O
Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain
segunda parte
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
15 - Um apóstolo ignorado: Salomé, inspiração
de Jesus
As mulheres são a alma de todas as intrigas.
Napoleão, citado por Roederer, Obras
Houve uma mulher na vida de Jesus.
Saulo-Paulo tinha uma concubina. Possivelmente inclusive teve
várias ao longo de sua vida, e talvez também uma esposa.
Sobre a primeira possuímos sua própria confissão: "Não
temos direito de levar conosco a uma irmã em qualidade de mulher,
como os outros apóstolos e os irmãos do Senhor e Cefas? Ou
somente Bernabé e eu não teremos direito a fazer uso disso?".
(Cf. Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 5-6.)
Em seu Vulgata latina, que é o texto oficial da Igreja Católica,
São Jerônimo emprega o termo mulier, que designa à mulher
carnal, à esposa.
Por outra parte, Clemente de Alexandria (Stromates, III, 6) declara que
Paulo tinha uma esposa, fundando seu argumento em uma passagem da Epístola
aos Filipenses: "Rogo à Evodia e ao Síntique que tenham
os mesmos sentimentos no Senhor. E a ti também fiel Syzygo, rogo
que ajude a essas, que lutaram muito pelo Evangelho comigo e com Clemente
e com outros meus colaboradores, cujos nomes estão no livro da vida".
(Cf. Paulo, Epístola aos Filipenses, 4, 2-3.)
A "fiel Syzygo" é a syzygie, termo grego que designa no
vocabulário gnóstico da época a associada feminina,
e para cada eon metafísico seu casal coeterna. E esta expressão
é a prova de que Paulo teve antes por Mestre um gnóstico,
e neste caso tratou-se de Dositeo.
Para Renán, que se adere à teoria de Clemente de Alexandria,
essa mulher era Lídia, a vendedora de púrpura, originária
da Tiatira, na Ásia Menor. O fato de comercializar com púrpura
supunha naquela época uma verdadeira fortuna. Saulo-Paulo, neste
caso, não teria feito mau negócio.
Por outra parte, o célebre exegeta protestante A. de Harnack sublinhou
a plausibilidade da hipótese emitida por alguns de que a Epístola
aos Hebreus teve por autor uma mulher. E se se tem em conta a tese sustentada
faz longo tempo por numerosos historiadores austro-alemães, segundo
a qual o personagem de Simão o Mago foi inventado para mascarar melhor
a luta sem piedade que enfrentou ao Simão-Pedro e Saulo-Paulo, não
pode esquecer a presença daquela mulher chamada Helena (em grego:
radiante), a quem o pseudo-Simão, o Mago, levou consigo de Tiro,
centro do negócio da púrpura no mundo antigo. A púrpura
de Tiro era célebre, já que foi ali onde se extraiu inicialmente
do Murex trunculus (um molusco) a célebre tintura que logo ficou
reservado à aristocracia e aos soberanos. Pois bem, esta púrpura
evoca irremediavelmente à Lídia, que comercializava com ela,
e que necessariamente se achava em constante relação com a
cidade de Tiro, a que ia com freqüência. E tudo isto reforça
o que Renan deduziu a respeito.
Por último, sabe-se que a iconografia cristã utiliza elementos
extraídos do "bestiário" sagrado para designar aos
quatro evangelistas: o leão, que se atribui ao Marcos, a águia,
ao João, o anjo, ao Mateus e o touro ao Lucas. (Cf. Charbonneau-Lassay,
Le Bestiaire du Christ, IV.)
Mas com bastante freqüência substitui-se o touro por um bezerro,
porque o bezerro é um touro jovem, ainda virgem, despojado de toda
violência cega e destrutiva, que se acha nele em potência. E
no portal da Calenda da catedral de Rouen figuram os quatro evangelistas,
em representações bastante esotéricas por certo, que
demonstram que os Mestres da obra e os pedreiros que as construíram
tinham na Idade Média inspiradores secretos que estavam perfeitamente
à corrente das verdades históricas que a Igreja acreditava
ter escondido para sempre. Esses inspiradores foram os templários,
ao menos aqueles que constituíam no interior da Ordem do Templo o
misterioso cenáculo possuidor de uns ocultos que aos olhos de Roma
eram muito perigosos.
E nesse mesmo portal da Calenda da catedral de Rouen, entre as quatro novas
e estranhas representações dos evangelistas. Lucas aparece
como uma mulher com cabeça de vitela, ou como uma vitela com corpo
de mulher. Certo que parte dos Atos é obra de uma mulher, a misteriosa
companheira de Saulo-Paulo. É evidente aqui a alusão à
Helena, prostituta de um lupanar de Tiro, cidade da púrpura, e a
que Simão, o Mago, converteu em sua companheira. Com efeito, vitellus,
em latim, significa um jovem bezerro, e também uma carícia,
própria das cortesãs daquela época.
Por outro lado, quando Saulo-Paulo dirige desde Corinto, onde recebeu espontâneo
amparo por parte do pró-cônsul Galión (Atos dos Apóstolos,
18, 12-17), sua Epístola aos Romanos, conclui assim sua missiva:
"Saúdem os da casa de Aristóbulo, saúdem Herodión,
meu parente. Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor".
(Cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 16, 10-11.)
Mas quem são todos esses personagens misteriosos que não se
esperava encontrar entre as relações romanas de Saulo-Paulo,
e que são o suficientemente importantes para possuir uma "casa",
termo sinônimo de "séquito", de pequena "corte"
privada? E, acima de tudo, quem é esse tal Narciso?
Narciso é o Narcissus Claudii Libertus dos Anais de Tácito,
liberto (como indica seu nome) pelo imperador Claudio, de quem foi secretário,
sobre quem exerceu uma grande influência, enriqueceu-se escandalosamente,
provocou a queda e a execução da Messalina, logo se opôs
às intrigas de Agripina, segunda esposa de Claudio, em favor de seu
filho Nero. Ao advento deste último, no ano 54 de nossa era, foi
exilado por ordem deste, e, apesar da oposição de Nero, que
lhe apreciava, como nos diz Tácito, recebeu a ordem de abrir-lhes
as veias.
Mas quando Saulo-Paulo redige sua Epístola aos Romanos, em Corinto,
e por conseguinte no ano 52, Narciso se acha ainda na cúpula de seu
poder, possui em Roma grandes propriedades e numerosos servidores e escravos.
Agora vem Aristóbulo e sua "casa". Trata-se, sem discussão
possível, de Aristóbulo III, filho de Herodes do Calcis e
de Berenice, e portanto neto de Herodias por esta última e bisneto
de Herodes, o Grande, por parte de pai. É um personagem importante.
Ao advento de Nero lhe nomeou rei da Pequena Armênia, logo, no ano
60, seis anos mais tarde, seu pequeno reino crescerá graças
à anexação de uma parte da Grande Armênia. Por
último, no ano 70, converter-se-á em rei do Calcis, como seu
pai.
Aristóbulo III casou-se com Salomé II, filha de Herodes Filipo
e de Herodias, já viúva sem filhos de seu tio Herodes Filipo
II. Desta segunda união Salomé II terá três filhos:
Herodión, o maior (aquele a quem Saulo-Paulo chama seu "parente"),
Agripa, o segundo, e Aristóbulo, o menor. Aristóbulo III e
Salomé II, protegidos e amigos de Nero, possuem em Roma uma suntuosa
propriedade e numerosos servidores e escravos.
Assim, em Corinto, protegido pelo pró-cônsul Galión,
irmão de Séneca (conselheiro e antigo preceptor de Nero César),
Saulo-Paulo sabe já que em Roma há cristãos em certas
mansões de grandes personagens. O mesmo acontecerá, por certo,
mais adiante, no palácio imperial, sob Nero, como o próprio
Saulo-Paulo afirmará em sua Epístola aos Filipenses: "Eles
saúdam todos os Santos, e principalmente os da casa de César".
(Cf. Paulo, Epístola aos Filipenses, 4, 22.)
Entre estes últimos encontra-se já Actea, a liberta fiel,
que foi a concubina meigamente amada por Nero durante sua adolescência.
(Cf. João Crisóstomo.)
Mas como pode Saulo-Paulo dizer-se "parente de Herodión",
o filho de Aristóbulo III e de Salomé II? Pois simplesmente
porque é primo de um e de outro, ao ser bisneto de Herodes o Grande
por parte das mulheres, e seu sobrinho neto por parte dos homens. De maneira
que o menino é seu segundo primo. A árvore genealógica
está aí para prová-lo (veja-se acima).
Isso significa que ao chegar à Roma Saulo-Paulo não contava
só com Afranio Burro, prefeito do pretorio, ex-preceptor de Nero,
ou com Séneca (irmão do pró-cônsul Galión),
ex-preceptor do mesmo e seu conselheiro político, para lhe favorecer
em Roma de um regime privilegiado. Contava, com efeito, com gente mais amealhada
até, por serem familiares, com Aristóbulo III, rei de Armênia,
e Salomé II, sua esposa, e isto não era qualquer coisa.
Mas como podia interessar-se esta última pelo cristianismo? Retrocedamos
vários anos e consultemos os evangelhos.
Pouco antes do descobrimento dos célebres manuscritos de Qumrán
nas bordas do mar Morto, exumaram-se fortuitamente uns manuscritos igualmente
valiosos; isto acontecia em Khenoboskion, no Alto o Egito, no ano 1947.
Entre eles se encontrava um Evangelho de Tomás, que não se
conhecia mas sim por entrevistas que dele tinham feito Clemente de Alexandria
e Orígenes, em princípio do século III.
De todo modo, não possuíamos os originais destes autores,
mas somente os conhecíamos através de traduções
ulteriores, em manuscritos do século V.
O manuscrito achado em Khenoboskion estava redigido em copto, e era do século
IV. Mas existiam fragmentos de um papiro que figurava entre os descobertos
em 1897 em Oxyrhynchus, no Médio Egito, e que não se pôde
atribuir a nenhum autor por estar muito incompleto. Esse texto, redigido
em grego, era de finais do século III, e continha uns versículos
típicos, que não se voltaram a encontrar até o Evangelho
de Tomás, descoberto em Khenoboskion em 1947. Pode, pois, tirar a
conclusão de que o chamado Evangelho de Tomás existia já
no século III em sua redação completa.
Mas, dado que Clemente de Alexandria e Orígenes, que morreram no
ano 220 o primeiro e no 254 o segundo, citam esse Evangelho de Tomás
como um texto muito antigo já em sua época, podemos admitir
que sua redação inicial deve situar-se, pelo menos, na segunda
metade do século II, com uma data em média que poderia fixar-se
aos arredores dos anos 175-180.
Portanto, achamo-nos em presença de um texto que pode classificar-se
pouco depois daqueles outros citados também por Clemente da Alexandria
e Orígenes, o Evangelho dos Hebreus e o Evangelho dos Egípcios,
que esses dois autores consideravam como os mais antigos apócrifos
conhecidos.
Vejamos agora o canônico Evangelho de Marcos. Jesus acaba de expirar
na cruz: "Havia também umas mulheres que olhavam de longe. Entre
elas estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Santiago, o Menor e
de José, e Salomé, as quais, quando ele estava na Galiléia,
seguiam-lhe e serviam-lhe, e outras muitas que subiram com ele à
Jerusalém". (Marcos, 15, 40-41.)
Lucas precisa que essas mulheres: "... assistiam-lhe com seus bens"
(Lucas, 8, 3), quer dizer, com seu dinheiro, posto que tinham abandonado
suas casas da Galiléia. Não se tratava já, pois, de
simples hospitalidade.
Mas eis aqui que, no Evangelho de Tomás, encontramos de novo essa
Salomé, e no papel que Paulo dava a sua companheira na Epístola
aos Coríntios: "Salomé disse: "E você quem
é, homem? De quem saiu para haver-se metido em minha cama e ter comido
em minha mesa!...". E Jesus lhe disse: "Eu sou aquele que se produziu
daquele que é seu igual. Deram-me o que é de meu Pai".
E Salomé respondeu: "Sou sua discípula.". (Cf. Evangelho
de Tomás, LXV.)
Dessas palavras, do tom adotado pela tal Salomé, desprende-se que
gozava de uma situação social materialmente superior a de
Jesus.
O termo grego que em Marcos, 15, 40, traduziram por servir, significa também
assistir, como em Lucas, 8, 10.
De maneira que Jesus, se não estava casado, como obrigava a Lei judia
a todo judeu de raça, e quando mais tarde aos vinte e dois anos,
teve, em troca, uma conselheira, que foi deste modo sua concubina, já
que lhe ofereceu sua cama e sua mesa.
