O
Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
O
costume romano consiste em tolerar certas coisas e em silenciar outras..
Gregorio VII, carta de 9 de março de 1078 ao Hugues do Die, legado
pontifício
Advertência
A História é uma ciência que, para merecer esse qualificativo,
tem a obrigação de ser exata, de repousar sobre documentos
e sobre sua confrontação, sobre severos controles cronológicos
e sobre dados que possam provar-se.Freqüentemente a lenda não
é outra coisa que sua deformação, ampliada por amor
ao maravilhoso, e alimentada às vezes expressamente, em proveito
de interesses do mais materiais.Assim, a História é para os
adultos, e a Lenda para aqueles que ainda não o são, ou o
são de forma incompleta. Foi por isso que o acadêmico Marcel
Pagnol pôde dizer em seu estudo definitivo sobre Le Masque de Fer:
"O primeiro dever do historiador consiste em restabelecer a verdade
destruindo a Lenda. Sem ele, a história dos povos não seria
mais que um extenso poema, onde os fatos, engrandecidos e dramatizados pela
imaginação das multidões, enormemente embelezados ou
inventados pelos aduladores dos reis, brilhariam, em cor de ouro e de sangue,
em meio de uma luminosa bruma".Nestas páginas às vezes
se encontrarão entrevistas de documentos repetidas. Estas nos pareceram
indispensáveis, já que cada um dos capítulos desta
obra constitui um todo, e o mesmo argumento pode ver-se requerido como testemunho
em diferentes circunstâncias e com diferentes fins. E esse argumento
pode havê-lo esquecido o leitor...Como dizíamos em nossa obra
Jesus ou o segredo mortal dos templários, [Martínez Roca,
S. A., Barcelona, 1982] uma verdadeira lavagem de cérebro dogmático
impregnou, pelas boas ou pelas más, durante mais de quinze séculos,
a psique hereditária do homem ocidental, e freqüentemente, sem
que ele se desse conta, tem-no feito mais ou menos refratário à
crítica, ou inclusive à lógica mais evidente.Contra
essa verdadeira tortura intelectual, que ainda segue vigente em nossa época,
o historiador desejoso de servir à verdade se vê obrigado a
utilizar os mesmos argumentos. E se desculpa de antemão por isso,
embora, como dizia também Marcel Pagnol: "Essas repetições
não são elegantes, mas este livro não é uma
obra literária; não é mais que a instrução
de um caso criminal na qual a precisão e a oportunidade de uma observação
têm freqüentemente muito mais importância que a pureza
do estilo". O que acrescentar à estas palavras?
Robert Ambelain Junho de 1970
Introdução
Filho do desejo ou filho do tumulto?
Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número de guerreiros,
e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os fazia gozar de
uma grande consideração. Mas eram violentos e sempre estavam
dispostos a oprimir aos mais débeis...
Flavio Josefo Antigüidades Judaicas, XX, 8.
Guinneth-Saar, o "Jardim dos príncipes"...
Os rabinos denominam a este vale Kinnereth, segundo o antigo nome que figura
em suas escrituras, mas os kanaim, ou zelotes, por ódio aos incircuncisos
privilegiados que têm ali suas ricas mansões, chamam-no Gehenne-Aretz
(pelo que os gentis fizeram Genesa-ret, devido a uma má pronúncia),
quer dizer o "vale da aridez", do mesmo modo que denominam "negrume"
a Mentis, a capital religiosa do odiado Egito, quando o mesmo nome em egípcio
hierático significa "brancura". Trocadilho, inversão,
que de uma vez quer ser maldição, mas que não pode
fazer esquecer o velho dict rabínico:
"Dos sete mares que criou o Eterno, o do Kinnereth constitui seu maior
gozo...".
