A QUEDA
Extraído da Revista L'Initiation número 2, 1974

(... Deus manifesta-se no Universo pela ação da Providência, que vem alumiar o homem em sua marcha; mas que não pode se opor dinamicamente a nenhuma das duas forças primordiais (1).

O homem se manifesta no Universo pela ação da vontade, que lhe permite lutar contra o destino, dominá-lo e transformá-lo em servo de suas concepções. Na aplicação dessas volições ao mundo exterior, o homem tem toda a liberdade de apelar às luzes da Providência ou de não considerar sua ação.

A Natureza manifesta-se no Universo pela ação do destino que perpetua, de maneira imutável e em uma ordem estritamente determinada, os tipos fundamentais que constituem sua base de ação. Os fatos são do domínio do homem, os princípios do domínio de Deus.

Deus não cria jamais senão em princípio: a natureza desenvolve os princípios criados, para constituir os fatos; e o homem, - estabelecendo, pelo emprego livre que faz das faculdades que possui, as relações que unem os fatos aos princípios, - transforma e aperfeiçoa esses fatos pela criação das leis.

Mas um fato, mesmo simples, não é jamais senão a tradução da natureza de um princípio emanado de Deus. O homem pode estabelecer o laço que une o fato visível ao princípio invisível, pela enunciação de uma lei (fundamento do método analógico).

Um navio a vapor é lançado no oceano imenso e voga em direção ao objetivo designado pelo termo da viagem. Tudo que o navio contém é transportado com ele. E, entretanto, cada um é livre para organizar sua cabine como melhor lhe aprouver. Cada qual é livre para subir ao convés e contemplar o infinito, ou descer ao porão do navio. O progresso, em direção ao alvo, efetua-se diariamente; mas cada individualidade é livre para agir à sua vontade dentro de um círculo de ação que lhe é destinado.

Todas as classes sociais estão sobre o mesmo navio, desde o pobre emigrante, que se encontra enrolado num saco de dormir, até o rico que ocupa uma boa cabine. A velocidade do navio é a mesma para todos, ricos, pobres, grandes e pequenos: todos chegarão ao fim da viagem, ao mesmo tempo.

Uma máquina inconsciente, funcionando segundo leis estritas, move o sistema inteiro. Uma força cega (o vapor), canalizada nos tubos e órgãos de metal, gerada por um fator especial (o calor), anima a máquina inteira. A vontade dominante do capitão governa tudo, a máquina orgânica e o conjunto dos passageiros.

Indiferente à ação particular de cada passageiro, o capitão, com os olhos fixos no objetivo a atingir, com as mãos ao leme, conduz o imenso organismo em direção do ponto terminal da viagem, dando suas ordens ao exército das inteligências que o obedecem. Ele não comanda diretamente a hélice que move o navio, mas age sobre o leme.

Assim, o Universo pode ser comparado a um imenso navio, sendo aquele que denominamos Deus, o capitão que segura o leme; a Natureza é a maquinaria sintetizada pela hélice que faz girar todo o sistema, cegamente, segundo leis estritas; os homens são os da viagem, dando suas ordens ao exército para todo o sistema, mas cada ser humano é absolutamente livre dentro do círculo da fatalidade. Tal é a imagem que mostra claramente os ensinamentos do ocultismo sobre essa questão.

Não podemos abandonar a teodicéia, sem falar da solução dada pelo ocultismo à origem do mal na Humanidade. Os problemas do mal, de sua origem a seu termo, da queda e da reintegração da alma humana, da distinção dos atributos divinos e das relações de Deus e da Natureza, foram, com efeito, objeto quase exclusivo das pesquisas dos grandes místicos da escola ocultista, cujos nomes mais conhecidos são: Jacob Böehme, Martinez de Pasqually, Louis Claude de Saint-Martin (o Filósofo Desconhecido) e, na transcrição das idéias de Moisés a esse respeito, Fabre d'Olivet. São as idéias desses Mestres que nós iremos resumir aqui da melhor maneira possível.

O problema do mal pode ser sintetizado em algumas linhas, como segue: A origem do mal deve ser pesquisada no ser humano e não fora dele. Hoené Wronski em seu "Messianismo" dá maiores detalhes sobre este ponto; a causa do mal foi a queda, e o fim do mal será a reintegração do homem em Deus, sem que o primeiro perca sua personalidade. Tais são os pontos que procuraremos desenvolver.

Para os ocultistas, Adão não representa um homem individual, mas o conjunto de todos os homens e de todas as mulheres ulteriormente diferenciados. Esse homem universal ocupava todo o espaço intra, ou melhor, interzodiacal, sobre o qual reinava soberanamente. Isso transcorria após a queda e a punição do anjo rebelde, tornado o princípio animador da matéria, que ainda não existia como realização e que não era senão em germe, como o fruto na semente, ou a criança no óvulo materno.

A imaginação de Adão, que Moisés chama Aisha, apresenta ao Espírito do homem universal um raciocínio que provocou, quase sempre, em todas as épocas, as quedas, não somente universais, como também individuais. Segundo esse raciocínio, o que resiste, o que se vê imediatamente e materialmente é mais potente do que aquilo que é ideal, invisível e perceptível somente pelo Espírito. Adão seduzido por essa idéia em sua imaginação, julga que, fornecendo ao princípio da matéria o modo de passar do estado germinal ao estado de realidade, uniria o poder espiritual de Deus ao poder material, ainda desconhecido em suas conseqüências, e que ele seria, assim, o mestre de seu criador.