Não sintamos saudades. Na História foram numerosas as mulheres
que ajudaram economicamente ao homem que amavam ou que admiravam, e às
vezes associaram suas ambições às próprias no
âmbito político. O exemplo de Corisanda de Gramont, que ajudou
ao Enrique de Navarra em sua conquista da coroa da França está
na mente de todos.
Essa Salomé encontraremos também no Evangelho dos Egípcios,
e os versículos sublinharão do que se trata no texto citado
antes, e na alusão ao Jesus deitando na cama de Salomé, é,
efetivamente, de sexualidade: "E Maria-Salomé perguntou ao Senhor:
"Mestre, quando acabará o reino da Morte?". E Jesus respondeu:
"Quando vocês, mulheres, não concebam mais filhos... Quando
tiverem deposto o vestido de vergonha e de ignomínia, quando os dois
se convertam em um, quando o varão e a fêmea estejam unidos,
quando já não houver nem homem nem mulher, então terminará
o reino da Morte...". E Salomé prosseguiu: "Então
tenho feito bem, Mestre, de não conceber?". E Jesus respondeu:
"Come de todos os frutos, mas "do da amargura (a maternidade)
não coma".". (Cf. Evangelho dos Egípcios.)
Este texto, que desmente categoricamente a encíclica Humanae vitae
do Papa Paulo VI, cita-o integralmente Clemente de Alexandria em seus Stromates
(III, IX, 66) e Clemente de Roma (morto no ano 97), em seu // Epístola
à Igreja de Corinto. Portanto é evidente que se Clemente de
Roma cita esse texto no século I, é que já forma parte
do corpus evangelicum daquela época, e não faz mais de sessenta
anos que morreu Jesus. Quer dizer, que aqui estamos nas mesmas fontes do
cristianismo.
Mais adiante, no mesmo texto, Jesus responderá à Salomé:
"vim destruir a obra da mulher".
Como já precisamos em nossa obra precedente, o mundo antigo conhecia
perfeitamente os anticoncepcionais mecânicos, geralmente utilizados
pelas mulheres de costumes livres: bailarinas, cortesãs, músicas,
etcétera.
O mesmo acontecia com os procedimentos de aborto, e o uso das planta abortivas,
como a arruda, a artemísia, o absinto e, sobretudo, a temível
sabina, não tinha nada em secreto para as parteiras daquela época.
Quer dizer, que a decisão de Salomé de não ter filhos
não tinha em si nada de extraordinário.
Quem era exatamente essa Salomé? Uma mulher rica, isso é indiscutível,
já que podia permitir-se ajudar economicamente à Jesus. Mas
era messianista convencida, seguidora do movimento zelote, ou simplesmente
admiradora de um Jesus que era um prestigioso mago? É difícil
dizê-lo com certeza. Todavia, o fato de que se queria ocultar ulteriormente
que era a concubina de Jesus, e que este tivesse tirado dela o máximo
que um homem pode tirar de uma mulher, hospitalidade e dinheiro, sem omitir
outros privilégios mais íntimos, temos como prova o silêncio
absoluto de Eusébio da Cesaréia a respeito dela. Este corre
um denso véu sobre todas as mulheres citadas por Lucas como seguidoras
e criadas de Jesus (Lucas, 8, 3). Procuraríamos em vão em
sua História eclesiástica qualquer menção de
Maria de Magdala, de Juana, mulher de Chuza, intendente de Herodes, de Susana,
etc. Adivinha-se que esse verdadeiro harém que acompanha Jesus escandaliza
ao chamado Eusébio! Menciona simplesmente, sob o reinado de Herodes,
o Grande (ou seja no ano 6 antes de nossa era): "Salomé, irmã
de Herodes, esposa de Alexas". (Cf. Eugenio da Cesaréia, História
eclesiástica. I, VIII, 13.) Esta, como se sabe, não lhe incomodava!
Porque todas as mulheres que escoltavam Jesus não estavam sozinhas
com ele. Estavam seus irmãos e seus ajudantes, e, à exceção
de Simão-Pedro, em nenhum caso tratava-se de suas esposas. Todo esse
estado maior misto constituía uma curiosa "família",
e o comunismo ao melhor não se limitava só aos bens. Algum
dia o demonstraremos!
E provavelmente é por este motivo que os padres da Igreja citam sempre
Herodias, mãe de Salomé, como a bailarina que exigiu a cabeça
do Batista, e jamais Salomé II, quando, segundo os evangelhos canônicos,
é Salomé II a que dança, e não sua mãe
(Mateus, 14, 6 e 12; Marcos, 6, 22 e 29), e a seguir a jovem entrega a cabeça
à Herodias. Como se vê, a partir do século IV tentaram
fazer desaparecer Salomé II da História. Há silêncios
muito reveladores.
Para concluir, é evidente que Salomé II, mulher rica conforme
parece, não foi somente a discípula de Jesus, não só
lhe seguiu e lhe serve, como reconhece Marcos, desde a Galiléia até
a Judéia, mas sim também cedeu-lhe sua cama e sua mesa, e
esse fato tão humano nos revela isso o Evangelho de Tomás.
Agora compreendemos os motivos de seu desaparecimento.
É de supor que no século II isto não constituía
escândalo algum, já que estavam melhor documentados em Jesus
da História que na atualidade, e esse era o episódio que os
cristãos da grande Igreja consideravam como justificativa da existência
de uma concubina junto a seus clérigos, dos séculos I ao V.
Por isso, como nos conta Lucas (23, 55), junto com "as mulheres que
vieram da Galiléia com Jesus", Salomé, coração
fiel, acompanhará Jesus até a cruz, justificando assim a palavra
de Salomão:
"O amor cobre todas as faltas". (Provérbios, 10, 12.)
Permanece em pé um enigma, o da identidade da mulher que verte sobre
os pés de Jesus um perfume de elevado preço que continha um
jarro de alabastro, e que seca a seguir com seus cabelos, depois de havê-los
"cobertos de beijos" (Lucas, 7, 38), coisa que evidencia, indiscutivelmente,
um amor apaixonado, senão, nem as palavras nem os gestos têm
sentido.
Não podia tratar-se, contrariamente à lenda que se alimentou
de forma intencionada, de Maria de Magdala, porque já revelamos no
volume precedente sua verdadeira personalidade.
Tampouco podia ser Salomé, porque o tom desta é o de uma mulher
altiva, rica, acostumada a mandar e a ser obedecida. Isso é o que
se desprende das frases que põe em sua boca o Evangelho de Tomás,
versículo 65: "Quem é você, homem? De quem saiu,
para haver subido a minha cama e ter comido em minha mesa?". Sobre
esta outra mulher, os evangelhos canônicos nos dão algumas
precisões:
Mateus diz dela: "uma mulher" (26, 6-7).
Marcos diz o mesmo: "uma mulher" (14, 3).
João declara que se chama "Maria" (11, 2, e 12, 3).
Lucas diz dela: "uma mulher de má vida" (7, 37). E a expressão
inicial no manuscrito grego diz: "uma pecadora da cidade".
Evidentemente, o Evangelho dos Egípcios e a Pistis Sophia nomeiam
Salomé: "Maria-Salomé". Mas não é
ela a mulher do jarro de alabastro.
A Maria que, segundo João (12, 3), verte o precioso perfume é
a irmã de Marta e de Lázaro. Ambas vivem em Betânia,
modesto povo situado nos subúrbios de Jerusalém, e próximo
demonstraremos que se trata de uma irmã de Jesus.
Nada disso evoca à rica Salomé. Porque, observemo-lo de passagem,
a Lei judia e os costumes romanos da época permitiam que uma mulher
dispusesse livremente de sua fortuna se era a única herdeira de seu
pai. O mesmo acontecia com a renda que lhe deviam seus irmãos se,
em caso de existir, herdaram de seu pai. O mesmo acontecia também
se era viúva e sem filhos. E este último caso era o de Salomé
II, viúva em primeiras núpcias de seu tio Herodes Filipo II.
Mas quem era a Salomé que assistiu ao Jesus?
Agora temos a certeza de que se tratava de uma mulher de elevada classe
social. Por outra parte, a obra intitulada Pistis Sophia a chama Maria-Salomé.
Mas jamais, no judaísmo antigo, deu-se dois nomes como no Ocidente
(José Luis, Maria Teresa, etc.). E Maria se diz em hebreu Myrhiam,
quer dizer, princesa, quão mesmo em siríaco. Assim, Maria-Salomé
não é outra que a "princesa Salomé". Parece
que tocamos "quente".
Além disso, conhecemos os nomes de algumas das mulheres que seguiam
Jesus e aos doze "lhes assistindo com seus bens" (Lucas, 8, 3).
Havia uma chamada Susana, logo uma tal Juana (em hebreu Iochan-nah), e que
é "esposa de Chuza, intendente de Herodes" (trata-se de
Herodes Agripa).
E imediatamente nos ocorre uma pergunta: como pôde abandonar esta
mulher a seu marido para seguir a esse autêntico "maquis"
ambulante que Jesus arrasta detrás de si desde a Galiléia,
sem que Chuza, intendente de Herodes, e portanto, alto funcionário
do tetrarca, fizesse-a voltar para casa, de bom grado ou por força?
A resposta é singela: sua esposa é a donzela Salomé,
filha de Herodias e de Herodes Filipo, nora e sobrinha de Herodes Antipas,
viúva de Herodes Filipo II. E não se atreve a opor-se ao que
constitui o serviço em si de sua esposa. E a princesa Salomé
II é a Myrhiam Salomé da Pistis Sophia, a que cedeu sua cama
e sua mesa ao Jesus. Enviuvou muito antes do ano 33 de nossa era, conforme
nos diz Michaud em seu Biographie Universelle (tomo 37, página 537),
e acrescenta pertinentemente: "Devia ser muito jovem ainda nessa época".
Coisa indubitável.
E uma vez mais, neste problema histórico, podemos concluir que a
realidade supera à ficção: a neta de Herodes o Grande,
que fez crucificar ao Ezequias, avô de Jesus, convertida em amiga
deste último. Coisa que não pôde a não ser agravar
a má disposição de Herodes Antipas, novo tetrarca da
Galiléia, para o tal Jesus, ao ser o ciúmes coisa bastante
humana, quanto mais que tal Jesus acrescenta o fato de ser pretendente,
ou apresentado como candidato ao trono de Israel.
O que parece corroborar certos laços, tanto de família como
de interesses, entre os membros da dinastia herodiana e os da descendência
davídica, cujos representantes autênticos no início
de nossa era São Judas de Gamala, e logo seu filho maior Jesus, é
o fato de que Flavio Josefo nos diga que, durante a estadia de Arquelau
em Roma, pouco depois da morte de Herodes o Grande, seu pai, e de quem era
herdeiro, os judeus entraram em insurreição, e que, entre
os rebeldes: "Havia parentes de Arquelau, aos quais César (o
imperador Augusto) fez castigar por ter combatido contra seu parente e rei".
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, x, 297; Guerra dos
judeus, II, I, manuscrito eslavo.)
Entre esses rebeldes que pertenciam à família dos Herodes
se contava, em especial, Achiab, primo de Herodes, o Grande, tio de Arquelau
e tio avô de Salomé II.
Agora bem, Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, precisa-nos que a insurreição
política montada contra Arquelau (além das de puro banditismo,
e que eram causadas deste modo por bandas diversas), estava dirigida pelo
Judas da Gamala, chamado também Judas da Galiléia (o pai de
Jesus).
E se membros da família herodiana, familiares de Arquelau, como seu
tio Achiab, montaram uma insurreição, não podia tratar-se
mas sim da política de Judas da Galiléia, e nenhuma outra
de puro direito comum, por bandidos anônimos.
É indubitavelmente nessa aliança com o partido dos "filhos
de David" de elementos da família de Arquelau onde se encontra
a Gênesis das relações posteriores entre o Jesus, "filho
de David", como nos dizem os evangelhos, e Salomé II, sobrinha
neta de Achiab, que entrou em insurreição contra Arquelau
com outros vários tios desta, no ano 5 antes de nossa era, nas classes
dos insurretos judeus dirigidos pelo Judas da Galiléia.
Se se pesarem exatamente os termos da terrível frase do Evangelho
de Tomás, parece que Salomé se pergunta pelos motivos que
puderam incitá-la a lhe oferecer sua cama e sua mesa ao Jesus. Não
obstante, embora pareça referir-se ao passado, declara que continuará
sendo sua discípula. E então podemos nos perguntar por que
esta mulher rica, de alto berço, ociosa (sua mãe Herodias
seguiu no exílio ao Vienne, nas Galias, a seu segundo marido, Herodes
Antipas, padrasto de Salomé II, e ali achariam uma triste morte no
ano 39), quereria dar suporte a uma causa tão arriscada, que já
havia ocorrido à vida de seu tio Achiab e à vários
parentes próximos trinta anos antes.
O motivo nos parece muito singelo.
