Da imitação de Cristo e do
desprezo de todas as vaidades do mundo
Terceira parte
Capítulo
XXI
Da compunção do coração
1. Se queres fazer algum progresso conserva-te no temor de Deus; não
vivas com demasiada
liberdade mas submete os teus sentidos a uma severa disciplina e não
te entregues à vã alegria.
Dá-te à compunção do coração e
acharás a piedade; a compunção traz consigo muitos
bens que
a dissipação logo nos faz perder. É para maravilhar
que nesta vida possa ter alegria perfeita o
homem que medita e considera o seu exílio e os muitos perigos a que
está exposta a sua alma.
2. Por causa da leviandade do nosso coração e do esquecimento
dos nossos defeitos não
sentimos os males de nossa alma e rimos muitas vezes sem motivo quando com
razão
devêramos chorar. Verdadeira liberdade e alegria pura não há
sem temor de Deus e boa
consciência. Ditoso aquele que pode desembaraçar-se do impedimento
das distrações para
unir-se a Deus no recolhimento da santa compunção! Ditoso
aquele que de si aparta tudo o que
lhe pode manchar ou agravar a consciência! Peleja varonilmente; hábito
com hábito se vence.
Se souberes deixar os homens também eles te deixarão fazer
o que quiseres.
3. Não te metas na vida alheia e não te enredes nos negócios
dos grandes. Põe sempre os olhos
em ti primeiro; e repreende-te a ti mesmo de preferência a todos os
teus amigos. Não te aflijas
por não ter o favor dos homens; só deve entristecer-te o não
viver com a virtude e
circunspecção que convém a um servo de Deus e a um
bom religioso. É muitas vezes mais útil
e seguro não ter nesta vida muitas consolações, sobretudo
consolações sensíveis. Contudo, se
não temos as consolações divinas ou só raras
vezes as experimentamos, a culpa é nossa porque
não nos damos à compunção do coração
nem de todo rejeitamos as vãs consolações exteriores.
4. Reconhece-te por indigno das consolações de Deus e merecedor
de muitas tribulações. Ao
homem que se deixa penetrar da compunção perfeita o mundo
todo entra logo a parecer-lhe
fastidioso e amargo. O justo sempre acha motivo bastante para afligir-se
e chorar; porque ou se
considere a si ou pense no próximo sabe que ninguém passa
pela vida sem tribulações; e quanto
mais atentamente se considera tanto maior é a sua dor. Matéria
de justa aflição e de compunção
interior são os nossos pecados e vícios em que estamos de
tal maneira enterrados que raras
vezes podemos contemplar as coisas do céu.
5. Se mais amiúde pensaras na morte do que na duração
da vida, sem dúvida te emendarias com
mais fervor. Se meditaras também seriamente nas penas futuras do
Inferno ou do Purgatório
estou certo que suportaras de boa vontade o trabalho e o sofrimento e não
temeras nenhuma
austeridade. Mas porque estas verdades nos não penetram o coração
e amamos ainda tudo o que
nos afaga os sentidos, ficamos frios e preguiçosos.
6. É muitas vezes por fraqueza da alma que tão facilmente
se lastima nosso miserável corpo.
Ora pois com humildade ao Senhor para que te conceda o espírito de
compunção e dize com o
Profeta: "Dai-me Senhor a comer o pão das lágrimas e
a beber a água abundante de meu
pranto. (Salmos LXXIX,6).
Capítulo XXII
Da consideração da miséria humana
1. Miserável és onde quer que estejas e para onde quer que
te voltes se te não convertes a Deus.
Por que razão te inquietas por não te irem as coisas como
queres e desejas? Quem é que tem
tudo à medida de seu gosto? Nem eu, nem tu, nem homem algum na terra.
Ninguém há neste
mundo, ainda que rei ou papa, sem alguma tribulação ou angústia.
Quem está melhor?
Certamente o que pode padecer alguma coisa por Deus.
