COMO
FALA A VIDA
Pietro Ubaldi
Escutemos a história de um homem que ouvia vozes de todos os seres e com eles conversava.
Um dia, o vento enfurecia. E esse homem lhe falou: "Cala-te, não vês que danificas a vida? Arrancas as árvores, matas os animais, ameaças as pessoas. modera a tua corrida! Ninguém te impede de andar e, com um pouco de calma, chegarás da mesma forma ao teu objetivo, sem causar danos. Na Terra, não existis somente tu e os demais elementos. Há, também, a vida das plantas, dos animais, dos homens. Há lugar para todos, tanto para ti como para eles, porque todos devem viver”.
Ah! o vento não podia ouvir a voz nem compreender os conceitos, não sabia responder. Entretanto, o vento não é coisa morta. É energia, movimento, tem um corpo físico, embora gasoso, é vida. Há, na profundeza de todas as coisas, um oculto pensamento que elas ignoram e que lhes guia a existência. até nas formas mais simples das combinações químicas e movimentos atômicos. À medida que o ser sobe na escala da evolução, vai tomando pouco a pouco consciência desse pensamento.
Àquele homem sabia ouvir interiormente a voz desse pensamento, que, através do vento, como se ele falasse, lhe respondeu:
- É fatal que eu assim aja, porque fui feito assim e porque fatal é a força que me impele e arrasta. Sou a expressão que veste essa força e outra coisa não faço, senão exprimi-la porque ela é todo o meu eu. Quando ela quer e diminui o impulso, também eu paro. tornando-me carinhosa aragem para as plantas, os animais, os homens, para tudo o que chamas vida e que desconheço. Sou surdo e cego no plano cm que falas. Não sei o que seja sentir. Para mim somente o movimento é vida. Quando me falas das experiências desses seres, não sei o que estás dizendo. Não compreendo o mal que tu lamentas que eu faça, como seja arrancar e matar.
O
homem replicou:
- "Mas, por que não compreender?"
E a voz da vida respondeu:
- "O fato de não compreender é alguma coisa de que tens
conhecimento para que fales dela, mas de que eu não tenho, pelo menos
para as coisas que dizes. Só conheço o que diz respeito à
minha existência; somente a ela e não às outras. E como
aparentas compreender mais que eu, não entendes que não posso
conhecer mais que a mim mesmo? Também tu, conquanto mais adiantado
do que eu, não podes conhecer mais do que a ti mesmo.
"Vê bem: só tenho uma alma elementar, mecânica, sem direito de escolha, sem responsabilidade e sem outras coisas a que dás nomes que ignoro. Sou apenas um cálculo de forças uma fórmula dinâmica, uma férrea concatenação de causa e efeito, como dirias. Cabe a ti, que tens o que não tenho - a inteligência - como a denominas, estudar a minha realidade, que podes penetrar em sua estrutura e significado, coisas minhas que certamente existem e das quais eu nada sei, mas a que obedeço naturalmente. Ignoro quem o saiba por mim. Apenas obedeço. À ti cabe estudar e compreender-me, porque te sou inferior, não me cabendo penetrar-te, porque me és superior. E para evitar o que chamas de males, ignoro o que dizes que eu faço, para salvar deles os seres de que me falas, compete a ti e a eles, que me sois superiores, aprenderdes a defender-vos, não só porque sabeis mais que eu, senão também porque interessa à vossa existência e não à minha usar os meios necessários de cautela. Cada um deve aprendei a sua lição, vivendo. Eu, a minha; vós, a vossa. E já que tendes a disposição mais recursos do que eu, deveis aprender coisas mais complexas e difíceis. Pareço estar na ociosidade? Se me agito sempre, é porque também tenho o meu trabalho a fazer e as forças, que são a minha alma, devem resolver problemas e aprender soluções, transformações e equilíbrios que ignorais e que têm a sua função na harmonia do Todo em que estais e de que tenho necessidade. Tenho a minha função, que cumpro, na ordem das coisas. Não me podeis pedir mais”.
