O
Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
Primeira
parte
O grande sonho de Saulo-Paulo
Os ensinamentos engendram a vaidade... Eclesiastes, 5, 6
Paulo, o apóstolo tricéfalo
As lendas dos narradores do tempo passado são lições
para o homem de hoje.
As mil e uma noites.
Introdução
Do estudo atento dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas de
Paulo, dos diversos apócrifos atribuídos a ele, assim como
das Homilias Clementinas, as Antigüidades judaicas e a Guerra dos judeus,
de Flavio Josefo, em resumo, de todos os textos antigos que nos chegaram
sobre ele, desprende-se finalmente uma conclusão, muito desconsoladora
para os crentes aos quais lhes apresento: é que o Paulo do Novo Testamento
é um personagem simbólico, no qual os escribas anônimos
dos séculos IV e V fundiram e amalgamaram literalmente palavras e
acontecimentos pertencentes a, pelo menos, três personagens diferentes,
dois dos quais foram imaginados a seu desejo, e só um deles foi real.
Na época em que, por ordem de Constantino, e sob a vigilância
de altas autoridades da Igreja, como Eusébio da Cesaréia,
unificavam-se os textos evangélicos, que quando eram "conforme"
se copiavam de novo em série de cinqüenta* exemplares e a seguir
eram enviados a todas as igrejas do Império (sem omitir o confisco
dos antigos textos, aos que estes tinham substituído), literalmente
se "criou" Cristo, deus encarnado para a salvação
dos homens.
*[Cinqüenta é o número do Pentecostes (pentékostés).
Quer dizer, do Espírito Santo. Nossos falsificadores careciam de
complexos...]*
Entretanto, para dar um valor inatacável a esta criação
e poder justificá-la, não podiam utilizar "testemunhos
apostólicos" habituais. De maneira que se fabricou um personagem
novo, mediante a fusão de três personagens antigos. Os textos
e os documentos que estes eram, indiscutivelmente, os autores foram refundidos
e recompostos. E como eram anteriores aos novos evangelhos "canônicos",
contribuíam à este personagem imaginário um reflexo
de autenticidade histórica. Nessa época, e ao longo de todos
esses séculos, a mão de ferro dos poderes temporários
sob as ordens da Igreja, perinde ac cadáver, achava-se sempre disposta
a silenciar definitivamente a todo investigador mau pensante.
Por isso é pelo que monsenhor Ricciotti pode nos dizer, com toda
lealdade, em seu Saint Paúl, apotre:
a) "As fontes que permitem reconstruir a vida de São Paulo se
acham em sua integridade no Novo Testamento; fora deste não se encontra
virtualmente nada. Os elementos que podem descobrir em alguns outros documentos
não só são pouco numerosos mas também, além
disso, extremamente duvidosos." (P. 90).
b) "O ano de nascimento de Paulo não se desprende de nenhum
documento..." (P. 149).
c) "Quanto ao ano do martírio de Paulo, os testemunhos antigos
são vagos e discordantes [...] Não se sabe nada a respeito
do dia de sua morte..." (P. 671).
Também o abade Loisy, sem negar formalmente a existência histórica
do personagem, concluiu que não pode saber-se nada válido
sobre ele. Bruno Bauer e uma boa parte da escola exegética holandesa
vão mais longe, e concluem que se tratava de um personagem imaginário
ou simbólico.
Nós, por nossa parte, contentaremo-nos ficando com o homem que nos
apresenta o texto dos Atos dos Apóstolos, e passá-lo pela
peneira das verificações racionais, deixando às diversas
igrejas a responsabilidade da impostura histórica, bem seja total
ou parcial, se é que há.
Para começar, pois, permitiremo-nos expor um certo número
de questões.
Se Saulo-Paulo é judeu, e segundo os historiadores católicos,
nascido "nos primeiros anos da era cristã, se não um
pouco antes inclusive..." (cf. monsenhor Ricciotti, Saint Paúl,
apotre, P. 149), conta aproximadamente uns trinta e cinco anos de idade
quando se produz a morte do diácono Estêvão, no ano
36 de nossa era. Então se concebe perfeitamente que pudesse:
a) encontrar-se ao mando de um corpo de polícia (Atos dos Apóstolos,
8, 3, e 9, 1);
b) obter do pontífice de Israel, neste caso Gamaliel, uma ordem que
lhe permitisse operar longe de Jerusalém em missão de busca
de cristãos (o problema sobre se esta ação era ou não
lícita será discutido em outro lugar);
c) ter aprovado a condenação e execução de Estêvão,
em virtude de sua idade e sua função (Atos dos Apóstolos,
8, 1, e 22, 20).
Mas então, no curso desta execução, não pode
logicamente ver reduzido seu papel ao de um simples jovem judeu a quem tão
somente lhe confia a guarda das vestimentas dos encarregados da lapidação.
Porque se é judeu, de uns trinta e cinco anos de idade, há
muito que tem a maioridade religiosa e civil em Israel, e portanto deve
participar, legalmente, na lapidação, já que se encontra
no local (Deuteronômio, 17, 7). Para ele é obrigatório.
Em caso negativo, é que não é judeu, a não ser
idumeu, como demonstraremos mais adiante.
Por outra parte, se no ano 36 está ao mando de um corpo especial
de polícia às ordens do Sanedrim e do pontífice, e
se já conta uns trinta e cinco anos de idade, provavelmente exerceu
já tal profissão nos anos 34 e 35, quando teve lugar a detenção
de Jesus no Monte das Oliveiras. E neste caso, deve ser indevidamente ele
quem se achava ao mando do destacamento de soldados que acompanhou à
coorte dos veteranos e à tribuna que a dirigia durante o combate
final, depois da ocupação do domínio de lerahmeel,
onde entrincheiraram Jesus*. Portanto, conhecia este último, participou
de sua captura e lhe corresponde parte da responsabilidade de sua morte.
E ele, ou Lucas, seu "secretário", ou o escriba anônimo
autor dos Atos dos Apóstolos, mentiu ao fazer acreditar que não
o tinha visto antes... É mais, neste caso incluso deve proporcionar
o corpo de guarda que teria reclamado Sanedrim para a vigilância da
tumba de Jesus, e que foi incapaz de assegurá-la. Assim, Saulo-Paulo
não ignorava que o cadáver tinha sido roubado, fato cuja prova
contribuímos já na obra citada.
*[Cf. R. AMBELAIN, Jesús o el secreto mortal de los templarios, já
citada, p. 239.]
Além disso, o nascimento de Paulo "nos primeiros anos da era
cristã, se não um pouco antes inclusive...", implicaria
uma mentira mais por parte do autor dos Atos, ou seja, que não é
possível que Saulo-Paulo tivesse sido criado com o Menahem e Herodes,
o Tetrarca, como declara o texto dos Atos (13, 1)*, já que Herodes
Agripa II nasceu no ano 27 de nossa era, e morreu em Roma no ano 100. E
no ano 27 Saulo-Paulo teria já vinte e sete anos...
*[Op. cit., pág. 302, para a justificação e a exégesis
de tal passagem. Este versículo é muito importante.]
Se agora analisarmos cuidadosamente as Epístolas chamadas "paulinas",
delas se desprendem duas facetas diferentes a respeito de seu autor:
- uma delas nos situa em presença de um helenista, de um partidário
da Diáspora, que é cidadão romano, fala e escreve em
grego, e se mostra como um implacável adversário dos tabus
legais do judaísmo, em especial da circuncisão; chama-se Paulo,
em grego Paulos;
- a outra face é a de um judeu piedoso e de boa raça, procedente
da tribo de Benjamim (antigamente uma das duas tribos militares de Israel),
e que se chama Saulo, em grego Saulos.
*[Temos que assinalar que, quando Paulo fala de sua raça, de sua
nação, não diz "nossos" nem "os nossos",
senão "os judeus". E esta expressão respectiva é
a prova de que não era israelita de origem.]
Cada um destes dois homens tem sua doutrina. O primeiro, formado pela cultura
grega, vê Cristo como um ser divino, descendido através dos
"céus" intermediário adotando forma humana, morto
na cruz, ressuscitado em espírito para assegurar a vitória
do Espírito (pneuma) sobre a Matéria (hyiee), e assim contribuir
aos homens sua liberação espiritual, longe da servidão
de "poderes" intermediários e inferiores.
No segundo traduzem-se as tradições nazarenas e ebionitas;
vê Jesus um homem de carne e osso, nascido de uma mulher da estirpe
de David, submetido à Lei, morto na cruz, ressuscitado em carne,
e logo deificado.
O "terceiro homem" será um mago, e nos apresentam como
Simão, o Mago.
Temos aqui três personagens e três doutrinas absolutamente contraditórias.
Vamos, pois, abrir o expediente desta investigação sobre "São
Paulo, apóstolo dos gentis". E prevenimos de antemão
o leitor de que vai de surpresa em surpresa, tal e como já aconteceu
também no anterior volume, já citado, referente à Jesus.
Porque formularão numerosas interrogações.
Foi, efetivamente, formulando-se perguntas sobre a identidade de Epafras,
companheiro de cativeiro de Paulo (Epístola a Filêmon, 23),
como São Jerônimo nos contribuiu o que ele chama a "fábula"
(sic) do nascimento de Paulo, então Saulo, na Giscala, na alta Galiléia,
e não na Judéia: "Quem é Epafras, o companheiro
de cativeiro do Paulo? [...] Nós recolhemos a seguinte fábula
[fábula]: Diz-se que os pais do apóstolo Paulo eram da Giscala,
na Judéia, e quando a província foi devastada inteiramente
pelo exército romano, e os judeus se dispersaram por todo o universo,
foram transferidos ao Tarso, em Cilícia. Paulo, então ainda
um jovem [adolescente], seguiu a sorte de seus pais". (Cf. Jerônimo,
Comentários sobre a Epístola aos Filipenses, XXIII - M. L.
XXVI, 617-643.)
Primeira questão: A deportação dos habitantes da Giscala
teve lugar durante a repressão levada a cabo pelo Varus (quem crucificou
a dois mil prisioneiros judeus nas colinas dos arredores de Jerusalém),
quer dizer nos anos 6 aos 4 antes de nossa era. Agora bem, nos diz que naquela
época Paulo era ainda um jovem (adolescente). Assim, teria nascido
por volta do ano 21 antes de nossa era, e contaria ao redor de quinze anos
quando se produziram esses acontecimentos. Isto parece dificilmente compatível
com a cronologia clássica, já que neste caso teria contado
57 anos quando se produziu a lapidação de Estêvão,
no ano 36 de nossa era. E então, como podem dizer os Atos dos Apóstolos:
"E as testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem
chamado Saulo" (Atos, 7, 58), se esse "jovem" tinha 57 anos?
Além disso, neste caso teria morrido aos 88 anos (no 67 de nossa
era), coisa dificilmente compatível com sua atividade e suas numerosas
viagens. Continuemos.
Mais adiante, nesse mesmo capítulo, São Jerônimo volta
para as palavras de Paulo, e as comenta in extenso: "Sou hebreu, da
descendência de Abraham, circunciso do oitavo dia, da linhagem de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e fariseu...".
(Cf. II. Coríntios, 11, 22, e Filipenses, 3, 5). E Jerônimo
observa finalmente:
"Magis judeum quam Tarsensem...", quer dizer: "Tudo isto
demonstra que era mais judeu que tarsiota".
Segunda questão: por que Paulo experimenta a necessidade de precisar
que, "da descendência de Abraham", ele é "da
linhagem de Israel"? Porque se, já naquela época (séculos
IV e V), em certas esferas eruditas se sabia que ele tinha origens iduméias,
e que foi príncipe, da casa dos Herodes, os escribas anônimos
que puseram as palavras em sua boca quiseram a todo custo jogar terra sobre
o assunto.
Com efeito, neste caso teria sido também "da descendência
de Abraham", mas pela linha de Ismael, o primeiro filho de Abraham,
tido por sua escrava Agar, faxineira de sua estéril esposa, Sara,
e que foi o tronco da nação árabe. E então não
seria judeu, e não podiam atrever-se a insinuar que Jesus tivesse
tomado como décimo terceiro apóstolo a um não judeu.
Assim que o escriba anônimo que "acerta" o texto primitivo
dos Atos no século IV ou V também se empenha a todo custo
em fazer desaparecer essa molesta verdade. Desde aí a anormal insistência
sobre o caráter hebreu de Paulo, precisão repetida em três
ocasiões, e sublinhada além pela indicação da
tribo e a seita. Continuemos, e observemos que, em seguida, São Jerônimo
se mostrará muito mais categórico referente ao nascimento
na Giscala:
"O apóstolo Paulo*, chamado antes Saulo, deve contar-se além
dos doze apóstolos. Era da tribo de Benjamim e da cidade da Císcala,
na Judéia. Quando esta foi tomada pelos romanos, emigrou com seus
pais ao Tarso, em Cilícia, e logo foi enviado por eles à Jerusalém,
para que estudasse ali a Lei, e foi instruído por Gamaliel, homem
muito sábio, ao que Lucas recorda". (Cf. Jerônimo, De
viris illustribus, M. L. XXIII, 615-646.)
*["Temos que entender o termo apóstolo no sentido que tinha
no judaísmo, antes de adotar um sentido cristão. Para os judeus,
um apóstolo era um enviado de Sanedrim de Jerusalém, encargado
de perceber o imposto do Templo nas sinagogas da Dispersão, e de
exercer um controle sobre sua ortodoxia." (Cf. ROBERT SAHL, Les Mandéens
et les origines chrétiennes, p. 135.)]
Terceira questão: Jerônimo nos precisou mais acima que a população
da Giscala foi deportada à Cilícia, e os pais de Paulo, com
seu filho ainda adolescente, ao Tarso, mais concretamente. Agora bem, a
deportação coletiva da população de uma cidade
ou de um povo, a conseqüência de uma repressão romana
e (geralmente) por prestar ajuda ou abastecer guerrilheiros zelotes, convertia-os
em escravos. Todavia estes não eram necessariamente vendidos em separado
a particulares, mas sim, no caso de uma deportação coletiva
a um lugar concreto, convertiam-se em "escravos de César",
quer dizer do Império. Os servos da Idade Média, os da Rússia
czarista até finais do século XIX, ligados a uma terra, sujeitos
à serviços e imposto "a vontade", casados segundo
desejo da autoridade tutelar, como os deportados à Sibéria,
reproduzem bastante bem esse caráter de "escravos de César".
Entretanto, todo filho de escravos era por sua vez escravo, de maneira que
como pôde Paulo, então Saulo, abandonar livremente sua cidade
de residência obrigatória, para instalar-se em Jerusalém,
"aos pés de Gamaliel" (Atos, 22, 3), em qualidade de estudante?
É difícil imaginar aos romanos, por si receosos e inclinados
ao castigo fácil, tolerando semelhantes fantasias por parte dos deportados.
Quando Pompeyo venceu o último rei da dinastia asmonea, Aristóbulo,
e o degolou segundo costume ao final de seu "desfile da vitória"
em Roma, grande número de prisioneiros judeus dos que figuravam no
cortejo foram convertidos em escravos: "Os filhos e as filhas de Israel
vivem ali em um cativeiro horrível. Seu pescoço mostra a incisão,
marca distintiva no seio das nações". (Cf. Salmos de
Salomão, II, 6)*. Esta "incisão", que substituía
ao colarinho de ferro de antigamente, o qual obstaculizava o trabalho do
escravo, efetuavam-na com um ferro candente; ia do lado esquerdo do pescoço
ao direito, e era mais acentuada na nuca, de onde segundo nome pelo que
era conhecida: "jugo". Constituía o "sinal do escravo".
Os rituais católicos falam ainda do jugo de Cristo, que seria "suave
e ligeiro", já que nos primeiros séculos se falava dos
"escravos de Cristo". (Cf. Confissão de São Cipriano,
16.)
*[Os Salmos de Salomão são de finais do século 1 antes
de nossa era de autores desconhecidos]
Por outra parte, quando o escriba anônimo faz dizer a Saulo-Paulo
que tem a civitas romana por seu nascimento (Atos dos Apóstolos,
22, 28), comete um novo engano. Porque ignora que o imperador Augusto precedentemente
tinha proibido conferir este privilégio a um liberto (e portanto
menos ainda a um escravo) que tivesse levado cadeias. "No que concerne
aos escravos, não contente tendo multiplicado os obstáculos
para os ter separados da liberdade simples, e muito mais ainda da liberdade
completa, ao determinar com minuciosidade o número, a situação
e as diferentes categorias daqueles que podiam ser mantidos, acrescentou
ainda que jamais nenhum gênero de liberdade poderia conferir a qualidade
de cidadão a um escravo que tivesse estado encadeado ou submetido
à tortura". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Augusto,
XL.)
Agora bem, todo deportado levava cadeias durante seu translado (Flavio Josefo,
em sua Guerra dos judeus, III, V, precisa que, efetivamente, na equipe regulamentar
de todo soldado romano figurava um jogo de cadeias). Por conseguinte, se
os pais de Saulo-Paulo, e inclusive ele mesmo, foram deportados da Giscala,
na Galiléia, ao Tarso, em Cilícia, levaram os vínculos
romanos durante uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros, efetuado
evidentemente a pé. E portanto é mais duvidoso que os convertessem
em civis romanos a sua chegada!
Quarta questão: Admitindo que Paulo tivesse obtido, com o tempo,
os recursos financeiros e a assistência privada (o indispensável
amparo administrativo) que lhe permitissem converter-se em liberto, como
pôde acabar decapitado, como um cidadão romano, depois de condenado
a morte no ano 67 em Roma? Porque os libertos*, pelo mesmo fato de sua condenação
a morte, perdiam esta qualidade, e ao voltar convertidos em escravos, eram
crucificados. Assim, se Paulo pôde converter-se em liberto, não
morreu pela espada a não ser, segundo os termos da lei romana, crucificado.
Mas se realmente foi decapitado, isso significa que jamais foi deportado
ao Tarso, e que não descendia de deportados. E então se expõe
o problema de suas verdadeiras origens, e também o porquê desse
mascaramento por parte dos escribas anônimos do século IV.
*[Trata-se aqui de libertos ordinários, que não são
cidadãos romanos.]
Os libertos ordinários culpados de um crime voltavam a cair na escravidão,
e então eram submetidos aos castigos reservados aos escravos. Existiam
duas categorias de libertos:
a) aqueles aos que seu amo libertou pela vingança, quer dizer diante
de um pretor ou um pró-cônsul, quem tocava então ao
escravo ao que terá que alforriar com uma varinha denominada vingança.
Estes ficavam realmente liberados;
b) os que não tinham sido liberados mas sim pela simples decisão
de seu dono, que ficavam então sujeitos por um último elo
jurídico à escravidão.
Trata-se de sutilezas da lei romana que nos contribui com Tácito
em seus Anais, XIII, XXVII e XXXII.
E, com efeito, contrariamente ao que se afirma freqüentemente, o liberto
não gozava ipso facto da cidadania romana! Como vamos acreditar que
um escravo obscuro e iletrado, liberado por um ato de reconhecimento ou
por pura benevolência por parte de seu amo, convertia-se em cidadão
romano, enquanto que príncipes estrangeiros, vassalos de Roma, não
o eram?
Além disso, os civis romanos não podiam ser nem espancado,
nem açoitado, nem crucificado, nem submetido a escravidão.
A lex Valeria do ano 509 antes de nossa era proibia já golpear a
um cidadão romano sem uma decisão popular prévia e
decisiva, e a lex Porcia, do ano 248 também antes de Cristo, não
permitia usar os açoites em nenhum caso.
Agora bem, os libertos comuns condenados a morte eram crucificados, porque
recaíam na escravidão pelo mesmo fato de ter sido condenados.
Tácito nos conta isso em seus Anais (XIII, XXVI): sua alforria era
sempre condicional, e o amo ofendido por um deles tinha sempre o direito
legal de relegá-lo "além da centésima milha, nas
bordas da Campanhia". Por outra parte, relata-nos casos de crucificação
de libertos. Nada disso poderia aplicar-se caso a alforria inicial comprometesse
a cidadania romana; é perfeitamente evidente. Mas se um deles, além
de sua liberação da escravidão, beneficiava-se ulteriormente
de tal privilégio, como os libertos célebres, os Narcisos
e os Palantes, então gozava deste com todas as vantagens secundárias
enumeradas acima.
*[Cf. TÁCITO, Anales, XIII, XXXII. Em caso de assassinato do amo
por parte de seus escravos, todos os escravos e todos os libertos eram crucificados.]
Por conseguinte, admitindo que o pai de Saulo-Paulo, ou que ele mesmo, tivesse
a sorte de passar de "escravo de César" deportado ao Tarso
a homem livre, isso não significa que fora cidadão romano.
De modo que se Paulo foi realmente de Tarso, em Cilícia, e neste
caso, antigo deportado e escravo, filho de deportados e escravos, não
pôde ser decapitado, a não ser simplesmente crucificado.
Segundo a lei romana, o filho seguia a sorte do "ventre que lhe levara".
Assim, o filho de uma mulher livre e de um escravo nascia livre. O filho
de um homem livre e de uma escrava nascia escravo.
*[No obstante, a lex Minucia estipulava que o filho de uma romana e de um
estrangeiro (peregrinos) seguia a condição de seu pai. Sem
dúvida quando a concepção e o nascimento ocorria em
lugar estrangeiro.]
Este princípio imprescritível do direito romano condicionou,
como se vê, a sorte de Paulo.
Quinta questão: Admitindo que Paulo se converteu no máximo
em um liberto, quando e como pôde chegar a ser cidadão romano,
título que o Paulo dos Atos está não pouco orgulhoso,
se dermos crédito a seus anônimos redatores? Voltaire, quem
possuía uma grande erudição, diz-nos o seguinte a este
respeito: "Era Paulo cidadão romano, como ele presume? Se procedia
de Tarso, em Cilícia, Tarso não foi colônia romana até
cem anos mais tarde! Todos os peritos em história antiga estão
de acordo neste ponto. Se era da pequena cidade ou aldeia da Giscala, como
acreditou São Jerônimo, esta cidade se achava na Galiléia,
é seguro que os galileus não eram cidadãos romanos!..."