2. Na sua fraqueza e imbecilidade dizem muitos: "Que vida feliz leva
aquele homem! Como é
rico! nobre! poderoso e elevado!" Considera, porém, os bens
do céu e verás que os bens
temporais nada valem: muito incertos, são mais um fardo porque nunca
se possuem sem
temores e cuidados. Não consiste a felicidade do homem em ter abundância
de bens terrenos:
basta-lhe a mediania. Em verdade, grande miséria é viver na
terra. Quanto mais espiritual quer
ser o homem tanto mais amarga se lhe torna a vida presente, porque sente
melhor e vê com
mais clareza as deficiências da natureza humana corrompida. Comer,
beber, velar, dormir,
descansar, trabalhar, estar sujeito às demais necessidades da natureza
é, de fato, grande miséria
e aflição para o homem piedoso que deseja viver desatado dos
laços do corpo e livre de todo
pecado.
3. Muito oprimido, com efeito, se sente neste mundo, o homem interior com
as necessidades do
corpo. Por isto pede devotamente o Profeta de ver-se livre delas, dizendo:
"De minhas
necessidades, livrai-me Senhor" (Salmos XXIV,17). Infelizes os que
não conhecem a sua
miséria! e mais infelizes ainda os que amam esta vida miserável
e transitória! Porque alguns há
que a ela se apegam tão fortemente, ainda que trabalhando ou mendigando
mal consigam o
necessário, que se pudessem viver sempre aqui, nada se lhes daria
do reino de Deus.
4. Oh! corações insensatos e sem fé! tão profundamente
míseros nas coisas da terra que já não
sabem apreciar senão o que é carnal! Infelizes, sentirão
um dia dolorosamente a vileza e o nada
de quanto amaram. Mas os santos de Deus e os fiéis amigos de Cristo
não atendiam ao que
agradava à carne ou ao que brilhava no mundo; com toda a sua esperança
e intenção aspiravam
aos bens eternos. Todo o seu desejo elevava-se para os bens invisíveis
e perenes, afim de que
não os arrastasse para a terra o amor das coisas visíveis.
5. Não percas, irmão, a esperança de progredir na vida
espiritual: tens ainda tempo e
oportunidade. Por que razão queres adiar o teu propósito?
Levanta-te, começa neste mesmo
instante e dize: "É tempo de agir, é tempo de pelejar,
é tempo de corrigir-me." Quando te
sentes aflito e atribulado, então tempo é de merecer. É
preciso "passares por fogo e por água
antes de chegares ao refrigério" (Salmos LXV,11). Se te não
fizeres violência não vencerás o
vício. Enquanto estamos neste frágil corpo não nos
podemos conservar sem pecado nem viver
sem tédio e sem dor. Bem quiséramos fruir de um descanso livre
de toda miséria; mas, porque
pelo pecado perdemos a inocência perdemos também a verdadeira
felicidade. Importa-nos, por
isso, perseverar na paciência e aguardar a misericórdia de
Deus, "até que passe esta iniquidade"
(Salmos LXVI,2) e "o que é mortal seja absorvido pela vida"
(II Cor. V,4).
6. Oh! como é grande a fragilidade humana sempre inclinada aos vícios!
Hoje confessas os teus
pecados e amanhã tornas a cair neles; agora propões estar
sobre ti e daqui a uma hora procedes
como se nada houveras proposto. Bem razão temos de nos humilharmos
e não nos termos em
grande conta: somos tão frágeis e inconstantes! Em pouco tempo
também se pode perder por
negligência o que só à custa de muito trabalho se adquiriu,
com o auxílio da graça.
7. Que será de nós no fim se já no princípio
somos tão tíbios? Ai de nós se queremos entregar-
nos ao descanso como se já estivéramos em paz e segurança,
quando em nossa vida não se
vislumbra ainda nenhum sinal de verdadeira santidade! Bem precisaríamos
ser de novo
instruídos na virtude como bons noviços para ver se haveria
ainda alguma esperança de emenda
para o futuro e de maior proveito espiritual.
Capítulo XXIII
Da meditação da morte
1. Bem depressa chegará o teu fim; vê lá como te portas.
Hoje o homem está vivo e amanhã já
não existe; e quando desapareces dos olhos bem depressa passa também
da lembrança. Oh!
cegueira e dureza do coração humano que só pensa no
presente e não prevê o futuro. Deves
pensar e agir sempre como se hoje houveras de morrer. Se tiveras boa consciência
não temerás
muito a morte. Melhor fora evitar o pecado que fugir à morte. Se
hoje não estás preparado,
como o estarás amanhã? O dia de amanhã é incerto;
quem sabe se lá chegarás?