Neste vale afortunado, situado na borda ocidental do mar da Galiléia, crescem livremente as palmeiras, os limoeiros, as laranjeiras, que mesclam seus aromas ao dos altos eucaliptos prateados. Todas as árvores frutíferas (ameixeiras, damasqueiros, pessegueiros e figueiras) associam-se às oliveiras para oferecer ao homem o benefício de seus saborosos frutos, como se temessem ser desbancados por seus irmãos aristocráticos (adelfas rosas e brancas, com perfume de mel, aloés, agaves) e todas as variedades de flores silvestres (Narcisos, anêmonas, etc.). E quando chega a primavera, logo anunciada pela presunçosa amendoeira, prepondera por cima de todos esses aromas o aroma voluptuoso da acácia silvestre, a árvore que, segundo Salomão, vela sobre as cinzas de Adonirão, prodigioso demolidor das colunas do Templo e marido secreto do Baikis a misteriosa.
Em meio de toda esta flora embriagadora se cruzam, a beira da borda, os rosados flamencos, os cormoranes, as frangas de água, os patos selvagens e os pelicanos; às vezes inclusive alguns íbis avermelhados, aventurados longe do piedoso Egito. Durante o dia, muito acima no céu, o vôo da águia real se cruza com o do lento abutre, e quando chega a noite com sua luz rosada, nos aromáticos arbustos, compostos de zimbros, frutos e arbustos, desliza-se silencioso e indolente, mas com a vista e o ouvido à espreita, o ágil e majestoso leopardo.
Mar adentro,
para o norte, umas velas brancas imóveis esperam que o vento da tarde,
procedente do mar de Fenícia, muito próximo, ao oeste, permita
aos pescadores desdobrar sua destreza de marinhos e conduzir ao Cafarnaúm
e Betsaida quão pescados suas redes capturaram.
Este é o quadro que nos oferece de dia, no ano 8 do reinado de Tibério
César, o mar da Galiléia e suas encantadoras praias ao redor
da desembocadura do Zaimon, que constitui o eixo do vale do Guinneth-Saar.
Mas uma vez de noite, o ambiente é completamente distinto.
À hora em que começa este relato de restituição,
um pouco de luz se reflete sobre as águas turvas do lago, pois a
lua, em seu quarto minguante, ilumina vagamente a cadeia montanhosa que
borda a orla oriental. Inumeráveis estrelas salpicam com seu brilho
o escuro veludo azul do céu da Galiléia, e os pastores, se
conhecerem as constelações, podem ver subir por oriente ao
Ibt-al Jauza, o Ombro do Gigante, estrela que os gentis chamam Betelgeuse,
enquanto que Yed-Alphéraz, o Ombro do Corredor celeste, a quem os
mesmos denominam por então Merkab, culmina no zênite. A noite
é fresca e suave, e a umidade se condensa pouco a pouco.
Em uma pequena península que entra nas águas se ergue uma
massa escura. Elevados muros, de mais de quarenta e dois metros de altura,
em ligeiro pendente que termina em um caminho de ronda, sustentam e isolam
um promontório coberto por um amplo terraço lajeado. O único
acesso possível constitui uma estreita porta de bronze, que se abre
para uma escada interior esculpida na rocha. Sobre esse terraço se
eleva uma grande mansão de tipo grego, com três pisos de pérgolas
sobrepostas. Ao redor das colunatas de sustento destas últimas se
enroscam e sobem plantas aromáticas: jasmim e madressilva. Está
aberto um único batente para a brisa noturna que chega das montanhas
da borda oriental, e dessa abertura sai um tímido feixe de luz avermelhada,
que se estende sobre a terraço como uma toalha de sangue seca. A
silhueta escura de um arqueiro da Nubia em cócoras e imóvel
frente ao parapeito, como uma estátua, é o único que
rompe a monotonia do lugar.
E a intervalos quase regulares, com a monótona cadência de
um eco, eleva-se um clamor no silêncio da noite, um grito que parece
caminhar com o passar do caminho de ronda, que decresce e que logo volta
a começar crescendo para terminar muito perto: "Schemero...