(Cf. Voltaire, Dicionário Filosófico, voz "Paulo".)
Porque esta deportação, verdadeiro cativeiro localizado, testemunha-a
ainda Focio, sábio exegeta do século IX, que foi patriarca
de Constantinopla: "Paulo [...] por seus antepassados carnais, tinha
como pátria Giscala (atualmente é uma aldeia da Judéia,
mas antigamente foi uma pequena cidade) [...] Quando teve lugar a conquista
romana, seus pais, igual a maioria dos demais habitantes, foram conduzidos
em cautividad ao Tarso". (Cf. Focio, Ad amphilocium, CXVI.)
Observemos, de passagem, que os autores antigos situavam Giscala na Judéia,
já que confundiam esta com a Palestina em geral. Em realidade, Giscala
se encontrava na alta Galiléia.
Por último, Epífano, refutando a tese dos ebionitas (uma das
primeiras seitas cristãs, junto com os nazarenos), quem afirmava
que "o homem de Tarso (sic) não era judeu de origem, a não
ser filho de partidários", diz-nos que: "O apóstolo
Paulo, embora nascido em Tarso, não era em modo algum alheio à
raça judia". (Cf. Epífano, Contra Haereses, Panarion,
XXX.)
Aqui Epífano chega muito longe, como veremos a seguir. Já
o simples fato de reconhecer que tinha nascido em Tarso era fazer dele um
judeu da Diáspora.
Sexta questão: Os Atos dos Apóstolos nos dizem que a conversão
de Saulo-Paulo teve lugar no caminho que levava de Jerusalém a Damasco:
"Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos
do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote pedindo-lhe carta de recomendação
para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava quem seguisse
este caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém."
Quando estava a caminho, aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco, viu-se
de repente rodeado de uma luz fulgurante, do céu; e ao cair em terra
ouviu uma voz que dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegue?".
Ele respondeu: "Quem é, Senhor?"." (Atos, 9, 1-5.)
Tomemos agora a Confissão de São Cipriano. Cipriano, bispo
de Cartago, morto no ano 240 durante a perseguição do Decio
(foi decapitado), foi objeto em finais do século IV de um panegírico,
redigido em forma de trilogia: Conversão, Confissão, Martírio.
Vejamos o que lemos na Confissão: "Então Eusébio
disse: "O apóstolo de Cristo chamado Paulo sem dúvida
não foi um mago", mas encontrava-se também entre os mais
ardentes perseguidores dos escravos de Cristo. Consentiu a morte de Estêvão.
Além disso, com ordens escritas do governador, expulsou de seu país
e de todo o território da cidade àqueles que, em Damasco,
adoravam a Cristo. Mas se converteu e passou a ser seu instrumento de eleição,
como ele mesmo confessou: "obtive a misericórdia de Cristo porque
eu tinha obrado por ignorância". E nos Atos dos Apóstolos
está escrito que muitos daqueles que tinham praticado as más
artes, depois de queimar seus livros de magia, entregaram-se a Cristo".
(Cf. Cipriano, Confissão, 16.)
Esta nova alusão às artes mágicas é muito importante:
voltaremos para ela quando tratarmos o problema de Simão de Samaria
e Saulo-Paulo, ambos adversários de Simão-Pedro. Porque não
deixa de ser estranho que Cipriano e depois Eusébio tivessem relacionado
discretamente Saulo com a magia...
Por outra parte, nos Atos dos Apóstolos lemos que era o supremo sacerdote
quem tinha entregue ao Paulo as cartas para sua missão. Na Confissão
quem o faz é o governador, e este termo, nos textos do Novo Testamento,
é sinônimo de procurador. A diferença é importante,
pois permite precisar a autoridade judicial da que dependia realmente Paulo.
Nos Atos é o judaísmo. Na Confissão é a dos
ocupantes romanos. Como explicar esta diferença? É Paulo o
chefe de um policial "paralelo" ao serviço de Roma, ou
está ao mando, como estrategista do Templo, dos elementos da tropa
levítica?
Sétima questão: Além disso, nos Atos a conversão
se produz "no caminho de Damasco". (A expressão permaneceu
como sinônimo de conversão em geral.) E na Confissão
tem lugar muito depois da operação da polícia montada,
dirigida e executada por Paulo.
Agora bem, o texto da citada Confissão foi redigido por volta de
360-370, embora os manuscritos que chegaram até nós são
muito posteriores. E esse texto cita os Atos dos Apóstolos, já
o vimos; portanto, estes existiam já naquela época. Mas como
explicar esta diferença considerável no relato da conversão
do Paulo? Foi Paulo objeto dessa extraordinária "audição"
antes de penetrar na cidade de Damasco para efetuar ali uma rede de cristãos,
ou sua conversão foi posterior a tal operação?
A resposta é fácil. Nos anos 360-370, época da redação
da Confissão, existe já uma versão dos Atos dos Apóstolos
em mãos das comunidades cristãs. Todavia, é muito diferente
da nossa de hoje, já que os escribas anônimos dos séculos
IV e V ainda não tinham praticado seus inumeráveis concertos.
Quanto à passagem da Confissão de São Cipriano chamado
antes, é de supor que devia ser de acordo com o correspondente dos
Atos dos Apóstolos da época, já que, ao estar muito
difundida e ser muito apreciada nas igrejas orientais, se contradissesse
aos Atos, a Confissão não teria sido tolerada pelos bispos
destas igrejas.
Oitava questão: Agora chegamos em torno do problema referente à
natureza das relações de Paulo com os grandes de seu mundo,
e sobretudo ao de sua cidadania romana.
Se era um obscuro judeu, filho de deportados que passaram a ser escravos
do Império, e escravo também ele mesmo, ao menos durante um
tempo (caso sua ulterior alforria), como lhe reconhecer a qualidade de cidadão
romano, qualidade que deixa estupefato ao tribuno das coortes Claudio Lisias,
governador da cidadela Antonia, em Jerusalém?: "O tribuno aproximou
e disse: "me diga, você é romano?". Ele respondeu:
"Sim". Acrescentou o tribuno: "Mas se me custou uma forte
soma adquirir esta cidadania!". Paulo replicou: "Eu a possuo de
nascimento"". (Atos, 22, 27-28.)
Tendo em conta o que vimos precedentemente (e no momento), aqui alguém
mente. Ou é Paulo, ou o escriba anônimo que redigiu essa passagem
dos Atos. Porque se Paulo for realmente cidadão romano, compreenderemos
com facilidade o que logo seguirá, e esse privilégio se explicará
como corolário da verdadeira origem de Paulo. Mas se for simplesmente
um obscuro judeu, tudo o que seguirá será falso, já
que, nesta hipótese, não há nenhuma plausibilidade
nesses episódios da vida de nosso personagem.
Em matéria de herança, a lei romana exigia a busca da condição
do defunto: se era homem livre, liberto ou escravo; e nisso demorava-se
um período de tempo bastante longo. Calistrato parece dizer que se
tratava de um prazo de uns cinco anos. Porque o escravo não herdava
de seus progenitores. Paulo, deportado e portanto escravo, filho de deportados
escravos, não podia em modo algum herdar de seus pais a qualidade
de cidadão romano que eles mesmos não podiam possuir! Este
prazo de investigação sobre as origens de um defunto foi reduzido
por Tito depois do ano 80 de nossa era. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares:
Tito, VIII.) Na época de Paulo era ainda muito longo, o que sublinha
a importância da conclusão legal em matéria de herança.
*[NOTA: Giscala chama-se atualmente Gush Halav (em árabe: El-Ysch).
Está situada uns quatro quilómetros, aproximadamente, da fronteira
do Líbano, ao noroeste do lago Tiberíades, em Galiléia.]
2- Os estranhos protetores de Paulo
Na adversidade de nossos melhores amigos encontramos algo que não
nos desagrada.
La ROCHEFOUCAULD, Máximes
Nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte: "Havia na igreja de
Antióqua profetas e doutores. Entre eles estavam Bernabé e
Simão, chamado Niger, Lucio de Cirene, Menahem, irmão de leite
do tetrarca Herodes, e Saulo". (Atos, 13, 1.)*
*[Convém fazer uma pregunta: Quem é este Simão, apodado
Niger? É o mesmo personagem que o chefe zelote de mesmo nome, citado
em Guerra dos judeus de Flavio Josefo e que se viu mesclado nos acontecimentos
de Jerusalém no ano 64? É muito provável, pois o cardeal
Jean Deniélou, em sua Théologie du Judéo-Christianisme,
observa que: "... parece que aqui a palavra galileus é outro
termo para designar os zelotes..." (op. cit., p. 84), e "... parece
que a Galiléia foi um dos focos principais do zelotismo..."
(op. cit., p. 84). Agora bem, todavia no século IV, abaixo de Juliano
o Apóstata, o termo galiléia servia em linguagem corrente
para designar aos cristãos (JULIO CÉSAR, Cartas). O historiador
protestante Osear Cullmann observa em sua obra Dieu et César que
"Os galileus mencionados em Lucas, 13, 1, associamos com os zelotes".
Não pode estar mais claro!]
Este Menahem é de linha davídica e real. É neto de
Judas de Gamala, bisneto de Ezequias, sobrinho de Jesus, neto de Maria,
primo do defunto Judas Iscariote, de triste memória. É ele
quem levantará o estandarte de uma nova rebelião judia no
ano 64, sob o procurador Gessio Floro. Agora bem, nos manuscritos antigos
não há nem maiúsculas nem minúsculas, não
há pontos e à parte, não há nenhuma pontuação.
Nossas divisões em capítulos e em versículos são
desconhecidas. Quer dizer, que o redator antigo está obrigado a compor
sua frase de tal forma que não subsista nela nenhum equívoco.
E a do texto que segue não permite nenhuma dúvida, em seu
grego clássico: "Manahn te Hródon toú Tetraárkon
súntrophos kaí Saúlos".
Assim, esse Menahem foi "criado com o Herodes, o Tetrarca, e Saulo",
o que demonstra, silogismo inatacável tendo em conta a construção
mesma do texto grego, que Saulo foi também "criado com Herodes,
o Tetrarca, e Menahem".
A primeira vista este fato parece inverossímil. O neto do rebelde
que revoltou a Galiléia contra Arquelao, filho e sucessor de Herodes,
o Grande, no ano 6 antes de nossa era, criado com o neto e o sobrinho neto
deste último...
Entretanto, parecerá menos surpreendente se recordarmos uma tradição,
recolhida por Daniel Massé ao longo de suas investigações,
que afirma que certas alianças matrimoniais tinham aproximado das
famílias davídica e herodiana (infra, P. 68). Além
disso, Menahem pôde ter sido criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater
como um refém discreto. Quando o imperador Claudio fez de Herodes
Agripa I, no ano 41 de nossa era, o rei da Judéia e de Samaria, "chamou"
a seu filho, futuro Herodes Agripa II, a Roma, a seu lado. Discreta maneira
de fazer que seu pai permanecesse como dócil vassalo de Roma... E
provavelmente isso aconteceu com Menahem. Além disso, economizava
uma estrita vigilância por parte das autoridades romanas, sempre dispostas
a fazer executar aos "filhos de David" ao mínimo alarme,
como conta Eusébio de Cesaréia. (Cf. Eusébio de Cesaréia,
História eclesiástica, III, XII, XIX, XXV, XXXII.)
Um último detalhe reforça esta hipótese. Quando Pilatoss
se inteirou de que Jesus era galileu de nascimento, mandou-o comparecer
ante Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea (Lucas, 23, 6-12).
O procurador esperava que Herodes assumiria a responsabilidade de fazer
desaparecer Jesus, posto que este se proclamava "rei dos judeus",
e por conseguinte era rival de Herodes Antipas. Recordava, sem dúvida,
o rumor público, também referente à Jesus: "Sai
e vai-se embora daqui, porque Herodes Antipas quer te matar" (Lucas,
13, 31). Assassinato que seria discreto, evidentemente, e que nada oficial
poderia relacionar com a mão deste último.
Mas não aconteceu nada disso. Herodes Antipas contentou-se burlando
Jesus, trocou suas roupas, provavelmente já em farrapos depois do
combate das Oliveiras e de sua captura, por "uma roupagem reluzente
e o remeteu ao Pilatos" (Lucas, 23, 11). E estas roupas, que os historiadores
da Igreja estimam que eram brancas, eram as que naquela época revestiam
os tribunos militares antes do combate, ou as que levavam em Roma os candidatos
que pretendiam subir a uma elevada função pública.
Portanto não havia nada de infamante no pensamento de Herodes Antipas;
devolvia ao Pilatos um candidato à realeza judia, restituindo-lhe
as vestimentas que autentificavam sua pretensão; reconhecia, portanto,
o valor desta. Mas ao mesmo tempo recusava condená-lo a morte ou
encarcerá-lo; pelo contrário, dava ao Pilatos um testemunho
que permitia a este último mandar executar Jesus, em função
desta mesma pretensão. Com esta atitude, Herodes Antipas, idumeu
de nascimento, quer dizer árabe, aplicava o velho provérbio
dessas regiões: "A mão que não pode cortar hoje,
beija-a". Hábil astúcia por parte desse beduíno
supersticioso, que não queria confrontar a vingança póstuma
daquele mago que era a seus olhos Jesus, nem a outra, mais tangível
ainda, da população judia fiel aos "filhos de David".
Assim, não há nada extraordinário no fato de que Menahem,
neto de Judas da Galiléia e de Maria, sua esposa, e sobrinho de Jesus,
fora criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater. Mas isto
descarta definitivamente a lenda de um Saulo judeu de origem e nascido em
Tarso.
Porque não deixaria de ser bem estranho que um obscuro judeu passasse
sua infância em companhia de pequenos príncipes, e é
mais evidente que isto não aconteceu em Tarso, já que é
impensável imaginar que os príncipes herodianos dessem a criar
seus filhos na Ásia Menor e em Cilícia, que era província
de deportação. De fato, os três meninos foram criados
no Tiberíades e na Cesaréia Marítima. Entretanto, a
presença de Menahem, da linha davídica, entre dois membros
da linha herodiana, reforça a tese de Daniel Massé, segundo
a qual a quinta esposa de Herodes o Grande, Cleópatra de Jerusalém,
era viúva de um "filho de David", e parente de Maria, a
mãe de Jesus.
Na Antióquia -nos encontramos agora nos anos 45-46 de nossa era,
e Jesus faz uns dez anos que morreu-, Menahem e Saulo, que foram criados
juntos, continuam com relação, e tendo em conta o que prepara
Menahem, quer dizer a enésima revolução judia, achamo-nos
em pleno coração zelote nessa bendita "igreja" da
Antióquia, e nossos "profetas" e nossos "doutores"
são em realidade agitadores e doutrinários, herdeiros espirituais
de Judas de Gamala e de seu associado, o cohén Saddoc.
Recordemos que, nessa quarta seita descrita por Flavio Josefo em suas Antigüidades
judaicas (XVIII, 1), a política nacionalista, herdada da tradição
macabéia, está estreitamente associada à mística
religiosa, herdada da tradição essênia. Os zelotes,
não o esqueçamos, estavam constituídos pela fração
extremista dos essênios, que depois da ruptura definitiva se agravou
ainda mais ao rechaçar grande parte de suas regras mais rígidas:
não beber vinho, não admitir os sacrifícios de animais,
observar uma limpeza corporal absoluta e, sobretudo, não cometer
atos de "banditismo", termo de grande importância em seu
juramento de entrada. Coisa da que os zelotes não se privavam absolutamente.
Porém, entendamo-nos bem. Quando citamos ao essenismo como crisol
inicial onde se elaborou a doutrina zelote difundida por Judas de Gamala
e o cohén Saddoc, não se trata de afirmar que um belo dia
centenas de sicários saíram das comunidades essênias,
mas somente os doutrinários primitivos. Ignoramos seus nomes. Com
toda segurança foram anteriores a nossa era. Entretanto, existe um
romantismo sem nenhum fundamento histórico em torno dos essênios,
e o público em geral relaciona facilmente com eles algo, geralmente
apoiando-se em fontes da mais extremada fantasia.
Millar Burrows, chefe do departamento de Línguas e Literaturas do
Oriente Próximo da universidade de Yale, e duas vezes diretor da
Escola Norte-americana de Investigações Orientais, em Jerusalém,
e A. Dupont-Sommer, catedrático da Sorbone e chefe de estudos na
Escola de Estudos Superiores, ambos os especialistas em manuscritos do mar
Morto, atêm-se a esta opinião. Flavio Josefo, em sua Guerra
dos judeus, fala-nos de sua admiração pelo heroísmo
desdobrado pelos essênios na guerra nacional contra os romanos, e
os manuscritos do mar Morto atribuídos a tais essênios descrevem
rituais de uma estratégia militar onde as técnicas de combate
derivam de uma doutrina mística. Vejamos algo que confirma o que
Flavio Josefo nos diz no segundo livro de sua Guerra dos judeus, no capítulo
XII: "A guerra que sustentamos contra os romanos vê-se de mil
maneiras distintas que seu valor é invencível". E o manuscrito
eslavo da mesma obra precisa que esses mesmos essênios "quando
viajam nunca esquecem de levar consigo suas armas, por causa dos bandidos".
Como vemos, não são mansos cordeiros, como certos mistificadores
queriam nos fazer acreditar. É mais, em finais do século II
(por volta do 190), Hipólito de Roma, no livro IX de seus Philosophumena,
diz-nos o seguinte em relação aos essênios: "Os
essênios dividem-se em quatro classes, segundo sua antigüidade
na seita e seu zelo para a observação da Lei. Alguns se negam
a levar consigo dinheiro ou a franquear uma porta de cidade, com o pretexto
de que as moedas ou as portas estão adornadas com imagens. Outros,
chamados zelotes ou sicários, chegam inclusive a degolar em lugares
apartados a todos aqueles que blasfemam da Lei, a menos que estes consintam
em fazer-se circuncidar. A maioria dos essênios são muito idosos,
muitos alcançam inclusive os cem anos de idade. Esta longevidade
atribuem a sua piedade, sua sobriedade e sua continência. Contudo,
desafiam valorosamente à morte quando se trata de defender a Lei".
Esta longa passagem demonstra com claridade que uma fração
essênia tinha constituído a seita dos zeladores (ou zelotes
em grego, e k-Naim em hebreu), mais conhecido pelo nome de sicários
ou zelotes, que esta seita levava a cabo um combate armado contra os incircuncisos
(romanos e idumeus) e que não vacilava em suprimir a seus adversários
degolando-os com a sicca, método do que nos informa Flavio Josefo
(cf. Guerra dos judeus, II, V, manuscrito eslavo).
Voltando para Paulo, temos que recordar -pois é muito importante-
que foi criado em sua infância com Menahem, neto de Judas da Gamala,
sobrinho de Jesus, e que no ano 44, na Antióquia, formava parte do
mesmo cenáculo zelote que este. E ambos foram os "irmãos
de leite" de Herodes o Tetrarca. Tudo isto é muito estranho
para um obscuro judeu, reconheçamo-lo, mas sobretudo descarta a lenda
da infância em Tarso, em Cilícia.
Por outra parte, em 52-53 Paulo está em Corinto. Conta uns trinta
anos de idade. Os judeus de estrita observância, fartos da propaganda
herética e cismática que não cessa de fazer em suas
sinagogas, querem encarcerá-lo. Mas, sem esperar que Paulo abrisse
a boca para justificar-se, Galión, irmão de Seneca (preceptor
e logo conselheiro do Nero César, e deste modo um dos homens mais
poderosos do Império), pró-cônsul da província
da Acaia e residente nessa mesma cidade de Corinto, rechaça a queixa
dos judeus e os faz expulsar do pretorio manu militari, embora logo lhes
permite linchar à Sostenes, chefe da sinagoga local, convertido por
Paulo à nova forma de messianismo místico (Atos, 18, 12-17).
Afortunado Paulo, pois basta-lhe ser reconhecido pelo pró-cônsul
da Acaia, "amigo de César", para ver varrer a seus adversários
pelo guarda pró-consular, e isso sem abrir a boca sequer. Afortunado
judeu obscuro...
Porque esse Galión, "amicus Caesaris", não é
um simples funcionário. Uma inscrição ligeiramente
mutilada, descoberta em Delfos em 1905, reproduz uma carta do imperador
Claudio dirigida aos habitantes dessa cidade, e datada antes de julho do
ano 805 em Roma, quer dizer no ano 52 de nossa era. Ali fala de Junius Gallio,
meu amigo, pró-cônsul da Acaia".
Assim, o inesperado protetor de Paulo em Corinto goza, além disso,
do título invejado em todo o Império romano: amigo de César.
Não é nada mais que a proteção de um "amicus
Caesaris"...
Entretanto, embora beneficiário de estranhas e misteriosas proteções,
Paulo não terminou com os judeus de estrita observância. No
ano 58, em Jerusalém, os levitas de guarda no Templo se apoderam
dele, acusando-o de ter profanado o santuário ao ter introduzido
nele a um "não judeu", Trófimo de Éfeso (Atos,
caps. 21, 22 e 23). A menos que se tratasse dele mesmo, "não
judeu" que tinha penetrado imprudentemente em lugares proibidos aos
gentis.
Quando se dispunham a lapidá-lo, Claudio Lisias, tribuno das coortes
e governador da Antonia, a cidadela vizinha ao Templo, ao inteirar-se do
que acontecia foi em pessoa, com "vários centuriões e
seus soldados" (portanto várias centúrias de legionários)
para deter Paulo e encarcerá-lo. E o tal Paulo se dá a conhecer.
Troca à vista. O tribuno Lisias o mandou desatar (mas estava preso?;
podemos pô-lo em dúvida), e lhe autorizou a admoestar longamente
à enfurecida multidão judia, sob o amparo dos legionários.