Salomé II, como todas as mulheres da dinastia dos Herodes, provavelmente
foi uma ambiciosa, sedenta de poder e de honras. A história desta
dinastia está aí para dar fé. E o fato de que constituíra
a tentação vivente a que sucumbiu Jesus, tanto por sua beleza,
sua riqueza, como por sua classe, dá-nos a prova o qualificativo
que lhe aplica um evangelho muito antigo: "... e Salomé a sedutora..."
(cf. Evangelho do Bartolomé, 2.° fragmento). Está bastante
claro.
Depois de ter reinado modestamente sobre a tetrarquia de seu tio Herodes
Filipo, que compreendia a Gaulanitide, a Traconitide e a Batanea, e logo
sobre a da Galiléia e Perea, seu tio Herodes Agripa I, irmão
de Herodias, sua mãe, converter-se-á rei de toda Judéia
ao advento de Claudio César, no ano 41 de nossa era. Assim este terminou
obtendo a totalidade do antigo reino de Herodes, o Grande.
E se olharmos alguns anos atrás, encontramos em Israel dois pretendentes
à coroa.
Em primeiro lugar está Jesus. E esta pretensão à realeza
a afirmou claramente durante toda a primeira parte de sua vida. Desenganada
à alusão a um reino "que não é deste mundo"
não a formulará até muito mais tarde, depois de ter
sido apressado, e estas são as passagens dos evangelhos onde se podem
encontrar os rastros dessa pretensão de reinar; não há
nenhum equívoco nos seguintes versículos: Lucas, 1, 33; Mateus,
17, 24-26; Mateus, 2, 2; João, 18, 33-34; João, 18, 37; Mateus,
28, 11; Marcos, 15, 2; Lucas, 23, 3; Marcos, 15, 9-12; Mateus, 26, 17-29;
Marcos, 15, 18; João, 19, 19; Mateus, 27, 37; Marcos, 15, 26; Marcos,
15, 32; João, 19, 21; João, 18, 36.
Houve, não obstante, uma época em que Jesus pôde haver-se
convertido em rei, se não de Israel em sua totalidade, ao menos uma
de suas tetrarquias. Porque em João descobrimos esta reveladora passagem:
"E Jesus, conhecendo que vieram para lhe arrebatar e fazer-lhe rei,
retirou-se outra vez ao monte, ele sozinho". (João, 6, 15.)
O porquê deste afastamento reside simplesmente no fato de que Jesus
recusava ser rei de uma população tão mesclada, onde
judeus e gregos estavam estreitamente misturados, gente sem ofício
nem benefício, mais ou menos fora da lei. Além disso, queria
ser rei de todo o Israel: "Jerusalém, Jerusalém, que
matas aos profetas e apedreja aos que lhe são enviados! Quantas vezes
quis reunir a seus filhos à maneira que a galinha reúne a
seus frangos sob as asas, e não quis!". (Mateus, 23, 37.)
Daí suas relações, que causam escândalo na Judéia,
com o território impuro de Samaria, reino rival da Judéia,
com seus cultos particulares. Porque se conseguia essa reunificação
do antigo reino de David e de Salomão, cindido em duas facções
rivais desde que morreu este último, poderia pensar em devolver aos
romanos ao mar.
Mas além de suas esperanças pessoais. Jesus tinha um aliado
que ele ignorava, e esse aliado ignorado era o imperador Tibério
em pessoa.
Com efeito, existe um apócrifo copto que o sábio Orígenes
considerava como o mais antigo evangelho apócrifo com o Evangelho
dos Egípcios, e é o Evangelho dos Doze Apóstolos, e
ambos provavelmente foram anteriores ao de Lucas, quem possivelmente também
foi seu autor.
E esse Evangelho dos Doze Apóstolos nos contribui uma curiosa revelação.
Conta-se que Tibério recebeu de Herodes Antipas uma denúncia
como deve ser contra seu irmão Herodes Filipo, marido de Herodias
e pai de Salomé II. Nela acusava a seu irmão de ter montado
uma conspiração contra a autoridade romana. Tibério
ordenou ao Herodes Antipas que se apoderasse de todo o território
governado pelo Herodes Filipo, e de todos seus bens, não lhe deixando
a não ser a vida e a de sua esposa e sua filha. Não obstante,
esta expropriação fez-se em proveito de Roma, que a seguir
pensava dispor a seu desejo da tetrarquia de Herodes Filipo. Na mente de
Tibério, pelo que se tratava não era de acrescentar o poder
de Herodes Antipas, fazendo dele um verdadeiro rei da Judéia, como
o fora Herodes, o Grande. E para equilibrar melhor as forças ideológicas
presentes, e a fim de dividir para reinar melhor, o ardiloso Tibério
tinha imaginado entregar a tetrarquia de Herodes Filipo ao Jesus, "filho
de David".
Mas Herodes Antipas, ao ver frustradas suas esperanças e embargado
pela raiva, comprou a preço de ouro a cumplicidade de Cario, que
fora enviado pelo imperador, e este entregou ao Tibério um relatório
extremamente desfavorável sobre Jesus. Deste episódio nasceu
a hostilidade entre Pilatos e Herodes Antipas, já que Pilatos apoiara
o projeto do imperador, hostilidade que não desapareceria até
que enviou ao Jesus, prisioneiro, a que comparecesse ante Herodes Antipas,
tal como contam os evangelhos: "Naquele dia se fizeram amigos um do
outro, Herodes e Pilatos, pois antes eram inimigos". (Lucas, 23, 12.)
Assim esta hostilidade não tinha já razão de ser. O
episódio aparece reforçado por outra passagem dos evangelhos:
"Naquela hora lhe aproximaram alguns fariseus, lhe dizendo: "Sai
e vai-se daqui, porque Herodes quer matá-lo"." (Lucas,
13, 31.)
É evidente que se o tirano idumeu quis assassinar Jesus, não
foi pelos discursos nos quais aconselhava este às pessoas que se
amassem uns aos outros! Foi porque o tal Jesus punha suas ambições
em perigo, e para isso era preciso que fosse pretendente ao trono de Israel,
como ele. Coisa que acentuava o fato de que Herodes não ignorava
que numerosos partidários de Jesus queriam proclamá-lo rei:
"E Jesus, conhecendo que vieram para lhe arrebatar e fazer-lhe rei,
retirou-se de novo ao monte". (João, 6, 15.)
De todo modo, o texto acrescenta depois: "...ele sozinho". Este
retiro não significava possivelmente um rechaço, mas sim Jesus,
antes de aceitar, queria refletir, e não podia fazê-lo a não
ser em completa solidão.
Seja o que for, ante o relatório desfavorável de Cario, comprado
pelo Herodes Antipas, Tibério renunciou a seus projetos em favor
de Jesus.
Assim, encontramo-nos em presença de dois pretendentes ao trono de
Israel: Jesus, representante da filiação real chamada "davídica",
e Herodes Antipas, representante da filiação real chamada
"Iduméia", por parte de seu pai Herodes, o Grande.
Ficava ainda a filiação asmonea, chamada dos Macabeos, que
através da Mariana, esposa de Herodes, o Grande, desembocava nessa
época no Herodes rei do Calcis e em seu filho Aristóbulo III,
futuro marido de Salomé II. Mas Herodes do Calcis, rei de tal província,
não pretendia ao trono de Israel. Não ficavam, pois, a não
ser Jesus e Herodes Antipas.
E é aqui onde voltamos a encontrar Salomé II. Não é
difícil compreender que seus sentimentos para Herodes Antipas, o
fratricida que despojou a seu irmão Herodes Filipo de todos seus
bens, que fez de sua mãe Herodias uma cativa adúltera e consentida,
e a despojou ela mesma de uma herança quase real, não podiam
ser mas sim de ódio. Além disso, casou-a muito jovem, e provavelmente
sem seu consentimento, como era costume nessas regiões e nessas épocas,
com seu tio Herodes Filipo II, filho de Herodes, o Grande, e meio-irmão
de Herodes Antipas. E isso possivelmente não foi de seu gosto.
Por outra parte, Salomé II recordava a terrível morte de seu
tio Achiab e de outros familiares deles, crucificados por unirem-se ao partido
davídico cujo chefe era Judas da Gamala, pai de Jesus, e isso por
horror aos crimes de Herodes, o Grande, horror transladado a seu filho preferido,
Arquelau.
E possivelmente tudo isso ditou a eleição de Salomé
em favor de Jesus. Este sabia, além disso, que o povo judeu odiava
violentamente à dinastia dos Herodes, que odiava do mesmo modo a
lembrança dos reis-sacerdotes asmoneos, os macabeos, e que, em grande
proporção, era partidário de Jesus, quem realçava
ainda mais seu prestígio real com seus dotes de mago e taumaturgo.
Conhecia-o bem? É possível. Depois de ser seqüestrada
por Herodes Antipas, ela teve que viver necessariamente na Galiléia,
nas bordas do lago Genezaret, na cidade e no palácio de Tiberíades,
construídos pelo Herodes Antipas em honra ao Tibério. Continuando,
depois de seu matrimônio com seu tio Herodes Filipo II, viveu em um
palácio pessoal, no vale de Genezaret, em hebreu: "Ginethsaar",
o "jardim dos príncipes". Neste afortunado vale, que deve
seu nome tanto a sua riqueza e a sua beleza como aos nobres de alta classe
que fizeram construir ali suas luxuosas mansões, crescem a laranjeira,
o limoeiro, a palmeira, o datilero, todas as árvores frutíferas,
a vinha, e essa vegetação subtropical alberga animais reais,
como a águia e o leopardo. É um verdadeiro paraíso.
Este marido, que é ao mesmo tempo um tio de muito mais idade, deixará
viúva muito em breve, e sem filhos, quer dizer, totalmente livre.
Seu tio e padrasto Herodes Antipas e sua mãe Herodias irão
viver um terrível exílio nas ribeiras geladas e nas brumas
de Ródano, em Vienne. Ali morrerão muito em breve. E através
da mãe de seu marido Herodes Filipo II, sua própria sogra,
quer dizer, Cleópatra de Jerusalém, entra em relações
familiares com a estirpe davídica, a que esta pertencia. E aqui temos
o laço inicial entre Salomé II e Jesus.
Quem introduziu o cristianismo nos meios servis da alta aristocracia romana?
Quem, a não ser Salomé?
A esta pergunta tão importante, responderemos que sim e que não.
É mais que provável que Salomé escolhesse entre os
partidários do zelotismo e de Jesus àqueles de sua casa que
se propunha levar consigo à Roma quando teve seu lugar segundo matrimônio.
E isto afetava não só à servidão da Galiléia,
mas também a da Judéia. Porque indubitavelmente possuía
também uma casa em Jerusalém, a de seu primeiro marido Herodes
Filipo II, igual a seu padrasto Herodes Antipas.
Assim, esses servidores com as mesmas idéias que sua ama seriam os
que divulgariam em Roma as teorias da nova seita, melhor ou pior assimiladas,
e cada dia mais mescladas com prodígios maravilhosos relacionados
com Jesus. Isso é seguro.
Com efeito, quando Saulo-Paulo chega à Roma e entra imediatamente
em relação com os ambientes judeus, estes lhe fazem saber
sem rodeios que o ignoram tudo sobre a seita herética e cismática
que em outras partes transtorna às sinagogas: "Nós não
recebemos da Judéia nenhuma carta a seu respeito, nem nenhum dos
irmãos que chegaram aqui nos comunicou ou falou de si nada mal. Mas
quereríamos ouvir de sua boca o que você pensa, porque desta
seita nos é conhecido que em todas partes a contradiz". (Cf.
Atos dos Apóstolos, 28, 21.)
E não obstante, apesar desta ignorância da plebe judia, há
cristãos em Roma, na casa de Narciso e na de Aristóbulo III.
É fácil explicar esta aparente contradição.
Antigamente, na velha França, os servidores das grandes famílias,
igual a seus amos, não freqüentavam a não ser a seus
iguais. Bem calçados, rodeados em suas ricas libreas com as cores
da "casa" dos citados amos, guarda-florestal, monteros, palafreneros,
choferes, etc., desprezavam aos humildes camponeses vestidos com bastolino,
calçados com tamancos de madeira embutidos de feno ou de palha, e
mais ou menos cuidados. O intendente se casava com a senhorita de companhia,
o primeiro montero com a costureira e o palafrenero com uma garçonete.
Quando tinham lugar as grandes caçadas de inverno, entre um castelo
e outro se estabeleciam relações mais extensas com a servidão
das outras famílias. Durante uns breves dias se ampliava o círculo
de relações. Mas continuavam ignorando e desprezando aos servis
camponeses, imitando nisto à seus amos.