2. Que importa viver muito se tão pouco nos corrigimos? A vida longa
nem sempre traz
emenda e muitas vezes aumenta os pecados. Oxalá um só dia
sequer tivéssemos vivido bem
neste mundo! Muitos contam os anos de sua conversão; mas, de ordinário,
bem pouco é o fruto
da emenda. Se terrível é morrer, mais perigoso, talvez, seja
viver muito. Feliz daquele que traz
sempre diante dos olhos a hora da morte e cada dia se prepara para morrer.
Se já viste morrer
alguém, pensa que pelo mesmo transe hás de passar.
3. Pela manhã pensa que não chegarás à noite;
e à noite não contes chegar ao dia seguinte. Por
isso está sempre aparelhado e vive de tal forma que nunca a morte
te surpreenda desapercebido.
Muitos morrem súbita e improvisamente; porque "na hora que não
se pensa virá o Filho do
Homem" (Luc. XII,40) Quando chegar aquela hora extrema, do modo muito
diferente
começarás a julgar toda a tua vida passada e muito te arrependerás
de ter sido tão negligente e
relaxado.
4. Quão ditoso e prudente é o que se esforça por ser
tal em vida qual deseja que o encontre a
morte! Grande confiança de bem morrer lhe dará o completo
desprezo do mundo, o desejo
ardente de aproveitar na virtude, o amor da observância, o trabalho
da penitência, a prontidão
da obediência, a abnegação de si mesmo, a constância
em sofrer todas as adversidades por amor
de Cristo. Muito bem podes fazer enquanto tens boa saúde; mas, não
sei de que serás capaz
quando estiveres enfermo. Poucos melhoram com a enfermidade; como raros
são os que se
santificaram com muitas romarias.
5. Não confies em parentes e amigos, nem deixes para mais tarde o
negócio de tua salvação;
mais depressa do que imaginas, de ti se hão de esquecer os homens.
Melhor é prover a tempo e
mandar boas obras diante de ti do que esperar no auxílio dos outros.
Se não cuidas de ti agora,
quem cuidará de ti mais tarde? Agora é o tempo precioso; "eis
o tempo propício, eis os dias de
salvação" (II Cor. VI,2). Mas, que tristeza, não
aproveitares melhor agora esse tempo em que
podes merecer a vida eterna. Virá o momento em que suspirarás
por um dia ou uma hora para te
corrigires e não sei se alcançarás.
6. Coragem, irmão, não imaginas de quantos perigos e de quanto
temor te poderás livrar, se
agora pensares sempre na morte com receio e desconfiança. Procura
viver agora de tal maneira
que na hora da morte tenhas mais motivo de alegria que de temor. Aprende
agora a morrer para
o mundo afim de então começares a viver com Cristo. Aprende
agora a desprezar todas as
coisas afim de voares então livremente para Cristo. Castiga agora
o teu corpo com a penitência
para teres então uma confiança certa.
7. Oh! insensato! por que pensas que hás de viver muito quando não
tens um dia seguro?
Quantos se iludiram e foram arrancados do corpo quando menos esperavam!
Quantas vezes
ouviste dizer: este homem morreu assassinado, aquele afogou-se, o outro
caiu e quebrou a
cabeça; um expirou comendo, outro jogando; este pereceu pelo ferro,
aquele pelo fogo; este
pela peste, aquele às mãos dos ladrões. E assim o fim
de todos é a morte e a vida passa como
uma sombra.
8. Quem se lembrará de ti depois da morte? Quem rezará por
ti? Faze, faze agora, irmão meu,
tudo o que puderes; não sabes quando hás de morrer nem o que
te há de suceder depois da
morte. Enquanto tens tempo, entesoura riquezas imperecíveis. Preocupa-te
unicamente com a
tua salvação e cuida só das coisas de Deus. "Faze,
agora, amigos", venerando os santos de Deus
e imitando-lhes as ações, para que, "ao saíres
desta vida, eles te recebam nas moradas eternas"
(Luc. XVI,9).
