parte em 1795 da primeira
Assembléia Eleitoral, sem contudo tornar-se membro efetivo de qualquer
corpo legislativo. O que buscava era o Conhecimento e a difusão de
suas doutrinas. Jamais fez proselitismo e procurava ter por discípulos
amigos fiéis da Verdade. Quem visse seu jeito humilde jamais poderia
suspeitar de sua elevada espiritualidade. Sua docilidade para com o tratamento,
sua serenidade, manifestava no entanto o sábio, O Novo Homem formado
pela filosofia profunda do aperfeiçoamento moral e espiritual. A
luz que irradiava de seu centro fazia justiça à sua condição
de Homem-Espírito, o grande sol da transição ao século
XIX.
Foi em 1788, em Estrasburgo, que Saint-Martin tomou conhecimento das obras
de Jacob Böehme, o Teósofo Teutônico, através de
Rodolphe de Salzmann. Surpreso, constatou que essa doutrina combinava com
a de seu antigo mestre Martinez de Pasqually, sendo idênticas em essência..
Coube a ele a tarefa de fazer o feliz casamento das duas correntes doutrinárias,
elaborando um sistema sintático, capaz de satisfazer seus anseios
e colocar à disposição de todos os Homens de Desejo
um caminho seguro para chegar à Iluminação.
A síntese iniciática foi obtida em poucos anos de trabalho
pelo nosso Filósofo Desconhecido, secundado que foi por seu colega
Jean Baptiste Willermoz. Necessitava, entretanto, de uma transmissão
iniciática da corrente de Böehme para associar à sua,
advinha de Pasqually. Essa corrente alemã de Jacob Böehme foi
obtida ao ser iniciada pelo Barão de Salzmann, em Estrasburgo, e
confirmada na linha mais antiga dos Templários, ao associar-se com
a Estrita Observância Templária, do Barão de Hund.
Willermoz foi o encarregado, em Lyon, de organizar o sistema maçônico
do Rito Escocês Retificado, fruto do Convento de Wilhelmsbad de 1782.
Coube a Saint-Martin a chefia e a realização de iniciações
individuais da Ordem Interior dos Filósofos Desconhecidos. Vários
alemães foram iniciados no novo sistema (muitos dos quais já
eram discípulos de Martinez de Pasqually), ingressando na iniciação
real que conduz à Iluminação e à Reintegração
a partir deste mundo na Unidade Divina.
Saint-Martin considerava as obras de Jacob Böehme de uma profundidade
e de um valor inestimáveis e não se achava digno nem de desatar
as sandálias de Jacob Böehme; entendia que seria necessário
que o homem se tivesse tornado pedra ou demônio para não tirar
proveito de tais obras. (17)
Foi assim que passou a estudar o alemão, com quase 50 anos de idade,
para melhor penetrar no sentido oculto e no pensamento do autor. Procurou
traduzir para o francês as principais obras do Mestre. A partir de
então, sempre que se referia a Jacob Böehme dizia que o Iluminado
teutônico foi a maior luz que veio a este mundo depois daquele que
era a própria Luz, isto é, o Cristo.
Após ter percorrido parte da Europa, estabeleceu seu apostolado em
Toulouse, Versailles e Lyon, sempre lançando a semente espiritual
em uma terra que se tornou fecunda, recolhendo ele próprio as doutrinas
mais apropriadas para o seu espírito e seu sistema. Mais tarde, centralizou
sua ação em três cidades: Estrasburgo, Amboise e Paris,
que eram, como confessou, seu paraíso, seu inferno e seu purgatório.
Fora dessas cidades possuía membros correspondentes de sua sociedade,
como o Barão de Kircheberger, que não chegou a conhecer, mas
a quem enviou um emissário, o Conde Divonne, para certamente lhe
transmitir a iniciação. Kircheberger era grande admirador
das obras de Saint-Martin; pertencia à Escola de Böehme, da
qual tomaram parte igualmente Khunrath e Gichtel.