Logo conduziram-lhe ao interior da Antonia, livre de ataduras e fora de
qualquer tipo de calabouço.
Foi então quando seu sobrinho, ao ser informado na cidade de que
entre os zelotes se tramava um complô para assassiná-lo, acudiu
livremente a advertir a seu tio. "Paulo chamou um dos centuriões
e lhe disse: "Conduz este jovem ante o tribuno, porque tem algo a comunicar".
O centurião o levou ante o tribuno." (Atos, 23, 16 18.)
Observemos que Paulo recebe com toda liberdade a quem quer, que dá
ordens a um centurião, grau equivalente ao de capitão, e que
este, docilmente, sem resmungar, executa-as e, na hora do jantar, vai incomodar
ao tribuno das coortes, magistrado militar com classe de cônsul. Os
veteranos (membros de uma coorte em uma legião romana) não
deviam dar crédito a seus olhos.
E aqui temos ao sobrinho de Paulo pondo ao tribuno Lisias à corrente
do complô tramado contra a vida de seu tio. O tribuno não se
surpreende nem por um instante da audácia de Paulo, e dá ao
sobrinho a ordem formal de observar um segredo absoluto. Continuemos com
a leitura dos Atos: "Logo chamou dois de seus centuriões e lhes
disse:
"Tenham preparados para a terceira hora da noite duzentos soldados,
setenta cavaleiros e duzentos arqueiros, e preparem cavalgaduras para Paulo,
para que seja conduzido são e salvo ante o governador Félix,
na Cesaréia"." (Atos, 23, 23-24).
Jerusalém em princípios de nossa era
Cesaréia, cidade proibida para os judeus...
Assim, o tribuno das coortes, tão dócil como seu centurião
ante Paulo e seu sobrinho, adota todas as medidas necessárias para
proteger a preciosa vida de um obscuro judeu, e para isso não vacila
em lhe proporcionar o equivalente de uma escolta quase real: 200 veteranos
das coortes, 200 arqueiros e 70 legionários a cavalo, quer dizer
470 soldados, a fim de pô-lo sob a máxima proteção
da autoridade ocupante, a de Antonius Félix, procurador romano da
Judéia.
Este homem é o afortunado marido da Drusila, princesa Iduméia,
bisneta de Herodes, o Grande, irmã do rei Agripa e, com sua irmã
Berenice, uma das mais formosas mulheres da aristocracia daquela época.
E a fim de assegurar à Paulo uma viagem sem tropeços, toma
a precaução de levar para ele vários cavalos. Afortunado
judeu obscuro! E não seguirá à coluna conforme é
habitual: a pé, com as mãos atadas à cauda de um cavalo...
Aqui volta a expor um enigma. Porque, para ir de Jerusalém a Cesaréia
Marítima, os 70 legionários a cavalo não dispõem
de um arreio cada um, seu cavalo de sempre. Então por que o tribuno
Lisias manda preparar para Paulo vários cavalos? Voltemos para texto
dos Atos dos Apóstolos: "Ao cabo destes dias, feitos nossos
preparativos de viagem, subimos a Jerusalém. Acompanharam-nos alguns
discípulos da Cesaréia, que conduziram a casa de um tal Mnason,
certo cipriota antigo discípulo, aonde nos alojamos" (Atos,
21, 15-16).
Primeira constatação, Saulo-Paulo, que se diz que passou sua
juventude "aos pés de Gamaliel", o supremo sacerdote, e
em Jerusalém não conhece ninguém ali. E têm que
ser um dos discípulos da Cesaréia quem se ocupe de hospedá-lo,
a ele e a seu séquito.
Segunda constatação, os manuscritos gregos originais nos dizem
literalmente: "um antigo discípulo". Antigo? Mas de que
escola e de que corrente? Provavelmente um helenista que antigamente se
encontrava na Antioquia e que tinha abandonado Jerusalém por causa
das perseguições produzidas depois da morte de Estêvão
(cf. Atos, 11, 19-20).
Terceira constatação, os cavalos previstos exclusivamente
para Paulo destinam-se a levar seus equipamentos. Colocar-lhes-ão
selas, com um cesto em cada flanco; e os famosos livros e pergaminhos, sem
omitir o misterioso manto sobre o qual voltaremos a falar, citados na Segunda
Epístola ao Timóteo (4, 13), com tudo o que está acostumado
a levar consigo um viajante, tudo isso seguirá Paulo até sua
nova residência. Quanta solicitude por parte de um tribuno das coortes
para com um judeu qualquer, terá que ver! Nem que fosse cidadão
romano, pois destes já havia naquela época milhões,
dispersos por todo o Império. Resulta difícil imaginar ao
tribuno das coortes, magistrado com categoria de cônsul, prodigalizando-se
desta guisa com cada um deles... Afinal de contas a Antonia não era
uma agência de viagens, aberta a todo indivíduo do Império
que argüira sua qualidade de civis romanus.
A menos que, tendo em conta o que o leitor sem dúvida começa
a suspeitar, Claudio Lisias aplicasse ali já, antecipadamente, o
famoso refrão da Restauração: "Onde pode um encontrar-se
melhor que no seio de sua própria família?". (Cf. Marmontel,
Lucilo.)
O pequeno exército que escolta Paulo sairá, pois, de noite,
à terceira hora (ou seja, às nove da noite), da Cidade Santa,
e empreenderá ordenadamente o caminho até o Antipatrix, cidade
fundada antigamente por Herodes, o Grande, situada a uns sessenta quilômetros
de Jerusalém, e a uns quarenta e seis da Cesaréia. Ali fará
alto, e à manhã seguinte a tropa da pé retornará
a Jerusalém, deixando que os setenta legionários à
cavalo escoltem Paulo até Cesaréia Marítima.
Aqui temos, pois, nosso Paulo em lugar seguro, junto ao procurador Antonio
Félix. Este era um liberto, irmão de outro liberto célebre,
Palante, favorito de Agripina e ministro de Nero César. Este Félix,
ambicioso, brutal e dissoluto, gozava, conforme nos diz Tácito, "de
um poder quase principesco com uma alma de escravo". Era de fato, com
todo seu horror, o protótipo do arrivista.
Na Cesaréia não encerram Paulo em um calabouço, claro
está, mas sim alojam-no "em pretorio de Herodes", sob o
amparo de um guarda. (O palácio construído antigamente pelo
Herodes o Grande se converteu, conforme era costume entre os romanos, na
residência oficial do procurador; por isso recebia o nome de pretorio,
lugar onde se repartia a justiça.)
Cinco dias mais tarde, o supremo sacerdote Ananías foi com alguns
sanedritas e um advogado romano, um tal Tértulo, a Cesaréia,
e compareceu ante Félix. Este mandou chamar com toda cortesia Paulo,
e lhe cedeu a palavra, depois das acusações que formulasse
contra ele Tértulo. Este último tampouco andava pelos ramos,
pois segundo ele:
"Achamos que este homem é uma peste, que excita a rebelião
a todos os judeus do mundo inteiro, que é além disso chefe
principal da seita dos nazarenos!" (Atos, 24, 5).
Como vemos, no ano 58 não se falava já de Simão-Pedro
ou de Jacobo-Santiago como de chefes do messianismo. E com razão,
já que Tibério Alexandre, procurador de Roma, tinha-os feito
crucificar no ano 47 em Jerusalém, "como filhos de Judas da
Gamala".
*[ Cf. FLAVIO JOSEFO, Antigüidades judaicas, XX, v, 2.]
Paulo respondeu durante longo tempo à acusação de Tértulo,
e Félix, habilmente, postergou sua decisão a uma data posterior,
sem determiná-la concretamente. Logo: "Mandou ao centurião
que lhe custodiasse, embora lhe deixando certa liberdade e permitindo que
os seus lhe assistissem". (Atos, 24, 22-23.)
Entretanto, quem eram os seus?
Alguns dias mais tarde, Félix vai visitar Paulo, acompanhado de sua
esposa Drusila, e ali Paulo terá toda a margem que goste de discutir,
de maneira muito mundana, tanto com ela como com seu marido, sobre os temas
que lhe interessavam. E esse procurador, escandalosamente enriquecido, tanto
pelas exações cometidas no uso de suas funções
como por seu rico e adulador matrimônio, esse procurador ambicioso
adulará Paulo durante dois anos, conservando-o sob sua proteção,
já que: "Esperava que Paulo lhe desse dinheiro. Por isso lhe
mandava chamar muitas vezes para conversar com ele" (Atos, 24, 26.)
De maneira que esse "obscuro judeu" é bastante rico por
si mesmo, por seus segredos ou por sua família para fazer conceber
esperanças em um tímido procurador! Coisa que resulta simplesmente
incrível quando a gente pensa nos costumes da época e nos
métodos dos procuradores romanos. Caso se tratasse de um resgate,
a permanência no fundo de um tenebroso calabouço, encadeado
aos muros, com pão e água reduzidos ao mais estrito mínimo,
teria sido uma medida mais que suficiente para abrandar ao detido mais avaro.
Mas não se produz nada disso. Antonio Félix, que tem o direito
de vida ou morte mais total por mérito de suas funções,
está transbordante de considerações para com esse misterioso
agitador*.
*[É bem possível que Félix, conhecia Saulo-Paulo como
mago (como logo veremos), supôs que era também alquimista.
Era o normal! E a capital da alquimia antiga, Alexandria do Egito, estava
acerca de Judéia]
Passaram dois anos, que cobriram o fim da procura de Félix, e este
é substituído por Pórcio Festo, no ano 60. Esperando
então que desaparecesse a proteção de que gozava Paulo,
e confiando em enganar facilmente ao novo procurador, os judeus de Jerusalém
pedem a este que faça chegar Paulo à essa cidade para que
seja por fim julgado. Como se vê, os meses passaram, mas o Sanedrim
não esqueceu a importância do assunto. E conforme nos dizem
os Atos (25, 3), "preparavam uma emboscada para lhe matar no caminho".
Pelo visto Pórcio Festo foi posto à corrente por seu predecessor,
antes da partida deste, já que suspeita o que preparam os judeus,
e lhes declara que Paulo permanecerá na Cesaréia, e que só
escutará alguns dos principais dentre eles se tiverem algo que dizer
sobre o particular. E assim se faz. É então quando Paulo,
que evidentemente não ignora que vão soltá-lo sem dificuldades,
mas que desse modo submeter-se-á à ameaça de uma emboscada
imprevisível, tem idéia de conseguir que lhe autorizem ir
à Roma, às custas de Roma e sob a proteção de
Roma.
Para isso basta-lhe com o "Cesare apello", quer dizer solicitando
que lhe enviem "ante o César". Aqui a vitória é
dupla.
Com efeito, ao declinar Pórcio Festo sua competência, Paulo
já não podia escapar ao processo ante o Sanedrim se não
era reclamando o privilégio, reservado exclusivamente aos cidadãos
romanos, de poder fazer-se julgar, em causa criminal, pelo tribunal imperial
com sede em Roma.
E isto nos demonstra dois fatos notáveis:
a) nosso "obscuro judeu" é realmente cidadão romano,
o qual sublinha tudo o que estabelecemos anteriormente contra a deportação
ao Tarso e seu nascimento de pais judeus, originários da Giscala,
já que declarar tudo isto em falso implicava a morte por decapitação;
b) trata-se, efetivamente, de um caso de agitação política,
oculta sob um aspecto externamente religioso, como sublinhavam os membros
do Sanedrim, já que a lei Julia qualificava de "crime majestatis"
tudo o que constituíra, de perto ou de longe, "um atentado contra
o povo romano ou a ordem pública", e declarava culpado deste
crime a "quem quer que, com a ajuda de homens armados, conspire contra
a república, ou pelo qual nasçam rebeliões".
Por outra parte, se Paulo era de fato um "não judeu" de
origem (e o demonstraremos logo), se foi circunciso de adulto, podia ser
açoitado segundo os termos das leis romanas em caso de que esta circuncisão
tivesse sido efetuada a pedido dela, depois de ter sido admitido à
cidadania romana.
As leis do Império não proibiam um cidadão romano sua
conversão ao judaísmo, mas não aceitavam todas suas
conseqüências. Se um partidário se achava frente a uma
das obrigações das que os judeus de raça estavam dispensados
(como o serviço militar, por exemplo), não estava coberto
pelo privilégio judaico. Tampouco podia recusar participar do culto
aos deuses do Império sem correr o risco de ser acusado de ateísmo.
E por este motivo uma mulher podia sempre sofrer a acusação
de impiedade para as divindades de sua casa original. Sob o Tibério
César, uma tal Fulvia foi julgada deste delito por seu marido Taciturno
(cf. Jean Juster, Les Juifs dans l'Empire romain, leur condition juridique,
économique et socíale). Sob o Nero, Pomponia Graecina foi
também submetida a um tribunal doméstico, acusada de superstitio
externa, superstição estrangeira (cf. Tácito, Anais,
XIII, 32). Por último, uma severa lei, a Lex Cornelia de sicariis
et veneficis, castigava a castração, e sempre se podia identificar
a circuncisão com uma variedade de castração, tendo
em conta suas repercussões fisiológicas no campo sexual. E
assim se fez sob o reinado do Adriano (cf. Espartiano, História do
imperador Adriano, XIV, 2).
Sem lugar a dúvidas. Paulo não ignorava nada de tudo isto,
e em caso necessário sempre podia haver alguém que lhe delatasse
ante a autoridade ocupante. Agora bem, em Roma, ante o tribunal imperial,
Paulo sabe que gozará do influente amparo da Séneca, irmão
do pró-cônsul Galión, quem tão misteriosamente
o protegeu em Corinto. E põe todo seu interesse em ser conduzido
à capital do Império. Quem, naquela época, não
acariciaria semelhante sonho?
Sem dúvida Paulo dispõe dos meios materiais. Se o procurador
Antonio Félix esperou longo tempo a que tal Paulo lhe recompensasse
economicamente por seus favores, é que sabia que nosso homem estava
em condições de poder fazê-lo.
Mas oficialmente, desde sua circuncisão (e logo veremos em que ocasião
teve lugar). Paulo é judeu. E isso não pode negá-lo,
já que desde aquele momento leva impressa a marca em sua carne.
Agora bem, no ano 19 de nossa era Tibério expulsou os judeus da Itália,
excetuando tão somente àqueles que abjurassem em um prazo
de tempo determinado. (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII,
III, 5. Tácito, Anais, II, 85. Suetonio, Vida dos doze Césares:
Tibério, 36.)
Depois o imperador Claudio tinha reiterado, por sua vez, a mesma ordem de
expulsão no ano 50. Paulo Orosio, historiador eclesiástico
do século IV, diz-nos o seguinte: "Nesse mesmo ano, nono de
Claudio, Flavio Josefo conta que os judeus foram expulsos de Roma, por inspiração
do ministro Sejuán". (Paulo Orosio, História adversus
pagãs, Claudius Cesar.) Não obstante, aconselhamos ao leitor
que não procure este episódio do nono ano de reinado do Claudio
no Flavio Josefo, já que toda uma parte de suas Antigüidades
judaicas referente ao reinado de tal imperador foi censurada pelos monges
copistas. Este fato o encontrará unicamente no Suetonio, Vida dos
doze Césares: Claudio, XXV, embora sem assinalar a época exata:
"Como os judeus se revoltavam continuamente, instigados por um tal
Chrestos, expulsou-os de Roma".
Trata-se, com toda evidência, de judeus messianistas que passaram
ao cristianismo, e esse Chrestos é, de fato, o Christos, a quem Suetonio
crê ainda vivo, confundindo ressurreição e vida normal.
E é que, efetivamente, os escritores profanos dos dois primeiros
séculos de nossa era escreviam com regularidade Chrestus e Chrestiani,
como observa acertadamente Henri Ailloud em sua tradução de
Suetonio, em lugar de Christus e Christiani.
Por conseguinte, na Itália, e mais concretamente em Roma, os únicos
judeus que podem residir são os que se acham em estado de escravidão.
A eleição do "Cesare apello" é, por conseguinte,
um golpe de mão magistral por parte de Saulo-Paulo.
Por último, e como coroação a essas relações
e esses aduladores amparos, resulta que depois de Félix e Drusila,
acodem a Cesaréia Marítima o rei Herodes Agripa II e a princesa
Berenice, sua irmã, quem, depois de ter enviuvado de Herodes de Caléis,
vive incestuosamente com ele. Ambos são irmãos de Drusila
e, portanto, cunhados do procurador Félix. As duas mulheres são
célebres por sua beleza. A família está, pois, completa,
e podemos supor que foi Paulo o motivo desta reunião. Curiosidade?
Indubitavelmente, mas também há outro motivo, que logo conheceremos.
O tom das conversações é bastante amistoso, e a chegada
do casal real causou sensação: "Assim no dia seguinte
chegaram Agripa e Berenice com grande pompa, e entraram na sala da audiência,
rodeados dos tribunos e dos personagens de mais relevo da cidade".
(Atos, 25, 23.)
Esses tribunos eram cinco, e cada um deles estava ao mando de uma das cinco
coortes de veteranos estabelecidos em Cesaréia. Quanto interesse
e quanta preocupação por esse suposto "tarsiota",
antigo deportado, antigo escravo do Império!
Nota: Sobre a importância do número de cidadãos romanos
no Império, assinalemos que os veteranos legionários, que
tinham abandonado sua coorte para retirar-se, recebiam um título
com o reconhecimento do povo romano, título que recebia o nome de
honesta missio. Implicava um certo número de privilégios diversos,
entre os quais se achava o da cidadania romana, se o veterano não
a possuía já com antecedência, adquirida por algum ato
de guerra. Quer dizer, que a qualidade de civis romanus, com a que se arma
tanto exagero em torno de Saulo-Paulo, não era em si nada extraordinário.
3 - A viagem à Roma
Roma [...] Lugar onde conflui e encontra numerosa clientela tudo que de
espantoso e vergonhoso há no mundo.
TÁCITO, Anais, XV, XLIV
A viagem de Paulo à Roma se efetuou sob os melhores auspícios,
como todo o anterior. Foi crédulo ao centurião Julio, da coorte
da 7.a Augusta, legião composta por mercenários sírios
e a que, por esse motivo, denominava-se Legião síria. Com
eles se embarcou Aristarco, um macedônio nascido na Tessalonica que
devia ser já um colaborador de Paulo, dado que mais tarde será
seu companheiro de cativeiro. E também havia outros prisioneiros,
estes autênticos, que eram ou guerrilheiros zelotes, ou criminosos
de direito comum, destinados aos cruéis jogos circenses ou a suas
feras.
Assim, a Navem Adramyttium levantou âncoras e abandonou Cesaréia
em princípios do outono do ano 60, para fazer escala à manhã
seguinte em Sidon, Fenícia. O centurião Julio, evidentemente
cumprindo ordens recebidas antes, deixou Paulo em liberdade para que fosse
visitar "seus amigos e receber seus bons ofícios". Como
vemos, os favores continuam.
Economizaremos ao leitor as peripécias que acompanharam à
viagem de Paulo, tendo em conta de que a navegação marítima
não era coisa fácil naquela época. Poderá encontrá-las
nos Atos dos Apóstolos, de 27, 1, a 28, 16.
Por fim temos Paulo desembarcado em Puzolo, no golfo de Nápoles.
E os gracejos dos escribas anônimos dos séculos IV e V vão
continuar. Julgue-se: "Onde encontramos irmãos, que nos rogaram
que permanecêssemos com eles sete dias. E assim foi como chegamos
a Roma. Os irmãos desta cidade, informados de nossa chegada, vieram
a nós até o Foro de Apio e às Três Tavernas.
Paulo, ao vê-los, deu graças a Deus e recobrou ânimo.
Quando entramos em Roma, permitiram ao Paulo morar em casa própria,
com o soldado que lhe custodiava". (Atos, 28, 13-16.)
Estamos, pois, obrigados a admitir que em Puzolo o centurião Julio
foi convidado pelos irmãos, e que ele, oficial romano encarregado
de uma missão, aceitou permanecer uma semana inteira em um lugar
infestado de judeus messianistas, e por conseguinte suspeitos. E por que
prodígio se encontravam na Itália? Os decretos de Tibério
e de Claudio não foram derrogados em nenhum momento. De maneira que
se tratava de judeus escravos. E estão eles em condições
de oferecer convites para uma semana? E pode um legionário romano
arriscar-se em semelhante ambiente? Incrível!
A seguir outros judeus, desta vez romanos, vêm ao encontro de Paulo,
e nada menos que até o Foro de Apio, na via Apia, quer dizer a 64
quilômetros de Roma. Outros vão só até Três
Tavernas, que está a 49 quilômetros da capital. Ida e volta
representam perto de 134 quilômetros para os primeiros, e perto de
100 quilômetros para os segundos. Uma grande honra para um obscuro
judeu. Além disso, esses judeus escravos dispõem de muita
liberdade. Continuemos formulando uma pergunta: como podem existir já
"irmãos", quer dizer cristãos, em Roma, se alguns
versículos mais tarde nos Atos dos Apóstolos nos dizem o contrário?:
"Ao cabo de três dias convocou aos judeus principais. Quando
reunidos disse-lhes: Irmãos, sem ter feito nada contra nosso povo
nem contra os costumes de nossos pais, fui detento em Jerusalém e
entregue aos romanos. Depois de me interrogarem, estes quiseram me pôr
em liberdade porque não havia nada contra mim que merecesse a morte.
Mas como os judeus se opunham, vi-me obrigado a apelar ao César,
embora sem querer acusar de nada a minha nação. Por isso quis
lhes ver e lhes falar, pois só pela esperança de Israel levo
estas cadeias. Eles lhe responderam: Nós não recebemos da
Judéia nenhuma carta a seu respeito, nem nenhum dos irmãos
que tenham chegado aqui nos comunicou ou falou nada de mau. Mas queríamos
ouvir de sua boca o que você pensa, pois a respeito dessa seita nos
é conhecido que em todas partes a contradiz". (Atos, 28, 17-22.)