9. Vive na terra como hóspede e peregrino a quem nada se lhe dá
dos negócios do mundo.
Conserva o coração livre e elevado para Deus, porque "não
tens aqui morada permanente"
(Hebr. XIII,14). Para o céu dirige todos os dias as tuas preces,
os teus gemidos e lágrimas para
que, depois da morte, mereça a tua alma passar ditosamente ao Senhor.
Assim seja.
Capítulo XXIV
Do juízo e das penas dos pecadores
1. Em todas as coisas considera o fim e como um dia comparecerás
ante o Juiz severo, a quem
nada é oculto, que não se deixa aplacar com dádivas
nem admite desculpas, mas julga com
justiça. Oh! miserável e insensato pecador! que responderás
a Deus que conhece todas as tuas
maldades, tu que às vezes treme à vista de um homem irado!
Por que não te preparas para o dia
do juízo em que ninguém poderá ser escusado ou defendido
por outrem mas cada qual terá
bastante que ver consigo? Agora produz fruto o teu trabalho; as tuas lágrimas
são acolhidas e
aceitos os teus gemidos; a tua dor é satisfatória e purificativa.
2. Grande e salutar purgatório tem o homem paciente que, injuriado,
mais se aflige com a
maldade alheia do que com a ofensa própria; que roga sinceramente
pelos que o contrariam e de
coração lhes perdoa; se a alguém magoa, não
tarda em pedir-lhe perdão; que mais facilmente se
inclina à compaixão do que à cólera; que, muitas
vezes, faz violência a si mesmo e se esforça
por sujeitar de todo a carne ao espírito. Mais vale purificar agora
os pecados e extirpar os vícios
do que deixar para expiá-los na outra vida. Em verdade nos enganamos
a nós mesmos pelo
amor desordenado que temos à carne.
3. Que há de devorar aquele fogo senão os teus pecados? Quanto
mais agora te poupares e
seguires os apetites da carne tanto mais rigoroso será depois o castigo
e mais matéria ajuntas
para o fogo eterno. No que o homem mais pecou será mais severamente
punido. Ali os
preguiçosos serão exasperados com aguilhões ardentes
e gulosos, atormentados com grande
fome e sede. Ali os luxuriosos e amantes da volúpia serão
imersos em pez abrasador e fétido
enxofre; e, como cães danados, uivarão de dor os invejosos.
4. Nenhum vício há que não tenha o seu suplício
próprio. Ali, os soberbos estão cheios de
confusão e os avarentos, reduzidos à mais miserável
indigência. Ali será mais terrível uma hora
de tormento do que aqui cem anos da mais rigorosa penitência. Aqui,
de quando em quando,
cessam os trabalhos e consolamo-nos com os amigos; lá, para os condenados,
nenhum
descanso, nenhuma consolação. Tem agora cuidado e dor de teus
pecados para que no dia do
juízo possas partilhar a segurança dos bem-aventurados: porque
"então os justos estarão com
grande confiança contra os que os angustiaram" (Sap. V,1) e
oprimiram. Então se erguerá para
julgar o que agora humildemente se curva ao juízo dos homens. Então
grande confiança terá o
pobre e humilde; e de pavor será envolvido o soberbo.
5. Ver-se-á então como foi sábio neste mundo o que
aprendeu a ser louco e desprezado por
Cristo. Então dará prazer toda tribulação suportada
com paciência "e a iniquidade não ousará
abrir a boca" (Salmos CVI,42). Então exultará de alegria
o homem devoto e de tristeza se
consternará o ímpio. Mais se alegrará então
a carne mortificada que se fora nutrida com
delícias. Então resplandecerá o hábito grosseiro
e perderão o seu brilho as vestes suntuosas.
Mais louvores terá então o casebre do pobre que o palácio
resplandecente de ouro. Então mais
aproveitará a paciência constante que todo o poder do mundo.
Mais exaltada será a obediência
simples que toda a astúcia do século.
