São Bernardo, sargento recrutador dos monges-guerreiros
Na época,
alguns insurgiram-se contra a criação de uma ordem militar.
Assim o testemunha a carta enviada a Hugues de Payns pelo prior da Grande
Cartuxa, Guigues:
"Não saberíamos, na verdade, exortar-vos às guerras
materiais e aos combates visíveis; também não somos
mais aptos para vos inflamar para as lutas do espírito, a nossa ocupação
de cada dia, mas desejamos, pelo menos, alertar-vos para que penseis nisso.
Com efeito, é vão atacar os inimigos externos, se não
dominamos, antes de mais, os do interior..."
Nota: É precisamente o sentido da Jihad islâmica.
Façamos, antes de mais, a nossa própria conquista, amigos
muito caros, e poderemos em seguida combater com segurança os nossos
inimigos de fora. Purifiquemos as nossas almas dos seus vícios, e
poderemos depois purgar a terra dos bárbaros. Porque não é
contra adversários de carne e sangue que temos de lutar, mas contra
os principados, os poderes, contra os que governam este mundo de trevas,
contra os espíritos do mal que habitam os espaços celestes,
isto é, contra os vícios e os seus instigadores, os demônios.
Estas críticas chegarão, por vezes, a fazer duvidar os próprios
Templários, e Hugues de Payns teve de lembrar, numa carta dirigida
aos primeiros dentre eles, que se tratava de uma necessidade. Tentando dissipar
as suas dúvidas, escrevia:
"Vede, irmãos, como o inimigo, sob o pretexto da piedade, se
esforça por vos conduzir à armadilha do erro. Oh trombeta
inimiga, quando te calarás? Como é que o anjo de Satã
se transforma em anjo de luz? Se o diabo aconselhasse a desejar as pompas
do mundo, reconhecê-lo-íamos facilmente. Mas ele diz aos soldados
de Cristo que deponham as armas, que deixem de fazer a guerra, que fujam
do tumulto, que façam um qualquer recuo de modo que, apresentando
uma falsa aparência de humildade, dissipa a verdadeira humildade.
Com efeito, que é ser orgulhoso senão não obedecer
ao que nos é ordenado por Deus? Tendo abanado deste modo os superiores,
Satã volta-se para os inferiores, para os derrotar."
"Por que razão", diz ele, "trabalhais inutilmente?
Por que razão despender em vão um tal esforço? Esses
homens que servis obrigam-vos a participar no seu labor, mas não
querem admitir-vos na participação da fraternidade (confraria).
Quando vêm até aos soldados do Templo as saudações
dos fiéis, quando são feitas orações no mundo
inteiro pelos soldados do Templo, não se faz qualquer menção
a vós, nenhuma lembrança. E quando quase todo o trabalho corporal
vos incumbe, todo o fruto espiritual se repercute neles. Retirai-vos pois
dessa sociedade e oferecei o sacrifício do vosso trabalho noutro
local onde o zelo do vosso fervor seja manifesto e frutuoso."
O Grão-Mestre respondia assim também às tentativas
de provocar a deserção dos homens que serviam o Templo sem
serem cavaleiros. Hugues de Payns compreendera bem onde se encontravam os
pontos fracos da Ordem. Era preciso não deixar desenvolver-se a crítica,
convinha responder-lhe antes de se estender e tornava-se urgente que uma
personalidade da Igreja, incontestável, viesse em socorro dos Templários.
Por três vezes pediu ao seu amigo Bernardo que desempenhasse esse
papel de autoridade espiritual e defendesse a missão particular dos
Templários.
O santo homem de Clairvaux respondeu-lhe:
"Por três vezes, salvo erro da minha parte, me pediste, meu muito
caro Hugues, que escrevesse um sermão de exortação
para ti e para os teus companheiros [...]. Disseste-me que seria para vós
um verdadeiro conforto encorajar-vos por meio das minhas cartas, dado que
vos não posso ajudar pelas armas. E garantistes-me que seria muito
útil se animasse, com as minhas palavras, aqueles que não
posso ajudar pelas armas."
E Bernardo redigiu o De laude novae militiae, verdadeira ferramenta de propaganda,
crítica aos guerreiros tradicionais e apologia desta nova milícia
de Deus que constituía a Ordem do Templo. Começou por criticar
vigorosamente os homens de armas do seu tempo:
"Qual é, cavaleiro, esse inconcebível erro, essa inadmissível
loucura que faz que despendas para a guerra tanto esforço e dinheiro
e apenas recolhas frutos de morte ou de crime?
