A organização das comendas
Sabemos que
o testamento do rei de Aragão foi contestado; aqui e ali, alguns
particulares consideraram-se lesados, inclusive algumas ordens religiosas
protestaram porque, à medida que aumentava o entusiasmo em relação
ao Templo, viam rarefazer-se as dádivas de que eram alvo. Por uma
espécie de equilíbrio misterioso inerente à natureza
humana, quantos mais amigos tinham os Templários mais suscitavam
invejas e inimizades. Inúmeras vezes, os bispos e até a Santa
Sé tiveram de intervir para dirimir litígios. Assim, no caso
da capela de Obstal, os Templários tinham obtido que as esmolas dadas
nesse local, durante os três dias das Rogações e os
cinco seguintes, pertencessem à Ordem, beneficiando delas, durante
o resto do ano, os cónegos de Saint-Martin d'Ypres. Foi necessária
a intervenção do arcebispo de Reims e dos bispos de Chartres,
Soissons, Laon, Arras, Mons e Châlons e até mesmo uma confirmação
pontifícia para tornar possível essa disposição.
Fosse como fosse, a quantidade e diversidade destas ofertas em breve exigiu,
dos Templários, uma aptidão muito especial para a gestão
e a organização. Escolheram para célula de base do
seu R:. L:. Lusitânia desenvolvimento as comendas. Na verdade, se
a sua criação dependeu, na maior parte das vezes, do acaso
e se realizou em função das oportunidades, o seu desenvolvimento
correspondeu a critérios racionais.
A organização dessas comendas ocidentais foi, em todos os
aspectos, notável. Elas reuniram, segundo as regiões, culturas,
prados, vinhas, fontes, ribeiros, lagos, construções diversas,
rendas, direitos. Sempre que lhes foi possível, os Templários
procuraram realizar uma cobertura eficaz das regiões onde estavam
bem implantados. Procuraram também deitar a mão a determinados
locais famosos por terem albergado cultos antigos e que se julgava possuírem
poderes especiais. Tão freqüentemente quanto podiam, dado que
tinham os pés perfeitamente assentes em terra, tentaram também
garantir rendimentos regulares, em substituição dos aleatórios.
Sempre que lhes foi possível, converteram os direitos e percentagens
que haviam recebido em foros fixos. É verdade que, cada dia, a manutenção
do seu exército do Oriente lhes custava extremamente caro e devia
ser assegurada, a qualquer preço. Foi também por isso que
criaram, um pouco por todo o lado, silos, comprando e armazenando cereais
nos anos de grande produção e revendendo-os, mais caro, certamente,
mas a um preço que continuava a ser bastante razoável, quando
a colheita era má. Resultado: benefícios confortáveis
para a Ordem, mas também uma ausência total de fome nas regiões
em que estava implantada - e isso durante os dois séculos da sua
existência.
Para racionalizar a exploração das suas terras e direitos
e maximizar o rendimento deles, o Templo não podia satisfazer-se
com as doações que lhe eram feitas. Gerir terras dispersas
não teria sido muito prático nem muito econômico. A
Ordem inventou, portanto, a reconstrução. Completou as suas
propriedades mediante uma política de compras e permutas, procurando
formar conjuntos coerentes para a exploração. Se havia direitos
detidos por terceiros sobre as terras ou os bens que lhes haviam sido concedidos,
tentava sempre comprar esses direitos, de modo a possuir um máximo
de bens livres de quaisquer encargos. Quanto às terras mais isoladas
ou menos interessantes que não se integravam no seio de uma exploração
racional, não hesitava em livrar-se delas, quer trocando-as, quer
cedendo a sua gestão. O objetivo era sempre, numa primeira fase,
permitir à comendadoria viver em auto-subsistência e, em seguida,
libertar o máximo de excedentes possível de modo a financiar
o esforço de guerra no Oriente.
O poderio da Ordem inquietava várias pessoas e não era raro
tentarem dissuadir as pessoas de doarem os seus bens ao Templo. Os monges-soldados
não hesitavam, para atingirem os seus fins, em recorrer à
artimanha. Utilizavam intermediários, verdadeiros testas de ferro,
para comPrarem os bens que cobiçavam que, em seguida, lhes eram revendidos.
Na verdade, os Templários não eram os únicos que praticavam
uma verdadeira política fundiária. Os seus amigos cistercienses
eram um bocado parecidos com eles nessa matéria, mas procediam de
forma menos sistemática.
Desde o inicio que os Templários haviam tido consciência da
importância das trocas comerciais para o desenvolvimento econômico.
A utilização destes termos pode parecer curiosa porque pertencem
a um vocabulário moderno. No entanto, apesar das diferenças
de épocas, são adequados, na medida em que a Ordem do Templo
se comportou exatamente do mesmo modo que as multinacionais atuais.