Expomos já um certo número de observações, muito
embaraçosas para nossos anônimos redatores dos Atos:
a) Paulo, prisioneiro, tem a possibilidade e a autoridade suficiente para
permitir-se convocar aos judeus mais notáveis. É surpreendente;
b) chama-os irmãos, igual àqueles que foram ao seu encontro
em Três Tavernas e no Foro de Apio; portanto não estabelece
diferenças entre eles, o que prova que são os mesmos;
c) não fala de uma religião nova a esses notáveis,
mas sim de uma esperança, própria de Israel. E que esperança,
a não ser a do fim do jugo romano? Esta esperança é
o imóvel messianismo;
d) Paulo não leva nenhum tipo de cadeias, está simplesmente
obrigado, quando se desagradar à cidade, a levar uma cadeia curta,
que une seu pulso direito ao pulso esquerdo do legionário que o custodia,
enquanto dura tal deslocamento. Em sua casa, em sua residência romana,
está livre de ataduras. Esse é o costume na "custódia
militaris", espécie de cativeiro sob palavra e honorífico;
e) os irmãos "chegados" a Roma e dos que falam os judeus
notáveis não são os cristãos, já que
imediatamente depois os citados notáveis declaram não saber
nada do novo partido ao qual pertence Paulo, e só sabem que em todas
partes encontra oposição. E esses irmãos são
forçosamente judeus, já que estão em contato imediato
com os outros. Portanto não há cristãos em Roma nesse
momento, ao menos no sentido que damos agora a tal termo, à parte
os que encontraremos no palácio de Salomé II, rainha da Armênia;
f) por último, não se trata de uma religião nova, mas
sim de um partido. São Jerônimo, em seu Vulgata latina, utiliza
o termo seita, que significa tanto uma facção política
como um partido ou uma seita religiosa. Os manuscritos gregos mais antigos
utilizam a palavra airesis, que significa deste modo seita, partido, facção,
com o sentido de heresia (que se desprende dela), e isso em todos os campos,
tanto político como religioso. Por conseguinte não é
muito fácil precisar o que nesse debate se subentende por tal termo.
Ao chegar em Puzolo, por Três Tavernas, Paulo passou por Velletri
e atravessar os Montes Albanos, do alto dos quais contemplou pela primeira
vez Roma, capital do Império romano.
Ao descender dos Montes Albanos pela via Apia, penetrou na cidade pela Porta
Capena, situada então aproximadamente na convocação
da atual Porta de São Sebastião. Segundo um pequeno número
de manuscritos, o centurião Julio entregou Paulo e aos outros prisioneiros
ao oficial que devia recebê-los. Este homem devia ser o praefectus
castrorum, que provavelmente estava ao mando do acampamento dos milites
peregrini ou castra peregrinorum, o que nós chamaríamos "acampamento
das tropas de passagem" em linguagem militar moderna.
Imediatamente depois foi transferido ao Castro pretorio, acampamento principal
dos pretorianos, não longe da Via Nomentana, e por último
foi entregue ao oficial que representava ao prefeito do pretorio. E ali
encontramos ainda uma nova surpresa.
Este cargo ocupava então Afranio Burro, e, Oh azar! Casualmente era
grande amigo de Lucio Anneo Séneca e, com este, conselheiro de Nero
César, depois de ter sido ambos seus preceptores. O leitor convirá
conosco que o "azar" faz bem as coisas. Afranio Burro era estóico,
e portanto admirador do sistema filosófico baseado em Zenón
de Citium, a finais do século IV antes de nossa era. E Séneca
era também estóico.
Pois bem, o elogium, quer dizer o relatório de Pórcio Festo
sobre esse civis romanus que era Paulo, não podia ser mais favorável;
o comportamento do procurador, do rei Agripa e da princesa Berenice para
com nosso homem faziam-no prever. As conclusões verbais destes personagens
também. Festo, interrompendo Paulo, diz-lhe amigavelmente: "Você
delira, Paulo! As muitas letras lhe tornaram louco", e o rei Agripa
brinca com ele, e declara: "Pouco mais, e me persuade de que me faça
cristão" (Atos, 26, 24-28).
Ambos lamentam sinceramente que Paulo faça o "Cesare apello",
já que, conforme declara o rei Agripa ao Festo: "Poderia colocá-lo
em liberdade, se não tivesse apelado ao César". (Atos,
26, 32.) Não suspeitam que Paulo tem seu plano, bem estabelecido,
longo tempo maturado, e que aponta em realidade a conseguir chegar à
capital do Império, se considerarmos o que sabe dos projetos de Menahem,
desde que tiveram lugar seus conciliábulos na Antioquia, e que não
ignora que se fixou já uma data para sua realização.
Coisa que logo constataremos, ao resplendor das chamas de Roma...
Voltando para elogium de Pórcio Festo, tal relatório se perdeu
no naufrágio que sofreram durante a travessia, mar adentro, frente
às costas de Malte. Mas é um detalhe que carece de importância,
já que o centurião Julio, ao ver-se privado de tão
capital documento, o substituiria facilmente pela exposição
detalhada das instruções recebidas da boca do procurador Festo
antes de sua partida; e a benevolência que estava encarregado de manifestar
para com seu prisioneiro em todas as circunstâncias advogava inequivocamente
em favor deste último. Tanto mais que Paulo, em sua Epístola
aos Romanos, já tinha tomado por sua conta a dianteira. Julgue-se!
Quando estava em Corinto, onde como se viu recebeu amparo -e com quanta
prontidão- do pró-cônsul Galión durante o inverno
de 51-53, vários anos antes desta data já tinha redigido e
expedido a famosa carta aos "irmãos" de Roma (o que prova
que já tinha disposto seu plano, bem maturado). Agora já sabe
a que porta chamar, sabe de antemão que proteções eventuais
lhe esperam ali. Basta lendo atentamente as saudações finais:
"Saúdem os da casa de Aristóbulo, saúdem o Herodião,
meu parente. Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor."
(Cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 16, 10-12.)
Quais são os da "casa do Aristóbulo"? Quem é
"Herodião, meu parente"? Quais são os "da casa
de Narciso"? Em definitivo, protetores tão poderosos como os
que já tinha encontrado em Jerusalém e na Cesaréia.
E é evidente que em Corinto, Galión, irmão da Séneca,
tinha-lhe orientado sobre o interesse que tinha para ele que fora a Roma;
e ao chegar ali, Paulo é recebido, sempre por mediação
de Galión, pelo Afranio Burro, prefeito do pretorio, amigo da Séneca
e, como dissemos, conselheiro e ex-preceptor de Nero César, como
aquele. É óbvio que os crentes verão nisso um milagre
a mais, a mão da Providência, mas o historiador lúcido
o que vê é simplesmente um plano bem organizado.
Com efeito, "os da casa de Aristóbulo" são os servidores
de Aristóbulo III, favorito de Nero, que no ano 54 recebeu deste
o reino da Pequena Armênia; logo, no ano 60, uma parte da Grande Armênia,
e por último, no 70, receberá o reino de Caléis. É
o segundo marido de Salomé II, neta de Herodes, o Grande, e amiga
de Jesus, a quem ajudou com seus denários na campanha anti-romana,
e de quem o Evangelho conforme Tomás relata estas assombrosas palavras:
"Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem
saiu para meter-se em minha cama e comer em minha mesa?" E Jesus disse-lhe:
"Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-me
o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua
discípula!".". (Evangelho de Tomás, LXV, manuscrito
copto do século IV, descoberto em Khenoboskion, no Alto Egito, em
1947, tradução de Jean Doure, Pión, Paris, 1959.) [Cf.
Jesús o el secreto mortal de los templarios, p. 295.]
Desse novo matrimônio, Salomé II e Aristóbulo III tiveram
três filhos, três varões: Herodes, Agripa e Aristóbulo.
Herodião (o "pequeno Herodes") é seu filho maior.
E se Paulo (ainda Saulo) declara-se parente dele, é que o é
deste modo de Aristóbulo III e de Salomé II. E efetivamente,
como logo veremos, eram primos! De maneira que estamos muito longe do "obscuro
judeu", o leitor terá que reconhecê-lo.
Os da "casa de Narciso" são aqueles que, ingressaram à
nova ideologia, são libertos ou escravos na mansão principal
de um dos favoritos de Claudio César. Esse Narciso, Claudii Narcissus
libertas em seu nome latino, quer dizer "Claudio Narciso, o liberto"
(tomava o nome do antigo amo que os escravisara), à morte de Claudio
César e ao advento de Nero, no ano 54, caiu em total desgraça,
coisa que foi fatal: "Sem mais demora. Narciso, liberto de Claudio,
cujas questões com Agripina já relatei, é empurrado
à morte em um encarceramento rigoroso e sujeito a violência,
com grande pesar de Nero, cujos vícios, ainda secretos, acomodavam-se
maravilhosamente a sua avareza e sua prodigalidade". (Tácito,
Anais, XIII, 1.)
Com grande rapidez Paulo contará com filiados no próprio palácio
de Nero, e estes se acharão no ano 64, durante o incêndio de
Roma, em situação de sustentar a fábula de que Nero
compunha um poema sobre o incêndio de Tróia enquanto contemplava
as chamas que devoravam seu capital. Porque esta fábula será
a única explicação dada pelos verdadeiros incendiários,
como logo veremos. Em realidade Nero encontrava-se em Antium, sua cidade
natal, quando se produziu o incêndio, e a notícia não
lhe chegou até o quarto dia; então cobriu em poucas horas
os 50 Km que separam essa cidade de Roma, queimando etapas. Imediatamente
adotou todas as medidas para ajudar aos sinistrados, fazendo distribuir
mantimentos e lhes abrindo as portas de todas suas mansões e jardins.
Voltando para os afiliados (íamos dizer aos cúmplices) que
rapidamente terá Paulo no palácio de Nero César, citaremos
simplesmente a Epístola aos Filipenses, redigida no ano 63, que precedeu
ao incêndio de Roma: "Eles saúdam os irmãos que
estão comigo. Eles saúdam todos os Santos, e principalmente
os da casa de César". (Paulo, Filipenses, 4, 22.)
Mas não pense que nosso homem só tinha contatos com escravos
ou libertos de classe inferior. Já vimos que em Corinto se beneficiou
instantaneamente, sem ter aberto a boca sequer, do amparo dos pretorianos
do governador da Acaia, Galión. Vimos como o acolhiam em Roma Afranio
Burro, prefeito do pretorio, amigo de Séneca, de quem era irmão
Galión. Não duvidaremos em afirmar que, em Roma, estaria efetivamente
em contato com o próprio Séneca. Continua sendo uma prova
bastante válida destas relações a correspondência
apócrifa que lhes atribui. Conservam-se quatorze cartas, oito delas
de Séneca ao Paulo, e seis de Paulo a Séneca. São apócrifas,
onde se constata por sua composição, sua trivialidade, e também
pelo fato de que o falsificador imaginou que as cartas dos dois correspondentes
se achavam milagrosamente, reunidas. Pois bem, na realidade cotidiana as
duas partes de uma correspondência, envios e respostas, estão
sempre separadas, ou inclusive dispersas, a causa do próprio afastamento
de seus recíprocos destinatários.
De todo modo, a existência de uma correspondência apócrifa
dá para aceitar que existia uma correspondência autêntica.
Que esta última se perdesse ou fosse destruída, que as cartas
de Paulo à Séneca fossem confiscadas durante o processo deste
último, envolto na conspiração do Pisón no ano
66 (Caio Calpurnio Pisón, quem conspirou contra Nero e morreu no
ano 65), é um fato plausível, ou inclusive provável.
Do mesmo modo, que as de Séneca ao Paulo foram confiscadas quando
este foi detido em Troas, à entrada dos Dardanelos, no ano 66, ou
que resultassem destruídas durante o incêndio de Roma, no 64,
é também outro fato plausível.
De qualquer maneira, não pode esquecer-se que São Jerônimo
faz alusão a uma correspondência entre esses dois homens, e
que a considera autêntica. Se se tratava ou não do mesmo lote
de cartas é um mistério que não podemos esclarecer
no estado atual de nossa documentação.
Vejamos o que diz São Jerônimo no ano 362: "Lucius Annaeus
Séneca [...] Eu não o situaria na lista dos autores cristãos
se não incitassem a isso essas cartas, lidas por tão grande
número de gente, de Paulo à Séneca, e reciprocamente.
Nessas cartas, tal mestre de Nero, o homem mais poderoso de seu tempo, declara
que desejaria ocupar entre a sua a classe que ocupa Paulo entre os cristãos.
Foi condenado a morte por Nero dois anos antes de que Pedro e Paulo recebessem
a coroa do martírio". (Cf. Jerônimo, De viris illustribus
XII...)
O mesmo temos em São Agustín. Em uma carta escrita no ano
414, quer dizer vinte anos depois de São Jerônimo, ao Macedônios,
declara: "Com razão Séneca, que viveu em tempos dos apóstolos,
e de quem inclusive se lêem as cartas que dirigiu a São Paulo,
exclama: Esse, que odeia a todo mundo, que odeia aos malvados...".
Lipsius, quando cita ao pseudo-Linus, confirma a sua vez a existência
de uma correspondência entre Paulo e Séneca: "O próprio
preceptor do imperador, ao ver em Paulo uma ciência divina, trava
com ele uma amizade tão forte que não podia passar sem sua
conversação. De maneira que, quando não tinha a possibilidade
de conversar com ele cara a cara, enviava-lhe e recebia freqüentes
cartas". (Cf. Lipsius, Acta apostolorum apocrypha, tomo I.)
Concluamos, pois, que existiu uma correspondência entre Paulo e Séneca,
mas que não chegou até nós. E se Paulo contava com
filiados dentro da "casa de César", devia ir ali com freqüência,
a fim de conversar com eles, e o amparo de Galión, assim como de
Afranio Burro, implicam a de Séneca, é evidente. Lipsius não
inventa nada.
E agora podemos abordar a última questão: Quem era Paulo em
realidade? A resposta não é singela, embora da mais surpreendente.
Ao começo deste estudo sobre "o homem de Tarso", aplicamo-lhe
o qualificativo de "tricéfalo". E com efeito, os escribas
dos séculos IV e V amalgamaram palavras, fatos e acontecimentos correspondentes
à três existências distintas, à três personagens
completamente estranhos uns aos outros.
Se o "príncipe dos Apóstolos", Simão-Pedro,
não pôs jamais os pés em Roma, se não morreu
ali com Paulo durante a primeira perseguição contra o cristianismo,
não obstante é inegável que existiu. E sua crucificação
em Jerusalém no ano 47, junto com seu irmão Jacobo-Santiago,
em sua qualidade de "filhos de Judas da Gamala", por ordem de
Tibério Alexandre, procurador da Judéia, prova-o sobradamente.
[Cf. Jesús o el secreto mortal de los templarios, pp. 88-89.]
Não podemos dizer o mesmo de Paulo, salvo se se busca, no referente
a seu fim terrestre, o dos três personagens que o compõem.
E não é fácil, reconheçamo-lo. É bastante
singelo demonstrar esta "composição" última,
ao menos no que diz respeito à dois de seus "componentes".
E para o terceiro, aí está a História.
4- Um príncipe herodiano chamado Shaul
Afortunado aquele que não lhes conhece apenas, e mais afortunado
aquele que não tem nada que ver!
VOITURE, Poésies, os príncipes
Já o vimos, estamos forçados a rechaçar a cidade de
Tarso, por não ter desempenhado nenhum papel na vida de nosso personagem.
Sabemos que fugiu de Damasco de noite, em um cesto grande (Atos, 9, 25).
Mas Paulo não responsabiliza por isso os judeus, ele mesmo os descarta:
"Em Damasco, o governador do rei Aretas pôs guardas na cidade
dos damascenos para me prender. Mas desceram-me por uma janela, em uma cesta,
muralha abaixo, e assim escapei de suas mãos". (Paulo, II Coríntios,
11, 32.)
Nessa época Damasco pertencia, em efeito, ao Aretas IV, rei da Arábia
nabatea. No ano 36 de nossa era Tibério César tinha empreendido
inutilmente uma campanha contra esse soberano. Ao ano seguinte, por conseguinte
em 37, Calígula sucedeu à Tibério, e segundo bom número
de historiadores sérios, cedeu Damasco ao rei Aretas, em testemunho
de uma paz livremente consentida. Esta hipótese vem confirmada pelo
fato de que, apesar de que existem moedas damascenas com a efígie
gravada de Tibério, não há nenhuma com a imagem de
Calígula ou de seu sucessor Claudio.
Sobre o motivo de tal tentativa de captura de Paulo pelos guardas do etnarca
do Aretas IV teremos ocasião de voltar.
Seja como for, o apelido de tarsiota dado ao Paulo tem sua origem simplesmente
no meio que utilizou para sua fuga. Porque em grego tarsos significa "Nasa,
cesto, cesta". Saulo de Tarso significa, em realidade, "Saulo
do cesto", apelido humorístico. Coisa que já faziam pressagiar
as afirmações contraditórias sobre seu nascimento em
Giscala, na alta Galiléia.
Mas então quem é Paulo? Voltemos para os Atos dos Apóstolos:
"Eles, gritando em vozes altas, tamparam os ouvidos e todos eles se
jogaram sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e apedrejaram-no.
As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado
Saulo. E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia:
Senhor Jesus, recebe meu espírito..." (Atos, 7, 57-59.)
"Saulo tinha aprovado a morte de Estêvão..." (Atos,
7, 60.)
"Ao Estêvão alguns homens piedosos levaram-no para enterrar
e fizeram sobre ele grande luto. Pelo contrário, Saulo devastava
a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e mulheres e os fazia encarcerar..."
(Atos, 8, 2-3.)
"Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos
do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote lhe pedindo cartas de recomendação
para as sinagogas de Damasco, a fim de que, ali achava quem seguisse esse
caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém..."
(Atos, 9, 1-2.)
Esses quatro extratos dos Atos dos Apóstolos não constituem,
como se vê, e em boa lógica, a não ser um amálgama
de contradições.
Vejamos alguns detalhes sobre a lapidação judicial em Israel:
À quatro cotos (42 cm) do lugar do suplício retiravam do condenado
suas vestimentas, à exceção de uma só, que o
tampasse a frente, se era um homem, e a frente e por detrás se era
uma mulher. Esta é a opinião do rabino Judá, mas os
rabinos declaram que tanto ao homem como à mulher lhes devia lapidar
nus. A altura da convocação era a de duas alturas de homem.
Uma das testemunhas (acusador) derrubava o condenado, de maneira que ficasse
sobre os calcanhares; se dava a volta, a testemunha o devolvia à
posição desejada. Se por causa desta queda morria, a Lei se
considerava satisfeita. Senão, a segunda testemunha (acusador), agarrava
a pedra e lançava apontando ao coração. Esta "primeira
pedra" (veja-se João, 8, 7) devia ser suficientemente pesada
como para que fossem necessários dois homens (as duas testemunhas
requeridas pela acusação) para levantá-la: "Dois
deles levantam-na no ar, mas um só a lança, de maneira que
golpeie mais forte". (Sanedrim, -45, B.) Se o golpe resultava mortal,
fazia-se justiça. Senão, a lapidação incumbia
coletivamente a todos os israelitas. Porque está escrito: "A
primeira mão que se levantará contra ele para matá-lo
será a mão das testemunhas; a seguir será a mão
de todo o povo". (Deuteronômio, 17, 7.)
O que damos aqui é um resumo das regras judiciais da lapidação
tal como estão prescritas pelo Talmud, e muito antes pelo Pentateuco
em seu Deuteronômio.
Pois bem, se um "jovem chamado Saulo" se limita a montar guarda
diante das vestimentas das testemunhas, é que não participa
da lapidação. Para esta anomalia só há duas
possíveis explicações.
A primeira é que o jovem é um menino de menos de doze anos,
e por conseguinte ainda carece da maioridade legal para estar sujeito a
todas as obrigações da Lei judia. Sobre este particular remetemos
o leitor ao capítulo 12 de nosso anterior volume, capítulo
intitulado "Jesus entre os doutores". Mas nesse caso, como podia
ter voz no capítulo, e aprovar a condenação de Estêvão?
E como pode, pouco depois, "devastar a Igreja, e entrando nas casas",
com uma inevitável escolta de gente armada (necessariamente levita
do Templo, postos ao seu dispor pelo estrategista deste), arrastar às
pessoas e fazer encarcerá-las? E como se atreve este menino a apresentar-se
frente ao pontífice de Israel e lhe pedir cartas de recomendação
para operar em Damasco, cidade que pertence a outro reino?
Para todas estas inverossimilhanças (e esta palavra é ainda
muito fraca para qualificar semelhantes estupidez), fica outra explicação.
Encontraremo-la em Flavio Josefo. Mas antes recordemos que a Confissão
de São Cipriano dava por certo que as cartas de recomendação
de que dispunha Saulo-Paulo para atuar em Damasco foram entregues pelo governador,
termo sinônimo ao de procurador nos textos neo-testamentários,
e não pelo supremo sacerdote. De modo que Saulo estava às
ordens das autoridades romanas de ocupação, e não das
autoridades religiosas judias. E agora vejamos o que diz Flavio Josefo,
ou ao menos o que os monges copistas tiveram por bem nos deixar: "Uma
vez morto Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e ao rei Agripa
[...] Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número
de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os
fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos
e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis. Foi principalmente
então quando começou a ruína de nossa nação,
pois as coisas foram de mal a pior". (Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, XX, 8.)
Não recorda isto nada ao leitor? Teremos que voltar a consultar as
passagens, antes citadas, dos Atos (8, 3, e 9, 8), onde vemos Saulo e seus
homens armados penetrando nas casas, tanto em Jerusalém como em Damasco,
e arrancando delas às pessoas para colocar na prisão? Esse
Saulo dos Atos não será o mesmo que o das Antigüidades
judaicas?