6. Então mais alegria causará a pureza de uma boa consciência
que a douta filosofia. Mais peso
terá o desprezo das riquezas que todos os tesouros da terra. Mais
consolação te dará a oração
fervorosa, que as iguarias delicadas. Mais alegria terás pelo silêncio
guardado do que pelas
longas conversas. De maior valor serão as obras santas que as belas
frases. Mais te há de
agradar então a vida estreita e a penitência rigorosa que todos
os prazeres do mundo. Aprende
agora a sofrer pouco para te livrares então de sofrimentos mais graves.
Experimenta primeiro
nesta vida o de que serás capaz na outra. Se não puderes agora
suportar tão pouco como poderás
sofrer tormentos eternos? Se o menor incômodo te causa agora tanta
impaciência, que fará
então o inferno? Em verdade duas venturas não poderás
reunir: deliciar-te neste mundo e reinar
depois com Cristo.
7. Se até hoje houveras vivido sempre em honras e prazeres, de que
te aproveitaria tudo isso se
viesses a morrer nesse instante? Assim, pois, "tudo é vaidade"
(Ecles. I,2) exceto amar a Deus e
só a Ele servir. Quem ama a Deus de todo coração não
teme nem a morte nem o castigo, nem o
Juízo, nem o Inferno: porque o perfeito amor nos dá acesso
seguro junto a Deus. Não admira,
porém, que tema a morte e o juízo, aquele que ama ainda o
pecado. Se contudo o amor de Deus
não te aparta ainda do mal, bom é que, ao menos, te retenha
o temor do inferno. Aquele, porém,
que despreza o temor de Deus não terá forças para perseverar
no bem por muito tempo e bem
depressa cairá nas ciladas do demônio.
Capítulo XXV
Da fervorosa emenda de toda a nossa vida
1. Sê vigilante e fervoroso no serviço de Deus; pensa muitas
vezes a que vieste e porque
abandonaste o mundo; não foi porventura afim de viver para Deus e
ser homem espiritual?
Afervora-te, pois, no desejo de progredir, porque em breve receberás
a recompensa dos teus
trabalhos e não terás mais temores nem sofrimentos. Agora,
pouco trabalho, mais tarde, grande
descanso, ou melhor, alegria perpétua. Se continuares a proceder
com fidelidade e fervor, Deus,
por certo, será fiel e generoso em retribuir. Alimenta a santa esperança
de alcançar a palma da
glória, mas não te entregues à segurança demasiada
para que não caias na tibieza ou na
presunção.
2. Alguém que vivia ansioso, oscilando entre o medo e a esperança,
certa vez, acabrunhado de
tristeza entrou numa igreja prostrando-se ante o altar, para fazer oração,
dizia de si para si: Oh!
se eu soubera que haveria de perseverar! No mesmo instante, ouviu no íntimo
d'alma esta
resposta divina: "Que farias se soubesses? Faze agora o que farias
então e terás paz". E logo
consolado e reconfortado entregou-se à vontade divina e cessaram
as suas ansiosas
perplexidades. Não quis mais perscrutar com curiosidade o que lhe
haveria de acontecer no
futuro mas aplicou-se a conhecer o que era mais perfeito e agradável
à vontade de Deus para
começar e levar a termo santamente todas as suas ações.
3. "Espera no Senhor e faze o bem", diz o profeta, "e habitarás
a terra e te alimentarás de tuas
riquezas" (Salmos XXXVI,3). Uma coisa arrefece em muitos o fervor do
progresso e da
emenda: o horror às dificuldades ou o trabalho da luta. Com efeito,
aproveitam mais na virtude
os que se empenham com coragem em vencer-se no que mais lhes custa e contraria
as
inclinações. Porque o homem tanto mais adianta e maiores graças
merece quanto mais a si
mesmo se vence e mortifica espiritualmente.
4. Mas nem todos têm igualmente em que se vencer e mortificar. Aquele,
porém, que for
diligente e zeloso, ainda que tenha mais paixões, fará maiores
progressos que outro, de bom
natural, porém, menos fervoroso na aquisição das virtudes.
Duas coisas, particularmente,
contribuem para uma boa emenda: resistir com violência às inclinações
da natureza viciada e
trabalhar com ardor em adquirir a virtude de que mais carecemos. Procura
também evitar e
vencer em ti o que nos outros mais te desagrada.