O recrutamento fora rápido, mas todos quantos se desejavam alistar
nem sempre eram talhados para se converterem em soldados de elite. Havia,
entre eles, burgueses e camponeses que raramente eram feitos cavaleiros
e, depois, havia também que "reciclar" os feridos que já
não R:. L:. Lusitânia podiam combater. Na maior parte das vezes,
eram adstritos às comendas ocidentais onde se utilizavam, da melhor
forma, os conhecimentos e competências de cada um deles. Encarregaramse
das culturas, do arroteamento, do comércio. Havia poucos homens de
armas nessas comendas, na maior parte das vezes, dois ou três cavaleiros
e alguns sargentos, encarregados, sobretudo do policiamento, isto é,
da proteção das casas do Templo e das rotas utilizadas para
o seu comércio. Para além do Mestre e de alguns cavaleiros,
a comendadoria abrigava geralmente um esmoler, um enfermeiro, um ecônomo,
um recebedor dos direitos devidos ao Templo, alguns artesãos "irmãos
de mesteres", dirigidos por um "alveitar", um irmão
responsável pela venda dos produtos, um capelão e um clérigo
mais especialmente encarregado do correio e do equivalente aos actos notariais
atuais. Juntavam-se-lhes criados e artesãos laicos que constituíam
a "mesnada", a "gens" do Templo. Esta criadagem era
bastante numerosa. Assim, em Baugy, no Calvados, compreendia um pastor,
um vaqueiro, um porqueiro, um guardador dos frangos, um encarregado das
florestas, dois porteiros e seis operários. É claro que a
composição destes grupos dependia das explorações
e da importância das terras possuídas porque, muitas vezes,
os Templários tinham para gerir superfícies tão grandes
como meia província, com quintas disseminadas, vilas fortificadas,
múltiplas capelas para guarnecer, etc. Na administração
dos bens da Ordem, o ecônomo ou recebedor podia ser secundado por
um tenente ou por um celeireiro.
Os Templários sabiam empregar métodos racionais mas isso não
os impedia de se mostrarem pragmáticos e de se adaptarem aos hábitos
locais. Isso era tanto mais necessário quanto empregavam uma mão-de-obra
radicada no local: vilãos ou servos. Estes últimos pertenciam-lhes
muitas vezes, em conseqüência de doações ou heranças.
Se alguns desses servos foram alforriados pelos Templários, tal não
se deveu a razões humanitárias. Com efeito, os irmãos
da Ordem possuíram inclusive escravos sem terem problemas de consciência.
Acontecia compraremnos e venderem-nos. Tratava-se, geralmente, de prisioneiros
mouros. Em Aragão, cada comendadoria utilizava, em média,
duas dezenas de escravos. Com efeito, os Templários submetiam-se
às regras da região, sabendo muito bem que uma política
demasiado liberal de alforria, por exemplo, poderia afastar deles uma nobreza
que não teria desejado segui-los nesse campo e teria receado a expansão
dessas medidas. Só utilizavam, portanto, os vilãos naqueles
locais onde isso não levantava qualquer problema, mas quando as condições
se prestavam a tal, não hesitavam em alforriar os seus servos, porque
se tinham dado conta de que os homens livres produziam nitidamente mais
do que os outros. Amiúde, ensinavam aos seus camponeses novos métodos
de exploração e, não querendo perder esse investimento
em formação, como diriam os economistas modernos, obrigavam-nos
por vezes a assinar contratos que os obrigavam a investir na exploração
mediante obras de benfeitoria. A partir de então, o vilão
não se sentia tentado a ir-se embora, dado que pretendia recuperar
os frutos dos seus esforços. Por este meio, o Templo estabilizava
o seu pessoal e, ao mesmo tempo, organizava um sistema de investimento permanente
que foi uma fonte importante de progresso para a agricultura da época.
Aos camponeses menos afortunados confiavam terras por arrendamento ou locação.
Por vezes, nas regiões insuficientemente povoadas, deparavam-se dificuldades
para assegurar a exploração das propriedades. Então,
tinham de atrair cultivadores oferecendo-lhes vantagens especiais. Isso
foi particularmente verdade na Península Ibérica, em relação
às terras tomadas aos árabes. Chegaram mesmo a recorrer a
muçulmanos para cultivarem e valorizarem as suas propriedades, mediante
determinadas condições de submissão. Assim, em Villastar,
na fronteira do reino de R:. L:. Lusitânia Valência, pediram
aos sarracenos expulsos pela reconquista cristã que regressassem.
Para tal, em 1267, concederam-lhes um foral em que lhes garantiam o direito
de praticarem o seu culto, os isentavam de rendas e foros durante um determinado
período de tempo, exigiam deles uma estrita neutralidade militar
e pediam-lhes que jurassem fidelidade à Ordem do Templo. Que exemplo
de política realista numa época que julgamos, por vezes, integralmente
submetida a um ideal religioso! As comendas foram, realmente, centros de
produção importantes e exemplos recolhidos no Sul e no Norte
de França mostram-no bem. Em Richerenches, na Provence, a generosidade
de numerosas famílias da região permitira aos Templários
possuírem um imenso domínio. Várias centenas de pessoas
foram contratadas para desmatar o solo, secar as zonas pantanosas. Depois,
criaram-se, nessas terras, milhares de cavalos e carneiros que viviam quase
livres em imensas superfícies rodeadas por muros de pedras. A lã
dos carneiros permitia a confecção de roupas que, depois,
eram exportadas. As peles serviam para fabricar sacos, proteções,
arreios. A carne dos carneiros era salgada ou fumada para ser conservada
e enviada, nomeadamente, para a Terra Santa. A própria comendadoria
estava instalada num quadrilátero com 74 m a norte, 81 m a sul, 58
m a leste e 55 m a oeste, rodeada por muralhas e torres. No interior, para
além da comendadoria propriamente dita, encontravamse uma capela
e as oficinas onde se desenvolvia um artesanato que não tinha como
única finalidade a satisfação das necessidades locais.
Os Templários de Richerenches tinham arranjado também os ribeiros
e lagos próximos, o que lhes havia permitido ampliarem as suas pastagens
e entregarem-se à piscicultura. Apreciadores de peixes e, muitas
vezes, também da boa mesa, estes monges-soldados deixaram-nos até
receitas de cozinha. É o caso desta, conservada numa crônica:
Uma bela solha de cinco a seis libras, esvaziada das entranhas, abundantemente
lavada em água envinagrada, é recheada com tomilho, salva,
louro, trufas e azeite. Cozinhada em forno muito quente durante uma hora,
arrefecida no parapeito da janela e envolvida em gelatina, é cortada
em fatias, como um pâté'...