As
bodas de Caná
Segundo Paul Lê Cour
Contrariamente aos sinóticos, que declaram que, depois do batismo, Jesus Cristo se retirou para o deserto, onde foi tentado por Satanás, que lhe ofereceu o império do mundo, o 4o Evangelho nos diz que, três dias depois desse batismo, Cristo assistiu às bodas de Caná, de que os outros Evangelhos não falam.
Precisamos, portanto, fazer uma escolha entre essas narrativas contraditórias. Ora, a primeira é bastante inverossímil, pois não se compreende como Satanás podia ignorar que Cristo era o Criador do mundo, cujo domínio ele pretendia oferecer-lhe.
A narração do 4o Evangelho é, aliás, de uma importância capital. Cristo acaba de se incorporar no organismo de Jesus e assiste, não se sabe aliás por que, às bodas de Caná. Ora, Maria, que não via o filho há algum tempo, pois ele se encontrava entre os essênios, não se apercebeu da mudança ocorrida e mostra-lhe que está faltando vinho. A isto Cristo responde: "Mulher, que há de comum entre mim e ti? Essa frase, que seria espantosa na boca de Jesus, é perfeitamente compreensível da parte de Cristo.
Ela fez empalidecer os teólogos, que se esforçaram por minimiza-Ia,
dizendo que no Oriente a palavra "mulher" (em lugar de mãe),
nada tinha de pejorativo, e por isso traduzem assim: "Mulher, o que
isto tem a ver contigo e comigo?"
Outros, como Renan e Guignebert, considerando que Jesus não passava
de um homem que acreditava estar investido de um messianismo, fazem dessa
frase uma expressão de repúdio dessa mãe, à
qual ele não se sente mais ligado.
Interpretação injusta porque, mesmo admitindo-se a tese de um Jesus-homem, não se lhe pode negar seu alto valor moral.
A tradução de Lemaistre de Sacy comporta, em itálico,
a palavra "comum". Os demais tradutores escrevem apenas:
"Que há entre mim e ti?" Lemaistre de Sacy tornou explícito,
portanto, o sentido injurioso dessa resposta. Em todos os tempos ela perturbou
os crentes, que se perguntavam "como um Deus encarnado podia falar
assim àquela a quem ele devia a sua natureza humana". E constatamos
que todas as explicações nada mais fIzeram do que complicar
ainda mais o problema. Então resolveu-se "fechar os olhos e
renunciar a compreender."
"Não só os crentes ficaram desconcertados com a resposta
do Cristo. Também os críticos, diante dela, encheram-se de
um espanto que não conseguiram dissimular... Eles tinham de explicar
como um escritor começa por nos apresentar o Verbo encarnado e depois
lhe põe entre os lábios palavras de blasfêmia contra
a própria mãe... Com a interrogação, o sentido
é:
'Prova, então, se podes, que eu te devo alguma coisa, que existe qualquer coisa de comum entre nós!' E, para completar o desafio, Maria é apostrofada com o nome de 'mulher', que significa, nesse caso: 'Pensam que és minha mãe... mas, na realidade, não és minha mãe, e eu não te devo nada'; a réplica: 'Que. existe de comum?...' contém uma negação formal, espantosa, da maternidade divina de Maria."
Houve quem procurasse atenuar o efeito desastroso dessa resposta de Jesus
a Maria interpretando-a da seguinte maneira: "Que importa a ti e a
mim; minha hora ainda não é chegada." Ora, essa interpretação
não é aceitável, porque a hora em que o Cristo, encarnado
no corpo de Jesus, ia manifestar seu poder, era, ao contrário, chegada,
pois ele ia fazer o seu primeiro milagre.
Que se trata de um documento essencial do Evangelho joanino isso parece
evidente. E tem por formalidade demonstrar a incorporação
do espírito do Cristo no corpo de Jesus.