O mesmo acontecia na Roma antiga, e os convites a passar períodos
mais ou menos longos nas ricas "vilas" do Latium ou da Companhia,
nas bordas dos Mare Tyrrhenum ou do Mare Adriaticum punham à servidão
das grandes famílias em contato mútuo às vezes prolongado.
Ali se produzia o que Celso descreveu tão bem: "O mesmo acontece
no seio das famílias [...] Surpreendem especialmente aos meninos
da casa e às mulheres, que não têm mais julgamento que
eles mesmos, e começam a lhes relatar maravilhas". (Cf. Celso,
Discurso da Verdade, 37.)
Pois bem, Salomé II é de herança puramente Iduméia,
quer dizer, que é uma árabe. Este é um detalhe que
o leitor profano esquece muito freqüentemente. E a mulher árabe
está intimamente tomada de fáceis crenças no sobrenatural,
no maravilhoso. Ainda é assim em nossos dias. Vejamos alguns testemunhos
indiscutíveis a este respeito:
"O grande mal que causa estragos no povo marroquino é a ignorância.
E esta ignorância a alimentam os talebs, quer dizer os bruxos. São
os amos de toda a população; dominam-na. Discutem, pretendem
conhecer todos os segredos da terra e do céu, e mantêm uma
atitude altiva para aqueles que vão consultar-lhes. Quanto mais humildes
são estes, mais altivos se mostram aqueles... O taleb, quer dizer,
o bruxo, é rei..." (Cf. Henriette Willette, Superstitions et
diableries árabes, Fasquelle édit., Paris, 1931.)
"As mulheres, para impor sua influência, recorrem à magia.
Não sem temor. As práticas malditas podem ser denunciadas
pelos gênios, os lares e os espíritos, que abundam nas casas
[...] Com o fim de obter do céu uma aliança terrível,
as mulheres recorrem à bruxa. Que não a obterá com
a água da lua! Na noite de Achura, a festa dos mortos, a amante sombria
coloca um prato de barro cheio de água sobre uma tumba recentemente
aberta, e dirige a seguinte invocação..." (Cf. Maurice
Privat, Vênus au Maroc, Paris, 1934.)
"Ela então desenterra um cadáver recentemente morto,
senta-o entre suas pernas, e agarrando as mãos do morto entre as
suas faz rodar cuscus umedecido com água de lua. Este filtro, comido
por um amante frívolo, fará que habite nele todo amor, exceto
para a mulher que o tenha incorporado em seu alimento. Um marido malvado
e rabugento se tornará mudo como um morto. Um marido ciumento estará
cego a todas as faltas..." (Cf. Dr. Yvonne Légey, Essai de folklore
marocain.)
"A Arábia preislâmica está constituída quase
na mesma forma que encontrará o Islã e que codificará
o Corão. A religião admitia já a crença em um
só deus, Alá, o único ao que se invocava em caso de
perigo, mas tinha coadjudantes, se lhes pode dizer assim, toda uma tropa
de deuses locais ou importados, cujos ídolos enchiam o templo de
Meca... Os costumes eram dissolutos, a música, a dança e o
consumo de licores alcoólicos constituíam as principais ocupações
do povo e seus dirigentes, e a magia reinava como uma temível senhora..."
(Cf. Rene Pottier, Initiation á la médecine et á la
magie em Islã, Paris, 1939.)
Quer dizer que, no século I de nossa era, os prestígios mágicos
e as curas obtidas por um conhecimento secreto da medicina, tais como os
operou Jesus no curso de sua vida, jamais tiveram nada de surpreendente
para Salomé II. Esses eram espetáculos comuns naquelas regiões,
e judeus e árabes tinham ante eles a mesma reação,
despojada de toda surpresa.
Também deviam acreditar firmemente na veracidade de toda a montagem
sobre a pseudo-ressurreição. Ela também esperava seu
famoso "retorno". O mesmo tinha precisado: "Quando virem
todas estas coisas, entendam que o Filho do Homem está perto, às
portas. Na verdade lhes digo que não passará esta geração
antes que tudo isto aconteça". (Mateus, 24, 33-34; Marcos, 13,
30; Lucas, 21, 32.)
Esta geração passou, e mais de vinte e quatro gerações
mais passaram por sua vez, e não aconteceu nada, e menos ainda sua
volta sobre as nuvens do céu. Mas continua havendo fiéis que
esperam ainda essa "volta", assim por que atirar a pedra à
Salomé? Esta foi uma mulher de sua época, ingênua, supersticiosa,
que provavelmente amou durante um tempo ao prodigioso mago que assombrava
às multidões. Suas esperanças e suas ambições
coincidiam com tudo isto. E também seu rancor para Herodes, que tinham
despojado ou permitido despojar de todos seus bens a seus familiares e a
ela mesma.
Tudo isso justifica a atitude e o comportamento desta mulher. Suas servidores
e servidoras fizeram o resto. Mas se for evidente que, como confiou em privado
ao Papa Pio XI, Simão-Pedro "não pôs jamais os
pés em Roma...", possivelmente fora Salomé II, sem saber,
o primeiro apóstolo através do qual penetrou ali o cristianismo.
E é bastante divertido observar que a primeira mensagem da nova religião
foi introduzida na cidade que deveria converter-se na capital da Cristandade,
por uma dessas mulheres às quais Jesus se negou a confiar os famosos
"poderes" apostólicos. Como disse Oscar Wilde, "o
sábio se contradiz a si mesmo". Quanto à lenda que a
faz morrer em um lago gelado, decapitada pelo gelo que se fecha bruscamente
em torno de seu pescoço, foi elaborada por volta do ano 1325 por
Nicéforo Callisto, historiador grego, para dar corpo à rubrica
que lhe consagra, mas nenhum historiador católico moderno toma a
sério, como é lógico.
Fica um ponto por elucidar, e é o de seu comportamento depois da
detenção de Jesus.
Dada sua posição social, segura que ocupava em Jerusalém
a rica mansão de seu defunto esposo Herodes Filipo (que por sua vez
era seu tio), e esta mansão, sem ser tão suntuosa como o palácio
de Herodes (onde residia na semana pascal Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia
e Perea, tio dele), era evidentemente digna da fortuna do desaparecido Herodes
Filipo.
Sabemos que assistiu à execução de Jesus com as outras
mulheres do séquito deste (Marcos, 15, 40). Mas não tentou
nada para salvar àquele que admirava e tinha assistido e acolhido,
de todas as maneiras possíveis, desde fazia vários anos? Parece
que sim.
Em primeiro lugar, é evidente que não podia projetar uma evasão
apoiada em uma ação armada. Naquela época do ano religioso,
em plena semana de Páscoa judia, a guarnição romana
estava ainda mais dotada que de costume. A cidadela Antonia estava cheia
de veteranos da coorte, e deveriam estabelecer-se também acampamentos
secundários de centúrias legionários chegados como
reforço. O grupo zelote de Jesus fora derrotado no combate do Monte
das Oliveiras, ao redor dos domínios de lerahmeel, por cinco centúrias
da coorte, e não lhe podia fazer levantar de novo em armas para dar
o golpe liberador. Além disso, se a princesa Salomé era objeto
de considerações por parte dos ocupantes romanos, isto não
chegaria até o extremo de lhe tolerar que desempenhasse um papel
em uma conspiração a mão armada.
Quão único podia fazer era, pois, intervir. E é o que
acreditam que fez. Este episódio foi mascarado voluntariamente, a
fim de apagar uma vez mais a existência de Salomé e sua importância
na vida de Jesus. E para isso chegaram inclusive a imaginar o sonho da esposa
de Pilatos. E assim, em Mateus lemos: "Enquanto [Pilatos] estava sentado
no tribunal, mandou-lhe um recado sua mulher, dizendo: "Não
te coloques com esse justo, pois padeci muito hoje em sonhos por causa dele".".
(Mateus, 27, 19.)*
*[Observe-se que Marcos, Lucas e João ignoram esta intervenção
da esposa do procurador. Seguramente procede da intenção dos
orientais do século IV de santificar, por adulação,
o procurador Pilatos. Coisa que, por certo, teve lugar.]
Visivelmente se montou esta frase perseguindo alguma finalidade concreta.
É absolutamente impossível que a esposa de Pilatos empregasse
um termo especificamente hebreu: "... esse justo", em hebreu "conforme
ao desejo e de ave".
As Acta Pilati, apócrifo copto do século IV, sobre uma redação
dos Atos de Aneas tirados de textos judaicos da época e que recebem
também o nome de Evangelho de Nicodemo, contam-nos um episódio
parecido: "Pilatos chamou, pois, a todos os judeus, e disse-lhes:
"Sabem que minha esposa é uma pessoa que acredita em Deus e
que se inclina para o lado dos judeus com vós". Eles disseram:
"Sabemos". Pilatos disse: "Vejam que minha esposa me enviou
recado, dizendo: 'Afaste-se desse homem justo. Sofri muito por causa dele
esta noite, em sonhos'." Os judeus responderam e disseram ao Pilatos:
"Não lhe dissemos já acaso que é um mago? Enviou
um sonho à sua mulher".". (Cf. Acta Pilati, II.)
O termo com o qual a designam tenderia a situar à esposa do procurador
entre os partidários, os "temerosos de Deus". Era um fato
conhecido que as mulheres da alta aristocracia romana gostavam de freqüentar
o judaísmo. A gente culta já não experimentava satisfação
com o politeísmo romano, que de fato não era já a não
ser uma angelologia deformada. Basta relendo ao Juvenal: "que haja
em alguma parte uns espíritos, e um reino subterrâneo, e a
vara de Caronte, e rãs negras na lacuna Estigia, e que uma só
barco possa bastar para fazer passar pela água a tantos milhares
de mortos é algo que já não se acreditam nem os meninos!
Exceto os que ainda vão engatinhando". (Cf. Juvenal, Sátiras,
II, 149.)
Por conseguinte, não há nenhum obstáculo para que a
esposa de Pilatos fosse seguidora.
Não obstante, a gente pode expor algumas perguntas. Antes de mais
nada, estava casada com Pilatos? Não sabemos nada. E em caso afirmativo,
esta esposa se achava com ele na Judéia? É duvidoso. Porque
a lei Oppia, muito antiga em Roma, proibia aos altos funcionários
romanos levar consigo suas mulheres às províncias onde governavam.
Um século antes de nossa era, um senado-consultor atenuara este ostracismo,
mas a lex Oppia, que seguia em vigor, era-lhes muito difícil de derrogar.
Às vezes um governador de província, um legado imperial, obtinha
esta permissão, embora comprometendo-se a "assumir toda a responsabilidade
pelas faltas que ela pudesse cometer". Mas teria obtido esta autorização
um simples procurador? É muito duvidoso. E em caso afirmativo, quem
era sua esposa?
Daniel Rops nos diz em Jesus em seu tempo que o Evangelho de Nicodemo, aliás
Acta Pilan, chama-a Claudia Procula. Nós não encontramos esse
detalhe nos textos em questão. Alguns autores, como Rosadi, acreditam
que podia tratar-se da filha menor da Julia, filha de César Augusto,
a quem seu pai exilou na ilha da Pendataria para limitar seus transbordamentos
sexuais. Aurelio Macrobo, autor latino do século V, diz-nos em seus
Saturnais de Claudia Procula, sua mãe Julia a colocara junto ao Tibério,
terceiro marido desta. O que dá a entender que o padrasto pôde
muito bem ter corrompido à citada Claudia. E logo casariam-na com
Poncio Pilatos, ambicioso e arrivista, provavelmente antigo liberto, quem
utilizaria a sua esposa para conseguir relacionar-se com as altas esferas,
e possivelmente inclusive para converter-se em "amigo de César",
título muito cobiçado, que João, em seu evangelho (19,
12), assegura que possuía.
Seja o que for, é duvidoso que Claudia Procula, esposa de Pilatos,
tivesse um sonho premonitório referente ao Jesus, já que tal
sonho não foi profetizado, posto que nada aconteceu ao Pilatos por
condenar Jesus em função das leis romanas e por rebelião
contra César. Quando, muito mais tarde, foi exilado à Vienne,
nas Galias, ordenou uma matança entre uns samaritanos iluminados
ao que um agitador zelote tinha amotinado, para levar a cabo uma nova sublevação.
Não havia relação alguma com o processo de Jesus.
Por conseguinte, tendo em conta: a) que não estamos seguros de que
Pilatos estivesse casado, nem de que pudesse fazer chegar à Judéia
sua esposa, contra o que ditava a lex Oppia; e b) que esta mulher, em caso
afirmativo, não pôde ter um sonho premonitório, como
afirma Mateus -o único nos quatro evangelhos canônicos-, já
que tal sonho, se foi real, não se realizou, nós sustentamos
a hipótese, possivelmente mais sutil, mas imensamente mais plausível,
de que se tratou de uma artimanha de Salomé, desejosa de influenciar
o procurador, e de fazer soltar Jesus.
