O Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain

Terceira parte


 

Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.

As chamas de Roma
E quando lhes contemplarmos, afundados nas chamas eternas, ah, como riremos! Quanta será nossa alegria!
Tertuliano, Depaenitentia
18- A prostituta do Apocalipse
Quem quer que se atrevesse a pôr a mão sobre Roma seria culpado de parricídio aos olhos do mundo civilizado e nos julgamentos eternos de Deus.
PIO XII, ao Colégio Cardenalicio, 1944
Será consumida pelo fogo [...] E sua fumaça subirá por tosse séculos dos séculos. Apocalipse, 18, 8, e 19, 3
Desde 1919 a 1932 os Estados Unidos da América viveram sob a lei chamada da "Proibição", que proibia a venda e consumo do álcool. Essa foi, então, a grande época do gangsterismo. Antes de estar em condições de fazer uso das diversas armas automáticas que fizeram dos bandos norte-americanos terríveis associações de malfeitores, os assassinos destas e os guarda-costas de seus chefes usaram uma arma terrível: a lupa ou lupara. Dito de outro modo, "a loba".
Tratava-se de um fuzil de caça, de dois tiros ou de repetição, que lançava cartuchos com postas, e ao que se serrou o canhão até a metade de sua longitude e cortado a culatra recortando-a à altura do punho de uma pistola. A simples posse de uma arma deste tipo implicava a detenção imediata e a isso seguia uma investigação.


Terá que dizer que este tipo de arma fora adotada pelos assassinos da Cosa Nostra, sociedade secreta siciliana, em lembrança de uma arma análoga utilizada pelos pastores de Sicilia. O fuzil de canhões recortados, derivado da antiga escopeta (em italiano: Schio-petto) dos séculos XV e XVI, assim como o trabuco (em italiano: Trom-bone), podia dissimular-se facilmente sob um impermeável, dirigia-se com as duas mãos, mas permitia obter a muito curta distância uma dispersão de projéteis suficiente como para não ter que apontar, o que permitia disparar imediatamente. Este era o motivo pelo quais os pastores de Sicilia o conservaram durante séculos, já que servia tanto contra os lobos como contra todo ataque de um membro de um clã inimigo.
Mas um se perguntará por que dariam a esta arma o nome de "loba" (lupa ou lupara em italiano, igual em latim). Pois bem, como conseqüência de um trocadilho erótico. Esta arma a identificavam com a "companheira fiel" do pastor. E o latim lupa designa não só à loba, mas também a toda mulher de má vida, já que a ambas as conhece por sua enorme sensualidade. Desse nome derivam os lupercales.
Estas festas celebravam em Roma o 15 das calendas de março, quer dizer, em 15 de fevereiro, em honra ao deus Lupercus, nome romano de Pan. Nelas se sacrificava duas cabras e um cão, e com as peles das vítimas faziam-se látegos, e os encarregados da celebração da festa, os lupercos (luperci), percorriam as ruas de Roma armados com esses látegos e açoitando com eles a todos aqueles e aquelas aos quais encontravam. O deus Lupercus, protetor dos rebanhos frente aos lobos, era ao mesmo tempo um deus de fecundidade. As mulheres se ofereciam, pois, seminuas a esta flagelação, que tinha a virtude de fazer fecundas às esposas estéreis e de procurar às mulheres grávidas um feliz parto. Como esta flagelação podia muito bem não resultar eficaz geneticamente falando, mas em troca podia excitar os sentidos das mulheres, estas últimas fizeram degenerar pouco a pouco a festa de Lupercus em uma imensa orgia, o que, naturalmente, facilitava as fecundidades ulteriores. Até finais do século IV não se obteve a supressão dos Lupercales, coisa que conseguiu o Papa Gelasio I.
Pois bem, voltando para a "loba", companheira de pastores, constataremos que aplicaram este nome à sua arma em lembrança de uma antiqüíssima tradição latina. Na Roma antiga, o pastor era ou o filho menor da casa, ou o escravo. Vivia isolado durante meses, com seu rebanho e seus cães, alimentando-se de olivas, de frutos, mel, leite, queijo e água clara. Para satisfazer as exigências sexuais desses pastores houve durante muito tempo prostitutas itinerantes. Como o pastor não tinha dinheiro, tanto se era filho da casa como se era escravo, tinha que compor-lhe para lhe pagar à mulher que lhe concedia esses favores que valiam dinheiro. Tanto se pagava em espécie o que lhe era dado, como se liquidava com dinheiro, era indevidamente o rebanho do amo quem carregava com o gasto. E então tinha que procurar o dinheiro vendendo subrepticiamente um cordeiro ou uma ovelha, ou dava uma ou outra ao escravo que fazia de servente da prostituta, assim como de guarda-costas "privilegiado".
Assim, essas mulheres não eram ainda "devoradoras de diamantes", a não ser lisa e sinceramente "devoradoras de rebanhos". De onde seu apelido de "lobas", tanto por seus costumes e temperamento como por sua modalidade de pagamento habitual.
Pois bem, Roma deve a uma dessas "lobas" a vida de seu fundador...
Recordemos aqui, para simplificar o que seguirá, a lenda da fundação de Roma.
Segundo Varrón (que viveu em tempos de Julio César), Roma foi fundada no ano 753 antes de nossa era por Rômulo, descendente do troiano Eneas, quem depois da queda de Tróia viria a estabelecer-se às bordas eo Tiber. Rômulo tinha um irmão gêmeo, chamado Remo. Ambos eram filhos da vestal Rhea Silvia, filha de Numitor, rei de Alba Longa, e Rhea Silvia os tinha concebido como fruto de seus amores com o deus Marte.