Notar-se-á que o evangelista escreveu: "A mãe de Jesus
estava lá.'! Ele não diz: "A mãe do Cristo."
Lemos, por outro lado, no Evangelho segundo São Lucas, cap VIII,
versículos 20 e 21, que, certo dia, vieram dizer a Cristo: "Tua
mãe e teus irmãos estão lá fora e desejam falar-te."
E Cristo respondeu: "Minha mãe e meus irmãos são
aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática. "
"Quanto ao milagre da transformação da água em
vinho, todas as correntes exegéticas submeteram-no a duras provas;
os próprios comentaristas ortodoxos, tanto antigos como modernos,
não conseguiram resistir à tentação de regateá-lo
ou de torná-lo mais aceitável, mediante toda espécie
de explicações, que só se diferenciam das dos racionalistas
por um excesso de absurdos" (Reuss).
De acordo com Jean Réville, essa transformação da água
em vinho seria apenas simbólica; a água representaria a Antiga
Aliança e o vinho, a Nova, que Cristo veio colocar no lugar da Antiga.
Tratar-se-ia da continuação da purificação do
Templo de Jerusalém e do anúncio da construção
de um novo Templo; do novo nascimento, em oposição ao antigo;
do anúncio à Samaritana do culto em espírito; da substituição
de uma ordem antiga por uma nova ordem. E é porque Maria ainda está
ligada ao antigo regime que Cristo teria dito "Mulher, que há
de comum entre mim e ti'!" Explicação claramente insatisfatória.
Reuss observa que houve quem visse nesse milagre uma transformação
dos elementos, semelhante à que ocorre, todos os anos, na uva; mas
ele não atribui nenhum valor a essa interpretação.
Contudo, esta é a interpretação que devemos guardar,
como seqüência da íntima associação entre
o Cristo e o sol, cujos raios transformam a água dos cachos de uva
num licor vivificante. Esse milagre é feito todos os anos; nós
o constatamos sem lhe dar atenção. Aliás, chama-se
"água de vida" o produto da destilação do
vinho que encerra mais especialmente a vida solar.
Nos mistérios órficos, como no cristianismo, o vinho desempenhava
um papel importante, pois ele era o sangue de Dionisos, que se transforma
no sangue de Cristo.
Essa passagem do 4o Evangelho tem outra finalidade: a de mostrar que Maria é mãe apenas de Jesus, e isso em contradição com a futura decisão do Concílio de Efeso, que lhe atribuiu o título de "Mãe de Deus".
Nosso Evangelho esotérico coloca as coisas em seu lugar; porque Maria
não poderia ser chamada de "mãe de Deus"; ela pode
ser comparada a Leda, que dá à luz Castor e Pólux,
sob a influência, também, de um pássaro simbólico,
que representava o Espírito do Pai Celeste. Esotericamente, ela é
a mãe de Jesus e de João, como o mostram os quadros dos pintores
iniciados, e veremos Jesus na cruz e João a seus pés, ambos
juntos da Virgem.
Foi em 431 que Maria, Mãe de Jesus, foi proclamada "Mãe
de Deus" pelo Concílio de Efeso. Até então, os
primeiros cristãos não lhe dedicavam nenhum culto particular.
Ela quase não é citada nos Evangelhos; o de João só
a menciona duas vezes: nas bodas de Caná e no Calvário. Seu
nome aparece uma única vez no livro dos Atos (1,14), que data dos
anos 50 a 70 depois da morte de Jesus. Depois do Concílio de Éfeso,
os nestorianos se separaram da Igreja de Pedro, pois não admitiam
que Deus pudesse ter uma mãe. Tempos depois, os cátaros e
os protestantes também rejeitaram o seu culto.
Com seus outros filhos, Maria apenas fazia parte da primeira comunidade
cristã.