Dada sua classe de princesa da Casa de Herodes, viúva de Herodes
Filipo, deste modo príncipe herodiano, enteada de Herodes Antipas,
tetrarca da Galiléia e Perea, recebia ao Pilatos e era recebida por
ele. Tanto se estava casado como se não, tanto se Claudia Procula
estava em Jerusalém como se não, os membros da dinastia Iduméia
tinham relações mundanas com os altos oficiais de Roma, e
em particular com o procurador, Salomé pôde intervir influindo
sobre Claudia Procula, se ela estava ali, ou diretamente sobre Pilatos,
se se encontrava sozinho em Jerusalém. Como? Mediante uma mentira
piedosa.
Imaginaram esse pseudo-sonho, sabendo que os romanos eram supersticiosos,
e conhecendo bem sua crença nos sonhos "enviados pelos deuses".
Não se afasta tanto do terrível exemplo de Julio César,
quem, prevenido por sua esposa Calpurnia de um sonho trágico referido
a ele, e depois de suplicar-lhe que não saísse de casa no
dia dos Idus de março, desprezou tal advertência e foi cair
sob a adaga dos conjurados.
O que reforça esta hipótese é que Pilatos, ao longo
de todos os interrogatórios que se fizeram à Jesus, considerou-o
sem cessar como rei dos judeus, e não como um simples chefe de bando,
em rebelião contra Roma. Foi preciso que lhe pussessem à corrente,
e não puderam fazê-lo os judeus acusadores, já que,
ao pertencer à seita saducea, a classe rica de Israel, e contrariamente
aos fariseus, que protegeram em segredo Jesus durante tão longo tempo,
não consideravam Jesus como um rei legítimo, e além
se entendiam perfeitamente com os ocupantes romanos, Como se vê, é
um eterno voltar a começar da História!
Porque Salomé e Claudia Procula (se se achava realmente em Jerusalém)
tiveram que ser necessariamente seguidoras do judaísmo. Senão,
a primeira jamais prestaria suporte ao Jesus, não o seguiria, e não
se proclamaria discípula dele. Pois bem, elas, ainda sob o entusiasmo
dos neófitos, a religião judia seguem ao pé da letra.
E segundo esta, só os profetas, os sacerdotes e antigamente os juízes,
podiam receber sonhos premonitórios. O vulgo ficava excluído,
e não existe nenhum exemplo de que o Eterno falasse em sonhos a alguma
mulher nas Escrituras. Psiquicamente a experiência demonstra o contrário,
mas é assim. Por isso consideramos o sonho da esposa de Pilatos como
uma artimanha urdida por Salomé em favor de Jesus.
Por último se expõe outro problema: o da identidade da pessoa
que aconselhou Tibério que entregasse Jesus à tetrarquia confiscada
ao Herodes Filipo. Não foi Pilatos. E menos Herodes Antipas, que
não tinha montado toda essa conjura contra seu meio-irmão
a não ser para apropriar-se dela, assim como de sua esposa Herodias.
Da deposição de Herodes Filipo tinha passado já tempo.
Quem, pois, a não ser Salomé II pôde fazer que Tibério
conhecesse Jesus e lhe sugerir tal projeto? E mais quando fazendo tal coisa
a ambiciosa Salomé trabalhava também para a realização
de seu sonho secreto: voltar para aquilo ao que seu berço a destinava
inicialmente...
Não em vão o Evangelho de Bartolomeu a chama "Salomé
a sedutora". E neste caso faria que a presença de Claudia Procula,
esposa de Pilatos, em Jerusalém fora plausível.
Deste capítulo o leitor tirará suas conclusões, que
é o único de importância para o curso da aventura paulina.
E estas conclusões podem repartir-se em diversas constatações:
a) quando Saulo-Paulo chega à Roma, o judaísmo corrente ignora
que existem cristãos na capital do Império;
b) não obstante, na casa de Aristóbulo III, rei de Armênia,
existem, e são os servidores de sua esposa Salomé II, os que
propagaram o messianismo no seio da servidão geral;
c) propagaram-no na casa de Narciso, secretário do imperador morto
Claudio César, e logo entre "os da casa de César",
neste caso Nero. Mas esta discreta propaganda se limita aos palácios
de Aristóbulo III, de Narciso e de Nero. No povo e no seio da colônia
judia se ignora tudo que se refere à nova religião;
d) se for certo que Simão-Pedro jamais esteve em Roma, e o mesmo
pode dizer-se de João, terá que tirar a conclusão de
que o apóstolo involuntário dessas primeiras células
cristãs na capital do Império, foi inicialmente Salomé
II, rainha de Armênia e de Calcis, antiga conselheira de Jesus. E
isto não é menos assombroso de toda a história.
16 - O império paulino
Ser rei é uma estupidez! O que conta é construir um
André Malraux, La Voie royale
Como dissemos, do estudo da existência de Saulo-Paulo desprende-se
a certeza quase total de que teve a intenção de construir-se,
mediante o artefato de criar uma religião nova cujo fundador seria
ele, um império espiritual que abrangeria a concha mediterrânea
oriental e central. Esta ambição germinou nele quando freqüentava
Gamaliel, o doutor supremo de Israel, e sobretudo a sua filha. Pôde
constatar que a autoridade de cohén-ha-gado I, o supremo sacerdote,
estendia-se por todo o Império romano, no seio de todas as comunidades
judias da Diáspora, tanto no campo fiscal como no da legalidade penal.
E a própria Roma não se atreveu a restringi-la, excetuando
o jus gladii logo que chegaram os procuradores, no que concernia aos atos
de rebelião política e de banditismo por parte de grupos armados.
Mas no que concernia ao âmbito religioso, segundo um estudo minucioso
levado a cabo por Jean Juster em seu livro Les Juifs dans L'Empire romain
tanto sobre obras talmúdicas como sobre os textos neotestamentários,
parece que se pode afirmar com certeza que o Sanedrim utilizava livremente
o direito ao castigo supremo contra os judeus em matéria de crimes
religiosos. Sem dúvida, depois do ano 70, com a destruição
de Jerusalém, e a dispersão do conselho sanedrita e seu chefe,
este poder deixou ao supremo sacerdote por tolerância dos romanos.
Logo desapareceu, depois da grande revolução final do ano
135.
Estes detalhes têm sua importância. Demonstram (como já
afirmamos em nosso precedente volume) que, se Jesus foi crucificado, foi
como conseqüência de um processo puramente romano, para reprimir
uma rebelião política. Mas se tivesse sido simplesmente acusado
pelos judeus de ter efetuado declarações blasfemas, como a
de pretender-se deus ou filho de Deus, seu crime dependeria de julgamento
do grande Sanedrim, e fosse lapidado, e logo pendurado pelas mãos
a um patíbulo, com a cara voltada para o Templo (cf. Talmud, IV,
Nezikin; 4, Sanedrim, VII, 4), sem que os romanos metessem-se em nada. E
também, quando vemos o rei Agripa e ao procurador Albino sancionando
ao pontífice Anano pela lapidação de Santiago, irmão
de Jesus, é porque os delitos maiores reprovados ao tal Santiago
(Jacobo) dependiam de um julgamento romano (direito comum), e não
de um julgamento judaico (delito religioso). Tampouco se exclui que, ao
fazer lapidar rapidamente a um "filho de David", Anano quissesse
simplesmente evitar-lhe o horror da crucificação e as torturas
que precediam a esta.
Seja o que for, tal poder (que será o dos Papas quando tiverem desaparecido
os imperadores romanos), entusiasma de antemão à Saulo-Paulo.
E trabalhará para obtê-lo.
Além disso do supremo sacerdote que representava o poder espiritual,
em Israel existia ainda o que se conhecia como o "Príncipe do
Exílio", quer dizer o Exilarca (em grego: exilarkés;
em aramaico: resh galutha), chefe político dos judeus deportados
à Babilônia no ano 598 antes de nossa era. O primeiro foi Ioiakim,
rei de Judá, deportado à Babilônia pelo Nabukadnetsaar
na data citada: "O terceiro ano do reinado de Ioiakim, rei de Judá,
Nabukadnetsaar, rei de Babilônia, partiu contra Jerusalém e
a assediou. O Senhor entregou em suas mãos o Ioiakim, rei de Judá,
e uma parte dos utensílios da casa de Deus. Nabukadnetsaar levou
esses utensílios ao país de Esquinear, à casa de seu
deus, e os colocou na mansão do tesouro de seu deus". (Daniel,
1, 1-2.)
Os hebreus, instalados naquela época no país, cresceram sem
cessar e, pouco a pouco, por seu número, conseguiram uma organização
administrativa que já se desenhava sob a dominação
dos persas da dinastia aqueménida (séculos VII ao VI antes
de nossa era), abaixo a dos gregos seleúcidas (anos 321 a 250 antes
de nossa era), e que se firmou sobretudo abaixo a dos partos arsácidas
(anos 250 a 226 antes de nossa era). Por último voltou quase independente
sob os persas sasánidas (ano 226 antes de nossa era até o
650 desta) e declinou sob a dominação árabe, do século
VII ao XI. O "último dos príncipes do Exílio"
se diz que foi um tal Ezequias, no ano 1040.
Ao representar o poder temporário, o possuidor deste título
e dos poderes correspondentes, gozava dos privilégios reais e de
todos os benefícios que estes implicavam: doações em
espécies, dízimos de todos tipos, ganhos pecuniários,
honras populares, bênções clericais. Nós possuímos
informações concretas de tudo isto através de Natan
de Babilônia, judeu babilônio do século X de nossa era,
autor de uma História do Exilarcado, alguns de cujos fragmentos foram
publicados em 1545 por Samuel Schilam em sua edição do Yuchasin,
de Moisés Zacuto.
Quando os sucessores de Ornar e do califa Ali exumaram as leis de perseguição
ditadas por Ornar contra os judeus, leis das quais ele mesmo não
fez uso, começaram aplicá-las contra esta população.
Sob o reinado de Almutavakille, neto de Almamún, no ano 856, foi
dissolvido o grande Sanedrim, o resh galutha perdeu pouco a pouco seus privilégios,
assim como o papel que representava, e já para finais do século
IX foram suprimidos os parlamentos da Soura e da Pombadita. (Cf. Kalixt
de Wolski, La Russie juíve, A. Savine édit. Paris, 1887.)
Não obstante, no século XVIII circulavam nos meios ocultistas
e maçônicos -aqui falamos da maçonaria iniciática,
como a do Rito Primitivo do marquês de Chefdebien, e não da
maçonaria bem pensante de J. B. Willermoz- o rumor de que existia
um "rei dos judeus", o homem que então estava mais versado
na cabala, e que esse homem era Hain Samuel Iacob, nascido na Polônia,
e mais conhecido pelo nome de Falk-Schek (1710-1782). Foi o Mestre dos maçons
ilustres, altos iniciados, como Toux de Salverte, Gleichen, Waldenfeis,
e quando Savalette de Langes redigiu suas fichas de filiação
destinadas ao marquês de Chefdebien com vistas ao acesso a célebre
junta geral de Wilhelmsbad (1782), a indicação "conhece
o Falk, trabalhou com o Falk, aluno do Falk" mostrava ao Chefdebien
que se encontrava frente a um maçom altamente iniciado. Pois bem,
o grande rabino Hain Samuel Iacob, aliás Falk-Schek a quem a linguagem
profana designava "rei dos judeus", era em realidade o "príncipe
do Exílio", naquela época. E a maçonaria oculta
lhe deve muito, se não tudo. Porque ao resh galutha Falk-Schek lhe
deve a franco-maçonaria moderna numerosos detalhes de seu ritual,
o esoterismo de suas palavras sagradas, de suas ordens, cuja utilização
prática são incapazes de suspeitar os maçons racionalistas
e os maçons bem-pensantes, unidos pelo mesmo antolhos dogmático.
E faz vinte séculos Saulo-Paulo sonhou ser por sua vez um equivalente
ao "Príncipe do Exílio", com tudo o que isto comportava
de vantagens materiais, como é óbvio. E, ao mesmo tempo, o
"Supremo Pontífice". Por que não? Duas fontes de
benefícios valem mais que uma sozinha.
Quanto mais fique o poder real se duplica, com a certeza de um bem-estar
futuro no campo material. Porque o cohen-ha-gadol recebe os impostos de
toda a Diáspora, determina sua quantidade e fixa a data de percepção
destes. Aqui temos um exemplo: "Rabban Gamaliel e os Anciões
estavam sentados em um degrau da montanha do Templo, e diante lochanan-ha-cohen,
o secretário. Ordenaram-lhe transcrever o que segue: "A nossos
irmãos, os habitantes da Galiléia Superior e da Galiléia
Inferior, que tenham saúde! Fazemo-lhes saber que chegou a data do
imposto. Retirarão, pois, o dizimado as tintas de azeite. A nossos
irmãos os habitantes de Daroma inferior, que tenham saúde!