Roma sob o Império
O trono de Numitor foi usurpado por Amulio, quem abandonou aos dois meninos nas águas crescidas do Tíber, mas foram recolhidos ao pé do monte Palatino por uma loba, que os amamentou sob uma figueira. Logo cresceram sob o amparo de um pastor chamado Faustulo e, ao chegar a adultos, mataram ao usurpador Amulio e restituíram o trono de Alba Longa a seu avô Numitor.
A seguir decidiram fundar uma cidade, e escolheram para isso o monte Palatino, onde tinham sido criados pela loba. Rômulo, designado rei à sortes, riscou com o arado um sulco que devia marcar o futuro recinto da cidade. Rômulo decidiu então chamá-la Roma, palavra derivada de seu próprio nome. Remo, furioso pelo fato de que a sorte não lhe tivesse designado rei, atravessou burlando o fosso esboçado pelo arado de Rômulo. Este, ofendido pelo que naquela época era um sacrilégio nos ritos de fundação, matou seu irmão gêmeo.
O primeiro rei de Roma fez desta nova cidade um asilo para vagabundos e os fora da lei. Para procurar esposas e povoar definitivamente a nova cidade, raptaram às mulheres e as filhas de um povo vizinho, os sabinos. A isso seguiu uma guerra entre as duas comunidades rivais. Mas, graças à mediação das sabinas raptadas, que sem dúvida encontraram gosto em sua nova vida, as duas cidades se fundiram. Quanto ao Rômulo, diz a lenda que desapareceu misteriosamente durante uma tormenta no curso de uma celebração religiosa. E então lhe elevou à categoria de deus, com o nome de Quirino. Esse nome provavelmente se deriva do termo quirites, nome que inicialmente levavam os sabinos, adotado logo pelos romanos quando os primeiros tiveram a hegemonia sobre a Liga Latina, no século VIII antes de nossa era. Derivava de Cure, capital dos antigos sabinos. Os romanos levavam esse nome na cidade, mas jamais quando se achavam em armas, já que era um termo utilizado nos licenciamentos militares.
O leitor já teria suspeitado a verdade detrás da lenda.
A loba que amamentou Rômulo e Remo não foi outra coisa que uma dessas prostitutas itinerantes, ou porque foi sua mãe natural que não pôde, ou porque se limitou a recolher e adotar aos filhos gêmeos de uma de suas colegas falecida. A hipótese de que os criasse às pressas de um de seus clientes habituais, o pastor Faustulo, quem teria cuidado deles e os teria alimentado durante as ausências profissionais de sua mãe adotiva, não tem nada de inverossímil. E o que este às pressas estivesse situado à sombra de uma grande figueira, também é possível.
Mas que fora uma loba real que recolhesse e amamentasse aos dois gêmeos é pouco plausível. É indubitável que se encontraram meninos que foram criados por um casal de lobos, em meio dos lobinhos, seus irmãos em adoção. Mas então o menino permanece em um estado de total animalidade. Perambula a quatro patas, bebe água lambendo-a, como um cão, devora a carne crua, e uiva de forma animal. É muito difícil reeducá-lo e, em caso de consegui-lo, morre logo que chega a adulto. E é que, em efeito, há traumatismos psicofisiológicos que não perdoam. Imaginar que dois meninos amamentados e criados assim por uma loba real, pudessem a seguir acessar à vida humana normal com as simples técnicas de um pastor tão primitivo como iletrado, e converter-se em personagens tão importantes como os gêmeos da lenda, é do mais inverossímil. Nós aderimos, pois, à tese da "loba" humana, prostituta itinerante, que foi também provavelmente uma mulher de bom coração.
Então a figueira converteu-se por sua vez em um dos símbolos de Roma. Em Tácito lemos o seguinte: "Esse mesmo ano [o 58 de nossa era], a árvore do Comicio, a figueira Ruminal, que mais de oitocentos anos atrás tinha abrigado a infância de Remo e Rômulo, perdeu seus ramos e seu tronco se secou, coisa que foi vista como um presságio sinistro". (Cf. Tácito, Anais, XIII, 58.) Segundo Varrón, essa figueira tinha recebido o apelido de Ruminal (do latim rumis: mama), porque foi sob sua sombra onde a loba tinha amamentado aos dois gêmeos. A tradição legendária contava que essa figueira, situada primitivamente no Lupercal (quer dizer, na prolongação do monte Palatino, ao noroeste, lugar chamado Cerníalo), tinha sido milagrosamente transportada, sob os auspícios do Attus Navius, augur de Tarquinio, o Antigo, ao Comicio, ao leste do Foro, não longe do Capitólio. (Cf. J. Carcopino, Bulletin de L'Association Guillaume Budé, núm. 5, P. 22.)
Não é impossível que o episódio da figueira estéril, a que Jesus amaldiçoa e faz perecer porque não dá frutos fora de temporada, utilizasse-se como um encargo contra Jesus durante seu processo. Ao considerar-se como chefe zelote, submetido a vigilância romana como todo filho de David, os romanos puderam muito bem ver nessa maldição contra uma árvore que era o símbolo do nascimento de Roma, um ato mágico para causar dano, dirigido em realidade contra a própria Roma. Leiamos de novo ao Marcos:
"Ao dia seguinte, ao sair de Betânia, sentiu fome e vendo de longe uma figueira com folhas, foi ver se encontrava frutos. Mas não encontrou nada a não ser folhas, porque não era tempo de figos. Tomando então a palavra, disse à figueira: "Que jamais coma já ninguém fruto de ti [...]". E seus discípulos lhe ouviram [...]" Passando de madrugada, quando retornavam à cidade, viram que a figueira se secou da raiz. Lembrando-se Pedro, disse-lhe: "Olhe, Mestre!" A figueira que amaldiçoaste se secou"." (Cf. Marcos, 11, 12-13 e 20-21.)
De maneira que essa desgraçada figueira deveria adivinhar, como uma criatura razoável, que Jesus teria fome, e arrumar-lhe para produzir instantaneamente frutos, embora estivessem fora de temporada.


Deste episódio se pode deduzir o caráter rancoroso de Jesus, com esse fundo daninho que punham de relevo já os Evangelhos da Infância, assim como a limitação de seus poderes ocultos, pois para o "filho de Deus" seria muito fácil dar à um humilde vegetal o poder de produzir frutos fora de temporada, já que era absolutamente desatinado imaginar que este pudesse dá-los por suas próprias forças. E este episódio confirma que se tratava, por parte de Jesus, de poderes mágicos, como lhe reprovaram freqüentemente os judeus, e não dos dons todo-poderosos divinos de um deus encarnado.
De todos os modos, se este fato chegou aos ouvidos dos funcionários de Roma, estes puderam ver na desafortunada figueira um ato daninho dirigido contra o Império romano, e tanto a Lei das Doze Pranchas como a Lei Julia castigavam com a pena capital todo sortilégio dirigido contra os homens, os animais ou as colheitas, recordemo-lo uma vez mais.
Voltemos para a loba, à figueira e ao pastor Faustulo, no monte Palatino.
"Tinha abrigado a infância..." diz-nos Tácito. É difícil imaginar uma loba permanecendo durante anos sob uma mesma figueira, sem que pastores e caçadores não fossem desalojá-la a golpes de flecha. Por todas essas inverossimilhanças, nós não veremos nessa caridosa "loba" a não ser uma prostituta de grande coração. E esta conclusão concorda com a tradição judia contemporânea às palavras de Varrón. Constitui uma áspera réplica deste.
Varrón, poeta e polígrafo latino, legou-nos um De re rustica, um tratado de agricultura. Isso é mais ou menos tudo o que fica de um conjunto hoje desaparecido. Viveu dos anos 116 aos 27 antes de nossa era. Morreu deixando atrás de si a reputação de uma brilhante inteligência, verdadeira enciclopédia da época.
Em nosso primeiro volume demonstramos que o Apocalipse não foi redigido por João, o evangelista, por volta do ano 94, mas sim pelo próprio Jesus, antes de retornar de seu exílio no Egito, quer dizer pouco antes dos anos 27 a 29 de nossa era, só meio século depois da morte de Varrón e da difusão da lenda relativa ao nascimento de Roma.
E pela primeira vez nos textos antigos vêem ali o termo "prostituta" utilizado para designar à capital do Império romano:
"Veio um dos sete anjos que tinham as sete taças, e falou comigo e me disse: Vêem, mostrarei o julgamento da grande prostituta que está sentada sobre as grandes águas. Com ela fornicaram os reis da terra, e os moradores da terra se embriagaram com o vinho de sua fornicação." (Cf. Apocalipse, 17, 1-2.)
"Os dez chifres que vê são dez reis, os quais não receberam ainda a realeza, mas com a Besta receberão a autoridade de reis por uma hora [...] Os dez chifres que vê, igual à Besta, aborrecerão à prostituta, e a deixarão desolada e nua, e comerão suas carnes e a queimarão ao fogo [...] A mulher que viu é aquela cidade grande que tem a soberania sobre todos os reis da terra." (Cf. Apocalipse, 17, 12-18.)
"As águas que vê, sobre as quais está sentada a rameira, são os povos, as multidões, as nações e as línguas..." (Cf. Apocalipse, 17, 15.)
"Saúde, glória, honra e poder são de nosso Deus, porque verdadeiros e justos são seus julgamentos, pois julgou a grande prostituta que corrompia a terra com sua fornicação, e vingou o sangue de seus servos por sua mão [...] E sua fumaça subirá pelos séculos dos séculos..." (Cf. Apocalipse, 19, 1-3.)
Esse termo de "prostituta" incluía, além disso, uma degradação metafísica, e aos olhos dos judeus letrados e místicos, mais ou menos iniciados nos ocultos da cabala, este fato subentendido sublinhava ainda mais seu horror para tudo o que materializava Roma.
Em hebreu, a palavra prostituta se traduz por quiiphah. Designa um mundo, um plano, uma "biosfera maléfica", uma dimensão em que tudo o que na vida tem de corrompido, de contrário aos absolutos intuitos do Absoluto, e de eternamente rechaçado por ele, deve ser expulso, e concentrado nessa espécie de excrementos metafísicos. De fato, é o mundo demoníaco.
A quiiphah é pois, em certo modo, o cubo de lixo do mundo invisível. Subdivide-se em dez planos ou esferas secundárias, que então, em plural, levam o nome de quiiphtoh, cada uma delas oposta a seu sephirah correspondente (plural: sephiroth). Daí e desse conjunto se desprende todo um universo metafísico complicado, mas profundamente apaixonante pelo que se refere a seu estudo. Remetemos ao leitor às obras especializadas na difusão da cabala.
Por esses rápidos paralelismos analógicos se compreende então até que ponto os judeus integristas, especialmente os zelotes, odiavam tudo aquilo que simbolizava o Império romano, e particularmente sua capital: Roma.


