Um pouco mais sobre a Sinarquia
O modelo sinárquico teve a sua última formulação
amplamente divulgada com a obra de Saint-Yves D'Alveydre. Místico
e Maçon francês, nascido em Paris em 1842, estudou profundamente
os escritos de Fabre d'Olivet e, ao longo da sua vida, interessou-se pelas
filosofias orientais, pela tradição iniciática ocidental
e pelos temas clássicos da antiguidade, com especial ênfase
no Egipto. Foi profundamente influente nos movimentos rosicrucianos franceses
da sua época, bem como nos movimentos teosóficos, martinistas
e outros de carácter ocultista. Morreu em 1909, tendo a sua obra
mais conhecida "O Arqueómetro" sido publicada já
postumamente. O tema da Sinarquia, que já foi objeto em várias
matérias no site Hermanubis , ocupou-o durante uma boa parte da sua
vida. Refere-o em vários dos seus livros e apontamentos. Particularmente
influente no seu estudo foi a visita de um grupo de emissários do
oriente, encabeçados pelo Príncipe Hardjij Scharipf, que o
instruíram sobre a cidade secreta de Agartha, centro supremo do Governo
Invisível do mundo, cidade mítica onde o Rex Mundi (mais tarde
alvo de um incontornável estudo de René Guen) governa as diversas
esferas hierárquicas num sistema Sinárquico perfeito.
Vamos debruçar-nos sobre o entendimento de Saint-Yves D'Alveydre
sobre a Sinarquia, não sem antes sublinhar que esta é apenas
uma formulação, que carece de estudo aprofundado e de reflexão
- individual e colectiva - para que possa ser um sistema viável no
mundo pós-democracia em que viverão as gerações
futuras. Ou seja, Saint-Yves dá-nos uma interpretação
da Sinarquia perfeita e utópica, imagem da cidade de Agartha, contextualizada
pela época que foi a sua - a transição entre o século
XIX e o século XX. Longe viriam ainda a primeira e segunda guerras,
a revolução Russa, o fenómeno dos fascismos, das ditaduras
militares, da guerra-fria, do mundo pós-moderno. Esta limitação
pode hoje ser levantada pelos pensadores contemporâneos, que deverão
debruçar-se sobre os princípios imutáveis da Sinarquia
e procurar entender como a sociedade se aproxima ou afasta destes. Esse
trabalho de reflexão não se destina a dar frutos no nosso
tempo, mas - tal como a maior parte do trabalho iniciático - deve
servir como a contribuição para um elo da cadeia evolutiva
do conceito em si, de modo a que um dia este possa frutificar no mundo.
A Maçonaria, por esse motivo, é mais uma vez um fórum
privilegiado para o contínuo trabalho de perfeição
deste conceito.
A Sinarquia é ainda um modelo de governo demasiado avançado
para a humanidade actual. Isto significa que deixa muitas áreas em
aberto, as quais não encontram resposta perante a forma como hoje
concebemos e exercemos o poder. A política de hoje ainda é
partidária e, por isso, fraccionante. Ainda é subserviente
a interesses particulares sobre o interesse global comum.
A maior parte dos problemas causados pelo uso inadequado do poder ao longo
da história da humanidade advêm da confusão entre os
conceitos Poder / Autoridade. Para a Sinarquia este é um tema central.
O Poder relaciona-se com o plano executivo e a Autoridade com o plano da
legitimidade, historicamente relacionadas com as vias Cavaleirescas e Sacerdotais,
respectivamente, mas que em Sinarquia requerem uma reflexão muito
mais extensa e profunda. Uma das contribuições do pensamento
Maçónico no plano político foi a separação
entre o Estado e a Igreja, mais tarde subvertido na aniquilação
e negação do papel do Sagrado na vida social e política
dos povos (sem os quais não há Estado). Na luta entre Poder
e Autoridade, a laicização dos Estados resultou não
na separação destes poderes como inicialmente se preconizava,
mas, pelo contrário, na concentração por parte do poder
político laico de ambos: Poder e Autoridade. Chegou muitas vezes
a confundir-se, por culpa de movimentos espúrios, a luta entre o
Poder e a Autoridade como a luta entre a Maçonaria e a Igreja. Dois
pilares das sociedades humanas não podem ser confundidos com duas
instituições de falibilidade humana. O resultado não
podia ser mais anti-iniciático e está à vista. Hoje,
Poder e Autoridade são exercidos como uma e a mesma coisa, num acto
de arrogância histórica que trará no seu exercício
as sementes próprias do seu fatal destino.