Schemero... Schemero...". São os sentinelas, que intercambiam
o grito de alerta regulamentar, um detrás de outro, a fim de manter-se
em contato e acordados.
É que esta mansão é a de Cypros, princesa herodiana,
a segunda que leva este nome, esposa do Antípater II, sobrinho de
Herodes, o Grande, e seu isolamento a quase uma milha romana de distância
de Tiberíades, a nova cidade que erige em honra do imperador Tibério
seu meio-irmão Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia, exige
uma severa vigilância diurna e noturna.
Porque não é estranho ver descender dos vales perdidos da
alta Galiléia os clãs de montanheses peludos e barbudos, armados
com lanças, com as curtas sicca e o pequeno escudo redondo. Estes,
drogados pelo boanerges*, o "filho do trovão", o terrível
cogumelo alucinógeno, caem sobre as ricas residências da dinastia
Iduméia e de seus mais importantes oficiais, tanto por amor à
pilhagem e à guerra como por ódio aos "incircuncisos".
Porque entre os galileus é onde se encerravam principalmente aqueles
a quem os ocupantes romanos chamam sicarii, os gregos de Decápolis,
zelotes, e os judeus das diversas seitas, kanaim.
*[Boanerges: antigo termo acádio que significa "filho do trovão"
que designa um certo alucinógeno, a Amonita muscaria, que por aparecer
imediatamente depois da tormenta, foi denominada assim pelos povos primitivos
da Suméria e Acádia. Utilizavam-na para obter visões.
Jesus, Santiago e João fizeram uso dela, como provam os evangélios:
Marcos, 3, 17 e 21. (Cf. JOHN MARCO ALLEGRO, Le Champignon sacre et la Croix,
Albin Michel, Paris, 1971.]*
Por isso os arqueiros núbios e os guardiães sírios
que formam a pequena guarnição da mansão de Cypros
e do Antípater (uns cinqüenta homens, no máximo) têm
sempre pronta a fogueira para dar o sinal de alerta, que lhes bastará
acendendo de noite ou fazer fumegar durante o dia, a fim de avisar à
guarnição de Tiberíades, apenas se deixe ouvir ao longe
o ritmo surdo e lancinante dos tambores de combate kanaítas.
Esta noite sua atenção está mais alerta que de costume,
já que se assinalou uma importante concentração zelote
na borda sul do mar da Galiléia, lá onde o Jordão reata
seu curso. Entre esses homens, os observadores reconheceram a vários
filhos de Judas o Gaulanita, e entre eles o famoso Ieschuah. De maneira
que os arqueiros negros da guarda conservam o arco pronto, com sua corda
ao redor do ombro direito, e aljava de couro à costas, ao alcance
da mão, bem provido de flechas de ferro denteado; de sua cintura
pende, além disso, a curta e longa espada de regulamento. Os mercenários
sírios, por sua parte, vão armados de uma grossa lança
de ferro, uma longa espada e um escudo de madeira, recoberto de couro de
rinoceronte ou de hipopótamo, peles vindas do alto Nilo pela rota
das caravanas; assim estão a prova de dardos e lanças. Todos
levam um casco de metal redondo, sem viseira nem elmo.
Mas tudo parece em calma. Demétrios, o chefe da guarda, acaba de
voltar de sua ronda com alguns homens e dois leopardos presos com correias.
É que esta noite não é como as outras, e Demétrios,
um grego da próxima Decápolis, sabe melhor que ninguém:
Cypros, esposa de Antípater, vai dar a luz a um novo filho. O primeiro
foi uma menina. E se a opinião da matrona é acertada, o acontecimento
se produzirá antes da alvorada. Por isso Demétrios estendeu
sua ronda até as tendas montadas perto do lago, onde acampam os arqueiros
negros e os lançadores sírios que não se acham esta
noite de serviço na mansão. Penetremos com ele nesta.