Se a isso se acrescentam as dezenas de milhares de combatentes procedentes da resistência judia que, transportados da Palestina à Itália, terminaram sua vida em meio dos horrores dos jogos circenses; se se acrescentar a isso milhares de mulheres e de jovens, de meninos e meninas que foram vendidos ali, tanto a particulares como a proprietários de lupanares, e tudo isso muito antes de que os cristãos descendessem por sua vez às arenas, compreenderá-se até que ponto foi vivo o ódio para Roma, dos tempos em que Jesus redigiu seu Apocalipse e o enviou mediante um mensageiro a seu primo João.
Nós citaremos simplesmente a forma como Tito, filho do Vespasiano, celebrou o aniversário de seu irmão menor, Domiciano: "Esse grande príncipe solenizou naquele mesmo lugar da Cesaréia o aniversário do nascimento de seu irmão Domiciano com grandes magnificências, e a costa da vida de mais de dois mil e quinhentos dos judeus prisioneiros aos que se julgou a morte. Parte deles foram queimados vivos, o resto foi obrigado a combater contra as feras ou uns contra os outros, como gladiadores e por mais grandiosa que parecesse a desumanidade que fazia perecer a esse povo de tão diversas maneiras, os romanos estavam persuadidos de que seu crime merecia um castigo ainda mais rude. Tito foi a seguir de Cesaréia à Berite, que é uma cidade de Fenícia e uma colônia romana. Como permaneceu ali longo tempo, celebrou, com ainda mais magnificência, o dia do nascimento de seu pai, o imperador Vespasiano. Entre tantas diversões e espetáculos que deu ao povo, viu-se perecer a numerosos judeus da mesma maneira que acabo de contar". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, VII, VIII.)
Na obra de Roland Auguet Cruauté et Civilisation: les jeux romains se encontrará todo o referente aos combates de gladiadores, de feras entre si, de homens contra feras, de vítimas (de ambos os sexos) sofrendo atrozes suplícios no curso de reconstruções mitológicas, como algumas mulheres condenadas a morte, que, encerradas e "apresentadas" em uma vaca de madeira a um touro em zelo ficavam rasgadas vaginalmente a fim de representar de forma real o mito de Pasífae.


19 - O incêndio de Roma no ano 64
A verdade não tem hora, é de todos os tempos, precisamente quando nos parece inoportuna.
dr. A. Schweitzer, A l'oree de laforêt vierge
No livro XV, capítulo XXXVIII, dos Anais de Tácito lemos o seguinte:
"A seguir sobreveio um desastre (não se sabe se devido ao azar ou a malignidade do príncipe, já que as duas versões têm seus partidários). Mas foi o mais grave e o mais espantoso de todos os que a violência de um incêndio fez experimentar a Roma." E o fogo prendeu primeiro na parte do Circo contígüa aos Montes Palatino e Celio. Ali, por causa das tendas repletas de mercadorias onde se alimenta a chama, o incêndio, já violento desde seu nascimento e ativado pelo vento, propagou-se a todo o longo do Circo. Porque não havia nem casas protegidas por fortes cercados, nem templos rodeados de muros, nem nada que pudesse opor-se ao progresso das chamas. De modo que se estendeu impetuosamente, primeiro sobre as partes planas, logo se equilibrou para as alturas, e descia de novo para assolar as partes baixas, com a mesma rapidez com que a enfermidade adianta a todos os medicamentos, pois a cidade lhe oferecia uma presa fácil, com suas ruelas estreitas e tortuosas, suas ruas riscadas sem ordem, como a Roma de antigamente. Além disso, as lamentações das mulheres aterrorizadas, a debilidade da idade ou a inexperiência da infância, aqueles que pensavam em sua própria segurança ou na de outros, os que arrastavam ou esperavam aos mais débeis, uns atrasando-se e outros precipitando-se, obstaculizavam todos os socorros." Freqüentemente, ao olhar para trás, a gente era atropelado pelos lados ou por diante. Se a gente conseguia escapar para a vizinhança, via que este também estava envolto em chamas, e inclusive os bairros aos que por sua lonjura se acreditava abrigado das chamas, os encontrava no mesmo estado." Por último, ao não saber já o que teriam que evitar ou procurar, entorpeciam-se as ruas, a gente se tombava a campo atravessaddo. Alguns, ao ter perdido toda sua fortuna, e ao não ter já nem sequer com o que auxiliar às necessidades cotidianas, e outros por amor para, aqueles aos que não tinham podido arrancar à morte, pereceram, embora pudessem salvar-se. E ninguém se atrevia a combater o incêndio ante as ameaças repetidas daqueles que, em grande número, impediam de apagá-lo. Outros lançavam abertamente tochas, e gritavam que estavam autorizados a fazê-lo, bem porque queriam exercer suas rapinas com mais facilidade, ou porque efetivamente receberam ordens.
"Durante esse tempo Nero estava no Antium, e não chegou a Roma a não ser no momento em que o fogo se aproximava da casa que ele tinha construído para unir o Palatium com os jardins de Mecenas. Mas não se pôde deter o incêndio antes de que tivesse devorado o Palatium, suas habitações e tudo em torno.
"Para aliviar ao povo errante e sem asilo. Nero lhes abriu as portas do campo de Marte, os monumentos de Agripa e inclusive seus próprios jardins. Mandou construir a toda pressa barracos para acolher às multidões de indigentes. Fizeram-se chegar mantimentos de Ostia e dos principais municípios, e se reduziu o preço do trigo até três sestercios.
"Mas todas essas medidas não passou em branco sua meta: a popularidade; porque se tinha estendido o rumor de que no mesmo momento em que a cidade tinha aceso em chamas, o príncipe tinha subido a seu teatro doméstico e tinha cantado as ruínas de Tróia, procurando no passado comparações com o desastre presente."
Por que Tróia? Quando a gente recorda que Paulo foi detido (depois de sua fuga de Roma, durante o incêndio desta), em Troas, capital da antiga Tróade um pode perguntar-se se não foram os cristãos os que, inconscientemente, imaginaram, por simples associação de idéias, esse pseudo-poema sobre as ruínas de Tróia, relacionadas com o incêndio de Roma. E esses cristãos que lançam semelhante acusação, não são acaso os "da casa de César" dos quais fala Paulo em sua Epístola aos Filipenses (4, 22)? Uma vez mais, Nero, em sua debilidade, ao tolerar a messianistas entre seus servidores, tinha alimentado em seu seio a víboras!
Mas sigamos lendo a Tácito (Anais, libero XV, 38-44):
"Até o sexto dia não se conseguiu deter o incêndio na parte baixa das Esquilias, demolindo os edifícios em um espaço muito grande, para opor àquela contínua violência uma planície nua e, por assim dizê-lo, o vazio do céu. Mas ainda não se desterrou o temor e o povo não tinha recuperado a esperança, quando o fogo se reavivou, embora em um bairro mais aberto; portanto também houve menos vítimas humanas. Mas os templos dos deuses e os pórticos dedicados ao recreio deixaram ruínas mais extensas.
"Este segundo incêndio deu lugar a piores rumores, porque começou em uma propriedade de Tigelino, no bairro Emiliano, e se acreditava que Nero procurava a glória de fundar uma cidade nova e de lhe dar seu nome. Roma está dividida em quatorze regiões; quatro permaneceram ilesas, três ficaram destruídas até o chão, as outras sete apresentavam apenas alguns vestígios de moradias em ruínas ou meio queimadas.
"Seria difícil dar o número de casas, mansões e templos destruídos. Mas os mais antigos monumentos da religião, que Sérvio Tulio tinha consagrado à Lua, o Grande Altar, e o templo dedicado ao Hércules Redentor pelo arcadio Evandro, o templo do Júpiter Estator, levantado pelo Rômulo, o palácio de Numa, o santuário de Vesta, com os Penates do povo romano, foram inteiramente destruídos pelo fogo, sem contar as riquezas, prêmios de tantas vitórias, as maravilhas da arte grega, por último os monumentos antigos e ainda intactos do gênio literário. Inclusive em meio dos embelezamentos da cidade renascente, os anciões recordavam numerosos tesouros cuja perda era irreparável. Alguns observaram que o incêndio acendeu o dia quatorze antes das calendas do mês sextilis, o mesmo dia em que os Senones, depois de ter tomado Roma, tinham-na entregue às chamas. Outros se tomaram inclusive a moléstia de levar os cálculos até encontrar um número, o mesmo, para contar os anos, os meses e os dias que transcorreram entre os dois incêndios.
"Seja o que for. Nero aproveitou as ruínas de sua pátria, e construiu uma mansão em que as pedrarias e o ouro não eram o mais maravilhoso do que havia, já que esse luxo há tempo que era normal e corrente. Mas se viam campos cultivados, estanque, e, como nas solidões, aqui bosques, lá espaços descobertos, e formosas perspectivas. Esses trabalhos tinham sido dirigidos e dispostos por Severo e Celer, cuja audaz imaginação exigia à arte realizar o que a natureza se negou a fazer e se convertia em um jogo abusar dos recursos de um príncipe. Tinham-lhe prometido abrir um canal navegável do lago Inferno, perto do Cumes, até as bocas do Tíber, ao longo de um litoral árido ou através das montanhas. Para alimentar o canal não há mais água que as dos pântanos Pontinos, o resto do terreno é seco ou escarpado, e inclusive se se tivesse conseguido vencer todos os obstáculos, a empresa era excessiva e não se justificava suficientemente. Mas Nero desejava o incrível, e tentou abrir as altitudes vizinhas à Averna. Subsistem ainda restos de sua vã esperança.
"Agora bem, os terrenos de Roma que não foram invadidos pela mansão de Nero, não foram reconstruídos ao azar e sem ordem como depois do incêndio dos francos. As casas ficaram em alinhamento, as ruas foram alargadas, a altura das casas se reduziu, abriram-se pátios e se elevaram pórticos para proteger a fachada das mansões de edifícios. Esses pórticos Nero prometeu construi-los com seus denários, também se comprometeu a devolver a seus proprietários os terrenos por construir, depois de fazê-los escombros. Instituiu, além disso, terrenos proporcionais à classe e à fortuna de cada qual, e determinou o prazo no que, uma vez terminadas as habitações ou os pisos, poderiam entrar neles. Destinava os pântanos de Ostia a receber os escombros, e queria que os navios que remontavam o curso do Tíber com um carregamento de trigo, descessem carregados de escombros. Quanto às construções, quis que em algumas de suas partes não entrasse a madeira, mas sim, para assegurar sua solidez, empregasse a pedra de Gabias ou a de Alba, que são a prova de fogo. A água era desviada abusivamente por alguns particulares para seu uso; para que fluíra com mais abundância e se achasse em mais lugares à disposição do público, estabeleceu vigilância; tiveram que ficar à disposição de todos, em lugares de fácil acesso, setores preparados contra incêndios; por último, as moradias não deviam ter paredes medianeiras, ao ter cada casa seu recinto particular. Essas medidas, que foram bem acolhidas porque eram úteis, contribuíram também ao embelezamento da nova cidade. Alguns acreditavam, não obstante, que o antigo plano de Roma era melhor para a salubridade, já que o estreitamento das ruelas e a altura dos edifícios não permitia que passassem os ardentes raios do sol, enquanto que agora, esses amplos espaços, aos que não protege nenhuma sombra, são abrasados por um calor insuportável.