Fazemo-lhes saber que chegou a data do imposto. Retirarão, pois,
o dízimo dos feixes de trigo. A nossos irmãos os exilados
de Media, de Babilônia, aos exilados da Héllade, e os exilados
de Israel nos outros países, que tenham saúde! Faço-lhes
saber que as ovelhas estão ainda débeis, que os pintinhos
são jovens, que a época da maturidade ainda não chegou.
Tive, pois, a bem, assim como meus colegas, acrescentar a este ano um mês
de trinta dias". (Cf. Talmud, Sanedrim, 1, 2.)
E o fiscus judaicos representava apesar de tudo uma soma muito importante,
já que este imposto anual, deduzido não só em Israel,
mas também em toda a Diáspora, subia a dois dracmas por pessoa.
Se se avaliar a população judia no começo de nossa
era em uns quatro milhões de almas, em total, isto representa uma
tesouraria anual de oito milhões de dracmas, quer dizer quase um
milhão e meio do dinheiro circulante no ano 1926...
Vemos, pois, que o sonho de Saulo-Paulo vai perfilando-se pouco a pouco.
Como já dissemos, cortou com a dinastia herodiana, foi rechaçado
pelos judeus por causa de seu passado, tanto em sua qualidade de aristocrata
bandido como por ser membro de uma família odiada e desprezada; desde
sua circuncisão e suas relações, possivelmente interessadas,
mas mesmo assim reais, com os rebeldes zelotes, tornou-se suspeito aos olhos
dos romanos. Só fica um campo, o de uma religião nova, que
não seja suspeita do ponto de vista da legalidade romana, que seja
fácil de difundir entre os gentis, por ser sincretista, e que lhe
abra um império espiritual análogo ao do pontífice
de Israel.
Rapidamente soube adquirir uma autoridade indubitável no seio de
uma seita judeu-cristã, a dos nazarenos, ramo místico das
mais antigas (se não a mais antiga) no cristianismo nascente. Os
membros da seita se recrutavam unicamente entre os judeus de raça,
queriam que se observasse a lei de Moisés, honravam Jesus como um
homem justo e santo, nascido de pai desconhecido segundo uns, de onde a
lenda de que o que o engendrou foi o Espírito Santo, e de um pai
e uma mãe perfeitamente carnais segundo outros. Sobre o fato de que
Saulo-Paulo foi durante um tempo o chefe da seita temos como prova que o
evangelho desta, chamado Evangelho dos Doze Apóstolos, ou Evangelho
dos Hebreus, considera-se também que foi o que Saulo-Paulo denomina
"meu evangelho".
Por outra parte, os Atos dos Apóstolos confirmam que foi durante
um tempo o chefe de tal seita: "achamos que este homem é uma
peste, que excita a rebelião a todos os judeus do mundo, que é
além disso o chefe da seita dos nazarenos, e que tentou inclusive
profanar o Templo". (Cf. Atos dos Apóstolos, 24, 5.)
Esta é a acusação de Tértulo, advogado do Sanedrim,
quando compareceu ante o procurador Félix, em Cesaréia, uma
delegação de sanedritas que tinha ido a ele para denunciar
a Saulo-Paulo.
De todo modo, aqui abriremos um parêntese, já que o historiador
sério não é simplesmente um narrador ou um recopilador
de dados, a não ser, acima de tudo, um investigador. E a esse título
tem que ser curioso e desconfiado. E então a primeira pergunta que
se expõe é a seguinte: por que João, também
chamado Marcos, deixou Saulo e Bernabé? Primeiro por prudência,
o que é muito provável, mas seguro que também por divergência
doutrinal grave. Já que João, aliás Marcos, era um
zelote, e terminaria por descobrir que os objetivos de Saulo eram muito
diferentes, ou inclusive opostos aos dos verdadeiros fiéis de Jesus
da história. O fato de que mais tarde Bernabé, que é
seu primo, não o esqueçamos (cf. Epístola aos Colossenses,
4, 10), separe-se também de Saulo, igual João, aliás
Marcos, parece prová-lo.
Com efeito, João-Marcos, primo de Bernabé, era filho de uma
tal Maria, e a casa desta última em Jerusalém era um centro
de reunião dos zelotes, já que foi ali onde se refugiou Simão-Pedro
depois de sua evasão da prisão de Herodes Agripa I (cf. Atos
dos Apóstolos, 12, 12). Por outra parte, a opinião geral dos
exegetas católicos e protestantes é que esse Marcos é
o mesmo personagem que foge, vestido só com um tecido, quando se
produz a captura de Jesus depois do combate das Oliveiras. Em seu livro
Saint Paúl, apotre, monsenhor Ricciotti nos diz que: "... possivelmente
a casa onde teve lugar A Última Ceia, ou o jardim do Getsemani, fossem
propriedades de sua família". (Op. cit., P. 255.)
Neste caso, veja que descobrimos sobre tal jardim e saberemos como se chamava
esse João-Marcos segundo seu nome de circuncisão: Iochanan-bar-Ierahmeel.
Tudo isto demonstra que, efetivamente, nos vemos com um zelote, igual a
seu pai Ierahmeel, que albergou e abasteceu aos companheiros de luta de
Jesus. Então não é ilógico prever que não
será durante muito tempo vítima das palinodias paulinas e
de seu messianismo de água de rosas, que tratava com olhares e adulava
aos romanos opressores.
Muito antes Saulo-Paulo fez o necessário para ser introduzido no
seio da generalidade messianista, e para isso, para estar bem documentado
sobre o Jesus histórico, e a fim de não correr o risco de
dizer tolices, tomou a precaução de entrar em contato com
seus ajudantes mais diretos: "Logo, passados três anos, subi
à Jerusalém para conhecer Cefas, a cujo lado permaneci quinze
dias. A nenhum outro dos apóstolos vi, se não foi Santiago,
o irmão do Senhor". (Cf. Epístola aos Gálatas,
1, 18-20.)
Este período de três anos separa aquela estadia em Jerusalém
do período em que nosso homem, depois de sua fuga de Damasco, passou
uma breve temporada na Arábia, nabatea ou Iduméia, seguida
de uma nova permanência em Damasco, mais concretamente em Kokba, sem
dúvida ao lado de Dositeo, seu iniciador.
A estadia em casa de Simão-Pedro demonstra em todo caso algo importante,
ou seja, que em Jerusalém, Simão e Santiago estavam perfeitamente
tranqüilos, em segurança, e que os judeus não os perseguiam
nem os entregavam aos romanos.
Não obstante, para pôr a prova a este personagem, apesar de
tudo suspeito por causa de seu passado como perseguidor dos zelotes, e que
pudesse demonstrar sua sinceridade, Simão-Pedro e Jacobo-Santiago
lhe confiarão uma missão de prova. Terá que ir ao Chipre,
ao país dos Kittim, esses famosos Kittim aos que odiavam tanto os
seguidores de Qumrán, se dermos crédito aos célebres
manuscritos do mar Morto. Uma vez cumprida sua missão, já
veriam. E para vigiá-lo melhor, e também para guiá-lo,
puseram-lhe em mãos de dois "anjos guardiães". O
primeiro era um dos doutrinários da comunidade da Antioquia, seu
nome de guerra era Bernabé, porque seu verdadeiro sobrenome era José:
"José, ao que os apóstolos chamavam Bernabé...".
(Cf. Atos, 4, 36.)
O segundo tinha umas posses na ilha de Chipre, e portanto conhecia perfeitamente
o itinerário a seguir uma vez ali. Chamava-se João (Iochanan
em hebreu), mas também tinha um nome de guerra:
"Bernabé queria levar consigo ao João, chamado Marcos".
(Cf. Atos, 15, 37.)
Essas mudanças de estado civil são clássicos no seio
das sociedades secretas e dos meios políticos clandestinos. Assim,
muito em breve Shaul se converterá em Saúl, depois em Saulo
e por último Paulo.
Os três se conheciam muito bem, pois entre a estadia de quinze dias
em Jerusalém, em casa de Simão-Pedro e Jacobo-Santiago, e
a viagem para o Chipre, Saulo passou três anos na Antioquia, efetuando
ali coleta em proveito da comunidade zelote de Jerusalém, e sobretudo,
encontrando-se com seu irmão de leite Menahem, neto de Judas da Gamala,
"que tinha sido criado com Herodes, o tetrarca e Saulo". (Cf.
Atos dos Apóstolos, 13, 1.) Saulo, bem doutrinado (ou ao menos fazendo
acreditar), estava preparado, portanto, para a missão que Simão-Pedro
e Santiago foram confiar-lhe. Logo já veriam...
Saulo-Paulo também pensava o mesmo. Logo já veria...
Porque logo se separaria desse meio perigoso no que alguém corria
a cada instante o risco de acabar crucificado por rebelião contra
o César. Aos zelotes os conhecia bem, não tinha sido o chefe
(junto com seu irmão Costobaro) de uma polícia paralela às
ordens de Roma sem conhecer aqueles aos que perseguia. E as coisas não
mudaram. A Lenda de Jesus ressuscitado não lhe enganava. Se não,
a que vinham tantas precauções? Por que tão secreto
em suas ações? Por que essas identidades diversas? A difusão
de uma doutrina espiritual de renúncia e de purificação
moral não exige identidades falsas.
Bernabé é um personagem dos mais curiosos. Porque de fato
se chamava José, e o apelido do Bernabé significava em Hebreu
"Filho de Consolação". Vive na Antioquia, junto
ao Menahem, cujo nome significa "Consolador". Era Bernabé
filho de Menahem? Não é impossível; então seria
ele também "filho de David". E esta qualidade é
muito perigosa, já o vimos. A este apelido de Bernabé, que
lhe aplicaram outros zelotes (cf. Atos, 4, 36), lhe acrescentará
um terceiro, desta vez latino, Justus: "apresentaram-se dois: José,
chamado Bernabé, por apelido Justo, e Matias". (Cf. Atos dos
Apóstolos, 1, 23.)
Assim, nosso José, aliás Bernabé, aliás Justo,
tinha sido um dos dois candidatos à sucessão de Judas Iscariote,
com Matias. A sorte designou a este último. Para que tivessem em
conta seu nome, tinha que ser necessariamente "filho de David"
ou membro da família. Que por conseguinte foi um personagem importante,
é seguro. Se o duvidássemos, bastar-nos-ia recordar que podia
resultar molesto à alguns, já que foi objeto de uma tentativa
de envenenamento. Voltemos a ler Eusébio de Cesaréia, citando
Papias: "Ele [Papias] conta [...] outro fato extraordinário
que concerne à Justo, chamado Bernabé, quem bebeu um veneno
mortal e não experimentou mal-estar algum pela graça do Senhor".
(Cf. Eusébio da Cesaréia, História eclesiástica,
III, XXXIX, 9.)
É evidente que os venenos mortais não vêm sozinhos,
e que aquele ou aqueles que nos fazem chegar têm nisso um indiscutível
interesse. Para adivinhar o nome do envenenador, o velho adágio judicial
continua válido: "Procura a quem lhe beneficia o crime".
Pois bem, entre os membros da comunidade da Antioquia havia um ao que, sem
lugar a dúvidas, sua importância lhe incomodava. E não
descartamos a Saulo-Paulo por outros motivos...
Porque não foram os romanos os que tentaram envenenar Bernabé,
nem os judeus; tanto uns como outros dispunham de todo um arsenal legal
para terminar com um agitador. Observemos, não obstante, que as múltiplos
e cambiantes identidades dos personagens analisados demonstram bem que nossos
dois apóstolos não eram senão agitadores políticos,
e nada mais. Porque em Israel o nome era uma realidade mística. Alguém
não o trocava a não ser em circunstâncias extremamente
graves, quando a vida corria perigo, ou para protegê-la. E para adotar
um nome novo havia um ritual religioso muito concreto. Assim, e sem discussão
possível, a existência dessas diversas identidades era, nos
apóstolos e os discípulos, a prova de uma imperiosa necessidade.
Agora bem, naquela época ainda não tinha lugar nenhuma perseguição
religiosa, pela excelente e definitiva razão de que os romanos ignoravam
a existência do cristianismo ainda por vir, e o único que conheciam
era a rebelião zelote.
Recordemos a exclamação do imperador Juliano:
"Como! O nome de "evangelho" foi ignorado pelos romanos durante
mais de dois séculos?". (Cf. Juliano, Contra os Galileus, suplemento.)