"Embiocais os vossos cavalos de sedas e tapais as vossas cotas de malha
com não sei quantos panos. Pintais as vossas lanças, os vossos
escudos e as vossas selas, incrustais os vossos freios e os vossos estribos
com ouro, prata e pedras preciosas. Vestis-vos com pompa para a morte e
correis para a vossa perdição com uma fúria sem vergonha
e uma insolência impudente. Esses ouropéis serão os
arneses de um cavaleiro ou os atavios de uma mulher? Ou então julgais
que as armas dos vossos inimigos se desviam do ouro, pouparão as
gemas, não furarão a seda? Por outro lado, demonstraram-nos
amiúde que são necessárias três coisas principais
na batalha: que um cavaleiro esteja alerta para se defender, seja rápido
na sela e esteja pronto para o ataque. Mas, pelo contrário, penteais-vos
como mulheres, o que dificulta a vossa visão; embaraçais os
pés em camisas longas e largas e escondeis as vossas mãos
delicadas dentro de mangas largas e de amplas aberturas. E, assim ataviados,
bateis-vos pelas coisas mais vãs, tais como a cólera irracional,
a sede de glória ou a cobiça dos bens temporais. Matar ou
morrer por tais objetos não põe a alma em segurança."
Que requisitório! A esta guerra de rendas, fútil, Bernardo
contrapunha a dos monges-soldados da Ordem do Templo. Punha a tônica
na simplicidade dos seus costumes, no seu desinteresse e na sua caridade
e explicava por que razão aqueles monges tinham o direito e, até,
o dever de matar, o que constituía a santidade da sua missão:
"O cavaleiro de Cristo mata em consciência e morre tranquilo:
ao morrer, obtém a sua salvação; ao matar, trabalha
para Cristo. Sofrer ou dar a morte por Cristo não tem, por um lado,
nada de criminoso e, por outro, merece uma imensidade de glória."
Sem dúvida que não seria necessário matar os pagãos,
tal como os outros homens, se tivéssemos outro meio de deter as suas
invasões e de os impedir de oprimir os fiéis. Mas, nas circunstâncias
presentes, é melhor massacrá-los do que deixar a vara dos
pecadores suspensa sobre a cabeça dos justos e deixar os justos expostos
a cometerem também a iniquidade. Pois então? Se nunca fosse
permitido a um cristão bater com a espada, o precursor de Cristo
teria apenas recomendado aos soldados que se contentassem com o seu soldo?
Não lhes teria antes proibido o ofício das armas?
Mas não é assim, pelo contrário. Empunhar as armas
é permitido, àqueles, pelo menos, que receberam a sua missão
do altíssimo e que não fizeram profissão de uma vida
mais perfeita. Existe alguém mais qualificado, pergunto-vos, do que
esses cristãos cuja poderosa mão sustém Sion, a nossa
praça-forte, para a defesa de todos nós, e para que, depois
de expulsos os transgressores da lei divina, a nação santa,
guardiã da verdade, a ela tenha um acesso seguro? Sim, que eles dispersem,
têm esse direito, esses gentios que querem a guerra; que suprimam
aqueles que nos perturbam; que ponham fora da cidade do Senhor todos esses
obreiros de iniquidades que sonham pilhar ao povo cristão as suas
inestimáveis riquezas encerradas em Jerusalém, conspurcar
os Lugares Santos e apoderar-se do santuário de Deus!
Depois de ter justificado o papel dos Templários, Bernardo quis mostrar
que eram um escol, os melhores entre os homens, e participar assim na excelência
do seu recrutamento:
"Agora, para dar aos nossos cavaleiros, que militam não para
Deus mas para o diabo, um modelo a imitar, ou antes, para os inspirar e
fazer sair da confusão, contarei em breves palavras o tipo de vida
dos Cavaleiros de Cristo, o seu modo de se comportarem tanto na guerra como
em suas casas. Quero que se veja claramente a diferença que existe
entre os soldados seculares e os soldados de Deus. E, antes de mais, a disciplina
não falta entre estes. Não têm desprezo pela obediência.
Sob a ordem do chefe, vão, vêm; veste-se o hábito que
ele dá e não se espera de outrem nem a roupa nem a alimentação.
Tanto na vida como nas vestimentas, evita-se o supérfluo; reserva-se
a atenção para o necessário.