"Estas foram quão medidas aconselhava a prudência humana.
Logo se recorreu às expiações aos deuses e se consultaram os livros da sibila, apoiando-se nos quais se dirigiram orações públicas ao Vulcano, à Ceres e à Proserpina; ofereceu-se deste modo um sacrifício expiatório ao Juno por meio das matronas, primeiro no Capitólio, logo à borda do mar mais próximo, do que se tirou água para orvalhar com ela o templo e a estátua da deusa; por último se celebraram assentos para vigílias por meio das mulheres casadouras. Mas nenhum meio humano, nem larguezas principescas nem cerimônias expiatórias fizeram calar o infamante rumor segundo o qual o incêndio fora ordenado por Nero.
"De maneira que, para sossegá-lo, procurou uns supostos culpados, e infligiu refinadas torturas àqueles cujas abominações faziam detestáveis e aos que a gente chamava cristãos. Esse nome lhes vem de Cristo, que, sob o principado de Tibério, fora entregue ao suplício pelo procurador Poncio Pilatos. Esta detestável superstição, embora reprimida no momento, ressurgia de novo, e não só na Judéia, onde tinha nascido este mal, mas também inclusive em Roma, onde conflui e acha numerosa clientela tudo que de horroroso e vergonhoso há no mundo.
"Começou-se, pois, por capturar àqueles que eram abertamente partidários, e logo, segundo suas indicações, a outros muitos, que, se não eram culpados do crime do incêndio, sim o eram de ódio para o gênero humano.
"Não se contentaram fazendo-os perecer; converteram em um jogo revesti-los com peles de animais para que fossem rasgados pelos dentes dos cães; ou os atavam à cruzes melados com matérias inflamáveis, e quando tinha expirado o dia, iluminavam as trevas como tochas. Nero tinha devotado seus jardins para este espetáculo, e proporcionava jogos ao Circo, onde às vezes participava da carreira de pé sobre seu carro, ou às vezes, disfarçado de chofer, mesclava-se entre o povo.
"Mas embora estas pessoas fossem culpadas e dignas dos últimos rigores, alguém tinha piedade delas, posto que a gente se dizia que não era só com vistas ao interesse público, mas sim pela crueldade de um sozinho, por isso as fazia desaparecer."
E aqui, particularizemos.
Não deixa de ser curioso que este incêndio se produza precisamente no momento em que Menahem, neto de Judas da Gamala, em hebreu "o Consolador", está pondo de novo Judéia à sangue e fogo.
Também é curioso que Nero, desejoso de contemplar um grande incêndio para compor melhor um poema que celebrasse o de Tróia, partisse ao Antium em lugar de ficar, senão em Roma, ao menos bem perto, em Ostia por exemplo, para contemplar o espetáculo.
É, na verdade, estranho que uns romanos, e o próprio Nero, tão supersticiosos, aceitassem cometer sacrilégios tais como a destruição dos templos dos deuses, e sobretudo os dos mais sagrados, ligados à vida oculta de Roma.
De fato, quais eram esses que "em grande número, impediam de apagá-lo"? Quais eram esses que "lançavam abertamente tochas, e gritavam que estavam autorizados a fazê-lo, bem porque queriam exercer suas rapinas com mais facilidade, ou porque efetivamente tinham recebido ordens"? São "os da casa de César", é evidente.
Porque as medidas de assistência adotadas por Nero não são as de um louco delirante.
Quanto à acusação extremamente grave que levanta Tácito contra aqueles aos quais chama "cristãos", consiste no fato de "odiar ao gênero humano", "de ser dignos dos últimos rigores", e que, apesar de tudo, "o interesse público exigia fazê-los desaparecer", e demonstra simplesmente que, no curso das pesquisas, tinham descoberto exemplares do Apocalipse, e vamos demonstrar.
Pretende-se que esse livro foi redigido pelo apóstolo João no ano 98 ou 94. Pois bem, quando se produz o incêndio de Roma nos achamos no ano de 64.
E no Apocalipse encontramos o relato desse incêndio de Roma, que aconteceu no ano 64, e o da queda de Jerusalém e de seu santo Templo, acontecida em 70.
Por conseguinte, ou o tal João se burla do mundo ao apresentar como profeta de um livro que anuncia fatos produzidos trinta anos antes, ou o Apocalipse não é obra dele; se for realmente profeta (ou simplesmente um esquema de combate, semelhante aos manuais de combate ritual dos manuscritos do mar Morto), é muito anterior.
O leitor encontrará no precedente volume os motivos pelos quais estimamos que o autor desse livro é o próprio Jesus.
O Apocalipse oferece no capítulo 11, versículos 1 aos 13, o relato da revolução do ano 44, e a crucificação de Simão-Pedro e de Jacobo-Santiago no ano 47, em Jerusalém.
O capítulo 18 nos descreve o incêndio de Roma. Porque é evidente que a Babilônia do Apocalipse não é a antiga cidade desse nome, destruída desde fazia séculos; todos os exegetas declaram que se trata de Roma, e têm razão. Fala-se de uns marinheiros que, desde o mar, contemplam o incêndio. Agora bem. Babilônia estava muito longe, terra adentro. Mas Roma em chamas era visível desde Ostia, seu porto, que estava muito perto, e os navios, na desembocadura do Tíber, podiam contemplar o incêndio com todo seu horror. Além disso, Roma está construída sobre colinas, e do litoral o incêndio era perfeitamente visível. O texto do Apocalipse de conteúdo mais significativo corresponde aos versículos 1 a 8 e 11 a 17 do capítulo 18. E o que dizer disto: "Pilotos e navegantes, marinheiros e quantos brigam no mar se detiveram ao longe e gritaram, ao contemplar a fumaça de seu incêndio; dizendo: Que outra é semelhante a grande cidade? [...] Ai, ai, Oh cidade grande, na qual se enriqueceram com seu luxo quantos tinham naves no mar, que em uma só hora foi aniquilada!", (Op. cit., 18, 18-19.)