Voltemos agora para nossa equipe em missão especial. Saulo-Paulo,
Bernabé e Marcos foram, pois, à Seleúcia, que era o
porto da Antioquia de Síria. Embarcaram-se e chegaram à Salamina.
depois de terem "atravessado a ilha inteira" (Atos, 13, 6), chegaram
à Pafos, ao outro extremo de Chipre. Excetuando contatos discretos
com os judeus da sinagoga de Salamina, quando desembarcaram na ilha, não
se detiveram pelo caminho, ao menos não em localidades, a meta real
era Pafos, e sem dúvida não desejavam que se soubesse sua
chegada antes de estar ali. Aqui tomaremos o texto dos Atos dos Apóstolos,
embora depois tenhamos que fazer precisões: "Logo atravessaram
toda a ilha, até Pafos, e ali encontraram um mago, falso profeta,
judeu, de nome Bar-Jesus*, que se achava ao serviço do pró-cônsul
Sergio Paulo, varão prudente. Este fez chamar Bernabé e Saulo,
e manifestou o desejo de ouvir a palavra de Deus. Mas Elimas, o mago -que
isso significa este nome- lhes opunha e procurava se separar da fé
ao pró-cônsul. Mas Saulo, chamado também Paulo, cheio
do Espírito Santo, cravando nele os olhos, disse-lhe: "Homem
cheio de todo engano e de toda maldade, filho do diabo, inimigo de toda
justiça, não cessará de torcer os retos caminhos do
Senhor? Agora mesmo a mão do Senhor cairá sobre ti e ficará
cego, sem ver a luz do sol por certo tempo". No momento apoderaram-se
dele as trevas, e procurava provas quem lhe desse a mão". (Cf.
Atos dos Apóstolos, 13, 6-11.)
*[Esse nome significa "filho de Jesus", em hebreu: bar-Ieshuah.]
Admiremos antes que nada a mansidão perfeitamente "cristã"
do chamado Saulo-Paulo. Ao lhe faltar a eloqüência e a dialética
(embora o Espírito Santo se expressasse por sua boca), teve que replicar
cegando àquele homem fiel à religião de sua infância.
E também aqui, como no assassinato de Sefira e de Ananias por parte
de Simão-Pedro e seu jovem guarda, continua o Espírito Santo
quem se erige em verdugo.
Mas a continuação é ainda mais surpreendente: "Então
o pró-cônsul, ao vê-lo, acreditou, maravilhado na doutrina
do Senhor". (Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 12.)
Admirável doutrina, já que prefigura o mar de bem os procedimentos
da Inquisição! Assim será como mais tarde o jesuíta
Anchieta poderá dizer: "A espada e a vara de ferro são
os melhores instrumentos da propagação da fé".
Para converter a um romano culto, amigo das ciências e das artes,
embebido de toda a filosofia antiga, e sobretudo de sua tolerância,
comum a todo mundo antigo!
Poderia acreditar-se que nosso pró-cônsul Sergio Paulo, sendo
magistrado romano, ignora as leis do Império e a terrível
repressão que levam a cabo para a bruxaria e a magia criminais, sortilégios,
malefícios, etc. Pois, evidentemente não! Mas o escriba anônimo
que compilará e adornará, censurando-os ao mesmo tempo, no
século IV, os documentos primitivos, sim que as ignora, ou as esqueceu
voluntariamente no curso de sua redação. Porque, recordemo-lo:
a Lei das Doze Pranchas condenava a morte a todo cidadão, inclusive
romano, culpado de ter prejudicado, com feitiços ou com palavras
encantadoras, maldições ou sortilégios materiais, etc.,
às pessoas, aos animais domésticos ou às colheitas.
E Augusto, Tibério e logo Nero confirmaram com novos decretos o vigor
das antigas leis romanas contra a magia negra.
E, apesar de tudo, diante do pró-cônsul Sergio Paulo, Saulo-Paulo
pode infligir impunemente a cegueira a seu oponente, mediante palavras de
maldição indiscutíveis, sem que o chamado pró-cônsul
tome a defesa de seu amigo, o judeu Elimas-bar-Jesus, e aplique imediatamente
com todo rigor as leis romanas habituais, essas leis que justamente ele
tem como missão fazer respeitar e aplicar. Pior ainda: "Então
o pró-cônsul, ao vê-lo, acreditou, maravilhado da doutrina
do Senhor". (Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 12.)
Notem-se, pois! Esse milagre é ainda maior!
A verdade é mais singela, e também mais sórdida, como
sempre. A Saulo-Paulo, personagem muito equívoco aos olhos dos zelotes,
tendo em conta seu passado, lhe confiou uma missão para provar sua
sinceridade e seu valor: suprimir a um adversário, bem situado na
corte de um pró-cônsul romano. Continuando, ao estar suficientemente
comprometido, Saulo estaria em mãos de nossos sicários, e
não poderia voltar-se atrás. E essa missão consistiria
em assassinar ao Elimas-bar-Jesus. Mas o atentado fracassou em parte e,
a conseqüência provavelmente de uns golpes insuficientes ou mal
dados, Elimas-bar-Jesus ficaria simplesmente cego. Há numerosos casos
em que isto se produziu, especialmente nos campos nazistas de deportação,
onde alguns traumatismos cerebrais conduziriam uma paralisia ocular.
O assunto fracassou, portanto, em parte, e por isso, por prudência,
João chamado Marcos se separará logo de Saulo e de Bernabé.
Os três se embarcarão imediatamente de Pafos; não é
questão de retornar para visitar a comunidade judia da Salamina,
têm que atuar depressa. Quanto ao Sergio Paulo, pró-cônsul
com classe pretoriana, Plinio não menciona absolutamente, e com razão,
sua pretendida conversão ao cristianismo, quando fala dele em sua
História Natural, nos livros I e XVIII. Sem dúvida mobilizou
à todos os soldados romanos sob suas ordens detrás de nosso
"comando" zelote. Por outra parte, Saulo, que depois de sua proeza
parece que assumiu o mando do trio, trocou também de identidade.
A partir da expedição ao Pafos, tomará o nome de Paulo
(em grego Paulos), em lugar de Saulo. Coisa fácil. O que devia ser
então um salvo-conduto proporcionado pelas autoridades romanas, para
passar de uma província do Império a outra? Provavelmente
um título de formato reduzido, sobre papiro ou pergaminho. Resultou
fácil transformar o nome primitivamente inscrito: SAVL, no PAVLVS.
E assim, quem poderia identificar a esse homem de nome latino, que falava
grego, a partir de agora originário de Tarso, em Cilícia,
com um judeu (que sua desafortunada circuncisão lhe obrigou a ser)
ao que busca a polícia romana no Chipre?
Melhor ainda, mais tarde, sua volta à Jerusalém, e para escapar
a toda identificação, apara os cabelos, sob o falacioso pretexto
de um voto, e se mesclará com outros quatro peregrinos que se acham
no mesmo caso. E para maior segurança, carregará em seu nome
e por eles com gastos da cerimônia (cf. Atos dos Apóstolos,
21, 24). Coisa que, de fato, representa o pagamento de sua cumplicidade,
como resulta dessa mesma passagem dos Atos: "Mas ouviram que ensina
aos judeus da dispersão a renunciar ao Moisés, e lhes diz
que não circuncidem a seus filhos nem sigam os costumes judaicos.
O que fazer, pois? Seguramente saberão que chegou! Faz o que vamos
dizer [...]" Há entre nós, quatro homens, que fizeram
voto; toma-os contigo, purifica-se com eles e lhes pague os gastos para
que lhe raspem a cabeça. E assim todos conhecerão que não
há nada de quanto ouviram sobre si, mas você também
segue na observância da Lei." (Cf. Atos dos Apóstolos,
21, 21-24.)
É evidente que as acusações imputadas à Saulo-Paulo
são verídicas, combate a circuncisão e os costumes
judaicos. E também é evidente que essas precauções
que lhe aconselham tomar seus discípulos locais não são
outra coisa que uma estratégia de guerra. Todo esse parágrafo
destila duplicidade. Para Saulo-Paulo trata-se de poder rapar a cabeça,
quer dizer, de trocar de fisionomia, fazendo uso de um motivo altamente
válido aos olhos dos judeus de Jerusalém. Depois, longe da
cidade, nas outras províncias, isto lhe permitirá trocar mais
completamente ainda de fisionomia, barbeando-se a seguir a barba e o bigode.
Por outro lado, os sacrifícios rituais impostos pela culminação
de um voto de nazireato eram muito custosos; encontram-se com detalhe no
Livro dos Números (6, 13-21). Mas desde quando é Paulo um
nazir? Jamais se falou isso, e seria desconcertante imaginar que este homem,
que em todas partes prega contra os costumes da lei mosaica fizesse semelhante
voto, que lhe impunha especialmente não beber vinho, nem vinagre,
nem suco de uva, nem comer uva, nem morango nem uva-passa, não aproximar-se
de um morto, etcétera.
Na realidade, nosso homem usava os cabelos longos, como era habitual naquela
época e naquelas regiões (Nabatea, Iduméia, Judéia,
etc.), mas enquanto um nazir não os cortava jamais durante o tempo
de seu nazireato, é seguro que Saulo-Paulo os cortava "à
grega", conforme era costume na Iduméia. Em lugar de ser "hirsuto"
como um verdadeiro nazir, levava simplesmente os cabelos "longos",
cortados à altura dos ombros. As placas de barro vidrado decoradas
de Medinet-Abou mostram beduínos e sírios penteados igual.
Pelo contrário, os romanos levavam o cabelo curto. Esta será
uma coisa mais que se reprovará ao Nero: ter renunciado ao severo
corte romano para pentear-se "à grega" e "ao judeu".
Mas Saulo-Paulo, por prudência, agora prefere ter aspecto de romano,
ao alegar sem cessar seu título de civis romanus. E além disso,
o homem de Pafos ao que procurava a polícia da ilha tinha os cabelos
longos... Porque temos que voltar para nossos três cúmplices.
Aqui temos, pois, a nossa equipe de homens apressando-se a abandonar a ilha
de Chipre. Logo compreenderemos por que vão dirigir-se para a Panfilia:
"De Pafos navegaram Paulo e os seus, chegando ao Perge da Panfilia,
mas João, chamado Marcos, separou-se deles e voltou para Jerusalém".
(Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 13.)
Esta separação pode ser uma simples medida de prudência.
Em efeito, estavam procurando três homens seguindo um mesmo itinerário.
E já não ficavam mais que dois em um, e um só em outro.
Uns se vão por terra, o outro por mar. Isto também pode significar
o medo de João, chamado Marcos, a ser miserável a outra aventura.
Esta última hipótese é a mais provável, já
que Paulo (demos seu novo nome) guardará sempre rancor ao Marcos
por este abandono, e inclusive mais tarde se zangará com Bernabé,
por rancor contra Marcos: "Algum tempo depois, Paulo disse ao Bernabé:
"Voltemos a visitar os irmãos por todas as cidades em que anunciamos
a Palavra do Senhor, e vejamos como estão". Mas Bernabé
queria levar consigo também João, chamado Marcos. Mas Paulo
julgava que não deviam levá-lo, por quanto os tinha deixado
desde a Panfilia, e não fora com eles à obra. Produziu-se
tal exacerbação de ânimos, que se separaram um de outro,
e Bernabé, tomando consigo ao Marcos, embarcou-se para Chipre, enquanto
que Paulo, levando consigo ao Silas, partiu encomendado pelos irmãos
à graça do Senhor". (Cf. Atos dos Apóstolos, 15,
36-40.)
Não obstante, expor uma questão embaraçosa: no versículo
23 do mesmo capítulo nos precisaram que tal Silas, "que é
também Silvano" (I Timóteo, 1, 1; II Timóteo,
1, 1; II Colossenses, 1, 19; I Pedro, 6, 12) -outro agente secreto com múltiplos
identidades - voltou para Jerusalém. Como pode estar ainda na Antioquia,
onde se desenvolve esta briga entre Paulo e Bernabé?... Que o entenda
quem pode.
Seja o que for, uma vez desembarcados em Perge de Panfilia, procedentes
de Pafos, e depois de que João, chamado Marcos, abandonou-os assim.
Paulo e Bernabé saíram desta cidade e tomaram rumo para o
norte do país, e por conseguinte para o centro da Ásia Menor.
Remontando o curso do Cestro de águas tumultuosas, chegaram primeiro
a Adada, logo a Antioquia de Pisidia (que não terá que confundir
com a Antioquia de Síria). Tiveram que necessitar pelo menos duas
boas semanas para percorrer os cento e oitenta quilômetros que representa
o trajeto de Perge à Antioquia de Pisidia, carregados de mantimentos
e de objetos de acampamento, e às vezes inclusive de água.