Qual a origem etimológica da palavra "Sinarquia"? Citemos
a pesquisa feita sobre o tema por Olímpio Gonçalves
"O termo 'Sinarquia' deriva directamente do grego 'Synarchia', que
significa 'magistratura colectiva', 'poder repartido'. Etimologicamente,
compõe-se do radical 'Sy'n', um elemento de composição
que traduz a ideia de 'conjunto', 'juntamente', isto é, 'junto com',
e 'arkhê', que designa o 'princípio das coisas', sua 'essência'.
Da denotação do termo Sinarquia com o conceito 'Com Princípios',
aplicado à Sinarquia como Sistema Político, resulta a noção
de 'Governação com Princípios'. Neste sentido, a Sinarquia
opõe-se, é antónima da Anarquia, uma 'Governação
carente de Princípios'. Os 'Princípios" sinárquicos
fundam-se no corpo científico das estruturas biológicas da
evolução. Estas estruturas coincidem com os Princípios
da Sinarquia. Deste modo, a ordem social orgânica da Sinarquia nega
a desordem sistemática dos regimes arbitrários e fragmentários,
anárquicos por definição, em boa verdade, todos os
regimes políticos vigentes à face da terra"
Tal como as proporções e a regra de ouro advêm da observação
do homem, da natureza e das suas leis geométricas e matemáticas,
assim também a Sinarquia procura implementar os princípios
que são universais na natureza (e portanto não somente preexistentes
às imperfeitas sociedades humanas, mas igualmente visivelmente capazes
de gerar harmonia e condições propícias à evolução
das espécies, do mais simples ao mais complexo elo na cadeia evolutiva).
Deste modo surge de imediato a tripartição dos princípios
de acordo com a natureza tripla da manifestação, objecto de
estudo da Maçonaria desde o primeiro grau. Citemos ainda Olímpio
Gonçalves:
"O conceito da tripartição aplica-se do mais simples
ser vivo à complexidade do ser humano como um postulado geral. Trata-se
de uma constatação biológica e fisiológica.
Ao nível da predicação teologal, esta acepção
triádica assenta na mundividência teocêntrica medieval,
que imperou até ao racionalismo positivista, da existência
de um Deus que, sendo uno, se manifesta como Três Pessoas distintas:
Pai, Mãe e Filho ou Pai, Filho e Espírito Santo e se reflecte
antropocentricamente como Espírito, Alma e Corpo (
) [a que]
correspondem três funções orgânicas:
- Função Espiritual (Inteligência - Mente);
- Função Vital (Respiração - Emotividade);
- Função Vegetativa (Reflexo - Motora).
(
)
Em simetria com a Lei biológica e orgânica da Vida, a Sinarquia
assenta similarmente a sua governação em Três Unidades
nucleares: A Ordem do Ensino, a Ordem da Justiça e a Ordem Económica.
A Ordem do Ensino integra o Conselho de Sábios (entenda-se, não
só homens de Conhecimento, mas os detentores da Sageza). Esta Ordem
visa os fins últimos dos homens, a Ciência, o Conhecimento,
a Cultura. E porque corresponde à Mente, à Razão, configura
o Conselho que detém a Autoridade. A Ordem Económica ocupa-se
da produção e consumo dos bens necessários à
sobrevivência, assim como ao seu regimento. Equivale à nutrição
do corpo, à actividade social. É gerida pelo Conselho da Economia.