Vêm depois os versículos 20 a 24. E segue: "depois disto ouvi no céu uma voz forte de numerosa multidão, que dizia: Aleluia! Saúde, glória e poder a nosso Deus!, Porque verdadeiros e justos são seus julgamentos, pois julgou a grande prostituta que corrompeu a terra com sua fornicação, e vingou o sangue de seus servos por sua mão. E de novo disseram: Aleluia! Pois sua fumaça subirá pelos séculos dos séculos". (Op. cit., 19, 1-4.)
É evidente que os romanos, ante os cadáveres calcinados de milhares de mulheres e de meninos, ao inteirar-se de quão cristãos residiam em Roma lhes desejavam e esperavam febrilmente desde fazia tanto tempo, puderam adivinhar, com bastante acerto, que esses fanáticos que foram perdendo a paciência tivessem acelerado a realização dessa delirante profecia, e organizado sabiamente toda essa montagem. Porque os acontecimentos da Judéia eram conhecidos em Roma. E a destruição de todo o patrimônio, religioso e civil, suscitou uma verdadeira corrente de ódio para eles. E desgraçadamente o Apocalipse, tanto se era profético como se não, estava ali para justificar a reação romana.
Porque, afinal de contas, como duvidar que fossem os cristãos que incendiassem Roma, quando se lêem essas frases vingativas nesse mesmo capítulo 18, onde está tão bem descrito o incêndio?:
"lhe dêem a ela como ela deu! Mais ainda, dupliquem lhe dando em dobro segundo suas obras: na taça em que ela mesclou, lhe mesclem o dobro [...]
"Por isso virão em um mesmo dia suas pragas: a mortandade, o duelo e a fome, e será consumida pelo fogo..." (Apocalipse, 18, 6-8.)
Assim, ao chegar a Roma a notícia da revolução levada a cabo em Jerusalém por Menahem, neto de Judas da Gamala, era inevitável que os elementos extremistas do messianismo, ébrios de vingança, excitados por tais leituras, pensassem em executar as ordens desumanas do Apocalipse, ordens lançadas já no ano 27, quer dizer, trinta e sete anos antes, pelo próprio Jesus, seu verdadeiro autor, antes de sua chegada às bordas do Jordão.
Enfim, com o Apocalipse, suas maldições, suas ameaças, seu ódio delirante contra as nações e sobretudo contra Roma, achamo-nos muito longe da cantinela habitual: perdão das ofensas, amor aos inimigos, depois de que a bochecha direita seja esbofeteada, oferecer a esquerda; quem golpeia pela espada, perecerá pela espada, etcétera.
Se o Apocalipse não fosse conhecido muito antes do ano 94, data em que a Igreja pretende que João, o Evangelista, efetuou a redação deste livro (absoluta contradição, por certo, com o espírito evangélico de então), como podia acusar Tácito aos cristãos de "odiar ao gênero humano"? Porque "lhe Dêem a ela como ela deu...", isso é o Taitón, e não o evangelho. (Apocalipse, 18, 6.)
Tácito viveu do ano 55 aos 120. Como morreu quando contava 65 anos de idade, devia redigir suas Histórias e seus Anais nos vizinhos de 95, por conseguinte, quando contava mais de quarenta anos.
Se o Apocalipse fosse de João, o Evangelista, e datasse do ano 94, como ia conhecer o Tácito, dado que estes textos cristãos foram guardados em segredo durante longo tempo, e por diversos motivos?
Pelo contrário, se era do mesmo Jesus, se o redigiu por volta do ano 27 de nossa era, antes de sua chegada ao Jordão, fazia já perto de sessenta anos que se pôde conhecer esse livro decisivo, e as perseguições que seguiram ao incêndio de Roma deveriam pô-lo de manifesto. Por isso, ante esse pavoroso texto, Tácito pôde falar de uma seita "que odiava ao gênero humano".
Mas, em contrapartida a esta constatação, é evidente que Tácito ignora nossos evangelhos atuais, todo inocência, mansidão e perdão. E com razão, já que não serão redigidos até que os cristãos se achem no poder, com Constantino, no século IV, em sua forma atual.
Uma das provas complementares de que João jamais "viu" o Apocalipse reside no testemunho de Prócero, seu discípulo, chamado nos Atos dos Apóstolos (6, 5), como um dos sete diáconos escolhidos por estes para assisti-los. Prócoro compôs um livro titulado As viagens de João (a quem chama Iochanan, como em hebreu). Tillemont atribui o manuscrito que chegou até nós ao século XI e V. Guerin o descobriu em um convento de Pathmos no século XIX. Pois bem, esse Prócoro, que diz que viveu dez anos com o apóstolo João (de 86 aos 96), primeiro em Pathmos e logo em Éfeso, quem afirma que escreveu com sua própria mão o evangelho que lhe ditava o apóstolo, que assistiu a seus últimos instantes, e que lhe viu subir aos céus, como Jesus, esse Prócoro ignora que João, em Pathmos, tinha composto o Apocalipse, João não lhe dissera nada dessa visão alucinante. Mais ainda. Prócoro ignora que João foi arrojado a uma caldeira de azeite fervendo em Roma! Incrível!