Em seguida, o vento retomou a sua corrida, que era a sua expressão de vida, e, sibilando, se elevou aos espaços.
O homem voltou-se então para uma planta que, cheia de folhas e de espinhos, havia invadido todo o espaço livre ao sol, sufocando as plantas vizinhas, e lhe disse: "Por que és assim egoísta e malvada, prejudicando os teus semelhantes vizinhos, para que tu sozinha possas viver?"
"Malvada, egoísta?" - respondeu a planta e continuou:
Que significam estas palavras? E natural que eu cuide apenas da minha vida, da mesma forma que os outros só cuidam da sua. Não tenho que viver? Possuo o mesmo direito que os outros. Por que deveria preocupar-me com eles, se não se preocupam comigo? Por que evitar sufocá-los, se eles estão sempre prontos a fazer isso contra mim, em seu proveito? Se possuo os meus acúleos, é porque por mim mesma aprendi a formá-los, a fim de que os animais não me comam e mãos como as tuas não me arranquem da terra. Como poderia agir de outra forma para defender-me e para fazer-vos compreender o meu direito de viver, senão através do vosso dano, único ao qual sois sensível? Se quiser viver, esta defesa é necessária. Por minha conta tive de aprender que não me resta outro modo de viver. Tudo isto foi o que a vida, com a sua dura escola, me constrange a aprender e tu sabes que todo ser deve aprender a sua lição.
O homem acrescentou: "Mas, por que não procuras compreender, além da tua vida, também a vida dos teus semelhantes, para que haja lugar para todos e todos possam viver?"
E a voz da vida, respondeu: "Mas, compreenderão porventura, os outros a minha? Somos inimigos, rivais. O lugar ao sol existe para os vencedores A vida certamente se defende, mas através do meu trabalho, pois devo aprender a vencer por mim mesma. Essa é a lição que a vida me impõe. Não existem em meu mundo o que chamas piedade e bondade. Há somente a férrea justiça do mais forte. Este é o melhor entre os de seu nível, sendo justo que ele vença. Se me transportares para um ambiente protegido, então eu me domesticarei e perderei os espinhos. Mas, assim civilizada, eu me enfraqueço e, se me abandonares, morrerei. Desta forma, vês que a minha rudeza é necessária e obrigatória, pelo menos enquanto eu estiver entregue a mim mesma. Cabe a ti, que te encontras em nível superior e possuís meios para melhor compreensão, e não a mim, fazer com que existam no mundo piedade e bondade. Executo honestamente a minha parte de trabalho no organismo universal, produzindo a síntese química da vida do mundo inorgânico. O resto exorbita ao meu labor. Cumpro assim a minha função na ordem das coisas, evidentemente no meu nível. Não me podes pedir mais.
O homem se voltou, então, para um animal que avidamente espreitava a presa, dizendo-lhe:
-
“Por que este assalto contínuo? Vós, animais, sois superiores
às plantas, tendes liberdade para correr e voar, possuís olhos
e ouvidos, tato e olfato, muitos sentidos e possibilidades desconhecidas
pelas plantas. Por que permaneceis sob a lei feroz desta, que vos é
tão inferior?"
E a voz da vida replicou:
- "Se nós somos superiores à planta, e mais coisas podemos perceber, não temos, porém, liberdade para agir. A nossa vida acumula experiências sensórias, mas não temos, como tens, as que chamas de experiências morais e espirituais. Não somos livres para escolher, devendo seguir fatalmente a lei que nos impele sempre nesse caminho, fazendo-nos agir assim. Nós nos alimentamos, procriamos, vivemos quase mecanicamente, como quer uma lei que desconhecemos. Esta é toda a nossa vida e outra não conhecemos. Que pretendes acrescentar? Esta é a nossa experimentação, é a lição que devemos aprender. Dessa forma, tudo vai bem para nós. Estando em plano mais elevado, podes viver assim. Se nos levares para vivermos contigo, poderás modificar-nos, domesticando-nos. Todavia, permanecerás sempre distante, porque não podemos seguir-te".