Essa idéia, uma vez concebida, foi colocada em ato pela vontade livre de Adão; ele deu à matéria, pela sua aliança com ela, esse princípio de existência que lhe faltava.

De imediato, ele foi envolvido, em todos os seus órgãos espirituais, por essa matéria que acreditava poder dirigir como lhe aprouvesse. O princípio de egoísmo, de revolta e de ódio que constituía a essência material, esforça-se para fazer descer até ele todas as altas inspirações de Adão. A Bíblia, traduzida exotericamente, diz a esse respeito que o ser adâmico foi coberto por uma pele de animal, alegoria simbólica da história real da queda.

Foi, então, pelo exercício de sua livre vontade que ocorreu a materialização do homem universal; sobre esse ponto, todos os místicos são unânimes. Deus não interveio senão para atenuar as conseqüências dessa catástrofe, que materializou, junto com Adão, toda a Natureza que constituía seu domínio e que deveria participar de sua reabilitação. Para atenuar o ato de sua criatura, o Criador, unindo o tempo e o espaço que eram corolários do plano físico, cria a diferenciação do Ser Coletivo: cada célula de Adão tornar-se um ser humano individual. Aisha torna-se o princípio da vida universal e da forma plástica: Eva O homem necessitou, desde então, purificar os princípios inferiores que tinha acrescido à sua natureza, pelo sofrimento, a resignação às provações e o abandono de sua vontade entre as mãos de seu Criador. As reencarnações sucessivas foram o principal instrumento de salvação e, como todos os homens são células de um mesmo ser, a salvação individual não será total senão quando a salvação coletiva for realizada.

Para contribuir a essa salvação, o Verbo Divino vem participar da encarnação e de suas conseqüências, sobrepondo-se à morte física e a seus tormentos no próprio domínio da Matéria. Constata-se, assim, que os ocultistas, em suas concepções místicas, são essencialmente cristãos; os exemplos são dados, a esse respeito, pela doutrina de Jacob Böehme e de Louis Claude de Saint-Martin.

O homem deve, então, trabalhar não somente para sua própria salvação, pela sua reintegração, como disse Martinez de Pasqually, mas também pela reintegração dos outros seres criados. Para atingir esse objetivo, os místicos formaram Ordens, sendo que muitas delas ainda existem.

Essa história da queda e da reintegração - sobre a qual nos estendemos um pouco, porque é muito importante e facilita a compreensão de uma literatura geralmente inacessível - é permanente e recomeça, em suas linhas gerais, para cada alma humana. A encarnação no corpo físico representa, com efeito, a primeira queda; a resistência ou a submissão da alma encarnada às atrações passionais do plano físico impedirá ou constituirá a segunda queda.

Sobre os outros pontos da teodicéia, o ocultismo associa-se, em geral, às doutrinas cabalísticas. Assim, a constituição de Deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito-Santo, por exemplo, foi objeto de importantes comentários da parte de Guilhaume Postel e de cabalistas cristãos, dentre os quais Pictorius, que reuniu várias obras. As provas da existência de Deus derivam, para o ocultista relativamente avançado, da visão direta do plano invisível; para o neófito, da adesão absoluta à palavra do Mestre.
Discussões a esse respeito parecem estéreis e vãs aos Iniciados. Deus é concebido como absolutamente pessoal e distinto da criação dentro da qual Ele está presente, assim como o espírito do homem está presente em seu corpo, sem nada perder de sua unidade.

Dessa maneira, Deus está em nós, e não será numa região situada acima das nuvens que devemos procurá-lo e encontrá-lo. As emanações divinas, por toda parte em ação na Natureza, determinam três planos fundamentais de ação: o plano da emanação, o plano da formação e o plano da materialização. Basta conhecer os três mundos da Cabala para apreender todas essas divisões.

Nota 1.- É a Natureza quem preside nosso nascimento, quem nos dá uma pátria, uma família, relações de parentesco, uma situação econômica sobre a terra; tudo isso não depende de nós; tudo isso, para o vulgo, é obra do acaso: mas, para o filósofo Pitagórico, são conseqüências de uma ordem anterior, severa, irresistível, chamada Fortuna ou Necessidade. Pitágoras opunha a essa Natureza restritiva, uma Natureza livre que, agindo sobre as coisas inevitáveis como sobre uma matéria bruta, modifica-as, obtendo, à vontade, resultados bons ou maus. Essa segunda Natureza era chamada de poder ou vontade; é ela quem regula a vida do homem e quem dirige sua conduta segundo os elementos que a primeira lhe fornece. A Necessidade e o Poder; eis, segundo Pitágoras, os dois móbiles opostos ao mundo sublunar, onde o homem está relegado. Esses dois móbiles tiram sua força de uma causa superior, que os antigos chamavam Némesis, o decreto fundamental, e que nós chamamos de Providência. (Fabre D´Olivet)