Por que? Pois simplesmente porque o Apocalipse fazia já sessenta e oito anos que fora escrito e difundido por um tal Jesus, quem declara de um bom princípio que é o autor e que ele é o "vidente" a quem Deus manifestou. E Prócoro não ignora nada de tudo isto. Quanto à aventura de João em Roma, para que nosso escriba a conhecesse seria necessário que o tal João pudesse ir a Roma, e naquela época, desde Tibério e Claudio, aos judeus livres lhes proibiu permanecer na capital do Império. E isto tampouco o ignora Prócoro.
Outro argumento em favor da antigüidade do Apocalipse, primeiro escrito cristão, como tão bem adivinhou Daniel Massé, encontramo-lo na comparação entre algumas de suas passagens e outros extraídos dos Atos.
Estes últimos, no capítulo 15, versículo 28, dizem o seguinte:
"Porque nos pareceu ao Espírito Santo e a nós não nos impor nenhuma outra carga mais que estas necessárias: que lhes abstenham das carnes imoladas aos ídolos, de sangue e dos animais afogados, e da fornicação".
Esse decreto se adota durante o famoso concílio de Jerusalém, quer dizer no ano 47. Pois bem, o que lemos no Apocalipse? Isto: "Mensagem à igreja de Pérgamo: [...] Mas tenho algo contra ti: tem aí alguns que professam a doutrina de Balam, o qual ensinava ao Balac a arrojar escândalo ante os filhos de Israel, induzindo-os a comer carnes sacrificadas aos ídolos e a fornicar..." (Cf. Apocalipse, 2, 11 e 14.)
"Mensagem à igreja da Tiatira [...] Mas tenho contra ti que deixe fazer à mulher, Jezabel, que se chama profetisa, ensinar e seduzir a meus servos para fazê-los fornicar e comer dos sacrifícios dos ídolos..."(Op. cit., 2, 20.)
É evidente que resultaria assombroso que o Apocalipse, supostamente ditado por Jesus Cristo ao João no curso de sua visão, no ano 94, em Pathmos, limitasse-se a apresentar como uma "revelação" divina umas decisões adotadas pelo concílio de Jerusalém no ano 47. Evidentemente, o que aconteceu foi o contrário: os chefes do movimento cristão, reunidos em Jerusalém em um decisivo conselho de guerra, tomaram essa decisão porque vinha diretamente de Jesus, autor do Apocalipse por volta do ano 27 de nossa era.
Que mais adiante acrescentassem interpolações a este livro, para fazer acreditar melhor que estava destinado aos cristãos de finais do século I, não muda em nada o problema. Os elementos de base, quer dizer a fração mais importante do Apocalipse, são do próprio Jesus, como declara no prólogo do livro.
Mas permanece uma confissão involuntária sobre a responsabilidade dos cristãos no incêndio de Roma no ano 64. Existe um apócrifo intitulado Atos de Pedro. Entre as Acta apostolorum apocrypha ocupam, efetivamente, um lugar especial. O abade Vouaux, em seu prefácio à tradução das diversas versões (imprimatur, Nancy, 1921), observa que são "os de caráter mais controvertido. Se em princípio viu neles uma obra de espírito gnóstico, logo em troca os restituiu, não sem certas reservas, a seu verdadeiro lugar, aos círculos populares ortodoxos dos quais saíram. Essas mesmas vacilações provam o interesse que pode ter o estudo de suas doutrinas, por pobres que sejam".


Acrescentaremos esta opinião de Daniel-Rops: "De um ponto de vista mais estrito, os apócrifos contribuem alguns detalhes históricos que podem resultar nada desprezíveis". (Cf. Daniel-Rops, Les Evangiles apocryphes.)
E, efetivamente, os Atos de Pedro nos contribuem a confirmação do que sempre suspeitamos sobre os verdadeiros incendiários de Roma no ano 64. Claro que o Apocalipse nos predizia isso com bastante claridade: a capital do Império romano tinha que ser destruída por um incêndio gigantesco, em castigo pela morte de tantos combatentes messianistas judeus nos cruéis jogos circenses. Não podia tratar-se ainda de cristãos, já que as perseguições contra a nova religião não começaram até depois de tal incêndio, pois a primeira data, com efeito, do ano 64, segundo os historiadores eclesiásticos, e porque se imputava a estes sectários tal incendeio. Em troca, e sempre, cada vez que Judas e Galiléia se levantaram em armas contra a ocupação romana, aos prisioneiros zelotes esperavam a terrível morte reservada por Roma aos rebeldes: crucificação, fogueira, combate a morte nas arenas, bem contra as feras, bem contra eles mesmos, sob o aguilhão de ferro candente dirigido pelos servos do circo.
Mas os mesmos historiadores eclesiásticos rechaçaram sempre com indignação a acusação lançada contra os cristãos no referente a sua responsabilidade nesse incêndio. Agora bem, os Atos de Pedro possuem diversas versões. No original grego, além de um fragmento muito curto, não fica já a não ser o final da obra, em dois manuscritos tardios, um do século IX, e o segundo do X ou do XI. Os manuscritos da versão latina são do século VII, as versões coptas são do V, mas a siríaca derivaria diretamente do original grego, segundo uns, ou da versão copta utilizada pelos monofisitas do Egito e de Síria. Existem, do mesmo modo, versões armênia, árabe e etíope.
E a versão siríaca nos contribui uma estranha ameaça, e, uma vez mais, vemos ali a um possuidor do poder apostólico subjugando às mulheres em proveito de sua ação. Neste apócrifo Simão-Pedro pelo visto foi à Roma, e ali ganhara para sua causa às quatro concubinas do prefeito do pretorio, chamado Agripa. Este último, furioso, faria prender Simão-Pedro e ordenando lhe crucificar por ateísmo, acusação legal e habitual contra os cristãos. Agora vem o protesto destes em favor de Pedro: "Então todos os cristãos foram em turba, ricos e pobres, órfãos e viúvas, humildes e poderosos. Queriam ver e apoderar-se de Pedro, e o povo gritava sem interrupção e com voz unânime: Do que é culpado Pedro, Agripa? Que dano tem feito? Diga-lhe aos romanos! Comete uma injustiça contra Pedro, Oh Agripa! Nós, que somos romanos, não vimos que Pedro fizesse nenhuma só ação merecedora da morte. Se não o liberar, incendiaremos a imensa Roma com fogo e sairemos dela." (Cf. Atos de Pedro, versão siríaca, XXXVI.)
Está muito claro.
E o incêndio de Roma no ano 64, que foi obra de cristãos fanáticos, teve como êmulo o de Bizancio, no ano 404. Estourou na mesma noite em que João Crisóstomo teve que abandonar a cidade, exilado por ordem do imperador Arcadio, e a pedido da imperatriz Eudoxia, um traje de gala que não aceitava as ordens autoritárias e a intolerância de Crisóstomo. Arderam, em especial, a basílica de Santa Sofia, o Senado, a magnífica biblioteca, etc.; e a imperatriz Eudoxia morreu um ano mais tarde, durante um parto.
No intervalo se produziu outro incêndio, o do palácio imperial do Nicomedes, no ano 303, que também foi atribuído aos cristãos e que suscitou contra eles uma nova perseguição.


E o que dizer do cinismo agressivo de Tertuliano, quem não vacila em declarar, no ano 197: "Estamos em todas partes, porque somos numerosos... Se não fôssemos a não ser um pequeno grupo, uma só noite e algumas tochas bastariam". (Cf. Tertuliano, Apologeticen, XXXVI, 3.)
Depois disto, já poderão os cristãos afirmar que sua religião lhes impõe ser cidadãos pacíficos.
Por outra parte, Tácito nos diz que o incêndio de Roma estourou "dia quatorze antes das calendas do mês sextilis" (cf. Tácito, Anais, XV, XXXVIII), quer dizer em 20 de julho. Não obstante, tendo em conta os censurados, mutilados e interpolados que estiveram por parte dos monges copistas da Alta e Baixa Idade Média, e constatando que os únicos manuscritos antigos de Tácito que chegaram até nós são dos séculos IX e XI, seremos desconfiados. Porque há outros textos, mais antigos que estes, que nos dão outra data, que provavelmente é a verdadeira.
No capítulo que trata sobre a correspondência apócrifa entre Paulo e Séneca há uma carta, a que décima segunda, que nos revela a verdade. Claro que é apócrifa, mas foi redigida por um cristão de boa vontade, que não suspeitava que, fazendo-o, falava pelos cotovelos e destruiria a maquiagem de seus sucessores da Idade Média. Vejamos esta carta: "Séneca ao Paulo, saúde! Saúdo-o, meu muito querido Paulo. Acredite que não sinto tristeza de que sua inocência se veja condenada a tão freqüentes suplícios? De que o povo, lhes julgando tão pouco sensíveis e tão criminosos lhes atribua todas as desgraças da cidade? Mas nos resignemos, e vivamos da sorte que a Fortuna nos proporciona, até que uma felicidade inalterável ponha fim a nossos males. As idades antigas também tiveram que sofrer ao macedônio filho de Filipo, e ao Darío, e ao Dionisio, o nosso, e ao C. César, que não tiveram mais regra que seu capricho. Sobre a origem dos freqüentes incêndios que sofre Roma, não há dúvida possível. Mas se uns homens obscuros pudessem dizer qual é a causa, se estivesse permitido nestas trevas falar impunemente, todos os olhos veriam então toda a verdade. Os cristãos e os judeus são enviados sem cessar ao suplício como incendiários. Mas o bandido, seja quem for, cuja voluptuosidade está em seu sangue, e que se cobre de mentiras, a esse por força lhe chegará seu dia! Do mesmo modo que os melhores deram sua cabeça como vítimas expiatórias, do mesmo modo esse homem será condenado, por todos, ao fogo que lhe consumirá. Cento e trinta e duas casas, quatro mansões, arderam durante seis dias; o sétimo cedeu o desastre. Desejo, irmão, que esteja bem de saúde. 28 de março, sob o consulado de Frugi e de Basso".
Ao indicar os dois cônsuis anuais, temos a prova de que a carta data do ano 64, mas não de 20 de julho, a não ser de 28 de março. E aí está a confissão.
Porque esses textos são do século IV. Esta correspondência entre Paulo e Séneca a entrevista São Jerônimo no ano 362, e São Agustín em 414. Não há nada anterior.
Assim, em uma época em que não se teme a crítica livre, onde ninguém se atreveria, bem por medo, ou por ignorância, a evocar a possibilidade de que os cristãos tivessem incendiado Roma no ano 64, não vacilam em dar a data exata do início do incêndio: março do ano 64, já que a carta que fala dele é do 28 do mesmo mês!