Pois bem, agora nos encontramos no ano 63 de nossa era, nono ano do reinado
de Nero, dado preciso, indiscutivelmente, pela morte do procurador Pórcio
Festo e a chegada de seu substituto: Albino Lucayo, mais tarde posto por
Nero à frente da Marítima Cesaréia, e, ao suspeitar
que pretendia proclamar-se rei sob o nome de Juba, foi degolado quando desembarcou,
por ordem de Vitelo. (Cf. Tácito, Histórias, II, 78-79.)
Assim, no ano 63 Saulo ainda não se teria convertido, enquanto que
os exegetas da Igreja asseguram que sua conversão dataria de aproximadamente
o momento da lapidação de Estêvão, ou seja no
ano 36! Mas continuemos escrutinando ao Flavio Josefo: "Os grandes,
vendo que a rebelião chegara a tais extremos; que sua autoridade
já não era capaz de reprimi-la, e que quão males cabia
temer da parte dos romanos recairiam principalmente sobre eles, decidiram,
a fim de não esquecer nada para tentar dissuadi-los, enviar deputados
a Floro, dos quais Simão, filho de Ananías, era o chefe, e
outros ao rei Agripa, os principais dos quais eram Saulo, Antipas e Costobaro,
parentes deste príncipe, para rogar a um e ao outro que fossem com
tropas a Jerusalém, a fim de apagar as rebeliões antes de
que cobrassem ainda mais força". (Cf. Flavio Josefo, Guerra
dos judeus, II, 31.)
Segundo essa passagem nos encontramos no ano 66, "antes de 15 de agosto",
e Gessio Floro é procurador desde o ano 63. Menahem, neto de Judas
da Gamala, que foi criado "com o Herodes o Tetrarca e Saulo" (Atos,
13, 1), aparecerá na cena política e unificará aos
sediciosos ao apoderar-se da praça forte da Massada, e os judeus
a conservarão até o ano 73, data da tomada desta praça
e do célebre suicídio coletivo de seus defensores.
Mas prossigamos: "Depois de um fato tão desafortunado acontecido
ao Cestio, vários dos principais judeus saíram de Jerusalém,
como teriam saído de uma nave a ponto de naufragar* Costobaro e Saulo,
que eram irmãos, e Felipe, filho de Joaquim, que tinha sido general
do exército do rei Agripa, retiraram-se com o Cestio. E em outro
lugar direi como Antipas, que tinha sido assediado com eles no palácio
real, ao não querer fugir, morreu em mãos desses sediciosos.
Cestio enviou então Saulo e aos outros [Costobaro e Felipe, filho
do Joaquim] junto ao Nero, que então se achava em Acaia, para lhe
informar de sua derrota e fazer recair as culpas sobre Floro, a fim de acalmar
sua cólera contra ele, fazendo-a recair sobre outro". (Cf. Flavio
Josefo, Guerra dos judeus, II, 41.)
*[Segundo Eusebio de Cesárea, os membros da Igreja de Jerusalém
abandonaram a cidade antes da guerra que estouraria, e retiraram-se à
uma cidade de Perea chamada Pella. (Cf. Eusebio de Cesárea, História
eclesiástica, III, v, 3.) Trata-se, evidentemente, do mesmo episódio,
porém abaixo de Eusebio os "principais judeus" convertem-se
em "cristãos". De fato, confessa que a notícia transmitida
"por profecia, aos notáveis do lugar", portanto, aos judeus,
e não aos cristãos.]
Esse Cestio Galo é então governador de Síria, enquanto
que Gessio Floro é tão somente procurador da Judéia,
submetido à autoridade do primeiro, desde o ano 63. Achamo-nos "depois
do 8.° dia de novembro, ano 12 do reinado de Nero César",
quer dizer no ano 66, já que Josefo é ainda governador da
Galiléia, e João, da Giscala, logo entrará em cena.
Agora nos encontramos frente ao duplo beco sem saída no que se extraviaram
imprudentemente os escribas anônimos dos séculos IV e V, ao
censurar, interpolar e extrapolar a mão direita e sinistra, com o
único fim de assentar uma impostura que naquela época podia
esperar durar (dado o analfabetismo das massas), mas que não resiste
à crítica racional de nossa época. Recapitulemos, pois:
1) É indiscutível que o Saulo dos Atos e das Epístolas,
que foi criado com Menahem e Herodes o Tetrarca, que oprime e captura aos
cristãos, que é parente de Herodião, filho primogênito
de Aristóbulo III, rei da Armênia, e de Salomé II, sua
esposa, e que portanto é primo destes últimos, que tem relações
entre "os da casa de César" e "os da casa de Narciso",
que é protegido pelo Gallón, "amigo de César"
e pró-cônsul da Acaia, irmão da Séneca, o Saulo
a quem o tribuno Lisias dá uma escolta de 470 soldados, e que a seguir
é protegido pelo procurador Félix, que discute amigavelmente
com o rei Agripa e as princesas Drusila e Berenice, que é acolhido
pelo prefeito do pretorio. Burro, em pessoa, conselheiro de Nero junto à
Séneca, que conversa e mantém correspondência com este
último, é indiscutível, dizíamos, que esse Saulo
é o mesmo que o Saulo irmão de Costobaro, ambos os "príncipes
de sangue real", porque são netos de Salomé I, irmã
de Herodes, o Grande (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, passim),
e que oprimem a determinados elementos da população.
E obteve facilmente a qualidade de cidadão romano, se relermos com
atenção à Flavio Josefo: "Salomé, irmã
de Herodes, o Grande, legou por testamento à imperatriz Livia, esposa
de César Augusto, seu toparquía, com a Jamnia e os palmeiras
que fizera plantar em Faraélida". (Flavio Josefo, Guerra dos
judeus, II, XIII.)
Salomé I, avó de Saulo e de Costobaro, morreu no ano 14 de
nossa era. Seus laços de amizade com a domina augusta eram normais,
e eram fruto que os imperadores romanos manifestaram sempre para com seu
irmão Herodes, o Grande. Assim pôde obter provavelmente a cidadania
romana para seu marido Costobaro I.
O Saulo dos Atos e o Saulo de Flavio Josefo não são pois,
inicialmente, uma mesma e única pessoa. E se as datas não
coincidem com exatidão, é porque se censurou, interpolado
e extrapolado à torto e a direito, como veremos logo ao analisar
os Atos dos Apóstolos.
2) O Saulo do Novo Testamento, efetivamente, não é um judeu
de raça, pelas razões seguintes:
a) ignoramos totalmente seu nome de circuncisão, "Saulo-bar-X...",
igual ao de seu pai. Agora bem, as famílias judias conservavam cuidadosamente
sua genealogia. É óbvio que nos oculta alguma coisa;
b) todo judeu tinha que possuir um ofício manual, e os rabinos igual
a outros. Este costume era lei, e um velho provérbio judeu dizia
que um homem sem ofício era considerado como um bandido em potência.
Pois bem, nos diz que Saulo, para viver, tecia lonas para tendas: "...e
como era do mesmo ofício que eles, ficou em sua casa e trabalharam
juntos, pois eram ambos fabricantes de lonas". (Atos, 18, 3.) O homem
que tem o mesmo ofício que Paulo é Aquilas, originário
do Ponto, reino da Ásia Menor do Nordeste. De modo que não
é mais que um judeu da Diáspora, procedente de uma região
onde se vive em tendas. Seu próprio nome não é hebreu.
Agora bem. Paulo, segundo nos diz, vem de Jerusalém, onde realizou
todos seus estudos rabínicos aos pés do grande doutor Gamaliel
(Atos, 22, 3), o que representa toda sua adolescência e sua idade
madura até sua conversão. E faz mais de um milênio que
os judeus se tornaram sedentários na Palestina. Ao ter deixado de
ser um povo nômade, já não vivem sob tendas, a não
ser em aldeias e cidades. Numerosos rabinos são carpinteiros e trabalhadores
de pedreira. Mas tecer tendas com pelo de cabra, destinadas à nômades
pagãos, seria indigno de um judeu legalista. Trata-se de um ofício
e uma necessidade próprios daqueles que saíram de povos em
grande parte dedicados ao pastoreio, quer dizer de árabes, idumeus
e nabateus.
Pois bem, o Saulo irmão do Costobaro é idumeu por parte de
pai e pela filiação Iduméia paterna deste, mas por
parte de sua mãe e sua bisavó Cypros, é de filiação
nabatea. Esta última, conforme nos diz Flavio Josefo, pertencia a
uma das mais ilustres famílias da Arábia (cf. Flavio Josefo,
Guerra dos judeus. I, VI), famílias às quais ainda hoje se
conhece como as dos "senhores das grandes tendas".
De todo modo, é difícil admitir que Saulo, príncipe
herodiano de sangue real, achou-se jamais na necessidade de aprender outro
ofício que não fora o das armas, e não são os
aristocratas nem os homens em geral quem tecem as tendas de pelo de cabra
entre os árabes, pois esta tarefa está reservada às
mulheres do povo ou aos escravos.
Por outra parte, quando Saulo-Paulo conhece Aquilas e Priscila, estes acabam
de chegar a Corinto, expulsos de Roma pelo decreto do Claudio César
(cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Claudio, XXV). Nosso homem
se associa a eles na fabricação e comercialização
de tendas, segundo nos diz (Atos, 18, 3).
Vejamos agora duas perguntas embaraçosas:
I. Que plausibilidade tem o fato de que Aquilas e Priscila vivessem jamais
em Roma, fabricando e vendendo tendas, quando a Itália não
tinha já nenhuma população nômade? Os camponeses
viviam em palhoças ou em granjas importantes, e os cidadãos
habitavam em casas de vários andares, feitas de madeira ou de pedra.
O povo vivia nas catacumbas.
II. Que plausibilidade há no fato de que Aquilas, Priscila e Paulo
vivessem em Corinto, cidade grega, capital da província romana da
Acaia, célebre por seu urbanismo, e que se mantivessem a base de
uma fabricação e um comércio semelhantes? Na Grécia
antiga acontece quão mesmo na Roma imperial: não existe o
nomadismo. E imaginar que essas tendas eram exportadas supõe ignorar
que os povos itinerantes da Ásia Menor, de um tipo particular, vivem
sempre em uma autarquia latente. Além disso, os importantes rebanhos
de cabras que acompanham a suas regulares migrações cíclicas
auxiliam às necessidades de seus artesãos. Cada clã
familiar no seio de cada tribo possui seu "ofício" rudimentar,
efetuado pelas mulheres. E por outro lado, com que moeda, com que dinheiro
saldassem semelhantes aquisições essas arcaicas etnias? É
indubitável que os embutidos se vendiam em Roma, e que os vinhos
da Grécia se exportavam, mas os únicos capazes de aproveitá-lo
eram a rica aristocracia romana e alguns plebeus enriquecidos.
Vemo-nos, pois, forçados a deduzir que, uma vez mais, o escriba anônimo
que redigiu esta passagem dos Atos dos Apóstolos deu rédea
solta a sua imaginação também aqui, e que Saulo-Paulo
jamais fabricou tendas. Dispunha de outros recursos, e aqui temos a prova:
"Não cobicei prata, ouro ou vestidos de ninguém. Sabem
que minhas necessidades e às dos que me acompanham têm provido
estas mãos". (Atos dos Apóstolos, 20, 33-34.)
Resulta difícil imaginar Saulo-Paulo trabalhando intermináveis
horas em um ofício como o de tecer para assegurar a cama e a mesa
à uns colaboradores que se refestelam olhando. Além disso,
não era cohén (sacerdote) nem doutor da Lei, a não
ser judeu. Portanto não podia subsistir do dízimo sacerdotal
nas comunidades que visitava. Concluamos porque era rico, ou que possuía
uns recursos misteriosos. Coisa que vem justificada pelo fato de que vivesse
em Roma durante dois anos sem fazer nenhuma outra coisa que o que dizem
os Atos: "Paulo permaneceu dois anos inteiros na casa que tinha alugado,
onde recebia a todos os que iam a ele, pregando o reino de Deus e ensinando
com toda liberdade e sem obstáculos o referente ao Senhor Jesus Cristo".
(Atos dos Apóstolos, 28, 30.)
3) Ao proceder de uma família de incircuncisos (é a recriminação
essencial que os judeus fazem à dinastia Iduméia dos Herodes),
o Saulo-Paulo do Novo Testamento é de entrada adversário da
circuncisão e dos tabus judaicos, coisa que um judeu de raça,
presa tanto de um subconsciente hereditário como da educação
recebida em sua primeira infância, jamais se atreveria a infringir,
e menos ainda a combater.
Voltemos a ler as Escrituras:
Atos (15, 1-35) - (21, 21);
Romanos (4, 9) - Gálatas (5, 2; 6, 12);
Filêmon (3, 3) - Colossenses (3, 11);
Gálatas (6, 15) - I Coríntios (7, 19)
Poderá constatar-se que esses textos são categóricos:
Paulo é inimigo dos ritos judaicos essenciais. E em seu livro Saint
Paúl, apotre (imprimatur de 12 de maio de 1952), Giuseppe Ricciotti
tira a conclusão: "O evangelho particular de Paulo não
impunha esses ritos; e mais, inclusive os excluía". Por conseguinte,
se "seu evangelho" tinha sido aprovado, os ritos em questão
se achavam excluídos, ao menos para aqueles que provinham do paganismo
ao que Paulo dirigia sua mensagem.
E agora abordaremos um novo problema: Que homem era esse Saulo idumeu, irmão
do Costobaro, neto da irmã de Herodes, o Grande (amiga da imperatriz
Livia), "príncipe de sangue real", chefe da polícia
política judeu-Iduméia, e como e por que acabou fundando esse
messianismo místico, depois de ser o artífice da morte do
messianismo político dos zelotes? Também aqui, segundo o velho
provérbio judicial, bastar-nos-á "buscar à mulher".
Logo o veremos. De todos os modos, voltando para a qualidade de civis romanos
que os falsificadores anônimos dos Atos dos Apóstolos lhe atribuem
com vaidosa ostentação, em uma época em que o cristianismo
se converteu na religião do Estado, veremos possivelmente aparecer
ainda algumas fibras de verdade. E com isso, algumas novas surpresas para
o leitor...
5 - Um estranho cidadão romano
... E me faço judeu com os judeus para ganhar aos judeus [...] Com
os que estão fora da Lei me faço como se estivesse fora da
Lei...
Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 20-21
Anteriormente admitimos a afirmação dos Atos segundo a qual
Saulo-Paulo tema a qualidade de civis romanos, cidadão romano. Vamos
examinar agora o valor de tal afirmação.
Em primeiro lugar, é evidente que se nosso homem era judeu de raça,
não podia ter esta cidadania naqueles tempos. Nenhum judeu do Oriente
era cidadão romano, pela excelente razão de que, ao aceitar
essa dignidade, era expulso ipso facto da nação judia, e submetia
a terrível cerimônia do herem, ou expulsão definitiva,
que afetava tanto à vida presente como à futura.
Todo cidadão romano devia participar do culto aos deuses do Império,
em especial ao das divindades tutelar da cidade de Roma, e lhe estava proibido
participar do dedicado à divindades estranhas não reconhecidas
pelo Senado romano, e menos ainda no de uma divindade ilícita. Quer
dizer, que se o culto ao Yavé, deus único, assimilado por
Roma ao Zeus, permitia aos mais altos dignatários do Império
fazer oferendas no Templo de Jerusalém, a um judeu de raça
não lhe era possível fazer o mesmo com respeito aos Dea Roma,
como Vesta, Apolo, Vênus, antepassados da gens Julia, os Dea Genitri
e, especialmente, os Dea Victoria.
Mas o que dizer de um judeu de raça que durante anos se dedicou a
fazer triunfar o culto a um certo rebelde chamado Jesus, crucificado por
um procurador romano por ter pretendido ser "rei dos judeus"?
E esse mesmo judeu de raça acrescentaria, além disso, injúrias
blasfêmias para com os deuses do Império: "Servem à
deuses que não o são!" (Gálatas, 4, 8), ou "O
que sacrificam os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam"
(I Coríntios, 10, 20).
É simplesmente incrível!
Em conclusão, voltamos para nossas afirmações precedentes,
ou seja, que Saulo-Paulo não era judeu de raça. Disso resulta
que nada se opõe a que fora cidadão romano. Mas então,
como?
Sugerimos a hipótese de que Salomé I, sua avó, amiga
da imperatriz Livia, esposa do imperador Augusto, tivesse obtido a cidadania
romana para sua família. Não é impossível. O
imperador podia impor facilmente sua vontade no Senado romano. Vespasiano
fez de Flavio Josefo um civis romanos, o que explica ainda melhor o ódio
de seus compatriotas, já que isso implicava um verdadeiro adultério
espiritual com respeito à religião judia.
Mas há também outros argumentos em favor da romanização
de Saulo-Paulo. Renán, quem obviamente não ignorava a tese
que proclamava ao Jesus filho de Judas da Gamala, mas que se guardou bem
de emiti-la tendo em conta o clericalismo da época, confessa-nos
isso explicitamente: "Pode supor-se que seu avô a tinha obtido
por ter ajudado ao Pompeyo durante a conquista romana...". (Cf. Ernest
Renán, Les Apotres, P. 164.)
Exclui-se a possibilidade de que o avô de Saulo-Paulo, era judeu,
fora o suficientemente influente para ajudar ao Cneius Pompeius Magnus em
sua conquista de todo o Oriente Médio: Fenícia, Líbano,
Palestina, que acabou com a tomada de Jerusalém no ano 63 de nossa
era. Além disso, naquela época não poderia tratar do
avô de Saulo-Paulo, mas sim como mínimo de um bisavô:
Antípater.
Antípater, idumeu, marido de Cypros I, princesa nabatea, e primeiro-ministro
do Hircano II (rei sacerdote por quem Pompeyo substituiu ao Aristóbulo),
empurrou este pelo caminho da colaboração com Roma. Manobrou
habilmente entre os dois partidos durante a guerra civil romana que enfrentou
ao César e Pompeyo, e ao final se aliou ao primeiro e enviou ao Egito
um exército judeu de reforço no ano 48 antes de nossa era,
liberando assim ao César de uma situação dramática
num local de Alexandria, e lhe salvando inclusive a vida. Foi, além
disso, o primeiro a penetrar em Pelusa. Como recompensa foi renomado administrador
do Templo e procurador (no ano 47 antes de nossa era). César nomeou
ao primogênito de Antípater, Fasael, governador de Jerusalém,
e Herodes, o benjamim, converteu-se em governador da Galiléia. Vejamos
o que nos conta Flavio Josefo: "O grande número de feridas que
recebeu foram gloriosas marcas de seu valor. Depois que César terminara
os assuntos do Egito e retornara à Síria, honrou ao Antípater
com a cidadania romana, com todos os privilégios que dela derivavam,
ao que acrescentou tantas outras provas de sua estima e de seu afeto que
o fez digno de inveja". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VII.)
Aqui temos, pois, esse antepassado de Saulo-Paulo que Renán assegura
que foi civis romanus! O que implica que nosso autor sabia perfeitamente
a que se ater sobre as origens familiares do tal Saulo, e que se viu obrigado
a calar parte de suas descobertas.
De todo modo, os espíritos mais desconfiados não deixarão
de dizer que os filhos de Antípater, Fasael e Herodes, já
tinham nascido quando se fez entrega de tal dignidade à seu pai.
Se fazia extensiva também a eles? Porque neste particular o filho
seguia a condição de seu pai no momento da concepção,
no caso de matrimônios legítimos, e Antípater não
era cidadão romano quando eles nasceram.
A isto responderemos que é impensável que César não
fizesse implicitamente extensiva esta qualidade aos dois filhos. Em primeiro
lugar, sempre foi muito liberal neste aspecto. Por exemplo, a legio Alauda,
a famosa legião de L'Alouette, toda ela recrutada entre francêses,
recebeu dele a categoria de cidadã romana, extensiva a todos seus
membros, independentemente de sua graduação. (Cf. Suetonio,
Vida dos doze Césares: César, XXIV.)
Por outra parte, a França anterior à Revolução
de 1789 estava regida por leis e costumes que procediam diretamente do direito
romano. Pois bem, o enobrecimento de um plebeu implicava o de toda sua descendência,
até no caso de que o nascimento de seus filhos fosse anterior a tal
enobrecimento. Estes eram enobrecidos implicitamente de uma vez com ele.
Este costume não tinha nenhuma exceção.
Mas, seguirá objetando-se, Saulo-Paulo era neto de Herodes, o Grande,
por linha feminina; neste caso, era transmissível por via materna
tal qualidade, verdadeira nobreza secundária no seio do Império
romano? A isto seguiremos dizendo que sim. Em todas as "terras e províncias
do Sacro Império Romano Germânico" (na França:
Flandes, Champanha, Lorena, Borgonha, Delfinado, Provença) existia
a nobreza uterina, transmissível através das filhas, em virtude
do direito romano que decretava que "o filho segue a sorte do ventre
que lhe levou".
Sem dúvida se voltará a argüir que Herodes levava simplesmente
os títulos de amigo e aliado do povo romano, e que isso não
implica a cidadania romana. Não devemos esquecer que, nesta época,
Herodes, o Grande, é rei da Judéia, de Samaria e da Galiléia.
É um soberano vassalo de Roma, mas um soberano independente, dono
de seu reino. Esta função a exerce, pois, livremente, nos
termos citados: amigo e aliado do povo romano não implicam portanto
(por pura cortesia) a sujeição que implicaria necessariamente
a corriqueira definição de cidadão romano. Estes termos
o elevam a um nível muito superior, substituindo-o.
Por outra parte, manifestou-se sempre como cidadão romano. Reconstruiu
o Templo de Jerusalém, se fez reconhecer aos judeus seus direitos
mais sagrados contra os gregos, já anti-semitas, em matéria
religiosa, comportou-se deste modo como fiel observador dos deveres de um
civis romanus, restaurando ou construindo numerosos santuários pagãos,
correndo com todos os gastos, especialmente o santuário de Apolo
Pitio em Rodas (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, V).