Em seguida, o animal fugiu em perseguição da presa. seguindo cegamente o seu instinto.
O
homem voltou-se, então, para um seu semelhante e lhe disse:
- "Eis finalmente um igual a mim. Resumes todos os seres com que tenho
falado até agora. Tens as férreas leis físicas do vento,
a sabedoria vegetativa da planta, os sentidos e o instinto do animal, além
de uma qualidade nova - a tua liberdade de escolha, o mundo moral com as
suas conseqüências. Tu, que dispões de tudo, por que não
és perfeito, por que caís em culpa?"
O
homem respondeu
- "Caio, porque não sou perfeito. Se peco, é exatamente
porque possuo uma qualidade nova. Sou livre, tenho responsabilidade e o
direito de escolher".
O animal é mecanicamente sincero na sua ferocidade e não peca,
pois que não dispõe de liberdade; não compreende e
não pode escolher. A sua visão não se eleva acima de
sua Lei, simples, quase mecânica. Eu a domino porque vejo de mais
alto, mas ele está encerrado nela. Menos sujeito a errar, é
um autômato movido por uma mais profunda sabedoria, que não
é sua, mas que tudo sabe. Devo aprender a manejar uma potência
diversa, diretora, o que implica lutas que o animal ignora. Devo viver a
Lei de Deus, não como cego instrumento constrangido por impulsos
íntimos, através dos quais a Lei se faz presente, mas devo
vivê-la por livre escolha para assim chegar a compreender a lógica
e a bondade dessa Lei e, dessa maneira, tornar-me consciente dela. Esta
é a minha experimentação e, se cada um tem a sua lição,
esta e a lição que devo aprender. A Lei é única
para todos, mas é diverso, segundo os planos evolutivos, o conhecimento
que o ser atinge dela. Os elementos, a planta, os animais, aplicam-na em
graus diversos, sem nada saber a seu respeito. Só o homem consegue
conhecê-la, para livremente segui-la, depois de ter tomado consciência
dela, um instrumento, espontâneo executor, porque compreendeu que
só nessa ordem está o seu bem e a felicidade.
"A minha vida é dura e difícil, repleta de fadigas e esforços, de abismos que a mecânica do instinto ignora. O animal obedece cegamente, até à brutalidade, às leis da fome e do amor e não pode superá-las. O homem, mesmo sentindo-as prepotentes, como as sente o animal, tem pela superior natureza humana, possibilidade que ele não possui, de sobrepor-se-lhes e subjugá-las: pode completar a catarse biológica ignorada pelo animal, do herói, do gênio, do santo, do místico, que o conduz a um plano de vida ainda mais elevado, no qual as conhecidas características da animalidade são subjugadas e, vencidas. Se no homem ainda sobrevive a besta, já existe em germe o anjo. O homem sofre e luta justamente para desenvolver em si esse germe e tornar-se anjo. Essa é a fase evolutiva que me compete viver. Se, por isso, eu posso criar muito mais do que o animal, porque sou livre também sofrendo posso aprender muito mais do que ele, através de lições que de modo nenhum ele pode conhecer. Enquanto a sabedoria do animal consiste em aguçar os sentidos e as possibilidades físicas, e nisto está toda a expressão de sua vida, eu aguço os sentidos, os meios morais e espirituais, cuidando cada vez mais destes últimos. Quando o animal tiver conseguido ver e ouvir de mais longe, a farejar com maior delicadeza, para assim vencer com meios cada vez mal perfeitos a lula pela vida, terá assim aprendido completamente a lição. Eu terei aprendido a minha somente quando tiver conseguido ver e ouvir com maior bondade e justiça para todos, para vencer a luta pela vida, não destruindo o meu semelhante, mas com ele coordenando-me e colaborando na ordem divina".
Então o homem que ouvia a voz da vida dirigiu-se a um anjo e lhe disse; "Õ tu bem-aventurado que vives nos céus, distante do inferno terrestre e que progrediste muito mais do que nós, por que não nos ajudas? O animal se equilibra em sua ignorância, guiando apenas pelo instinto, parecendo estático. Mas o homem. quanto mais sobe, tanto mais adquire consciência da Lei, para melhor ver que longa estrada ainda tem a palmilhar e quanto está atrasado no caminho para a meta final!".