Sabemos, por outra parte, pelos historiadores antigos, dos que se ecoou Daniel-Rops em Jesus em seu tempo, que os procuradores romanos desconfiavam da avalanche de peregrinos judeus que acudiam a Jerusalém com ocasião da grande festa pascal. A cidadela Antonia, onde geralmente se alojava uma coorte veterana e o tribuno que a mandava, quer dizer, seis centúrias de legionários, via-se ocupada por consideráveis reforços, que acampavam um pouco por toda parte, e que subiram da Cesaréia Marítima com o procurador em pessoa.
Se é que a polícia romana não ignorava que todas as rebeliões judias tinham seu início na Páscoa, quer dizer, na lua cheia do mês de Nisán, e temos textos autênticos que expressam a certeza de que a liberação de Israel teria como ponto de partida esse solene aniversário da saída do Egito:
"Do mesmo modo que Israel, antigamente, fora liberada do Egito no mês de Nisán, voltará a sê-lo de novo no mês de Nisán..." (Cf. Talmud: Rosch Haschana, XIV, 2.)
"Possuímos uma tradição precisa que nos ensina que a liberação de Israel se produzirá a véspera de Páscoa, à entrada do Sábat..." (Cf. Rabbi Neftalí, - Emeck Hammeleck, XXXII, 2.) Isto nos dá uma definição muito clara do dia "J" e a hora "H" de toda insurreição judia organizada de antemão. Trata-se da sexta-feira da semana pascal, no momento em que a lua cheia se eleva por cima do vale de Cedrón, e o sol se oculta atrás dos vales de G-Hinnom e Refaím. Claro que na prática terei que ter em conta certas contingências. Mas se mantém em pé o fato de que a lua cheia da teqoupha da primavera servia de sinal celeste e de esperança para toda a Palestina. De modo que foi em março-abril quando Menahem levantou sua vez o estandarte da revolução de 64, época do incêndio de Roma. Mas qual dos dois precedeu ao outro? É difícil precisá-lo na atualidade, mas continua seguro, historicamente, que esses dois acontecimentos estão interrelacionados e que os separaram poucos dias. Sua sincronização era muito importante como para que se passasse por cima, e não terei que desmentir às profecias.
Muito mais tarde, ao censurar Flavio Josefo, pensar-se-ia em dar outra data nos Anais de Tácito. Porque terei que evitar que pudesse estabelecer uma relação entre o motivo desse atentado e a nova rebelião que acabava de estalar na Judéia. Era preciso evitar que pudesse adivinhar-se que o incêndio tinha sido provocado para estimular aos combatentes zelotes, lhes fazendo acreditar que a profecia do Apocalipse começava a realizar-se e que o final do Império romano estava à volta da esquina! Era muito importante que os zelotes que tinham seguido ao Menahem (em hebreu: consolador, em grego: paraklétos), neto de Judas da Gamala, sobrinho de Jesus, não se desalentassem ante o contra-ataque romano.
Porque Flavio Josefo contribui seu testemunho em favor de Nero: "São muito numerosos aqueles que contaram a história de Nero. Todavia, uns não foram fiéis à verdade por gostá-lo, porque foram bem tratados por ele, e outros, por ódio e por inimizade contra ele, maltrataram-no tão impunemente com suas mentiras, que eles são os que merecem ser vituperados". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, vIII, 3.)
E a revolta de Menahem e o incêndio de Roma estiveram extranhamente sincronizados. Julgue-se:
1) tudo isso estourou no ano 64, trinta e três anos depois da captura de João, o Batista. E o trinta e três é, no Antigo Testamento, o número de toda purificação, (cf. Levítico, 12, 4);
2) foi apreendido em 28 de maio do ano 31 de nossa era, e executado na cidadela de Maqueronte em 29 de março do ano 32. Agora bem, o escriba anônimo que compôs a pseudo-carta de Séneca ao Paulo, no século IV, dá a data de 28 de março do ano 64. Portanto, não ignorava a relação entre o aniversário da morte de João, o Batista, e a data do incêndio de Roma. E inconscientemente se traiu.
Esse Menahem apoderou-se a seguir da fortaleza de Massada (que cairia, nas circunstâncias que se fariam célebres, no ano 73), logo se fez reconhecer como chefe da nova revolução, fez matar ao supremo sacerdote, assim como ao irmão deste, chamado Ezequias, e ante todos esses êxitos se converteu em um tirano insuportável. Então o povo se rebelou, e lhe deram morte depois de haver submetido a numerosas sevícias. Podem-se encontrar todos os detalhes na Guerra dos judeus de Flavio Josefo (livro II, capítulos XXX-XXXII).
Mas, dirá o leitor, tem-se a segurança de que a revolução de 66 começou em realidade em 64, com a de Menahem e o incêndio de Roma?