Kircheberger escreveu a Saint-Martin que, segundo uma lenda corrente em
sua Escola, a Virgem Celeste, a Divina Sofia, nos dias das núpcias
compareceu com seu corpo celeste de Glória e escolheu Gichtel, vindo
à sua casa, colocando em ordem seus papéis e completando com
seu próprio punho os manuscritos por ele deixados inacabados. Em
vida teria igualmente recebido favores de sua esposa celeste, pois como
general venceu o exército de Luiz XIV, que pretendia conquistar Amsterdã,
cidade onde o adepto residia. Durante toda a batalha, o general não
teria saído do quarto.(18)
Não somente Saint-Martin acreditava no relato de Kircheberger, como
lhe pedia maiores detalhes sobre Gichtel. "Se estivéssemos um
perto do outro, escreveu-lhe Saint-Martin, eu também teria uma história
de casamento para vos contar. Os mesmos passos foram dados por mim, mas
de um modo um pouco diferente, embora chegando aos mesmos resultados. Creio,
com efeito, ter conhecido a esposa de Gichtel..., mas não de modo
tão particular como ele. Eis o que me aconteceu por ocasião
do casamento de que falei: eu estava orando... e me foi dito intelectualmente,
mas de modo muito claro, o seguinte: Depois que o Verbo é feito carne,
nenhuma carne deve dispor dela própria sem que Ele o permita. Essas
palavras penetram profundamente em meu ser; ainda que não tenham
significado uma proibição formal, recusei-me a toda negociação
posterior."(19)
Acredita-se que a chave da iniciação está no desejo
do homem de purificar-se, de evoluir e de atingir a iluminação.
Essa evolução é necessária para remediar a degradação
a que o homem se submeteu após a Queda Original. Antes, o homem podia
obrar em conformidade com a Vontade do Pai, sendo dessa maneira poderoso,
mas após ter se revestido de um envoltório material, suas
capacidades espirituais atrofiaram-se e a Vontade e a pureza de outrora
aniquilaram-se. Foi na cidade de Estrasburgo que Saint-Martin deu a um discípulo
a chave de O Homem de desejo, que, por extensão, serve para a própria
Iniciação:
A Chave do Homem de Desejo.
Avant qu'Adam mangeât la pomme,
Sans effort nous pouviouns oeuvrer.
Depouis, L'oeuvre ne se consomme.
Qu'au edu pur d'un ardent supir;
La Clef de l'Homme de Désir
Doit naître du désir de l'homme.
Isto é, antes de Adão ter comido a maçã, o homem podia realizar sua obra sem esforço; depois, a obra não se concretiza a não ser com a ajuda do fogo puro, emanado de um ardente suspiro, advindo do grande esforço individual. Assim, a chave do Homem de Desejo deve nascer do desejo do homem.
Seu livro O Homem de Desejo, publicado pela primeira vez em 1790, são
litânias no estilo do salmista, nas quais a alma humana evolui para
o seu primeiro estágio, num caminho que o Espírito pode ajudá-la
a percorrer.
Saint-Martin escreveu este livro por sugestão do filósofo
religioso Thiaman, durante suas viagens a Estrasburgo e a Londres. Lavater,
então clérico em Zurique, elogiou essa obra como um dos livros
que mais tinha gostado, embora reconhecesse não ter tido condições
de penetrar nas bases da doutrina exposta. Kircheberger, mais familiar aos
princípios do livro, considerou-o como o mais rico em pensamentos
iluminados. O próprio Saint-Martin concordou que nesse livro encontram-se
os germes do conhecimento que ignorava até a leitura das obras de
Jacob Böehme.
O objetivo de seu livro O Homem de Desejo é mostrar que o homem deve
confiar na Regeneração, chamando sua atenção
para a necessidade de retorno ao Mundo Divino de onde saiu e ao trabalho
que deverá realizar para alcançar esse objetivo, isto é,
concentrando suas forças pelo desejo ardente de aperfeiçoar-se
e tornar-se um homem de vontade forte.