Pois bem, a isto não estava obrigado em caso de não ter sido
cidadão romano, já que tais manifestações propagadas
não faziam mais que aumentar o ódio dos judeus integristas
para ele.
Acreditam, pois, que é a esta filiação herodiana a
que Paulo poderá referir-se quando afirma ante o tribuno Lisias:
"Pois eu a tenho por nascimento". (Atos dos Apóstolos,
22, 28.)
6 - A dinastia Iduméia
A verdade dos deuses está em proporção com a sólida
beleza dos templos que lhes levantou.
Ernest Renán, Origine du Christianisme
Não nos parece inútil dar uma breve visão histórica
das origens de toda a grande família herodiana, já que, para
compreender o comportamento de Saulo-Paulo, é importante conhecer
bem sua herança, seu psiquismo racial e suas crenças iniciais.
Julio, o Africano, escritor cristão do século III, em sua
Carta ao Aristides, reproduzida parcialmente nas Quaestiones ad Stephanum
de Eusébio da Cesaréia, recolheu diversas tradições
a este respeito em obras anteriores, em especial as de Nicolau o Damasceno,
Ptolomeo de Ascalón e as Memórias de Hegesipo.
Julio, o Africano, precisa que foram "parentes carnais do Salvador",
quer dizer familiares muito próximos, irmãos, sobrinhos, ou
inclusive a própria Maria, sua mãe, quem contribuiu com certas
tradições sobre a origem da família dos Herodes. E
este fato não faz mais que reforçar a hipótese avançada
por Daniel Massé, como conclusão a suas próprias investigações
(e ele fora juiz de instrução), de que existiram laços
"por aliança" entre a família herodiana e a dos
"filhos de David". A última esposa de Herodes, o Grande,
Cleópatra de Jerusalém, viúva de um "filho de
David", teria se casado em segundas núpcias com o chamado Herodes,
segundo Massé. (Supra: P. 37.)
Por muito surpreendente que resulte esta hipótese, acha-se seriamente
sustentada por um fato que a tradição cristã reservada
ao povo simples oculta cuidadosamente, e esse fato é a riqueza indiscutível
da família davídica, quer dizer a importância dos bens
possuídos por Maria, mãe de Jesus, e as diversas rendas recebidas
por este último.
Sobre estas, remetemos ao leitor a nossa obra precedente, ao capítulo
intitulado "O dízimo messianista". Entre os bens imóveis
da família podemos mencionar já com certeza a casa familiar
de Gamala, esse ninho de águias, berço da família;
a casa de Cafarnaúm, citada em Mateus (4, 13), e no Marcos (1, 29),
que pertencia ao Simão e André, irmãos de Jesusa a
de Séforis, destruída nos anos 6 aos 4 antes de nossa era
pelas legiões de Varo, legado de Síria, quando teve lugar
a primeira revolução de Judas da Gamala, marido de Maria e
pai de Jesus; podemos acrescentar a de Betsaida, "a cidade de André
e de Pedro" (João, 1, 44), já que, repitamo-lo, são
irmãos de Jesus.
Também o abade Emile Amann, ao traduzir e comentar o Protoevangelio
de Santiago, consagrado à Maria, suas origens e sua infância,
observa que, segundo o texto: "Joaquim [o pai de Maria] é enormemente
rico, e isto constitui uma resposta direta às acusações
judias sobre a pobreza da Maria". (Cf. E. Amann, O Protévangile
de Jacques, imprimatur do 1-2-1910, Letouzey éditeur. Paris, 1910,
p.181.)
Coloca-nos, pois, muito longe da família mísera que nos apresentam
perpetuamente para nos enternecer.
Vejamos o que diz sobre isso o Africano, reproduzido por Eusébio
da Cesaréia: "Isto não se disse nem sem provas nem ligeiramente.
Porque os familiares carnais do Salvador, bem seja para vangloriar-se ou
simplesmente por contá-lo -mas, em todo caso, dizendo a verdade-,
transmitiram também o seguinte:
"Uns bandidos idumeus assaltaram a cidade de Ascalón, na Palestina,
e da capela de Apolo, que estava levantada perto das muralhas, levaram-se
junto com o resto do roubo ao pequeno Antípater, filho de um servidor
do templo, Herodes, e o fizeram prisioneiro. Ao não poder pagar o
sacerdote o resgate por seu filho, Antípater foi educado segundo
os costumes dos idumeus, e mais tarde gozou do afeto de Hircano, supremo
sacerdote da Judéia. Logo foi enviado por Hircano em embaixada junto
ao Pompeyo, e obteve em favor daquele a liberdade do reino que tinha sido
arrebatado ao Aristóbulo, seu irmão. Ele mesmo teve a boa
fortuna de ser renomado epimeleta da Palestina.
"Logo, depois de ser assassinado Antípater a traição,
por causa do ciúmes provocados por sua sorte, seu filho Herodes o
sucedeu, e mais tarde este foi chamado por Antonio e Augusto, em virtude
de um decreto do Senado romano, para que reinasse sobre os judeus. Seus
filhos foram Herodes e os outros tetrarcas idumeus. E assim se encontra
também na história dos gregos.
"Até então, nos arquivos se encontravam copiadas as genealogias
dos verdadeiros hebreus, e as dos partidários de origem, como Aquior
o Amanita, Rut a Moabita, e as das pessoas saídas do Egito e que
se mesclaram com os hebreus. Herodes, a quem a raça dos israelitas
não interessava em nada, fez queimar os registros dessas genealogias,
imaginando-se que assim poderia parecer nobre, pelo fato de que ninguém
poderia remontar-se nos registros públicos até suas origens,
até os patriarcas ou partidários ou estrangeiros mesclados,
chamados geores." (Eusébio da Cesaréia: História
eclesiástica. I, VII, 11-44.)
O que Flavio Josefo nos transmite em suas obras não por não
ser rigorosamente idêntico deixa de ser menos sensivelmente análogo.
Vejamos o que diz este autor: "Um idumeu chamado Antípater,
muito rico, muito empreendedor e muito hábil, era grande amigo do
Hircano e inimigo do Aristóbulo. Nicolau o Damasceno o faz descender
de uma das principais casas de quão judeus retornaram a Judéia
desde Babilônia, mas o diz pelo Herodes, seu filho, a quem a fortuna
logo elevou ao trono de nossos reis, como veremos em seu lugar.
"Antes o chamavam, não Antípater, mas Antipas, como seu
pai, quem ao ser renomado pelo rei Alexandre e a rainha sua esposa, governador
de toda a Iduméia, cercou amizade com os árabes, os gazaenos
e os ascalonitas, e ganhou seu afeto mediante grandes presentes". (Cf.
Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIV, iI.)
"A esposa desse Antípater, chamada Cypros, pertencia a uma das
mais ilustres casas da Arábia. Teve dela quatro filhos varões:
Fasael, Herodes, que depois foi rei, José e Perora, e uma filha chamada
Salomé. Sua sábia conduta e sua liberalidade lhe granjearam
a amizade de vários príncipes, e especialmente do rei dos
árabes, a quem confiou seus filhos quando esteve em guerra com o
Aristóbulo." (Cf. Flavio Josefo, Guerras dos judeus. I, vi.)
Não obstante, existe uma divergência genealógica entre
as tradições recolhidas por Julio o Africano e as recebidas
por Flavio Josefo. Vejamos:
Julio, o Africano:
1. Herodes, sacerdote do Apolo no Ascalón, de onde:
2. Antípater, amigo do Hircano, de onde o futuro rei:
3. Herodes o Grande.
Flavio Josefo:
1. N..., governador da Iduméia, de onde:
2. Antípater, aliás Antipas, marido de Cypros, de onde:
3. Herodes o Grande.
De qualquer maneira, e como pode constatar-se, Saulo e Costobaro, príncipes
herodianos, netos de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande,
são árabes idumeus por seu bisavô, e árabes nabateus
por sua bisavó.
O berço da família foi, sem lugar a dúvidas, Ascalón.
Esta cidade, recuperada por Israel, formava parte da herança da tribo
de Judá. Os árabes chamavam-na Khirbet Askalon, quer dizer
"as ruínas do Ascalón". Benjamim da Tudela fala
dela como de uma cidade construída à beira do mediterrâneo
por Ezra "o Sacerdote", e que então denominavam Benibra.
Esta cidade cananea foi conquistada pelos faraós do Egito no ano
1500 antes de nossa era. Rebelou-se contra seus ocupantes em 1280 A. C.,
mas esta rebelião foi sufocada por Ramsés II. Logo se converteu
em uma das cinco cidades ocupadas pelos filisteus, um dos centros de sua
cultura, e por último em uma praça forte de Israel.
O comércio foi ali particularmente próspero nos tempos dos
grandes períodos bíblicos, na época dos Juízes
e das dinastias reais. Segundo a tradição. Sansão,
traído por Dalila, foi capturado ali pelos filisteus e sucumbiu durante
o célebre episódio. Quando o rei Saúl morreu ali à
mãos dos guerreiros filisteus, David se lamentou poeticamente no
célebre "Cântico do Arco", que ordenou fora ensinado
aos meninos de Judá, e que foi transcrito a seguir no Livro do Justo,
o qual se perdeu: "O esplendor de Israel sucumbiu em suas colinas!
Como é que caíram os valentes? Não o façam saber
no Gat, e não o anunciem nos caminhos do Ascalón, a fim de
que não se gozem por isso as filhas dos filisteus, a fim de que não
triunfem os filhos dos incircuncisos! OH Montes do Gélboe! Que nem
o rocio nem a chuva descendam sobre vós, nem haja campos que dêem
as primicias para as oferendas! Porque é ali onde se manchou o escudo
dos heróis". (II Samuel, 1, 19-21.)
Os profetas Jeremias, Amos e Sofonio amaldiçoaram a seguir à
cidade, e chamaram sobre ela à desolação. Foi submetida
e presa por Sargón e Senaquerib. A partir da conquista de Alexandre
converteu-se em uma opulenta cidade helenística, entregue especialmente
ao culto Derceto ou Atergatis, deusa com rosto de mulher e corpo de peixe.
Foi nesta cidade totalmente pagã por suas origens, seu passado e
sua etnia onde nasceu o futuro Herodes, o Grande. Sua orientação
religiosa forçosamente ressentiu-se por isso, e ao não ser
judeu, não deve surpreendermos que construíra em diversos
lugares templos pagãos, embora tivesse restaurado magnificamente
o de Jerusalém, por pura concessão política.
Iduméia e Nabatea eram, com efeito, profundamente pagãs, sobretudo
a segunda. Rene Dussaud, membro do Instituto, diz-nos o seguinte em seu
estudo sobre os povos dessas regiões: "Ao lado do culto organizado
e dos oráculos pronunciados nos santuários, os árabes
do Yemen praticavam a magia e a bruxaria. Como acontece entre todos os semitas,
a distinção entre o profano e o sagrado, o puro e o impuro
é muito nítida e categórica [...] Os antigos cultos
da Arábia meridional se integram no conjunto dos cultos semíticos.
Os cultos árabes do sul (mineanos, sabeus, himyaries) são-nos
conhecidos mediante textos que vão do século VIII A. C. até
o VII de nossa era. Manifestam, em primeiro lugar, uma organização
teocrática sob a autoridade do moukarrib, ou príncipe-sacerdote.
A seguir aparecem reinos laicos dominados por alguma família importante
[...] Os sacrifícios cruentos, assim como queima de incenso, estavam
ali muito estendidos". (Cf. Rene Dussaud, Les religions des Hittites
et des Hourrites, des Phéniciens et des Syriens, cap. III: "Nabathéens
et Safantes", Paris, 1945.)
Por certo que esses príncipes sacerdotes os encontramos também
em Israel nessa época (século I A. C.), dentro da dinastia
asmonea (como é o caso de Alexandre Janeo, o primeiro deles). De
maneira que não nos surpreendamos muito se logo nos encontrarmos
com um Saulo, príncipe idumeu, iniciado nos ocultos da magia e sabendo
dirigir tanto as forças de cima como as mais sinistras de baixo.
Para nos persuadir nos bastará relendo I Coríntios, 5, 5,
e I Timóteo, 1, 20. A atração para o ocultismo se encontra
em todas as classes sociais, em todas as épocas, desde Salomão
até Nicolau II, do imperador Rodolfo até Catarina de Medicis,
sem esquecer Gilies de Rais e Erzsebet Bathory...
O culto ao Derceto, ou Atergatis, próprio de Ascalón (junto
com o de Apolo, já que o avô de Herodes, o Grande, era sacerdote
deste), não deve nos fazer esquecer aqueles outros, mais sutis, que
gozavam do favor de toda a Arábia nabatea.
Temos, por exemplo, Bel-Samin, o deus supremo, o "Senhor dos Céus",
que estava flanqueado pelo Dusares, o Dionisos arabizado, e Allat, uma espécie
de Ateneu, embora mais venusiaca. Naquela época existia na Nabatea
ainda o que Roma fazia desaparecer de todas aquelas partes aonde ocupava
a classe de potência ocupante, quer dizer os sacrifícios humanos
associados às oferendas de incenso. Pelos textos de Ras Shamra sabemos
que nesse país de Edom desempenhava um papel ritual o vinho. Ao suco
da uva associava-lhe, desgraçadamente, o sangue humano, cuja púrpura
criminalmente oferecida fazia-se correr sobre as pedras cúbicas que
serviam de altar, em determinadas festas. Havia também ágapes
rituais, no curso dos quais uma parte das oferendas era consumida pelo fogo,
e assim oferecida à deidade, e o resto era consumido pelos sacerdotes
ou os fiéis? É provável. Uma passagem de Aelio Arístido,
escritor do século II, diz-nos que as comidas rituais celebradas
no templo de Serapis tinham por objetivo estabelecer uma estreita comunicação
psicopneumática entre o deus e os participantes. E Flavio Josefo
nos diz o mesmo do culto ao Anubis: "Quando acertaram tal acordo, disse
que vinha da parte de Anubis, porque o deus, vencido pelo amor que sentia
por ela, convidava-a a ir a ele. Ela acolheu essas palavras com gozo, presumiu
ante seus amigos da eleição de Anubis e disse a seu marido
que lhe tinham anunciado o ágape e o leito de Anubis. Seu marido
consentiu isso, porque provara a virtude de sua esposa. Ela foi, pois, para
o templo, e depois de ter comido, quando chegou o momento de dormir, uma
vez estiveram as portas fechadas pelo sacerdote do interior do templo, e
as luzes apagadas, o cavaleiro Mundus Decius, que se tinha oculto ali antes,
não deixou de unir-se a ela, e ela se entregou a ele durante toda
a noite, imaginando-se que era o deus". (Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, XVIII, III, 4
Filiação Iduméia De Saulo-Paulo, citados dos Herodes
Filiação Iduméia de Saulo-Paulo, citados dos Macabeus
Esse escândalo, que sacudiu Roma no ano 19, teve como epílogo,
uma vez conhecido, uma investigação por ordem de Tibério
César, a destruição do templo de Anubis, que foi arrasado,
o exílio do Mundus Decius, amante de Paulina, sem ela sabê-lo,
naturalmente, e a crucificação dos sacerdotes e da liberta
Ide, sua cúmplice. Mas nos conta a importância do ágape
ritual. Nesta circunstância, precedia à comunhão carnal
entre o deus e a bela Paulina, como um costume tão habitual como
indispensável.
No mundo antigo, a noção de comunhão com os deuses
ingerindo parcialmente aquilo que lhes era devotado em holocausto ígneo
era coisa comum. No culto ao Dionisos Tracio, os participantes rasgavam
com suas mãos e seus dentes o touro que simbolizava ao deus, e devoravam
sua carne, a fim de converter-se em bacchi e participar a seguir, depois
da morte, na imortalidade divina. Em outros lugares podia tratar-se de um
cabrito, um cordeiro...; a vítima simbólica variava segundo
o deus.
Todavia, esta noção particular, mesmo que as formas antigas
desse tipo de ritual caíssem em desuso em princípios de nossa
era, e embora se oferecessem espécies de substituição
em lugar das antigas vítimas viventes (antigamente humanas, logo
animais), esta noção, dizemos, tinha impregnado todo o paganismo
árabe, e Saulo não podia escapar a isso.
O mesmo desenvolveria mais adiante, e é uma prova mais de que não
era um judeu de raça, já que tal noção era totalmente
estranha ao sacerdócio de Israel. Os sacerdotes tomavam para si e
para sua família certas partes das vítimas oferecidas, porque
deviam viver do altar, simplesmente, tanto dos donativos diretos como dessas
partes extraídos. Mas jamais se subentendeu que, ao consumir o cordeiro
sacrificado durante a grande Páscoa anual, as famílias judias
devorassem ao Yavé, o Deus de Israel, o Eterno! Enunciar semelhante
hipótese seria castigado como o pior dos sacrilégios.
Pois bem, Saulo sustenta tal idéia. E não só a sustenta,
mas também ensina-a, afirma-a, justifica-a e põe em prática:
"Falo-lhes como a homens inteligentes. Julguem vocês mesmos o
que lhes digo. O cálice de bênção que benzemos
não é acaso a comunhão com o sangue de Cristo? O pão
que fracionamos não é acaso a comunhão com o corpo
de Cristo? [...] Olhem aos israelitas segundo a carne: por ventura os que
comem das vítimas não entram em comunhão com o altar?".
(Paulo, I Coríntios, 10, 15-19.)
Nesta passagem Saulo nos demonstra que:
a) acredita em um uso de origem absolutamente pagã: a comunhão
com os deuses mediante a ingestão parcial das oferendas;
b) não se considera como um israelita segundo a carne, situa-se à
parte, com os gentis aos que se dirige;
c) o que enuncia é uma enormidade: a comunhão com o altar,
quer dizer com o Deus de Israel, compartilhando as vítimas entre
Deus e os sacerdotes. E semelhante ignorância, semelhante heresia
são impensáveis por parte de um homem que se vangloria de
ter passado o tempo de seus estudos aos pés de Gamaliel, neto do
grande Hillel, e célebre doutor (Atos dos Apóstolos, 22, 9).
Mais ainda, desenvolve sua teoria eucarística justificando-a mediante
esses mesmos costumes pagãos que recordávamos antes: "O
que digo, pois? Que a carne sacrificada aos ídolos é algo,
ou que um ídolo é algo? Em modo algum. Eu digo que o que sacrificam
os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam. Pois bem,
eu não quero que vós entrem em comunhão com os demônios.
Não podem beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios.
Não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
Ou queremos provocar o ciúmes do Senhor? Somos acaso mais fortes
que ele?". (Paulo, I Coríntios, 10, 19-22.)
Agora, em apoio de nossas conclusões, citaremos duas autoridades
da exegese liberal: "Pretendida as palavras da instituição
eucarística só têm sentido na teologia de Paulo, que
Jesus não tinha ensinado, e na economia do "mistério"
cristão, que Jesus não tinha instituído". (Cf.
Abade Alfred Loisy, L'initiation chrétienne, P. 208.)
*[O abade Alfred Loisy (1857-1940) foi catedrático de Hebreu no Institut
Catholique de Paris, e logo catedrático das Sagradas Escrituras,
até 1889. Viu-se obrigado a abandonar sua cátedra em 1893,
e foi nomeado professor na École Pratique des Hautes Etudes em 1900,
e logo professor de História das Religiões no Collége
de France de 1909 a 1930. Foi excomungado no ano de 1908, porém,
isso não alterou nada seus trabalhos.]
"Mas então, de onde procede esse rito? De onde procedem essas
palavras? Não de Israel. Os judeus não ignoravam a comunhão
da mesa, e muitos esperavam com firme esperança o "festim messiânico";
fala-se disso nos Sinóticos*. Suas seitas, por exemplo os essênios
e os terapeutas, praticavam ágapes sagrados que se pareciam muito
aos ágapes de sacrifício. Mas em qualquer parte tratava-se
tão somente de um sinal de fraternidade; em nenhuma parte se percebe
rastro algum de teofagia**." (Cf. Charles Guignebert, O Cristo, III.)
*[Sobre esse festim veja-se, em especial: Mateus, 22, 1-14; Marcos, 14,
25; Lucas, 22, 30. Trata-se de um banquete de festa, entre irmãos,
somente. Ali não se devora a carne nem o sangue de nennhum deus.]
**[Teofagia: manutenção do simulacro de um deus ou de uma
vítima substituta.]
Todas estas anomalias, todas estas heresias, tão dogmáticas
como rituais, são impensáveis em um pretendido judeu de raça,
"hebreu e filho de hebreu, educado aos pés de Gamaliel".
Entretanto, compreendem-se perfeitamente em um príncipe herodiano,
de origem iduméia por via masculina e nabateo por via feminina, e
que não é, psíquica e hereditariamente falando, a não
ser um beduíno ainda imbuído de paganismo, inconscientemente
ou não.
Esse "Cristo" que nos apresenta pela primeira vez, de quem ninguém
ouviu falar antes nas diversas correntes do messianismo político
(falava-se do messiah, do "messias", o qual é muito diferente),
é desconhecido por aqueles que conheceram Jesus, que viveram com
ele o desmoronamento das esperanças na vinda do "Reino".
E em pleno século V, as Homilias Clementinas reconheceram a doutrina
"adopcionista" sustentada pelo grande Orígenes no começo
do século nem, que Jesus foi alguém mais que um subordinado
ao Pai, em virtude de sua adoção: "Nosso Senhor, respondeu
Pedro, não disse jamais que existissem deuses além do Criador
de todas as coisas, nem se proclamou, jamais a si mesmo, como Deus, mas
sim, com razão, declarou bem-aventurado aquele que lhe chamou filho
do Deus Ordenador do Universo". (Cf. Homilias Clementinas, XVI, XV.)