Em uma ampla estância, cuja porta está totalmente aberta sobre
o terraço, lâmpadas de bronze providas de azeite de nafta prodigalizam
uma luz dançarina. Um tripé de prata sustenta uma chaminé
de bronze com brasas avermelhadas sobre as quais se jogaram aparas de madeira
de sândalo, e sua azulada e aromática fumaça se eleva
devagar e obliquamente para a porta aberta. Grossas tapeçarias vindas
de muito longe, uns de Catay e outros da Ecbatana, Edesa ou Nyssa, atiradas
ao acaso, uns sobre os outros, cobrindo as largas lajes de mármore
branco. Ao longo das paredes se alinham irregularmente cofres de madeiras
preciosas, com maravilhosas incrustações de madrepérola
ou de marfim. Altos e pesados cortinados de linho, feitos de vários
tecidos grossas juntas, e cujos bordados e matizes harmonizam com o destino
e a decoração da estância a que estão encarados,
separam a câmara principesca das salas fronteiriças.
Sentadas no chão, sobre seus calcanhares, algumas faxineiras judias
ou beduínas esperam em silêncio. A matrona acaba de apalpar
uma vez mais o abdômen da parturiente. Esta se acha estendida, com
sua camisola de seda carmesim levantada até as axilas. Possivelmente
seja formosa, mas seus traços, deformados pela angústia e
as primeiras dores, não permitem julgá-lo neste momento. O
leito de bronze é alto; suas largas tiras de couro cheiroso, que
apenas umas grossas mantas separam dos rins da paciente, não fazem
a não ser acrescentar com sua dureza os sofrimentos desta.
-Uakhaiti, retornou o senhor? -pergunta em voz baixa e cansada.
-Não, Lallah. O senhor Antípater ficou em Tiberíades,
ao lado do Tetrarca, e há poucas possibilidades de que esteja aqui
antes de que amanheça -responde a jovem.
[Uakhaiti: irmã, em árabe. Lallah: senhora, em árabe.]
A mulher suspira, logo prossegue:
-Uakhaiti, toma seu alaúde e me cante a canção da Débora,
a profetisa, o Canto da Vitória. Minha mãe, a rainha Mariamna,
fez cantar quando eu nasci, pois esperava dar a luz a um filho, e não
a uma filha, como deste modo o esperava meu pai, o rei Herodes.
[Cypros II era judia por parte de sua mãe, Mariamna, e Iduméia
por parte de seu pai, Herodes, o Grande.]
E Uakhaiti, irmã de leite de Cypros II, como indica seu apelido,
toma seu alaúde e canta:
-"Desperta! Desperta, Débora! Desperta, desperta... E clama
um canto novo... Oh, Deus! Quando Tu saíste de Seis, quando avançaste
pelos campos da Iduméia, a terra tremeu, os céus se abriram,
e os Montes se derrubaram ante Ti... Os reis vieram... Combateram... Então
combateram os reis de Canaã... Em Taanac, nas águas do Meguiddo...
Mas não levaram nenhum troféu e nenhum dinheiro... A corrente
de Kison os arrastou... A corrente dos velhos dias... A corrente de Kison...
Oh minha alma! Pisoteia aos heróis... Então os cascos dos
cavalos ressonarão na fuga... Na fuga precipitada dos guerreiros..."
*[Juízes, 5, 1-31. Débora, profetisa, esposa de Lapidot, era
então juiz em Israel. Conduziu os guerreiros de Neftali e de Zabulón
a vitória sobre os cananeos. Esse canto de guerra perpetúa
sua glória.]*
Quando expiram os últimos acordes do alaúde, a parturiente
murmura, enferma:
-Oxalá pudesse dar a luz a um menino! Segue cantando, Uakhaiti...
Segue cantando a glória futura de meu filho...