Finalmente, a Ordem da Justiça, através do seu Conselho de
juristas, devidamente credenciados, assegura as relações taxiológicas,
isto é, as normas legislativas e políticas que regem os cidadãos.
Se à Ordem do Ensino compete o exercício da Autoridade e à
Ordem da Economia, o Poder substantivo, os dois extremos dialécticos
da Sinarquia, na Ordem da Justiça encontramos o termo mediador e
seu planejamento mestre, o Organon ou Constituição do Estado."
A Sinarquia baseia-se, então, na separação absoluta
entre Autoridade e Poder, por um lado e na partição do Poder
por uma tríade que detém os três aspectos principais
da harmoniosa governação da "coisa pública".
Trata-se da divisão do poder Judicial, do poder Económico
e do poder Espiritual/Ensino, pilares simbolicamente presentes no Templo
Maçónico como Força, Beleza e Sabedoria. Cada um destes
pilares é governado em equilíbrio com os restantes e não
em conflito ou sobreposição. Cada um é ocupado por
um Chefe, que atingiu a cúspide da sua carreira pelo reconhecimento
que as outras estruturas lhe dispensam à sua qualidade como Sábio
na área a que preside - detentor da Autoridade, mas não do
poder executivo do pilar.
Desde logo esta formulação coloca questões de extrema
importância. O poder Económico deve ser um dos pilares do Estado?
O governo deve ser entregue aos Sábios? O que é um Sábio
e quem define o conceito? Como estabelecer um modelo social em que o mérito
e a capacidade individual determinam o progresso profissional de cada um?
Não é este um dos objectivos utópicos da administração:
o melhor homem/mulher para cada função? Como consegui-lo?
O poder espiritual pode ser outro pilar do Estado? Não foi uma das
vitórias da sociedade moderna a separação entre Estado
e Religião?
Cada uma destas questões é um bom ponto de partida para a
discussão a realizar por adeptos da boa lei. Estado e Religião
devem estar separados, contudo não é possível governar
de modo completo a complexidade que é a sociedade humana, afastando
do exercício democrático precisamente um dos denominadores
comuns da humanidade: a sua dimensão espiritual. Não está
em causa a Igreja de Roma ou o fundamentalismo Islâmico. É
primário entender que nenhuma delas ou quaisquer outras se deve sobrepor
ao Estado. Contudo, pode o Estado ignorar que, uma vez supridas as necessidades
básicas, todos os seres humanos procuram suprir necessidades transcendentais
(ainda que disfarçadas por conceitos como "felicidade",
"bem estar" ou "auto-estima")? E mesmo quando as necessidades
básicas não estão supridas, no meio da fome, da miséria
humana e da doença é onde encontramos rasgos de Esperança
e Fé mais firmes e exemplares, embora possam parecer quase irracionais,
pois a razão não consegue explicar a sua origem e propósito.
A dimensão espiritual é intrinsecamente humana e encontra-se
em todas as esferas da sociedade. Reduzir uma tão complexa questão
à expressão anuladora que mantém Estado e Religião
de costas voltadas é ignorar o que a Democracia postula ser essencial:
aquilo que partilhamos é mais importante do que aquilo que nos divide.
E se há algo que a humanidade partilha, é a propensão
para o transcendente.
Esta e muitas outras questões estão em aberto nos sistemas
de governo actuais. Não se encerram por mera vontade política.
As massas humanas são fonte de intermináveis surpresas e as
probabilidades de um santuário como Fátima ter mais peregrinos
num dia marcado como santo, do que um jogo de futebol ter espectadores ou
um comício político ter militantes, continuam a ser muito
grandes.
Regressemos então à descrição da Sinarquia de
Alveydre. Os três pilares (Autoridade) Económico, Judicial
e Espiritual da Sociedade assentam sobre doze pilares executivos menores,
os quais definem doze áreas de governação executiva.