A devoção de alguns cristãos para com Maria é
explicada pela necessidade que têm as almas, mais sentimentais do
que intelectuais, de se dirigir, não ao aspecto masculino de Deus,
mas a seu aspecto feminino, pois a divindade pode ser considerada, à
vontade, sob um ou outro desses aspectos. (De fato, no Evangelho joanita,
Cristo, só fala no Pai.)
Houve divindades dessa natureza em todas as épocas.
Entre os gauleses, é Koridwen; no Egito, é Ísis; na
Grécia, Artêmis, Deméter e Atenas; entre os romanos,
Diana; entre os hindus, Kâli, etc...
Ora, deve-se notar que Maria reunia os caracteres de todas essas divindades: como Ísis, segura uma criança nos braços; como Diana, tem uma lua crescente sob os pés; como Atenas, está acompanhada por uma serpente e, como ela, é virgem (parthenos quer dizer virgem).
Por outro lado, há três modos de se considerar a divindade
feminina: a dos gregos, com a mãe dos deuses, dos iniciados; a dos
hindus, com a Mãe-Deus, isto é, com o aspecto feminino de
Brahma ou de Vichnou; e a dos cristãos, com a Mãe de Deus.
Esotericamente, o aspecto feminino, o paredro do Deus absoluto "que
é espírito", é a matéria-prima que ele
gerou, a matéria virgem, a Virgo materia dos hermetistas, que se
tomou a Virgo Maria.
O aspecto feminino do Cristo é Sophia (o equivalente de Minerva Atenas).
A primeira basílica cristã, Santa Sofia, foi consagrada à
Sophia. Era a Sophia que os gnósticos e os iniciados cristãos
dirigiam suas homenagens. (Louis Claude de Saint Martin tinha uma devoção
particular por Sophia.).
Quanto ao aspecto feminino de Ioan, sucessor de Poseidon, é Ge-Deméter,
a "mãe dos deuses". Os maçons, construtores de catedrais
predecessores dos franco-maçons, chamavam-na de "Nossa Senhora",
e é ela que aparece, sob a estátua do Cristo, na porta central
de Notre-Dame de Paris .
Eis, portanto, os diversos aspectos da Mãe, e era necessário
dizer algo de preciso sobre este assunto.
Esse culto de uma divindade feminina costuma ser acompanhado de práticas
supersticiosas, de acomodações singulares, como na Espanha,
onde a mulher pública reza à Virgem que a faça encontrar
um amante passageiro; ou como o passeio, na França, de uma estátua
da Virgem acompanhada de manifestações entusiastas, enquanto
se arrecadam milhões durante o trajeto; como na India, onde os devotos
se deixam esmagar pelas rodas do carro de Kâli, puxado por uma multidão
em delírio.
Essa devoção, aliás, era própria dos arianos;
ela não existia entre os semitas, entre os quais a mulher, que gozava
de muito pouca consideração, não era admitida na sinagoga
e não recebia nenhuma instrução.
Não seria o Cristo, sob o seu aspecto feminino de Sophia, que apareceu
a uma pequena pastora em Lourdes, onde, a partir de então, passou
a fazer numerosas curas, o que se explica por ser ele a vida, a força
vital? Além do mais, em Lourdes, uma fonte que brota da terra possui
virtudes miraculosas. Mas sabemos que a fonte, o rio, são o símbolo
do Conhecimento. E figura nos quadros de Leonardo, que era joanita.
A expressão: "Eu sou a Imaculada Conceição"
que a aparição teria pronunciado, deveria, parece, ser interpretada
de uma forma completamente diferente do que a que se costuma fazer. Aliás,
declarar que Maria não foi marcada pelo pecado original parece de
muito pouca importância. Ao contrário, trata-se da idéia,
do conceito de que a pureza é necessária para gerar, por si
mesma, o novo homem, o “Christos”, temos, então, uma
lição importante e tradicional.
Já se disse que essa aparição usava a roupa própria
das druidesas. Se assim foi realmente, teríamos aí mais uma
prova das relações existentes entre o cristianismo e o druidismo.