Nós responderemos que sim, e aqui estão os argumentos:
1) Foi em março do ano 64 quando Menahem içou o estandarte da nova revolução judia. Mas não nos diz o motivo.
2) Naquela época, na Cesaréia Marítima, a antiga Torre de Estraton, judeus e sírios disputam a administração da cidade. "Os judeus a querem governar, argüindo que Herodes, seu rei, tinha-a construído", conta-nos Flavio Josefo. Os sírios, aos quais ele também chama os gregos, alegam que é uma cidade pagã, por seus templos, eretos pelo mesmo Herodes para o culto de seus deuses, etc. E também é certo. E então estalam motins sangrentos. Por último, Antonio Félix, procurador de Roma, as sufoca, e ao fim se pode recorrer à arbitragem imperial. Uma delegação se embarca em direção à Roma. Quantas semanas, ou inclusive meses, investirá para chegar? Paulo necessita um ano para chegar de Cesaréia à Roma... Quanto tempo transcorreria entre esta solicitude de arbitragem, entre sua decisão, o embarque da delegação em Ostia e sua volta a Antioquia de Síria ou à Cesaréia Marítima? Quanto tempo entre essa volta e a difusão da notícia de que a cidade está definitivamente confiada aos gregos e aos sírios? Porque aqui temos o texto de Flavio Josefo: "E os gregos da Cesaréia chegaram com cartas de Nero: Que a cidade seja grega [...] E então se iniciou a guerra, no ano XII do reinado de Nero, XVII do reinado de Herodes Agripa II". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, II, 6.)
E Pierre Pascal, ao traduzir o texto eslavo de Flavio Josefo, observa, com muita lógica: "Isso era no ano 66, mas a decisão de Nero de dar Cesaréia aos gregos deveria ser anterior". (Op. cit., Editions du Rocher, Mônaco, P. 155.) E é algo evidente, se se tiverem em conta todos esses espaços de tempo e essas esperas que evocavamos antes. Se contarmos um ano para ir da Cesaréia à Roma, e um ano para voltar, incluindo a estadia na capital e a espera da decisão imperial, quer dizer, dois anos no total, encontramo-nos em 64 de nossa era. Mais ainda quanto que o incêndio de Roma em 64 não reduziria os prazos de espera... Então se expõe uma pergunta inevitável: esperou realmente Menahem a decisão de Nero para entrar em guerra? Ou simplesmente iniciou a ofensiva apenas os sírios e os gregos partiram para a Itália? Conhecendo o estado de espírito dos zelotes, a resposta vem dada por si mesmo.
Façamos, pois, agora o inventário dos personagens que podiam ter um interesse qualquer no incêndio de Roma, e que fossem o suficientemente influentes para poder pôr em ação aos servidores do palácio imperial. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, 38.)
Não revelaremos mais que sete nomes:
1) Nero: demonstramos que não era possível; não estava em Roma, não se inteirou do incêndio até quatro dias mais tarde, e não tinha nenhum interesse na destruição dos templos onde residia a vida espiritual e oculta de todo o império, sendo ele, além disso, tão supersticioso como era.
2) Popea: Só fazia dois anos que era a esposa de Nero. Que interesse podia ter em semelhante atentado? Nenhum, evidentemente. Além disso, estava também no Antium, com Nero.
3) Burro: O prefeito do pretorio tinha morrido no ano 62. E que interesse podia ter em tal atentado?
4) Tigelina: Substituía a Burro em suas funções, e podia ter organizado esse incêndio a fim de desacreditar ao Nero, de quem tinha motivos para querer vingar-se, é certo, mas a quem temia terrivelmente. Por outra parte, jamais foi favorável aos judeus messianistas. E então, como justificar que esse atentado sobreviesse exatamente para respaldar a insurreição de Menahem na Judéia? Como justificar a eleição da data que coincidia com o aniversário da captura de João, o Batista, por parte desses romanos sem escrúpulos e sem espiritualidade?
5) Séneca: Se já era hostil ao progressismo de Nero, por conservador, imbuído dos princípios de superioridade de Roma, justamente por essas mesmas razões não podia ser favorável a essa nova revolução judia, e as objeções feitas no caso de Tigelino podem aplicar-se igualmente à Séneca. E este estóico reacionário não podia carregar com a responsabilidade de destruir os templos romanos mais sagrados.
6) Saulo-Paulo: Amigo de infância de Menahem; forma parte com ele do kahal messianista da Antioquia (Atos, 13, 1); é amigo de Séneca, quem é amigo dos conspiradores antineronianos, é membro do complô de Pisón e é, secretamente, o sucessor deste último. Saulo-Paulo conta com filiados a sua doutrina e a sua seita entre os servidores do palácio imperial, em Roma: "os da casa de César lhes saúdam..." (cf. Epístola aos Filipenses, 4, 22). E no próximo capítulo "encontraremos outros motivos de suspeita, já que pôde muito bem executar com todo detalhe o que Séneca e Tigelino desejavam secretamente, embora sem atrever-se a decidi-lo e a fazê-lo executar. Além disso, as estranhas coincidências entre a data precisa desse incêndio e a vida de Batista, sem omitir o conhecimento da revolução de seu ex-suntróphos Menahem, são outras tantas observações acusadoras.
7) Um chefe zelote desconhecido: Tudo o que se disse no caso de Saulo-Paulo pode aplicar-se, evidentemente, contra esse extremista anônimo, tudo, exceto a possibilidade de fazer atuar aos servidores do imperador, "os da casa de César"... Para que estes assumissem a responsabilidade de declarar publicamente que estavam cobertos por ordens (cf. Tácito, Anais, XV, XXXVIII), era preciso que fosse certo. Esse secreto amparo lhes vinha de Séneca, através de seu amigo e cúmplice Saulo-Paulo, seu chefe indiscutível.
Mas ficam outras provas, mais sutis, embora igualmente explícitas, sobre a responsabilidade direta de Paulo no incêndio de Roma. Vejamos agora algo mais de perto.


Primeiro, ante as evidentes contradições que existem sobre o referente ao mês em que se produziu o sinistro, convém determinar quem tem razão, nos apoiando no texto atribuído à Séneca no século IV por São Jerônimo e São Agustín, ou no texto atribuído à Tácito, nos manuscritos mais antigos que possuímos de sua obra, e que são dos séculos IX e XI.
Séneca nos diz março do ano 64, Tácito nos diz julho do ano 64, mas nos precisa, imprudentemente, que Nero estava no Antium, sua cidade natal, a que amava meigamente, e que avisado ao quarto dia do incêndio, adotou todas as medidas necessárias para melhorar a sorte da população romana, mas que, não obstante, lhe imputou a responsabilidade daquele.
Primeira conclusão: para Tácito, transcrito pelos monges copistas, Nero se encontra no Antium, e portanto na Itália, em julho do ano 64, data do incêndio. Mas isso é falso...
Sabemos, com efeito, por Suetonio (cf. Vida dos doze Césares: Nero, XXII) que Nero participou dos jogos Olímpicos, nas carreiras de carros, e isso antes de que se lançasse às exibições teatrais, as primeiras das quais tiveram lugar em Nápoles.
Observemos, antes que nada, que os célebres jogos se celebravam em Olímpia, na Grécia, e invariavelmente no mês de julho. Tinham lugar cada quatro anos, e seu intervalo constituía uma olimpíada. Tomemos o calendário das olimpíadas do período considerado, e assinalemos os anos em que tiveram lugar os jogos durante o curto reinado de Nero. Veremos que foi em julho do ano 60, em julho de 64 e em julho de 68 de nossa era.
Podemos descartar já julho de 68, dado que o imperador morreu em Roma em 9 de junho de 68 do calendário Juliano, o que dá em 20 de junho do gregoriano.
Ficam então julho de 60 e julho de 64.
Descartaremos também julho de 60, já que Nero foi pela primeira vez à Grécia antes das exibições de Nápoles, segundo Suetonio, que tiveram lugar à começos do ano 64; não fica, pois, a não ser julho de 64, para vê-lo participar das carreiras de carros em Olímpia. E essa é, infelizmente, a data que se pretende endossar à Tácito! E é evidente que Nero não podia encontrar-se no Antium e na Olímpia ao mesmo tempo.
Porque para ir de Roma à Grécia, por terra e por mar, naquela época, necessitavam-se umas doze semanas, percorrido que verificaram certos historiadores. Os beliches e os carros da caravana imperial não efetuavam um percurso diário superior aos 25 Km.; quanto aos trirremes, que foram de uma vez a remo e a vela (galeras de escravos), esse tipo de navegação não podia representar mais de cem quilômetros ao dia para esses pesados e torpes navios. A velocidade de ponta alegada por Tito Livio para as galeras de combate não ultrapassava, por exemplo, os trinta e cinco quilômetros por hora.
Tudo isto exclui que Nero pudesse ir aos jogos olímpicos e retornar a tempo para estar em Roma em 20 de julho do ano 64, dia em que se declarou o incêndio, segundo Tácito, revisado e corrigido na Idade Média pelos monges copistas. Portanto, o texto e a data que nos dá Séneca são os verídicos, e foi em março quando Roma ardeu, quando Nero estava ainda no Antium.
Impõe-se, pois, uma primeira conclusão.
Se se esforçarem por substituir julho por março, é porque esta última data, por sua concordância com a da insurreição de Menahem, irmão de leite de Paulo (Atos, 13, 1), podia atrair as suspeitas para este último.
E vai em seguida à mente uma segunda conclusão.
E é que os monges copistas que alteraram visivelmente o texto inicial de Tácito, fizeram-no a fim de eliminar as provas desta cumplicidade. Porque se Tácito afirmasse a responsabilidade da colônia judia de Roma, em seus elementos zelotes, livres ou escravos, nossos monges copistas medievais, indevidamente anti-semitas tendo em conta a época, sentissem-se extremamente felizes de sublinhá-la. Mas como, pelo contrário, desta maneira ficava de manifesto à Paulo, chefe reconhecido dos cristãos de Roma, substituíram março do ano 64 por julho.Infelizmente para eles, não lhes ocorreu expurgar do mesmo modo ao Suetonio e fazer desaparecer essa participação de Nero nos Jogos de Olímpia.
continua