Deve sublinhar-se de novo que nenhum dos Chefes da Tríade Superior
tem poder executivo. Não há poder exercido por nenhum, quer
a solo, quer no seu conjunto. Estes são o garante da legitimidade
do sistema, da Autoridade do Estado. O Governo - o Executivo - é
formado pela totalidade dos doze pilares - ou Ministérios. Estes,
por sua vez, exercem a actividade executiva relativa a todos os campos governativos
cobrindo o leque completo dos assuntos da "coisa pública".
A principal originalidade está na "organização
natural" da governação. A procura de conceber o Estado
como um conjunto de "órgãos" e sistemas vitais tais
como os que constituem o ser humano e que concorrem no seu funcionamento
harmónico para um equilíbrio integral do todo. E nesse sentido,
facultar o acesso ao bem-estar espiritual (de livre escolha e não
imposto) é visto como uma obrigação do Estado, como
é a defesa, a saúde, a cultura ou o desporto. Não se
entenda aqui uma sectarização ou a imposição
de uma Religião oficial de Estado, mas um acesso livre, equalitário
e apoiado de todos aqueles que procuram o seu desenvolvimento espiritual
a equipamentos (templos, locais de meditação, espaços
de contemplação, fóruns de reflexão, etc.),
a uma efectiva liberdade de associação religiosa ou espiritual,
promoção do acesso ao conhecimento tradicional bem como à
sua preservação, promoção de formas de aproveitar
e conservar a experiência e conhecimentos de anciãos e pensadores,
etc.
Não há limite para o que o Estado Sinárquico pode fazer
pelo bem-estar espiritual dos cidadãos sem ser impositivo, doutrinador
ou regulador intrusivo.
Contudo, devemos aos Estados laicos a exploração da estupidez humana que hoje grassa numa porção apreciável da sociedade que se deixa enganar por pseudo-bruxos, tarólogos e astrólogos que mais não fazem do que usar velhos truques mentais e abusar da fraqueza de vontade, ambição, necessidade de auto-estima e o medo ignorante puro e simples das suas vítimas para lhes vender um pobre serviço dito "espiritual". Se há novas religiões que ocupam velhos teatros, se as exibições da matiné são "curas milagrosas" cobradas com recurso a técnicas de manipulação de massas, isso o devemos ao Estado laico. Ao virar costas ao Espírito e à Religião, como se não fosse assunto seu, como se pudesse ignorar que o ser humano continua a sua busca eterna, o Estado deixa o fraco à mercê do traiçoeiro, o honesto às mãos do bandido, o débil à disposição do cobarde. O Estado não se demite da ordem pública. Não se demite da educação. Não se demite da regulamentação económica precisamente para que o mesmo estupro não ocorra aos cidadãos na sua vida económica, profissional ou rotineira. Concedo que a tentação de doutrinar e regulamentar desproporcionalmente é um forte risco. Que o Estado laico surge precisamente em oposição a arbitrariedades históricas neste domínio. Contudo este facto não nos deve inibir de colocar o problema, de reflectir sobre ele, de o analisar sob todos os ângulos, ainda que sabendo que os homens de hoje na sua maioria não estão preparados para saber limitar o seu ímpeto autoritário. A Sinarquia não é para hoje. Todavia ela já desponta no horizonte.
Como vemos, não há um corpo teórico Sinárquico.
A disponibilidade de fontes bibliográficas é escassa e o debate
não foi ainda amplamente aberto para que mesmo o público mais
vasto - para lá dos restritos círculos de estudantes da Tradição
- possa ter acesso a informação simples, clara e concisa sobre
a Sinarquia. A formulação da Sinarquia aplicada à dimensão
humana - o "adventum regnum tuum" da Tradição -
enfrenta ainda muitos pontos que exigem trabalho e reflexão. É
obra de Ordens como a Maçonaria ao seu mais alto nível, não
fazer política partidária com os olhos postos nas próximas
eleições, mas constituir um fórum de elite privilegiado
de novos pensadores daquilo que verdadeiramente pode ser uma Nova Era de
progresso e avanço para a humanidade, uma Era de Ouro, que exige
muitas forjas e muitos obreiros