E Uakhaiti improvisa um novo canto, que evoca adiantado as grandes façanhas
do jovem príncipe que, sem lugar a dúvidas, vai nascer. Imagina,
ao longo dos anos, as expedições noturnas que levará
a cabo à cabeça de seus soldados, enquanto em sua cidade as
mulheres passarão a noite em febre, esperando, enciumadas das violações
cometidas por seus maridos. Vê a fuga precipitada dos guerreiros nabateus,
em meio aos gritos de horror dos meninos e dos gemidos das parturientes,
estralando a lombos de camelos, e as exaustivas perseguições,
de oásis em oásis. E para concluir, o incêndio do acampamento
inimigo.
Tudo isto cantava Uakhaiti com voz aprazível, sem nenhum gesto inútil,
e um tenro sorriso dançava sobre seus lábios quando evocava
as futuras matanças. E com a mesma calma que ela, as outras mulheres
batiam silenciosamente palmas seguindo um ritmo regular, a fim de criar
o acompanhamento evocador dos tambores de combate.
Durante esse tempo a matrona tinha estado muito atarefada em vistas ao iminente
parir. Primeiro atou à coxa esquerda da filha de Herodes, o Grande,
a pele abandonada por uma víbora do deserto durante sua troca.
-Quão mesmo esta pele foi expulsa sem dor, que esta mulher ponha
no mundo a seu filho -tinha murmurado em fenício.
Depois, por cima da cabeça de Cypros, fixou na tapeçaria mural
um pergaminho que tinha inscrito, em hebreu arcaico, transcrito com o cálamo
e a tinta rural por um cohén do Templo, o exorcismo tradicional contra
as diabólicas inimizades das parturientes: "Não nos atormente,
Lilith!... te afastes, Nahema!...". Mas cederiam as duas deusas do
Abismo ante a ordem de um escuro teurgo? Ou se vingariam de outra maneira
sobre o próprio menino? Converteriam-no em inimigo mortal da religião
que tinha ousado afrontar?
Por último, como o filho precedente tinha nascido morto, a matrona
tinha colocado junto à cama uma panela de barro, nova, da que tinha
feito saltar cuidadosamente o fundo. Logo que saísse a criatura do
ventre materno, e franqueasse a soleira vaginal, lhe faria passar rapidamente
por esta abertura. Desta maneira teria franqueado uma dupla soleira, e não
teria que temer franquear já outro até o término normal
de seus dias. Assim, tomaram-se todas as precauções para assegurar
à filha de Herodes, o Grande um parto feliz.
Mas enquanto se efetuavam todos estes preparativos se precipitaram os acontecimentos:
Cypros, com os traços deformados pela dor, estava dando a luz. De
sua boca torcida escapava um gemido ininterrupto, seus braços estavam
abertos em um gesto patético, e com as mãos arranhava sem
cessar os cobertores já manchados pelas águas amnióticas.
Seu tórax de pesados seios, sacudido por torções espasmódicas,
fazia esquecer o rápido vaivém de suas coxas, tão separadas
como se se tratasse de um esquartejamento, e de seus joelhos, que se levantavam
e baixavam sem descanso. Seus negros cabelos, pingando de suor gorduroso,
cobriam-lhe meio rosto, e sua boca, muito aberta, tentava conservar o ar
como em uma agonia desesperada. Por fim, os rins se arquearam bruscamente,
o ventre se curvou um pouco mais, e um clamor encheu a estância: projetado
brutalmente às mãos da matrona, acabava de vir ao mundo um
recém-nascido, e esta, fazendo-o passar pelo fundo da panela, tirava
ele para si.
Então aumentaram, estridentes, os gritos de alegria histérica
das faxineiras. Era um menino... A partir desse momento se apressaram a
liberá-lo do último laço materno, embora sem lhe lavar
o sangue uterino, segundo costume, já que com estas impurezas se
tinha que afugentar aos maus espíritos que podiam penetrar nele com
sua primeira inspiração.
