A Chave dos Grandes Mistérios
Eliphas Levi
A Fé, A Ciência, A Razão



A CIÊNCIA - Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.
A FÉ - Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca me provareis que Deus não existe.
A CIÊNCIA - Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, eu saiba o que é Deus.
A FÉ - Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não mais
acreditaria nele.
A CIÊNCIA - Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?
A FÉ - Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não sabeis em que eu acredito,
precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a
cada instante pelo mistério? O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de
vosso saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: Eu não sei
mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
A CIÊNCIA - Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem ser hipóteses para mim.
A FÉ - Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu duvidaria até
mesmo de vossas certezas.
A CIÊNCIA - Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente muito cedo. Meus
progressos atestam que eu ando sempre.


A FÉ - Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?
A CIÊNCIA - Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, teus pés estão
dormentes.
A FÉ - Sou carregada por meus filhos!
A CIÊNCIA - São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!
A FÉ - Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por
teus olhos o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro
no céu.
A CIÊNCIA - O que a razão pensa disso?
A RAZÃO - Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um apólogo tocante, o do paralítico e o
do cego. A ciência censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no
céu das aspirações e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a
ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e amar.
A CIÊNCIA - Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar sem
ela.
A FÉ - O que é que chamais de absurdos?
A CIÊNCIA - Chamo de absurdos as proposições contrárias às minhas demonstrações, como, por
exemplo, que três são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o
Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados...
A FÉ - Não digas mais nada. Externadas por ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso
sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as
operações do desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre
absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas por teus teoremas; eu
seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito,
deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.
A CIÊNCIA - Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me desmintas em meus domínios.
A FÉ - Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
A CIÊNCIA - Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa ser mãe sem deixar de
ser virgem, e isso na ordem física, natural e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não
afirmas que um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos
e veias, órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho
antropófago.
A FÉ - Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que
eles não entendem meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo
está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são
compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras,
porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, deves concluir que dou a
essas mesmas palavras um significado que te escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença
real, não disse: A carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te
apresento o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação
como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada
do que conheceis; com que direito dirias que eu disparato?

A CIÊNCIA - Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca te compreenderei. Nesse caso,
continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
A FÉ - Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. Talvez também sem mim estarias
bem triste e bem desesperada, e não quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.
A RAZÃO - Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria sem vós? Preciso saber e crer
para ser justa. Mas nunca devo confundir o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar,
acreditar não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o
inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, mas não defini-lo;
é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo
impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja
existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência quanto para a fé. A fé, como
fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação da luz de Deus na
inteligência humana, pertence ao domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se,
respeitar-se mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca
usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver contradição entre
elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma língua.
A FÉ - Pois bem! irmã ciência, o que dizeis disso?
A CIÊNCIA - Digo que estávamos separadas por um deplorável mal-entendido e que, doravante,
podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos vais-me associar? Serei judia, católica,
muçulmana ou protestante?
A FÉ - Continuarás sendo a ciência e serás universal.
A CIÊNCIA - Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo pensar das diferentes
religiões?
A FÉ - Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando a tiver encontrado,
pergunta-lhe a que culto pertence.
A CIÊNCIA - Não será certamente ao dos inquisidores e dos carrascos da Noite de São Bartolomeu.
A FÉ - É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente de Paulo, de
Fenelon e de tantos outros.
A CIÊNCIA - Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, fez também muito mal.
A FÉ - Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás, quando se persegue em nome
daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não
quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser
justa, que, apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez
nascer, quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações de ambos os
sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras
devotadas ao trabalho e à oração que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os
órfãos e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão
gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de
religião e os suplícios dos sectários pertencem à política dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás,
eram eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos
padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da
inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando esquecem a religião
que os abençoa e perdoa.

A CIÊNCIA - Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas sei agora por que és crente.
Respeito tuas esperanças e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso
que eu duvide para pesquisar.
A RAZÃO - Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida
deixar uma lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra,
mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.

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