"Não há nenhum outro mistério para se chegar a
essa sagrada iniciação, senão penetrando cada vez mais
no fundo de nosso ser e não esmorecendo até que possamos produzir
a viva e edificante raiz; porque, então, todos os frutos que haveremos
de gerar, conforme nossa espécie, serão produzidos dentro
de nós e sem nós, naturalmente; é o que ocorre com
nossas árvores terrestres, porque elas aderem às próprias
raízes e, incessantemente, retiram sua seiva."(20)
Compreende-se, assim, que o ensinamento deixado por Saint-Martin, e que
veio de Martinez de Pasqually e de Jacob Böehme, era muito profundo
e de natureza divina. Constitui-se uma Escola de Homens de Desejo, ávidos
por adquirirem conhecimentos, uma elite do pensamento, embaçada em
um sistema filosófico iniciático, tendo como objetivo o desenvolvimento
moral e espiritual do homem. Não é uma Escola de especulação
abstrata, mas um centro onde os membros procuram conhecer a doutrina e a
experiência dos mestres e onde procuram vivê-la na vida diária,
para atingir a perfeição interior, através de um processo
de autotransformação.
Os grupos de homens livres eram formados por um pequeno número de
pessoas inteligentes e de mente sã, escrupulosamente examinadas,
Saint-Martin dizia que as grandes verdades só podem ser bem ensinadas
no silêncio. Todos aqueles que não sabem calar, que falam mais
do que observam, não podem ser recebidos na senda interior. Saber
guardar o silêncio é condição indispensável
para que o homem se torne digno de receber outros ensinamentos cada vez
mais profundos, emanados não apenas de seu iniciador, como do próprio
Mundo Invisível. Para isso, necessitamos de treinamento, que se efetua
guardando-se o silêncio em relação às pequenas
coisas, mesmo profanas. Qualquer sociedade iniciática não
pode ser aberta, pois assim perderia a força que porventura tivesse
recebido do Alto. Guardar o silêncio significa fechar-se às
influências exteriores, às opiniões contrárias
que só trazem ações conflitantes. Fechar-se em torno
de si mesmo é magnetizar-se; é evitar que as próprias
forças divinas se dispersem na Natureza, passando por nós.
É criar um pólo de atração; é tornar-se
um receptáculo das influências celestes; é tornar-se
a taça que recebe o influxo divino.
A Iniciação é um processo interior de aperfeiçoamento
do homem, tornando-o apto a receber as forças divinas. O homem é
a soma de todos os problemas da existência; é a síntese,
o enigma dos enigmas, a pedra bruta que deve ser talhada e aperfeiçoada.
Esse desenvolvimento deve ocorrer de tal modo que o ser criado se religue
ao Criador, através da aproximação da natureza impura
com a natureza pura. Por isso, a primeira deve ser trabalhada até
ficar quase no mesmo estado da segunda; somente depois haverá uma
atração tal, que a Natureza Superior descerá até
a inferior, purificando-a em definitivo e deixando-a conforme ela mesma:
é a Iluminação do Iniciado.
Aquele que possuir o conhecimento de si mesmo terá acesso à
ciência do mundo, dos demais seres. O conhecimento de si próprio
é somente em si que deve buscar. É no espírito do homem
que se devem encontrar as leis que dirigem sua origem. É preciso,
pois, que o iniciado encontre seu centro iniciático, a divindade
em si, para adquirir o pleno conhecimento de si mesmo. É necessário
conhecer suas fraquezas para melhor dominá-las e não voltar
a praticar os mesmos erros. Jesus Cristo dizia aos homens para não
pecarem mais menos, até o dia em que, tendo encontrado seu equilíbrio
iniciático, possam chegar a não pecar mais. Sua luta deve
ser constante, contra as paixões, suas contrariedades internas e
a ira. A docilidade representa a presença de Deus no centro iniciático;
a ira representa a sua ausência.