5. Aproveita de tudo para teu aproveitamento: se vires ou ouvires bons exemplos
anima-te a
imitá-los; se perceberes, porém, alguma coisa repreensível,
guarda-te de fazê-la, ou, se já a
fizeste, trata de corrigir-te quanto antes. Como observas os outros, assim
também os outros te
observam a ti. Como é agradável e consolador ver irmãos
fervorosos e devotos, bem
morigerados e observantes! Como, pelo contrário, é triste
e penoso vê-los andar fora da regra,
esquecidos daquilo a que foram chamados! Como é nocivo descuidarem
os deveres da própria
vocação e inclinarem o afeto ao que não lhes pertence!
6. Lembra-te do que prometeste e tem sempre diante dos olhos a imagem do
Crucificado. Bem
te podes envergonhar ao considerares a vida de Jesus Cristo, por não
haver feito mais esforço de
te conformar com ela apesar de trilhares há tanto tempo o caminho
de Deus. O religioso que
devota e atentamente medita na santíssima vida e paixão do
Senhor, nela encontra, com
abundância, tudo o que lhe é útil e necessário
nem precisa procurar, fora de Jesus, coisa melhor.
Oh! se Jesus Crucificado entrara em nosso coração quão
depressa seríamos instruídos em tudo!
7. O religioso fervoroso suporta e aceita bem tudo o que se lhe manda. O
tíbio e o negligente
experimenta tribulação sobre tribulação e de
todos os lados se vê angustiado porque lhe faltam
as consolações interiores e não lhe é permitido
buscar as de fora. O que não observa a sua regra
expõe-se à grave ruína. O que procura uma vida fácil
e relaxada estará sempre em angústias;
alguma coisa haverá sempre que lhe desagrade.
8. Como procedem tantos outros religiosos que vivem com austeridade na disciplina
do
claustro? Saem raras vezes, vestem burel grosseiro, trabalham muito, falam
pouco, velam até
alta noite, levantam-se de madrugada, prolongam a oração,
entregam-se a leituras freqüentes e
em tudo observam exata disciplina. Considera os cartuxos, os cistercienses
e tantos outros
monges e monjas de várias ordens como se levantam todas as noites
para a salmodia do Senhor.
Bem vergonhoso seria que te deixasses vencer pela preguiça em exercício
tão santo quando
tantos religiosos começam a entoar louvores da Deus.
9. Oh! quem te dera não ter outra coisa que fazer senão louvar
com o coração e com os lábios
ao nosso Deus e Senhor! Oh! quem te dera não precisar de comer, nem
beber, nem dormir para
poderes louvar a Deus sem interrupção e entregar-te unicamente
aos exercícios espirituais!
Muito mais feliz serias do que agora que deves servir ao corpo e suas necessidades!
Prouvera a
Deus fossemos isentos dessas necessidades e só tivéssemos
que pensar no alimento da alma,
que, infelizmente, tão raras vezes saboreamos!
10. Quando o homem chega a não buscar consolação em
criatura alguma começa então a gostar
perfeitamente de Deus, e vive sempre contente, aconteça o que acontecer.
Então não se alegra
com grandezas nem se entristece com ninharias mas abandona-se inteiramente
e com toda a
confiança nas mãos de Deus, que lhe é tudo em todas
as coisas, para quem nada acaba nem
morre, mas para quem vivem todas as criaturas e a cujo aceno obedecem todas
sem demora.
11. Lembra-te sempre do fim e de que o tempo perdido não volta. Sem
cuidado e sem esforço
não hás de adquirir virtudes. Se principias a entibiar começarás
a sentir-te mal. Se, porém, te
deres ao fervor terás muita paz; a graça de Deus e o amor
da virtude far-te-ão mais leve o
trabalho. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo.
Mais penoso é resistir aos
vícios e às paixões do que suportar as fadigas do corpo.
Quem não evita as faltas pequenas
pouco a pouco cairá nas grandes. Alegrar-te-ás sempre à
noite quando houveres empregado
bem o dia. Vela sobre ti mesmo; anima-te; admoesta-te e aconteça
o que acontecer aos outros,
não te descuides de ti. Aproveitarás na medida da violência
que te fizeres. Assim seja.