É a vida em comum, levada na alegria e na mesura, sem mulheres nem
filhos. E para que a perfeição angélica seja realizada,
todos habitam na mesma casa, sem nada possuírem em particular, prestando
atenção para manterem entre eles um único espírito
de que a paz é o laço. Dir-se-ia que essa multidão
tem apenas um corpo e uma alma, dado que cada um, em vez de seguir a sua
vontade pessoal, se apressa tanto a seguir a do chefe. Nunca estão
ociosos; não vão nem vêm por simples curiosidade; mas
quando não estão em campanha (o que acontece raramente), para
não comerem o seu pão sem o terem ganho, cosem as suas roupas
rasgadas, reparam as suas armas [...]. Entre eles, não há
preferências de pessoas; julga-se segundo o mérito e não
de acordo com a nobreza [...]. Nunca uma palavra insolente, uma tarefa inútil,
uma gargalhada excessiva, um murmúrio, por mais fraco que seja, ficam
impunes. Detestam o xadrez, os jogos de azar, têm horror à
caça com galgos e a cavalo e nem sequer se divertem com a caça
de altanaria, com que tantos se deleitam. Os númos, os que leem a
sina, os jograis, as canções jocosas, as peças de teatro,
são, a seus olhos, tão cheias de vaidade e de loucura, que
se afastam delas e as abominam. Têm os cabelos curtos, porque sabem
que, segundo as palavras do apóstolo, é vergonhoso para um
homem cuidar da cabeleira. Nunca se penteiam e raramente tomam banho. É
assim que são vistos, descuidados, hirsutos, negros de poeira, com
a pele queimada pelo sol e tão bronzeada como a sua armadura."
Que retrato, que forma de justificar esses homens e de os mostrar tão
diferentes dos outros guerreiros! Não podemos dizer que Bernardo
tente atrair recrutas prometendo-lhes facilidades, mas os homens de que
o Templo necessita devem ser capazes de dar provas da mais total abnegação
e de suportar uma vida rude entremeada de sofrimento.
Bernardo procurava levar cada um a empenhar-se mais e, ao pregar a segunda
cruzada, em Vézelay, exclamava:
"A terra treme, é abalada porque o Deus do céu está
em vias de perder a sua terra, a que é dele desde que viveu entre
os homens mais de trinta anos [...]. Agora, por causa dos nossos pecados,
os inimigos da cruz erguem de novo a sua cabeça sacrílega
e a sua espada despovoa essa terra bendita, essa terra prometida. E se ninguém
resiste, pobres de nós, eles vão lançar-se sobre a
própria cidade do Deus Vivo, para destruírem os lugares onde
se consumou a salvação, para macularem os Lugares Santos que
o sangue do Cordeiro Imaculado purpurou. Dareis vós aos cães
o que há de mais santo, aos porcos as pérolas preciosas? Mas,
digo-vos, o Senhor oferece-vos uma oportunidade. Contempla os filhos dos
homens para ver se, entre eles, haverá alguns que o compreendam,
que o procurem e que sofram por ele. Deus tem piedade do seu povo; àqueles
que sucumbiram aos erros mais graves, propõe uma forma de salvação.
Pecadores, pensai nesse abismo de bondade, enchei-vos de confiança.
Ele não quer a vossa morte, mas sim a vossa conversão, a vossa
vida: arranja-vos uma possibilidade não contra vós mas por
vós. Ousa chamar a servir, como se estivessem prenhes de justiça,
homicidas e ladrões, perjuros e adúlteros, homens acusados
de todos os tipos de crimes. Não será isso, da sua parte,
uma invenção excêntrica e que só Ele podia encontrar?"
De qualquer modo, não foi mal pensado, da parte de São Bernardo.
Que homem político! Com uma só cajadada matava dois coelhos,
recrutando homens rudes para se baterem no Oriente e aliviando o Ocidente
de uma parte das más reses que nele habitavam. Em certa medida, inventava
a Legião Estrangeira e dava realmente uma oportunidade a esses homens
para se regenerarem. No entanto, pelo menos nos primeiros tempos, a Ordem
do Templo foi, quanto a ela, muito seletiva no recrutamento e não
aceitou as pessoas sem eira nem beira que se lhe ofereceram e, de qualquer
modo, não as transformou em cavaleiros.
Doravante, os Templários já tinham meios para fazerem a guerra,
já estavam fixados. Na sua esteira, também se havia transformado
a Ordem dos Hospitalários de São João de Jerusalém
em ordem militar? Por que razão não mandaram fundir os nove
ou dez templários dos tempos iniciais com os Hospitalários?
No entanto, teria sido a solução mais lógica em vez
de organizar duas estruturas diferentes com as suas logísticas próprias.
Mas, não o esqueçamos, o Templo tinha uma missão especial
a assumir, depois das descobertas feitas em Jerusalém. A partir de
então, não era possível misturar as duas ordens, dado
que não prosseguiam objetivos estritamente idênticos.
E como escreve Louis Lallement em La Vocation de l'Occident, a propósito
dos Templários:
"A Ordem do Templo, cujo manto branco ornado com uma cruz vermelha
era das cores vermelhas de Galaad, constituía, no século XII,
como que a armadura da cristandade."
Uma armadura que muitos, a partir de então, apenas pensaram em destruir.