-Olhe, Lallah... -disse a matrona lhe apresentando ao menino, ao que sustentava
nu frente a ela, sujeitando-o pelas axilas-. Olhe! Seu filho leva no oco
entre os rins o "signal do bandido"... Pode estar segura de que
será um temível guerreiro...
Então a mãe, apesar de sua debilidade, começou também
a lançar exclamações de alegria:
-Saúl, meu filho! Oxalá seja maior que todos eles! Aretas
pagará tributo... Os braços de suas algemas estarão
carregados de braceletes, e fará a invasão de todas as tendas,
desde Petra até o Tophel... Escutem, mulheres! Este menino arrebatará
todos os camelos a nossos inimigos, e sobre eles se levará a suas
mulheres e suas filhas, que dará como escravas a seus guerreiros...
De suas lanças fará feixes, e sobre essas espigas de morte
plantará suas cabeças! E com seus escudos lajeará os
cemitérios de nossos pais! Depois dele, as cidades de nossos inimigos
arderão, com seus palácios e seus templos...
Logo voltou a cair sobre seu manchado leito, esgotada por semelhante esforço.
Então as faxineiras voltaram para Cypros sobre seu flanco direito,
e se deixaram cair com todo seu peso sobre o quadril desta, uma detrás
de outra. Depois a enfaixaram com uma banda larga de linho, desde debaixo
dos seios até o púbis, apertando com todas suas forças.
Durante esse tempo, a matrona aplicou uma forte massagem ao crânio
do bebê, a seu rosto, lhe apertando o nariz e lhe estirando os lábios,
sem prestar atenção a seus gritos. Continuando, tal como se
tinha feito com a mãe, imobilizou-o estreitamente, como a uma múmia
egípcia, dos pés até a garganta, mantendo os braços
presos com o passar do corpo com ajuda de uma atadura larga de linho. Por
último, depois de ter extraído por sucção algumas
gotas de leite do seio esquerdo de Cypros, colocou-o junto a ela, para sua
primeira mamada, e se foi, acabada sua função. As faxineiras
se sentaram de novo sobre seus calcanhares, em silêncio.
-Assim que lhe chamará, Saúl, Lallah? -perguntou timidamente
Uakhaiti.
-Sim -respondeu a herodiana, fatigada-. Porque é um velho nome da
Iduméia, e é desejo do senhor Antípater que se chame
assim. Entre os reis que reinaram sobre o país do Edom muito antes
de que os houvesse entre os filhos do Israel, dizem nossas crônicas
que Saúl, de Rejobot, junto ao rio, reinou depois da Semia, e que
quando morreu, Baaljamán, filho de Acbor, reinou em seu lugar. Além
disso, esse nome significa "desejado", e só o Senhor dos
Céus sabe quanto desejei eu a este filho...
-Esse nome significa também "tumulto", Lallah... -prosseguiu
Uakhaiti-, de maneira que os desejos que formulou agora para seu filho provavelmente
lhe serão concedidos pelos deuses...
Logo baixou a voz e murmurou algumas palavras ao ouvido de Cypros.
-Faz passa-la -disse esta com um suspiro. Alguns instantes mais tarde, uma
mulher de idade indefinível vestida de negro, com o rosto meio velado,
penetrava na habitação. Depois de inclinar-se respeitosamente
ante o leito da herodiana, tirou de uma bolsa que levava uma tigela de terra
cozida, cheia de uma espessa capa de breu solidificado. Logo lançou
sobre as brasas da chaminé de bronze um grosso punhado de um perfume
composto por kussubra, luben, djaui e helbénah e a seguir passou
e voltou a passar lentamente o prato de barro pela aromática fumaça,
enquanto cantarolava a meia voz uma monótona salmodia. Depois retornou
junto à cama, se acocorou sobre os calcanhares, tomou a mão
esquerda de Cypros, que seguia amamentando ao recém-nascido, e se
concentrou na superfície negra e brilhante, sem deixar de cantarolar
seu encantamento. De repente, calou-se.