Agora bem, esse título de "filhos de Deus" é próprio
a todas as criaturas, tão angélicos como humanas. Citaremos
simplesmente as passagens nas quais não há equívoco,
a fim de não alongar inutilmente este capítulo:
"Os filhos de Deus [os anjos] viram que as filhas dos homens eram formosas..."
(Gênesis, 6, 2.)
"Os filhos de Deus [os anjos] foram um dia apresentar-se ante o Eterno..."
(Jó, 1, 6.)
"Os filhos de Deus lançavam gritos de alegria..." (Jó,
38, 7.)
"Aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são
filhos de Deus..." (Paulo, Romanos, 8, 14.)
"São todos filhos de Deus pela fé..." (Paulo, Gálatas,
3, 26.) É mais, a Doutrina dos doze apóstolos -denominada
também Didakhé-, citada por Eusébio de Cesaréia
como um texto a classificar entre os apócrifos (cf. História
eclesiástica, III, XXV, 4-5), o que demonstra que já era conhecida
no século IV, faz de Jesus um simples "servidor" de Deus,
ebed laweh.
"Quanto à eucaristia, dêem graças assim: Primeiro
referente ao cálice: Damo-lhe obrigado, Oh nosso Pai, pelo santo
vinho de David, seu servidor, que você nos tem feito conhecer pelo
Jesus seu servidor; glorifica a Ti nos séculos!
"Logo, referente ao pão partido: Damo-lhe graças, Oh
nosso Pai, pela vida e a ciência que Você nos tem feito conhecer
pelo Jesus seu servidor. Glorifica a Ti nos séculos!". (Cf.
Doutrina dos doze apóstolos 1-3.)
Assim, neste texto à Jesus qualifica-lhe de servidor de Deus, o mesmo
título que ao David; não é outra coisa que o ebed laweh.
Por outra parte, Saulo-Paulo (ou o escriba que efetua as composições
sob seu nome) não ignora que a Lei recebida por Moisés foi
comunicada no Sinai, não pelo próprio Deus, mas sim por um
mediador, o Mátatrón-saar-ha-panim, ou "príncipe
das Faces", a quem também se denomina Saar-ha-Gadol, o "grande
príncipe", ou Saar-ha-Olam, o "príncipe do Mundo":
"A Lei foi promulgada pelos anjos, por mão de um Mediador".
(Paulo, Gálatas, 3, 19.)
E então coloca, em sua teologia pessoal, um novo mediador entre Deus
e os homens, esse "Cristo" que ele inseria pela primeira vez na
nova teodicea: "Há um só mediador entre Deus e os homens".
(Paulo, I Timóteo, 2, 5.)
"Jesus é o mediador de uma aliança mais excelente".
(Paulo, Hebreus, 8, 6.)
E o que é mais grave ainda, Saulo ignora que o Mediador é
todo o Israel, o povo inteiro, não como modelo, mas sim como "depositário
da palavra e dos oráculos de Deus" (Paulo, Romanos, 3, 2), o
que induz a acreditar que está em contradição consigo
mesmo. Porque esqueceu a mensagem de Isaías, coisa bem estranha para
um "judeu de raça" que fez seus estudos aos pés
de Gamaliel: "Assim diz o Senhor: No tempo favorável lhes escutei,
no dia da salvação lhes ajudei, conservei-lhes e estabeleceu
para ser os mediadores do povo, renovar a terra e recuperar as verdades
devastadas". (Isaías, 49, 8.)
E o que dizer do fato de que o Pai, tanto se se trata do texto de Mateus
(6, 9) como de Lucas (11, 1-4), não mencione ao Filho, menos ainda
ao Espírito Santo, e não diga nenhuma palavra da Virgem! O
que sim é certo é que Saulo-Paulo, como bom árabe nabateo,
não concederá jamais às mulheres o mínimo direito
na religião que está fundando; voltaremos para isso mais adiante.
7 - De Saulo,
príncipe herodiano, ao Simão, o Mago
Mas já à chamada de Astarté desperta, orvalhado pelo
cinamomo, o misterioso Marido. ressuscitou o antigo adolescente! E o céu
em flor parece uma imensa rosa, que tingiu com seu sangue um Adonis gigante...
J.-M. DE HÉRÉDIA "Les Trophées", le réveil
d'un dieu
Simão o mago ocupa na história das origens do cristianismo
um lugar importante, com ou sem razão. Dos Atos dos Apóstolos
até as obras especializadas, redigidas pela grande corrente patrística
contra as heresias em geral, a literatura cristã menciona a existência
desse misterioso personagem.
Fez-se dele o pai de todas as heresias, e se tentou justificar esta paternidade
nas doutrinas que acertada ou equivocadamente surgiram da sua própria.
Quer dizer, que não é necessário defender o interesse
que reveste o estudo da personalidade, real ou imaginária, de Simão
o Mago.
Agora bem, ao redor de 1850, vários exegetas austríacos e
alemães suspeitaram que detrás de Simão, o Mago, se
ocultava em realidade o apóstolo Paulo. Citemos simplesmente: Baur
(Tüb. Zeitschr. F. Theol., IV, 136, e K.-Gesch. dersserst. Jahrh.,
P. 186, sq.), Zeller (Apg., 158, sq.), Volkmar (Theol. Jahrh., 1856), Hilgenfeid
(Die Clem., Recogn. U Homil., P. 319), Lipsius (Die Quellen der rómischen
Petrussage), Schenkel (Bibel-Lexikon, art. "Simão der Magier").
Esta escola, como se vê, estava dotada de didatas de valor, e a nova
opinião, defendida a seguir por grande número de críticos,
negou imediatamente a existência histórica de Simão,
o Mago. De fato se apoiava sobre uma constatação de importância,
ou seja, que em bom número de documentos da tradição,
o nome de Mago não era outra coisa que um pseudônimo do apóstolo
dos gentis, e que os ataque dirigidos contra Simão nos Atos e nas
obras patrísticas o eram em realidade contra Saulo-Paulo.
Se toda a lenda não tiver outra base que esta confusão dos
dois personagens, confusão que inicialmente foi intencionada, e que
logo foi mantendo-se por causa da ignorância geral, resultará
impossível admitir a existência histórica de Simão,
o Mago, e então terá que qualificar de puramente mítico
tudo que se disse dele, e por conseguinte terá que descartá-lo.
A maior parte dos escritores eclesiásticos antigos contam que Simão
foi em princípio discípulo de João, o Batista, e de
Dositeo. (Outros, pelo contrário, fazem de Dositeo um discípulo
de Simão.) Tenhamos em conta este parentesco ideológico, porque
logo voltaremos para ele.
Observaremos, em primeiro lugar, que tinha "seu evangelho". No
manuscrito antigo de um tratado siríaco sobre O Santo Concílio
da Nicéia, redigido pelo bispo Maruta de Maiferkat, amigo de João
Crisóstomo e embaixador do imperador Arcadio -filho de Teodosio-,
ante o rei da Pérsia Jezdegerd, em finais do ano 399, destaca-se
a existência de um Evangelho de Simão, o Mago, utilizado pela
seita que leva seu nome (os simonianos). Está dividido em quatro
partes, daí seu nome: Livro dos Quatro rincões do Mundo. Por
conseguinte se dirige ao mundo inteiro, incluídos os gentis, o que,
tendo em conta a época, resulta muito paulino.
São Ireneu, por sua parte, justifica a existência dos quatro
evangelhos canônicos com o mesmo argumento: "Como há quatro
regiões no mundo onde estamos, e quatro ventos principais, assim...",
etc. (Cf. Ireneu, Contra as heresias, III, XI, 8.) Conviremos em que a analogia
é mais que singular, já que Paulo também tem "seu
evangelho" (utilizando a mesma expressão).
Citaremos simplesmente:
"Deus julgará [aos homens] segundo meu evangelho..." (Paulo,
Romanos, 2, 16.)
"Ao que pode lhes confirmar segundo meu evangelho..." (Paulo,
Romanos, 16, 25.)
"Se nosso evangelho ficar ainda velado, é para os que vão
à perdição..." (Paulo, II Coríntios, 4,
3.)
"Porque se viesse algum [...] pregando outro evangelho que o que abraçastes,
suportariam-no de bom grado. Entretanto, eu acredito que em nada sou inferior
a esses preclaros apóstolos." (Paulo, II Coríntios, 11,
4.)
"Maravilho-me de que tão logo lhes passem do que lhes chamou
pela graça de Cristo a outro evangelho diferente...." (Paulo,
Gálatas, 1, 6.)
"Mas embora nós ou um anjo do céu lhes anunciasse outro
evangelho distinto do que lhes anunciamos, seja anátema..."
(Paulo, Gálatas, 1, 8.)
"Para a qual lhes chamou Deus por meio de nosso evangelho..."
(Paulo, II Tessalonicenses, 2.14.)
"Lembre-se de que Jesus Cristo, da linhagem de David, ressuscitou dentre
os mortos, segundo meu evangelho..." (Paulo, II Timóteo, 2,
8.)
Como se vê, o Paulo do Novo Testamento não cita nenhum outro
evangelho canônico mais que o seu, só apresenta este, e anatematiza
a quem quer que pregue outro. Conviremos em que um recém-chegado
à coorte apostólica isso supõe uma grande audácia!
A menos que o seu fora, realmente, o primeiro evangelho conhecido por este
nome...
Voltando para Simão, o Mago, observaremos que segundo Justino, toda
a cidade da Naplusa, a antiga Siquem, era simoneana (cf. Justino, Apologia,
I, XXVI, 3). Os seguidores de Simão, portanto, não constituíram
uma pequena capela fechada ou secreta, mas sim, sem lugar a dúvidas,
Simão foi o chefe de uma grande Igreja. Igual a Paulo.
Simão, o Mago ia acompanhado de uma mulher de grande beleza. Segundo
a mordaz afirmação dos heresiólogos. Simão a
comprara no lupanar onde se encontrava, em Tiro.
Do mesmo modo, parece que Paulo brigou com a grande Igreja por causa de
uma companheira: "Acaso não temos direito a levar conosco uma
irmã que seja nossa mulher?". (Cf. Paulo, I Coríntios,
9, 5.)
Por outra parte, logo veremos que, segundo as Homilias Clementinas (atribuídas
à Clemente de Roma), Simão, o Mago, fora criado em Tiro, com
outros dois meninos, por uma mulher de raça cananéia, Justa,
quão mesma foi ao encontro de Jesus quando este se retirou à
Fenícia. (Cf. Mateus, 15, 21-24, e Marcos, 7, 24-25.)
E como já vimos, Saulo fora criado com Herodes, o Tetrarca e Menahem
(Atos, 13, 1). Igual a Simão, o Mago, criara-se com outros dois meninos.
Segundo as mesmas Homilias Clementinas (II Homilia, XXI-XXII). Simão,
o Mago, tem um discípulo chamado Aquilas. Segundo os Atos dos Apóstolos,
Paulo tinha um discípulo chamado Aquilas (Atos, 18, 2; Romanos, 16,
3; II Timóteo, 4, 19; I Coríntios, 16, 19).
Não nos propomos realizar um estudo completo da vida de Simão,
o Mago, outros se encarregaram disso antes de nós; não obstante,
seus estudos não estavam motivados pelo mesmo. Nos propomos unicamente
investigar nos documentos procedentes da tradição judeu-cristã,
para ver se é possível estabelecer a existência histórica
de nosso personagem. Em outros termos, a questão que se expôs
nesta obra, antes das conclusões afirmativas que se desprendem, era
a seguinte: Existiu na história um mago chamado Simão, ou
o nome do Simão o Mago não era a não ser um pseudônimo
que seus adversários aplicavam ao apóstolo Paulo?
Os documentos aos quais fazemos alusão antes são de natureza
e valor diversos. Pertencem, ao menos em sua forma atual, à diferentes
períodos da Gênesis do cristianismo. Alguns deles sofreram
transformações e perderam sua fisionomia primitiva. Esse é
o caso das Homilias Clementinas, os Atos de Pedro e de Paulo e os próprios
Atos dos Apóstolos como vimos na Confissão de São Cipriano.
Os atos de Pedro e de Paulo
Achamo-nos aqui em presença de um documento histórico mais
importante do que pudesse parecer a primeira vista. Porque se em sua forma
atual os Atos de Pedro e de Paulo não se remontam mais à frente
do século V, não obstante é seguro que os elementos
de que se compõem, e que se foram confundindo paulatinamente, remontam-se
à épocas muito diversas, e o exame do conteúdo demonstra
que, em algumas de suas partes, a obra não é afinal de contas,
mais do que produtos literários do grande partido judeu-cristão
dos dois primeiros séculos. No referente à crítica,
remetemos ao Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage, P. 47,
sq.), e ao Hilgenfeid (Novum Testamentum extra canonem receptum).
Os Atos de Pedro e de Paulo, tal como nos chegaram, estão destinados
a nos contar a luta, cheia de prodígios e de acontecimentos sobrenaturais,
como sempre, que em Roma enfrentam os dois apóstolos contra Simão,
o Mago, assim como a morte ignominiosa deste e o martírio glorioso
dos dois primeiros.
A primeira vista a leitura deste escrito pode parecer inútil do ponto
de vista histórico, e parece como se tão somente a fantasia
tomasse parte na redação desses relatos, onde se dá
rédea solta ao amor pelo maravilhoso. Nenhum exegeta católico
ou protestante moderno lhe concedeu jamais o mínimo crédito
por essa mesma razão.
Vemo-nos transportados imediatamente em que Paulo chega a Roma, depois de
seu naufrágio nas águas de Malte. Pedro lhe tinha precedido
a "grande Babilônia" para combater ali Simão, o Mago,
que é ali muito honrado e parece ter obtido um grande êxito.
Não demora para cercar a luta entre Simão e Pedro, que rivalizam
em prodígios e cujos inesgotáveis milagres lhes concedem o
favor das multidões, naturalmente. Produzem-se conversões
inclusive na própria família do imperador Nero, e a discussão
termina por ter lugar em presença deste.
Nero sente uma grande admiração ao ver os prodígios
realizados por Simão; é certo que o mago não regula
nada para aumentar o ascendente que exerce sobre o imperador. Durante a
luta mágica entre Simão e Pedro, Paulo não intervém
em nada; esforça-se por desaparecer quase sempre atrás deles,
o qual resulta muito curioso. Em realidade, tem-se a impressão de
que não está ali. Ao menos sob o nome de Paulo...
Apressado por Nero a que demonstrasse ser "filho de Deus" mediante
algum prodígio, Simão prometeu voar do alto de uma torre,
coisa que, efetivamente, teve lugar no Campo de Marte. Mas no momento em
que Nero, cheio de admiração ante o prodígio levado
a cabo pelo mago, reprovava aos apóstolos seu ódio contra
ele, ante as orações de Pedro, os demônios que sustentavam
Simão, o Mago no ar lhe deixaram cair e fugiram, e Simão,
ao precipitar-se contra o chão, pereceu estatelado. Recolheram-no,
enterraram-no, e em vão esperou Nero a prometida ressurreição.
A morte do mago, que era o favorito do Nero, teve como conseqüência
o martírio dos dois apóstolos. Paulo foi decapitado no caminho
de Ostia, e Pedro foi crucificado, a pedido próprio, cabeça
abaixo. No momento do suplício, as multidões amotinadas queriam
matar ao imperador, mas Pedro o impediu, narrando com este fim a aparição
com que Jesus o tinha honrado. Quando Pedro fugia dos legionários
que se lançaram em sua busca. Jesus lhe apareceu no caminho. Pedro
lhe perguntou: "Aonde vai, Senhor?". "À Roma, para
ser crucificado de novo", respondeu Jesus. Pedro compreendeu então
seu dever, e se apressou a voltar sobre seus passos para entregar-se àqueles
que lhe buscavam.
Observe-se que se diversos exegetas puderam reprovar, com razão,
aos Atos dos Apóstolos que tivessem falseado a verdade histórica
ao dar um marco imaginário às relações de tais
apóstolos entre si, destinado a velar as diferenças com vistas
a uma conciliação, essa recriminação está
justificada afortiori quando se trata dos Atos de Pedro e de Paulo, cuja
tendência, por certo nada dissimulada, consiste em representar Pedro
e Paulo trabalhando de comum acordo em perfeita união, e tentando
imitar-se mutuamente em palavras e atos.
Pedro é aqui um perfeito paulino, e Paulo um perfeito judeu-cristão:
"acreditamos e acreditam, dizem os cristãos de Roma, que o mesmo
que Deus está longe de separar os dois grandes astros que criou [o
Sol e a Lua], igualmente impossível é nos separar um do outro,
quer dizer, ao Paulo de Pedro, e ao Pedro de Paulo". (Cf. Atos de Pedro
e de Paulo, V.)
E em presença de Nero, Pedro diz: "Tudo o que Paulo disse é
verdade" (op. cit., LX), e Paulo replicará a seguir: "O
que ouviu de Pedro acredita-o como se tivesse saído de minha boca,
já que temos uma mesma opinião, temos um só Senhor:
Jesus Cristo" (op. cit., LXII).
A verdade é menos idília, e mais validaria não falar
de seu cordial entendimento! Porque, torpemente, as passagens aonde está
mais acentuada a união dos dois apóstolos são precisamente
aqueles onde foi menos em realidade. Em concreto, nas prerrogativas que
Paulo reivindica continuamente em suas Epístolas para sua missão
pessoal, direito que lhe discutiam, aberta ou silenciosamente, seus adversários,
os cristãos judaizantes.
É muito fácil distinguir, através do véu jogado
sobre a tradição primitiva pelo autor anônimo dos Atos
de Pedro e de Paulo, os principais elementos da luta que dividia à
Igreja primitiva em geral.
Em primeiro lugar, o autor anônimo não parece ter em conta
os Atos dos Apóstolos. Põe de relevo o ódio dos judeus
contra Paulo. Estes, ao inteirar-se de sua chegada à capital do Império
romano, obtêm de Nero, de cujo favor parecem gozar, a decapitação
de Paulo. Em troca, como vimos nos textos (Atos, 28, 11-22), não
acontece nada disso à chegada de Paulo à Roma.
Mas há uma passagem dos Atos de Pedro e de Paulo que não deixa
nenhuma dúvida sobre o que no fundo pensava o autor anônimo,
quem, sem querer, traiu-se a si mesmo.
Em um momento dado, às diatribes contra os circuncisos responde Pedro:
"Se a circuncisão for falsa, por que Simão está
circunciso?"
Esta simples pergunta demonstra que não se trata de que Simão
estivesse circunciso por decisão de seus pais na hora de seu nascimento,
já que então ele não seria responsável por tal
circuncisão. A frase atribuída ao Pedro demonstra que Simão,
pelo contrário, é responsável por sua própria
circuncisão. Portanto se fez circuncidar livremente, em uma época
de sua vida. E logo veremos, ao estudar o verdadeiro motivo da conversão
de Saulo-Paulo, que não estava circunciso de nascimento, por decisão
de seus progenitores, mas sim se fez circuncidar por vontade própria,
quando era adulto; que esta circuncisão não lhe serve para
o que ele esperava, e que daí provinha seu rancor contra o rito que
havia transtornado sua vida.
Entretanto, a insidiosa pergunta de Pedro incomodou enormemente Simão,
o Mago, quem terminou por replicar que, nos tempos em que circuncidaram
ele, a circuncisão era uma ordem de Deus. E Pedro lhe replicou imediatamente:
"assim, se a circuncisão for boa, por que Simão, entregou
você a circuncisos, e os tem feito condenar e matar?".
Mas nos textos canônicos ou nos apócrifos jamais se falou de
um Simão, o Mago, que fora à caça dos cristãos
procedentes do judaísmo, e que os detivera, mandasse-os a prisão
e os fizesse julgar e condenar. Essa recriminação só
podia aplicar-se a um apóstolo dos gentis, Saulo-Paulo, antes de
sua conversão. E com isto temos uma prova mais de que o Simão,
o Mago, do autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo não é
outro, em seu espírito, que o Paulo dos Atos dos Apóstolos,
declarado adversário de Pedro e de seu judeu-cristianismo. Recordem
as discussões entre eles, tanto em Jerusalém como na Antioquia.
Por outra parte, o favor de que goza Simão, o Mago, ante o imperador
não é outra coisa que uma malevolente alusão ao tratamento
de favor de que foi objeto Paulo em Roma durante sua primeira permanência
ali, depois de sua apelação ao César.
E o relato, tão curioso, sobre a pretendida morte de Simão,
o Mago, voando pelos ares e logo estatelando-se contra o chão não
é mais que outra ficção destinada a ridicularizar ao
odiado apóstolo. Lipsius (cf. Die Quellen der rómischen Petrussage)
e Schenkel (cf. Bibel-Lexicon, art. "Simão der Magier")
relacionam muito inteligentemente a pretensão de Simão de
elevar-se pelos ares com as revelações de Paulo ao glorificar-se,
em seu II Coríntios (12, 1-6), de ter sido elevado até o terceiro
céu e ter sido introduzido no Paraíso (sic), e de ter ouvido
"palavras inefáveis que não lhe está permitido
a um homem expressar". Esta relação pôde estabelecer-se
com grande facilidade dado que, nos tempos de Nero, um homem chamado Ícaro
se fez célebre por tentar voar: "Ícaro, já em
seu primeiro intento, caiu perto do assento do imperador, a quem salpicou
de sangue". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, VI,
XII.)
Tratava-se, como é óbvio, de um prestidigitador, um ilusionista
que tentou renovar, evidentemente com outras técnicas, a tentativa
do personagem mitológico de dito nome, filho de Dédalo, ao
evadir do labirinto de Creta. Nos jogos circenses os atores levavam os nomes
de personagens mitológicos aos que momentaneamente encarnavam. Dion
Crisóstomo (Orat., XXI, 9) e Juvenal (Sat., III, 79) relatam-nos
o mesmo fato que Suetonio.
As homilias clementinas
As Homilias Clementinas, atribuídas a Clemente de Roma, estão
constituídas unicamente pela modificação de um escrito
mais antigo, que os exegetas convieram em denominar o Escrito Primitivo.