E o anjo explicou; "Eu estou mais avançado do que tu mas ainda muito distante da perfeição infinita de Deus. E pareço bem-aventurado e o sou de fato. relativamente ao que representa a vida na Terra. Pareço-te bem-aventurado, despreocupado de fadigas e lutas, mas também nós as temos e grandes. embora elas só visem ao bem. Justamente porque compreendo mais do que tu, meus deveres são maiores do que os teus. A fatal transformação em que consiste a existência, para nós mais vizinhos de Deus, se torna uma ascensão rápida. Vivemos mais diretamente atingidos pelos raios divinos do Amor, não podendo viver senão para os outros. Poderemos ser felizes, mas vimos colher na Terra as vossas dores que tornamos nossas para o vosso bem, só porque assim podemos melhor sentir Deus. A nossa não é uma beatitude ociosa. Esta é a nossa experiência e, se cada qual deve ter a sua lição, esta é a lição que devemos aprender. Quanto mais subimos, tanto mais nos tornamos fortes operários, porque nos transformamos em mais poderosos instrumentos de Deus na realização do Seu plano no universo. O paraíso seria um inferno se abrigasse alegrias egoístas como as vossas. Sem um trabalho permanente, perderemos as nossas qualidades e volveremos a formas inferiores de vida. Aqui fervilha o trabalho do bem, como embaixo se agita o do mal. Aqui se respira Amor, como embaixo se respira ódio. E nós somos os canais do Amor, que recebemos de Deus, para fazê-lo descer até vós. Ele dirige a grande harmonia da vida, a imensa sinfonia do universo, da qual nós somos as notas mais altas e vos as mais baixas".
Então, o homem voltou-se para Deus e Lhe falou: "Senhor, agradeço-te me haveres dado, pelo Teu Amor, o supremo dom de existir. Tu me fizeste um "eu sou", à Tua imagem e semelhança, no seio do Teu infinito "Eu Sou". Assim, eu existo em Ti, assim eu canto uma nota na grande orquestra do Teu Universo, sou um operário, embora ínfimo da Tua obra uma célula, ainda que diminuta, do Teu grande organismo".
Enquanto assim orava, o homem volvia o olhar para todas as formas do ser e via as criaturas irmãs, hierarquicamente dispostas de acordo com os graus de evolução, cada qual em seu lugar no grande edifício da criação, cada uma com a sua função na ordem universal, cada elemento útil no grande organismo do Todo.
E a cada uma, segundo a respectiva posição, a voz da vida lhe havia falado, conforme à lei dominante no plano em que cada ser se coloca, revelando limites e deveres proporcionais. Mas contra a fatalidade de permanecer encerrado, o esforço próprio, de trabalho e dor, abre as portas, podendo o ser subir cada vez mais para a suprema glória do divino. Esta é a grande experimentação de toda vida, esta é a lição que cada qual deve aprender O divino freme nas profundezas de todo ser. O espírito adormecido deve despertar para chegar até Deus. Em todos os níveis, tanto baixos quanto elevados, se revela o animador e íntimo pensamento de Deus.
Então
o homem sentiu que havia compreendido o universo e abriu os braços
a todos os seres, cuja voz ouvia e disse: "Aperto-vos todos no Amor
de Deus. Fundidos todos no mesmo amplexo, subi comigo, subamos unidos para
Ele. Vós de cima, prodigalizando amor; nós, inclinando-nos
para os inferiores e ensinando-os a subir. E os inferiores aceitando o dom
de sacrifício e amor dos superiores, que procuram ajudá-los
a conquistar com justiça a própria felicidade.
Só assim unidos em um amplexo, nós, criaturas dispersas no
infinito pulverizado da forma, poderemos encontrar-nos e, refundidos em
um só organismo, poderemos, através do amor, reconstituir-nos
no Uno-DEUS.