Seu rosto se crispou, os olhos estavam dilatados, sua mão apertava
mais convulsivamente que antes a mão da herodiana. Esta mulher era
fenícia, e a tinham feito vir em segredo desde a Ptolemaida, a antiga
Akka, (hoje Acre), porque as adivinhas corriam perigo de ser condenadas
a morte em terras de Israel. Mas ante a soma prometida, tinha cedido, e
Uakhaiti, escoltada por dois guardas sírios, tinha ido procurar vários
dias antes.
Com voz rouca, trocada, uma voz que parecia pertencer a um ser interior
e invisível, Orpa, a adivinha, falou:
-Este menino tomará as armas muito jovem... Vejo-o cavalgar com guerreiros
sendo ainda um menino... Não conhece derrotas... Quantos cativos!
Quantos cativos! Quanto sangue e lágrimas fará derramar...
Mas uma mulher se cruza em seu caminho, uma jovem... Corta-lhe o caminho...
O perde sua fortuna com os deuses... Sua glória se apaga por um tempo...
Agora é ele o açoitado, o vencido... diria que as comportas
se fecham ante ele... Não obstante, atravessa os mares... E conhece
de novo o poder. Vejo-o ao lado de um grande príncipe... Em uma cidade
imensa... E ali trata com poderosos senhores... Leva a cabo uma guerra secreta...
E vejo arder essa grande cidade... E são os homens de seu filho quem
a tem incendiado.
Calou-se repentinamente, como horrorizada.
-Fala! -ordenou Cypros-. Que mais vê?
-Nada, Lallah... -disse prudentemente a mulher-. As chamas me deslumbram,
não vejo nada mais... Quanto fogo... Mais fogo ainda... Vejo arder
aos homens...
-Mas e meu filho? -perguntou Cypros-. Que houve com ele?
-Foge... embarca-se a bordo de uma nave... vai ocultar-se muito longe da
grande cidade... Está salvo...
Cypros tinha empalidecido, e uma contração implacável
crispava seus lábios.
-Uakhaiti, chama Demétrios -ordenou. Uakhaiti tomou um maço
de madeira de ébano depositado diante de um gongo de cobre ricamente
trabalhado e o fez ressonar por quatro vezes consecutivas. Um breve instante
mais tarde, o grego aparecia à porta do terraço, acompanhado
por dois guardiães.
-Uakhaiti, diga que ordene dar-lhe cinqüenta chicotadas nesta maldita,
por ter ousado dizer que meu filho acabaria como um covarde... Depois, que
a conduza à Jerusalém, ao cohen-ha-gadol,* quem asseguro obterá
do procurador Valerius Gratus a permissão para executá-la
por bruxa...
*[Cohen-ha-gadol, em hebreu: sumo sacerdote.]
Todavia, quando os mercenários sírios capturavam-na, apesar
de sua resistência, e tentavam arrancá-la fora da estância,
a mulher, espumando de raiva, ainda achou a possibilidade de cuspir em direção
à Cypros, e gritou:
-Não lhe disse tudo! A seu filho cortarão a cabeça
na cidade que terá feito incendiar... E atirarão sua carniça
ao ossário legal...
Cypros ia responder, sem dúvida com ordens ainda mais desumanas,
quando de repente, nos grandes ciprestes que havia ali perto, uma ave noturna
ululou três vezes. Pálidas de medo, as faxineiras levantaram-se,
e Uakhaiti se lançou aos pés do leito da herodiana, murmurando:
-Lallah! Por todos os deuses! Tenha piedade de seu filho... Não agrave
esse presságio... Não irrite aos baalim... Muda, desesperada,
a herodiana não a ouvia; contemplava fixamente ao menino, que, em
seu seio, dormiu por fim.