Esta obra, que data dos anos 220-230, segundo uns foi redigida no Oriente
(Síria ou Transjordânia), e segundo outros em Roma. O autor
desconhecido do Escrito Primitivo já tinha recolhido outros manuscritos
anteriores, como os Cerigmas, predicações atribuídas
ao Simão-Pedro, uns Atos de Pedro diferentes e mais antigos que os
que se conhecem como de Verceil, uma obra judia apologética e, por
último, uma espécie de novela de aventuras em que entra em
jogo uma família pagã da época dos Antoninos.
O mais importante deles era os Cerigmas, texto judeu-cristão extremamente
hostil a Saulo-Paulo, a seus princípios doutrinais, a sua cristologia
revolucionária, verdadeira heresia para o messianismo inicial. Os
Cerigmas desapareceram, só ficam as Homilias Clementinas, e o interesse
desta obra radica precisamente em colocarmo-nos em presença das confrontações,
freqüentemente com extrema violência, que opuseram ao Simão-Pedro
e Saulo-Paulo.
Para fazer desaparecer essa hostilidade e unificar as duas correntes que
pouco a pouco foram convertendo-se no cristianismo, os escribas anônimos
que expurgaram, censuraram e interpolaram os escritos antigos a partir do
reinado de Constantino imaginaram Simão, o Mago, e substituíram-no
por Paulo.
Observar-se-á, em primeiro lugar, que não deixa de ser assombroso
que uma obra como as Homilias Clementinas ignore totalmente o apóstolo
Paulo na época em que foi composta e além disso em troca,
cite em abundância, ao Simão, o Mago.
Por outra parte, nas recriminações que faz Pedro àquele
ao que chama "o homem inimigo"*, é impossível não
reconhecer ao Paulo. Julgue-se, se não, pelos seguintes fragmentos:
*[O cardeal Jean Daniélou recorda em sua obra Théologie du
Judéo-Christianisme que nos Kerygmas de Pedro, "o homem inimigo"
designa à Paulo, "considerado como responsável do rechaço
das observações. Recordamo-lhes que Ireneu e Epífano
consideravam esse rechaço de Paulo como uma das características
do ebionismo". (Cf. R. P. Jean Daniélou, op. cit., p. 72.) Estamos,
pois, autorizados a concluir que durante um tempo estreitos contatos uniram
Paulo e a seita dos ebionitas. Seus membros estavam, portanto, em condições
de saber perfeitamente as origens deste. E Epífano, recordemo-lo,
conta que eles afirmavam que Paulo tinha como progenitores uns gentis, quer
dizer pagãos, e não judeus. Está perfeitamente claro
(supra, p. 33).]
Carta de Pedro ao Santiago: Conheço, meu amigo, seu ardente zelo
pelos interesses que nos são comuns a todos. Acredito, pois, que
devo rogar-lhe que não comunique os livros de meus ensinos que lhe
envio a nenhum homem originário da Gentilidade, nem a nenhum homem
de nossa raça antes de havê-lo provado [...] Porque alguns
dos que vêm da Gentilidade rechaçaram meus ensinos, conforme
à Lei, para adotar o ensino, contrário à Lei, do homem
inimigo e seus frívolos bate-papos. E inclusive em minha vida alguns
tentaram, mediante interpretações artificiosas, desnaturalizar
o sentido de minhas palavras a fim de conseguir a abolição
da Lei. De lhes emprestar ouvidos, acreditaria-se que se trata de uma doutrina
pessoal minha que eu não ouso pregar abertamente! Longe de mim semelhante
conduta! Porque seria atuar contra a Lei de Deus, promulgada pelo ministério
de Moisés, e cuja duração eterna pregou Nosso Senhor
quando disse:
"O céu e a terra passarão, mas nenhum jota nenhuma til
da Lei passarão". (Marcos, 13, 31, e Mateus, 5, 18.)
Segundo as Homilias Clementinas (II, XVI-XVII), há sempre dois mensageiros;
quem chega primeiro é o homem das trevas, o segundo é o homem
da luz, já que as trevas precederam à luz, segundo a Gênesis
(1, 1-3), e para respeitar esse simbolismo, na antiga Israel começava
o dia quando se punha o sol, ao iniciar a noite. E para as Homilias esta
regra aparece autentificada pelo fato de que Caim chegou antes que Abel,
Ismael antes que Isaac, Esaú antes que Jacob. Desde aí procede
o primitivo sacrifício dos primogênitos. E então se
compreenderá melhor o que segue. Fala Pedro: "Guiando-se por
esta ordem de sucessão, poderia compreender-se de quem procede Simão,
o Mago, que chegou antes que eu às nações, e a quem
eu relevo, que cheguei depois que ele e que lhe aconteceu como a luz às
trevas, a ciência à ignorância, a cura à enfermidade.
Assim, tal como disse o profeta verídico, tem que aparecer sempre
primeiro um falso evangelho, pregado por um impostor...". (Homilias
Clementinas, II, xVII.)
Pois bem, como vimos, Saulo-Paulo insinua que seu evangelho é o primeiro
e condena os outros. Isso está muito claro.
Há ainda uma espécie de controvérsia em que o leitor
reconhecerá facilmente Paulo e suas teorias gnósticas, de
cara ao Pedro, estrito reflexo da ortodoxia testamentária. Vejamos:
"por exemplo, Simão, o Mago, deve manter amanhã conosco
uma discussão pública em que ousará atacar a soberania
do Deus Único. Tem a ousadia de contribuir um grande número
de entrevistas extraídas das próprias Escrituras e afirmar
que há vários deuses, um dos quais é diferente do Criador
do Universo e superior a ele". (Homilias Clementinas, III, X.)
Paulo, por sua parte, sustenta os mesmos princípios: "Posto
que, embora há quem são chamados deuses, seja no céu,
seja na terra, do mesmo modo que existem muitos deuses e muitos senhores..."
(Paulo, I Coríntios, 8, 5.)
Em outro momento Pedro e Paulo polemizaram violentamente sobre o valor revelador
de uma visão. É evidente que se tratava da maneira em que
Paulo pretendia ter recebido seu evangelho -quer dizer, do próprio
Jesus-, durante sua ascensão ao terceiro céu, e de sua recepção
no paraíso: "Se for mister glorificar-se, embora não
é bom, virei às visões e revelações [que
eu obtive] do Senhor. Sei de um homem em Cristo que, faz quatorze anos -se
no corpo, não sei; se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus
sabe- foi arrebatado até o terceiro céu, E sei que este homem
foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis
que um homem não deve repetir". (Paulo, II Coríntios,
12, 1-6.)
*[As pretensões de Paulo de escalar o mundo invisível até
o terceiro "céu" (muito mais tarde Mahomé sustentará
a mesma afirmação) caem violentamente contradições
pelo evangelho de João: "E nada subiu jamais ao céu",
senão é o que há sob o céu, o Filho do homem,
que está no céu" (João, 3, 13). E mais, o próprio
Paulo se contradiz a si mismo em sua Epístola aos Romanos, ao declarar:
"Não digas em teu coração: Quem subirá
ao céu? Isto é, para rebaixar a Cristo", (cf. Epístola
aos Romanos, 10, 6). Dito de outro modo, segundo esse texto Paulo reconhece
que unicamente seu "Cristo" metafísico é capaz de
subir ao céu, porque já desceu dele.]
Vejamos agora o texto das Homilias Clementinas a este respeito:
"Para ouvir estas palavras, Simão, interrompendo Pedro, disse-lhe:
"Sei a quem vai dirigido isso que você diz. Mas não quero
repetir as mesmas coisas para o refutar e perder o tempo em discursos que
não estão em minhas intenções. Vangloria-se
que ter compreendido muito bem os ensinos de seu Mestre, por havê-lo
visto claramente com seus próprios olhos e ouvido com seus próprios
ouvidos, e declara que lhe era impossível a nenhum outro chegar a
um resultado semelhante mediante visões ou aparições".
(Op. cit., XVII, XIII.)
Segue uma longa discussão sobre o valor das visões e dos sonhos,
e sobre a qualidade do que os recebe, a qual economizaremos ao leitor. Mas
logo vêm umas passagens que devemos citar, porque não permitem
já duvidar de que se trata da presença de Paulo, sob o nome
de Simão, o Mago. Julgue-se. Segue falando Pedro: "assim, se
nosso Jesus se deu a conhecer também a si, e se tiver conversado
consigo em uma visão, é por cólera contra si, que é
seu adversário! Por isso é pelo que falou mediante visões,
sonhos ou inclusive revelações exteriores. Por outra parte,
pode um voltar-se capaz de ensinar, só por uma aparição?
Você dirá, possivelmente:
"É possível". Mas então, por que o Mestre
permaneceu um ano inteiro conversando com pessoas despertas? E como daremos
crédito ao que você diz, isso de que apareceu? E como é
que lhe apareceu, se seus sentimentos estiverem contra seus ensinos? E se
por ter gozado durante uma hora de sua presença e de suas lições
se tornasse apóstolo, então publica bem alto suas palavras,
explica sua doutrina, ama a seus apóstolos, e deixa de combater a
mim, que vivi com ele! Porque é contra mim, a rocha firme, o fundamento
da Igreja, contra quem você erige como adversário. Se não
fosse meu inimigo, não procuraria com suas calúnias desprezar
meus ensinos para impedir que se acredite em minha palavra, quando eu o
que faço é repetir o que ouvi da própria boca do Senhor,
e não me representaria como um homem condenado e desconsiderado".
(Homilias Clementinas, XVII, XIX.)
Esta última frase faz alusão, evidentemente, a seu passado
de bandoleiro, fora da lei, que constituiu durante muito tempo a existência
cotidiana do Simão-Pedro. Que o leitor se tome a moléstia
de ler ou reler, em nosso anterior volume, o capítulo intitulado
"O dízimo messianista", e então compreenderá
que Paulo não ignora tal passado, e que dele tira argumentos contra
Pedro entre os gentis.
Mas como aplicar esta controvérsia ao Simão o Mago? Porque
em nenhuma parte nos diz que Jesus lhe tivesse aparecido! E desta discussão
se desprende, inconfundivelmente, que é ao Paulo a quem vão
dirigidas as diatribes do Pedro.
Entre as Homilias Clementinas e os Atos dos Apóstolos há,
além disso, uma séria contradição na hostilidade
que nos pinta, ao opor Simão, o Mago, e Pedro, e a resignação
que o primeiro nos mostra nos citados Atos: "Quando Simão viu
que pela imposição das mãos dos apóstolos se
comunicava o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro dizendo: dêem-me
também esse poder de impor as mãos, de modo que receba o Espírito
Santo. Mas Pedro lhe disse:
Que seu dinheiro pereça consigo, pois acredita que com dinheiro poderia
comprar o dom de Deus. Não tem nisto parte nem verdade, porque seu
coração não é reto diante de Deus. Arrependa-se,
pois, desta sua maldade e roga ao Senhor que o perdoe se for possível
este mau pensamento de seu coração, porque vejo que incorre
em fel de amargura e em laço de iniqüidade. Simão respondeu:
Roguem vós por mim ao Senhor, para que não me sobrevenha nada
do que disseram". (Atos, 8, 18-24.)
Este fragmento dos Atos é, sem sombra de dúvidas, um dos mais
importantes dentre todos os que se relacionam, de perto ou de longe, com
nosso estudo, já que incorpora uma explicação a esse
antagonismo de Paulo e de Pedro, que nenhum exegeta de boa fé saberia
negar. Porque só aos ingênuos e aos ignorantes terá
que lhes deixar a lenda dos "bem-aventurados apóstolos Pedro
e Paulo", unidos em Roma por um martírio, senão semelhante,
ao menos cronologicamente associado. Terá que ignorar a frase dúbia
de Eugenio de Cesaréia sobre a suposta morte de Simão-Pedro
em Roma: "conta-se que sob seu reinado [Nero César], ao Paulo
cortaram a cabeça em Roma mesmo, e que parece que ao Pedro crucificaram
ali. E isto o confirma o fato de que até agora [ano 340] levam o
nome de Pedro e de Paulo os dois cemitérios desta cidade". (Cf.
Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica,
II, XXV, 5.)
As provas da morte em Jerusalém, no ano 47, do Simão-Pedro
e de seu irmão Jacobo (aliás Santiago) demo-las no primeiro
volume, de maneira que não voltaremos para isso.
Entretanto, continuam umas analogias muito curiosas entre as atividades
de Paulo e o oferecimento "simoniaco" de Simão, o Mago.
Esse produto das coletas efetuadas pelo Paulo em Síria, na Macedônia,
na Acaia, em proveito unicamente da comunidade de Jerusalém, que
está dirigida pelo Pedro (cf. Atos, 4, 32-35; 6, 1; 5, 1-11), coletas
inegáveis, porque aparecem enumeradas nas Epístolas de Paulo
(I Coríntios, 16, 1-2; II Coríntios, 8, 20; Romanos, 15, 26),
todos esses movimentos e oferecimentos de dinheiro não evocam curiosamente
a oferta de compra do poder iniciático por parte de Simão,
o Mago?
Há, com efeito, uma passagem das Epístolas de Paulo onde este
parece defender-se de uma acusação de simonia discreta e larvada.
Julgue-se: "Atuamos assim a fim de que ninguém nos vitupere
com motivo desta importante soma que passa por nossas mãos".
(Cf. Paulo, II. Coríntios, 8, 20.)
E nosso homem precisava no versículo precedente que fizera chegar
esse dinheiro à comunidade de Jerusalém por meio de um irmão
que "além disso foi eleito pelas igrejas para nosso companheiro
de viagem nesta obra de beneficência, que nós levamos a cabo
para glória do Senhor e em prova de nossa boa vontade". (Cf.
Paulo, II, Coríntios, 8, 18-19.)
Assim, as igrejas desconfiam, escolheram elas mesmas quem levara o dinheiro
à cidade de David, e não é Paulo. Além disso,
o tal Paulo tem que dar ainda a prova de boa vontade. Tudo isto é
menos sinônimo de gracioso entendimento do que palavrório adocicado
e lenitivo dos Atos quer fazer acreditar.
Há ainda outro ponto em comum entre Simão, o Mago, e Paulo.
Simão denomina a si mesmo "veículo" psíquico
do "poder de Deus", qualificado também de "Grande".
Pois bem, em Samaria, no setor do estádio, exumou-se uma estátua
à Koré, aliás Perséfone, deusa-virgem, guardiã
dos mortos e protetora das sementes, já que o grão se identificava
com o morto, ao qual se introduz na terra a fim de que reviva. Por isso
mesmo, Koré, era também a deusa-virgem restituidora dos vivos.
Em Samaria encontraram-se numerosas dedicatórias a esta divindade,
e sobre uma delas pode-se ler: "Uma só deidade, a poderosa,
Koré a Grande, a Indômita". (Cf. A. Parrot. Samaria, capital
do reino de Israel.)
E em Samaria os Atos nos dizem que: "Todos, do menor até o maior,
escutavam atentamente ao Simão, e diziam: Este é o poder de
Deus, chamado Grande". (Atos, 8, 10.)
Voltemos a ler as Epístolas de Paulo; a expressão poder de
Deus é, na linguagem paulina, sinônimo de Deus mesmo (cf. Romanos,
1, 16; I Coríntios, 1, 18-24, e 2, 5; II Coríntios, 6, 7,
e 13, 4; Colossenses, 2, 12; II Timóteo, 1, 8).
E mais, utiliza o esoterismo iniciático do grão de trigo,
depositado na terra para morrer, a fim de renascer, que, como acabamos de
ver, é um dos elementos da iniciação aos "mistérios"
de Koré a Grande: "Mas dirá algum: Como ressuscitam os
mortos? Com que corpo vêm? Insensato! O que você semeia não
recobra vida se primeiro não morrer. E o que semeia não é
o corpo que tem que nascer, a não ser um simples grão, pondo
no caso, trigo ou de alguma outra semente. E logo Deus lhe dá o corpo
conforme quis, e a cada uma das sementes seu próprio corpo".
(Cf. Paulo, I Coríntios, 16, 35-38.)
Agora bem, nestes versículos não parece que se trate da famosa
ressurreição do Julgamento Final, mas sim de um renascimento
que acontece à morte, de um princípio de vida que, neste renascimento,
não segue necessariamente a mesma ordem ontológica que antes,
já que sua nova orientação depende de Deus. Aqui não
se trata já de metem-somatosis, mas sim de metempsicosis. Além
disso, voltamos a estar em presença dos "mistérios"
de Koré a Grande, deusa guardiã dos mortos, restituidora dos
vivos, e por isso mesmo protetora das sementes. E aqui, como vemos, Paulo
se expressa rigorosamente igual faria Simão, o Mago, que provavelmente
devia ser "sacerdote de Koré e dos Dioscuros" (cf. A. Parrot,
op. cit.).
Nas Epístolas de Paulo subsistem diversos fragmentos que revelam
esta identidade entre Saulo-Paulo, príncipe herodiano, enfronhado
de magia nabatea, e Simão da Samaria, chamado Simão, o Mago,
personagem imaginário, inventado para as necessidades da causa dos
séculos IV e V, quando "arrumaram" o texto primitivo dos
Atos dos Apóstolos. Como prova nos basta o que segue: "Dou graças
a Deus de não ter batizado a nenhum de vós, a não ser
Crispo e Gayo, para que ninguém possa dizer que fostes batizados
em meu nome. Batizei também à família de Estéfanas,
mas fora destes não sei de nenhum outro. Que não me enviou
Cristo a batizar, a não ser a evangelizar". (Cf. Paulo, I Coríntios,
1, 14.)
"Ou é que ignoram que quantos fomos batizados em Jesus Cristo,
em sua morte fomos batizados? Com Ele fomos sepultados pelo batismo para
participar de sua morte [...] Pois, se tivermos morrido em Cristo, acreditam
que também viveremos nele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado
dentre os mortos, já não morre." (Cf. Paulo, Romanos,
6, 3 e 8.)
Estes dois fragmentos das Epístolas de Paulo demonstram:
a) que seu autor não recebeu jamais os poderes apostólicos,
o mais essencial dos quais residia na função batismal;
b) que esses poderes apostólicos lhe foram denegados por seus primitivos
possuidores, os "apóstolos", já que é seguro
que não esqueceria lhes solicitar a transmissão, e sua ausência
implica, por conseguinte, uma negativa;
c) que essa negativa a lhe transmitir os citados poderes apostólicos
o identifica ipso facto, e de maneira irrefutável, com Simão,
o Mago, que sofreu a mesma negativa por parte de Simão-Pedro (Atos,
8, 18-24);
d) que antes Paulo só possuía "seu evangelho", igual
a Simão, o Mago, como já relatamos.
Nos objetará que Paulo possuía os poderes do exorcismo, posto
que são evocados nos Atos dos Apóstolos (19, 11-17).
Não é nada surpreendente em um homem iniciado na magia. Recordemos
sua herança, o parentesco com os príncipes-sacerdotes analisados
antes na religião da Iduméia e Nabatea. Vejamos esse texto:
"E Deus fazia milagres extraordinários pelas mãos de
Paulo, até o ponto de que se aplicavam sobre os doentes tecidos ou
lenços que tinham corpos doloridos, e as enfermidades lhes abandonavam,
e os maus espíritos saíam. Alguns exorcistas judeus ambulantes
tentaram invocar sobre aqueles que tinham espíritos malignos o nome
do Senhor, dizendo: Vos conjuro por Jesus, que prega Paulo! Os que faziam
isto eram sete filhos da Sceva, um dos supremos sacerdotes judeus. O espírito
maligno lhes respondeu: Conheço Jesus e sei quem é Paulo,
mas vós quem sois? E o homem em cujo interior estava o espírito
maligno se equilibrou sobre eles, enfureceu-se em dois e os maltratou de
tal maneira que fugiram desta casa nus e feridos". (Atos, 19, 11-17.)
Mas a resposta a esta objeção é óbvia, posto
que nos precisa que se tratava de exorcistas judeus, filhos de um exorcista
judeu célebre por suas curas. Com efeito, quão únicos
possuíam esses poderes e os utilizavam eram os discípulos
de Jesus. A Palestina daquela época estava infestada, como quase
todo o Oriente Médio, de magos itinerantes que pretendiam encontrar
em todo doente uma vítima de um ou de vários espíritos
malignos. E a cura dependia então, não da medicina daqueles
tempos, mas sim da magia. Esta magia, principalmente constituída
por conhecimentos botânicos ou psicomagnéticos (hipnotismo,
magnetismo curativo), servia às vezes para adoecer previamente a
um futuro cliente, a fim de podê-lo curar triunfalmente a seguir,
suprimindo os "ataques secretos" contra sua saúde. Rasputin
fez o mesmo na Rússia com o Zarevich, para captar a admiração
e a confiança do czar e da czarina, seus pais.
Observemos, de passagem, que ainda em nossos dias o exorcismo é a
única medicina admitida pela Igreja. Não admitiu o bem baseado
da amputação cirúrgica até que se sentou no
trono papal Pio XII, e em 1829 o Papa Leão XII condenou solenemente
a vacinação:
"Quem quer que proceda à vacinação deixa de ser
filho de Deus. A varíola é um julgamento de Deus, a vacinação
é um desafio ao Céu".
Equivale a dizer que a medicina foi tão somente tolerada!
Para concluir este capítulo sobre a provável identidade entre
o personagem imaginário de Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, o
melhor que podemos fazer é recordar que são Cipriano (decapitado
em Cartago no ano 240), que também tinha sido mago, e Eusébio
da Cesaréia (morto no ano 40) acreditaram útil comparar Saulo-Paulo
com São Cipriano, um mago convertido (supra, pp. 33-34).
Possivelmente seus manuscritos originais diziam mais sobre o tema, mas os
monges copistas da Alta Idade Média passaram indubitavelmente por
ali. Seja como for, essa dupla alusão terá que acrescentar
à tese que identifica Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, e no momento
se basta a si mesmo...