"O homem não pode ser integralmente livre da ira e do pecado
porque os movimentos do abismo deste mundo tampouco são totalmente
puros ante o coração de Deus; o amor e a ira sempre lutam
entre si."(21)
A doutrina de Saint-Martin difundiu-se na Alemanha e na Rússia, através
de seus discípulos. Na Rússia, a doutrina martinista encontrou
um grande divulgador em Joseph de Maistre, que afirmava a existência
de Deus no interior de cada indivíduo e, por conseguinte, que o segredo
de toda a iniciação consistia em descobrir o centro iniciático
próprio, a senda interior, a fim de proceder ao próprio desenvolvimento
espiritual. Assim, a iniciação é uma senda real, interior,
individual, e não se encontra no exterior, nas sociedades ou no Enciclopedismo.
Em 1803, o Filósofo Desconhecido dava seus últimos passos
em direção à Eternidade, pois sua saúde mostrava-se
débil. Mas não se afligiu com essa perspectiva; ao contrário,
dizia que a Providência sempre lhe havia dispensado muito cuidado,
de modo que só poderia render-lhe graças.
Conta-nos Gence que certa vez, visitando um amigo comum, Saint-Martin confessou-lhe
que estava partindo para o Oriente Eterno e no dia seguinte, visitando seu
amigo o Conde Lenoir la Roche, em Aulnay, após leve refeição,
retirou-se para o quarto; sofreu um ataque de apoplexia e partiu. Era o
dia 13 de outubro de 1803. Foi então que seus discípulos e
amigos perderam a convivência física com o Mestre, mas ganharam
a eterna e permanente proteção espiritual que nos envia do
Reino da Glória, através dos Mundos Invisíveis.
Hoje, a obra de Louis Claude de Saint-Martin continua através dos
Grupos de Iniciados que seguem sua doutrina. A Conquista da Iluminação
é o objetivo último de todos os Homens de Desejo, que encontram
nas obras do Mestre e no seu exemplo, como Homem e como Iniciado, o respaldo
necessário para prosseguir na senda sem desânimo.
Que cada um possa transformar-se em um Novo Homem, renascido pela Luz, que
resplandece na alma de todos, e que engendrará, no futuro, o Homem-Espírito,
o novo Sol que acalentará os corações de todos com
seu procedimento e com sua serenidade.
NOTAS
1- SAINT-MARTIN, L. C. Oeuvres Posthumes; Portrait Historique
et Phisosophique de Saint-Martin fait par lui-même, p. 58-59.
2- Id., t.1, p.5.
3- Id., t.1, p.78-9.
4- J. B. M. Gence foi discípulo de Saint-Martin e com ele conviveu
longos anos: seu relato encontra-se no prefácio de Teosophic Correspondence
between L. C. de Saint-Martin and Kircheberger, Baron de Liebistorf, P.
V.
5- Id., p. VI.
6- PAPUS. L'Illuminismo en France, 1771-1803: Louis-Claude de Saint-Martin,
as Vie, as Voie Theurgique, ses Oeuvrages, son Oeuvre, ses Disciples, suivi
de la Publicatino de 50 Letters Inédites, p. 109.
7- MATER, M. Saint-Martin, le Philosophe Inconnu. Ed. d'Aujourd'hui, p.
20.
8- SAINT-MARTIN, L. C. Theosophic Correspondense, op. Cit. Carta XCII.
9- Id. Carta IV.
10- PAPUS. Louis Claude de S. Martin. 1902.
11- Id., p. 12.
12- Comentário deixado por Ary Ilha Xavier, profundo conhecedor das
obras de Saint-Martin.
13- Des Erreurs et de la Vérité. Edimbourg, 1775, 2v.
14- Gence. Op. Cit., p. IV.
15- Id., p. VII.
16- SAINT-MARTIN, L.C. Le Crocodile, Canto XV, p.53.
17- SAINT-MARTIN, L.C. Mont Portrait. Op. Cit., p. 42.
18- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Op. Cit. Carta LVIII.
19- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence Op. Cit. Carta LXII.
20- SAINT-MARTIN, L.C. Theosophic Correspondence. Carta número CX.
21- BÖEHME, J. Confesiones, p. 44