Este caminho, pista de cavalaria, afundava-se primeiro nos desfiladeiros
selvagens de Cestro, de águas ruidosas, logo, remontando progressivamente
para a alta meseta de Pisidia, elevava-se a mais de mil metros de altitude,
rodeando altos topos coroados de neve, atravessando vastas extensões
desertas, cobertas de espesso bosque, sem pontos de referência, e
correntes selvagens, cujos vaus eram desconhecidos, ou inclusive inexistentes.
Esta região, infestada de bandidos e de escravos fugitivos que se
reuniram com seus bandos, todos eles sem nada a perder e desejosos de evitar
a qualquer preço a crucificação final, era tão
pouco hospitalar como um deserto, tanto durante o dia como durante a noite,
por causa das hienas e os lobos. Quer dizer, que o viajante ali arriscava
todo dia sua vida, e em conseqüência tinha que manter-se em contínuo
estado de alerta. E o que foram fazer lá, ao menos oficialmente,
e se dermos crédito ao piedoso embusteiro dos Atos dos Apóstolos,
Paulo e Bernabé? Pois simplesmente levar a boa palavra do Senhor.
E sem dúvida aos bandidos, aos escravos fora da lei, sem esquecer
às hienas e aos lobos, adiantando-se assim em doze séculos
ao doce Francisco de Assis.
Confessaremos que se esta saída de Pafos, esta separação
dos cúmplices, e esse retorno por regiões tão pouco
hospitalares não se parecem com uma fuga (justificada pelo atentado
cometido sobre o amigo e conselheiro do pró-cônsul Sergio Paulo)
é que Paulo e Bernabé careciam então de julgamento.
Da Antioquia de Pisidia foram até Iconio, por um caminho que atravessava
ainda altiplanos desérticos, estepes pantanosos, ao longo de quase
cento e cinqüenta quilômetros, e sempre com o inevitável
carregamento de mantimentos, de objetos de acampamento e uma reserva de
água. Depois de uma breve estadia em Iconio, e em vista da acolhida
judaica, viram-se uma vez mais obrigados a fugir, e chegaram às cidades
de Lycaonia, Listra e Derbe. Em Listra foi onde supostamente lapidaram Paulo
fora da cidade, mas a seguir Bernabé o reanimou. Como esta lapidação
sancionava uma acusação de blasfêmia, tinha em seguida
que pendurar o cadáver pelas mãos, uma vez bem constatada
sua morte (cf. Talmud: Sanedrim, VII, 4). Quer dizer, que a lapidação
de Paulo em Iconio é muito duvidosa, quanto mais que o privilégio
do supremo sacerdote nesta matéria não podia estender-se a
uma comunidade judia puramente local da Diáspora.
Paulo e Bernabé voltaram então sobre seus passos, e passaram
de novo (muito discretamente desta vez, seguros) por Listra, Iconio, Antioquia
de Pisidia e chegaram à Perge, desceram ao porto de Attalia, e de
ali embarcaram para Seleúcia, que era o porto de Antioquia de Síria.
Observar-se-á que não voltaram a passar pela ilha de Chipre,
onde supostamente tinham constituído uma comunidade em Salamina e
convertido ao excelente pró-cônsul Sergio Paulo, que jamais
voltou a ver esse Paulo que lhe fizera ganhar a vida eterna ao lhe converter.
Esta prudência de nossos dois aventureiros é, com efeito, muito
significativa.
Parece ser, por certo, que o mais comprometido era Paulo, já que
Bernabé retornaria mais tarde discretamente ao Chipre para vender
ali a propriedade que possuía, mas o fará com João,
chamado Marcos, e Paulo se negará a segui-los; nunca é bastante
prudente. E chegará à Cilícia através de Síria,
viagem longa, cansativa e perigosa. (Cf. Atos dos Apóstolos, 4, 36,
e 15, 37.)
Uma vez aqui, vejamos como estamos. Este assunto de Pafos, o atentado contra
o amigo e protegido do pró-cônsul, o judeu chamado Elimas-bar-Jesus,
é o primeiro expediente aberto pela polícia romana contra
um judeu chamado Saulo, ou ao menos um idumeu com tal nome. Este expediente
é muito grave, implica a pena de morte, inclusive para um cidadão
romano.
Logo se abrirá um segundo expediente, em resposta às queixas
do Sanedrim e dos judeus de Jerusalém, mas contra um tal Paulus.
Compreenderá acusações de blasfêmia e sacrilégio,
o que implica um julgamento de ordem judaica, e uma acusação
política: agitação mantida um pouco por toda parte,
em favor de um movimento messianista dirigido por um tal Jesus-bar-Juda,
crucificado pelo procurador de Roma Poncio Pilatos por rebelião contra
César, e que o chamado Paulo afirma que ressuscitou e que continua
vivo. Esta acusação está confirmada pelo decreto de
Claudio César no qual expulsa aos judeus de Roma, porque se revoltam
sem cessar em nome desse Jesus, chamado também "Chrestos".
Esse segundo expediente, graças às altas relações
de Paulo com o tribuno Claudio Lisias e com o procurador Antonio Félix,
transformar-se-á em um elogium muito favorável. Desgraçadamente,
a peça desaparecerá no naufrágio do navio que conduzia
Paulo à Roma. E seguirá um terceiro expediente, imensamente
mais grave, e que implicava ao Paulo em uma conspiração contra
César, neste caso Nero, seguido de um quarto, referente à
suas responsabilidades no incêndio de Roma. E estes dois últimos
expedientes serão os que anunciarão o final de nosso extraordinário
aventureiro. Vamos agora estudá-los com detalhe.
17 - As provas de Saulo-Paulo
O infortúnio, igual à piedade, pode converter-se em um costume.
Graham Greene, O poder e a glória
Fica um problema por examinar: o das provas supostamente sofridas por Saulo-Paulo
no curso de suas campanhas de propaganda. O menos que pode dizer-se é
que se adjudica um bonito papel, e que, na realidade, asseguro que foi muito
diferente. O que nos diz? "Combati contra as feras, em Efeso..."
(Cf. I Epístola aos Coríntios, 15, 32.)
Se tomarmos os Atos dos Apóstolos nas passagens que relatam a permanência
de Saulo-Paulo nesta cidade, constataremos que não há nada
disso. Basta relendo os Atos (19, 1-40), e lá se vai nosso homem
acusado de umas tentativas de arruinar o tráfico local (a fabricação
e a venda de efígies de Diana de Éfeso), e livrar-se disso
graças à discreto amparo (um a mais) dos asiarcas da cidade.
Também aqui seu título de cidadão romano o protegeu
oficialmente; os asiarcas, com efeito, eram escolhidos cada ano pelas cidades
da província da Ásia. Estavam encarregados de presidir o culto
de Roma e do imperador, assim como os jogos celebrados em tal ocasião;
quando expirava seu cargo, conservavam o título. Como a função
conduzia grandes gastos de representação, exigia dos candidatos
uma situação social muito elevada. Os magistrados e sacerdotes
de Roma não podiam lançar às feras, com os condenados
a morte de origem mais baixa, a um cidadão do Império. Isso
teria constituído um escândalo que lhes sairia muito caro,
se se tinham em conta as leis romanas.
Por outra parte, a frase antes mencionada parece insinuar que Saulo-Paulo
combateu vitoriosamente contra as feras. Agora bem, tais combates não
eram já os dos condenados a morte, que eram lançados diante
das feras desarmados; então se tratava de especialistas chamados
venatores que, embora menos considerados que os gladiadores clássicos,
exerciam um ofício com toda regra, que requeria uma técnica
de combate, segundo a fera a qual enfrentavam, e esses venatores levavam
então uns nomes de guerra, justificados por sua reputação
aos olhos do público. Emprestar a Saulo-Paulo esta possibilidade
é absolutamente desatinado.
O mesmo acontece, pois, com a afirmação em que nos diz com
aprumo: "Fui sacado da boca do leão". (Cf. II Epístola
ao Timóteo, 4, 17.) Quando escreve esta carta a seu lugar-tenente,
que então estava em Efeso, acha-se pela segunda vez em Roma, transladado
de Troas no ano 66. Está encerrado na custódia pública,
esperando o final de seu processo. Compareceu já ante os magistrados
romanos por todos os fatos que lhe reprovam. Mas não correu o perigo
de que jogassem aos leões, dado que ainda ignora a sentença
que será pronunciada contra ele. Por outra parte, não corria
tampouco tal risco de execução durante seu primeiro processo
ante o tribunal de César a conseqüência de sua "apelação",
já que era cidadão romano, e o suplício das feras não
se aplicava jamais a essa aristocracia do Império.
Vamos agora aos maus entendimentos dos quais se queixa aqui e lá.
Declara-nos: "Cinco vezes recebi dos judeus quarenta açoites
menos um, três vezes fui açoitado com varas, e uma vez fui
apedrejado". (Cf. II Epístola aos Coríntios, 11, 24-25.)
A flagelação, entre os judeus, efetuava-se com a ajuda de
um simples látego de couro, e não cheio de bolas como os látegos
romanos, e com o fim de não correr o risco de passar-se jamais dos
quarenta golpes, o máximo da pena, o verdugo não devia golpear
as costas do condenado mais que trinta e nove vezes. (Cf. Talmud'. IV, Nezikim-Makkoth.)
Pois bem, teríamos muitas dificuldades em encontrar essas cinco flagelações
no relato de sua vida, como nos contam isso os Atos dos Apóstolos
e suas Epístolas. Não estão!
Além disso, em uma passagem dos Atos Saulo-Paulo sublinha que, como
cidadão romano, não pode ser submetido ao açoite ou
às varas: "Está-lhes permitido açoitar com varas
a um cidadão romano que nem sequer foi condenado?". (Cf. Atos
dos Apóstolos, 22, 25.) E, efetivamente, um cidadão do Império
não podia nem ser flagelado nem passado pelas varas, já que
a lei romana o proibia. Então, como imaginar que o que lhe estava
proibido a um procurador romano, a um tribuno das coortes, ou a um magistrado
urbano, fora admitido por um sinagogarca judeu, inferior, por conseguinte,
na hierarquia social? Em que sanções não tivesse incorrido
de ter humilhado assim a um civis romanus!
Quanto mais que a qualidade deste vinha testemunhada por um pergaminho assinado
pela alta autoridade que a tinha atribuído, uma vez que reconhecia
que os direitos de acesso a tal privilégio tinham sido pagos pelo
beneficiário. Não bastava afirmando que alguém era
cidadão romano para que os magistrados de Roma o reconhecessem inocentemente,
sem provas. Ao reverso, os sinais de infâmia social, seguidas de condenações
graves ou de servidão, estavam marcadas na carne mesma do desgraçado
que era objeto dela: incisão ao vermelho vivo para o escravo, que
ia do ombro esquerdo ao direito, passando pela nuca, onde era mais profunda,
como um jugo; um olho esvaziado e curva rachada com um ferro candente para
o condenado a minas; marca de ferro candente sobre a frente para o escravo
fugitivo apressado de novo; dedo ou mão atalho para o ladrão
reincidente; sinais das varas ou dos látegos, nas costas, para todos
os antigos condenados, civis ou militares.
O liberto, que era indevidamente um antigo escravo, levava pois a incisão
sobre a nuca. Para provar sua qualidade de homem livre devia possuir a ata
de alforria que lhe entregava seu antigo dono, peça deste modo de
pergaminho. Esta peça anulava então a marca, que ele conservava
apesar de tudo em sua carne até a morte.
Quer dizer que Saulo-Paulo, por seu berço principesco, não
corria absolutamente nenhum risco de sanção corporal, quanto
mais que em tudo seus ensinos se mostrava um ciumento defensor da legalidade
romana e um ardente sustento da hierarquia social tal como estava estabelecida
pelos azares do berço ou pela fortuna.
Quanto a sua pretendida lapidação pelos judeus vindos da Antioquia
de Pisidia e de Iconio a Listra, na província de Lycaonia (Atos dos
Apóstolos, 14, 19-20), seguiria indevidamente pendurado o cadáver
até o pôr-do-sol, e logo depois de sua inumação,
segundo os termos da legislação judia. E não houve
nada disto.
Além disso, o jus gladii não podia ser concedido aos judeus
da Diáspora em uma cidade da importância de Listra, que era
uma simples colônia romana estabelecida sobre os pendentes de Kara
Dagh, um imponente vulcão apagado, e cujas ruínas se acham
hoje em dia nas cercanias de Katyn Serai. Em Listra não havia nem
sequer sinagoga, e a cidade estava sob a vigilância de um tribuno
das coortes, magistrado militar que não tolerasse que um partido
de judeus obscuros, estranhos à cidade e procedentes de Antioquia
de Pisidia e de Iconio, não só criassem a desordem e a rebelião
em sua guarnição, mas sim pretendessem dar morte a um cidadão
de Roma. Toda esta história é uma invenção dos
escribas anônimos do século IV. Uma mais.