A
QUEDA DOS ANJOS
Pietro Ubaldi
Concluída a precedente ordem de conceitos, abre-se diante de nós uma outra visão, numa ordem de conceitos afins e conseqüentes que o leitor encontrará em germe, primeiramente em: A Nova Civilização do Terceiro Milênio, cap. X: "O Problema do Mal", e cap. XIII: 'Problemas Últimos"; e depois no volume Problemas do Futuro, caps. XV e XVI: "Deus e Universo".
O capítulo anterior havíamos explorado, sem desenvolvê-lo,
este tema: "A criatura é livre, podendo, pois, agir contra o
sistema". Aprofundemos aqui, como antes não pudemos fazê-lo,
essa tese, desenvolvendo-a e analisando-lhe todas as conseqüências.
Como ocorreu essa monstruosa revolta de algumas células do grande
organismo-universo, que, ao invés de funcionar harmoniosamente nele,
contra ele se puseram, rebelando-se? Onde se encontra a primeira raiz dessa
anarquia na ordem? Importante questão que se vincula ao problema
da gênese do mal, da sua presença no mundo e da sua solução
final.
Para compreender, observemos a estrutura do sistema. Ela se baseia em alguns
princípios fundamentais como o egocentrismo e a liberdade. A criatura,
parte integrante do sistema, foi constituída como um esquema menor
do esquema maior, cujo centro é Deus, de acordo com o princípio
já mencionado dos esquemas de tipo único. Essa dádiva,
porém, de Deus, pelo qual a criatura fora feita à Sua imagem
e semelhança, constituía um poder muito perigoso se não
fosse bem usado, pois continha em germe a possibilidade de um transviamento,
possibilidade que o ser, exatamente pelos princípios do sistema,
deveria enfrentar com as suas forcas. E as conseqüências, quaisquer
que fossem, deviam ser suas, pois significa responsabilidade, em um sistema
de ordem e justiça, a conseqüência do princípio
de liberdade.
A quem objetar que um sistema perfeito não deve conter a possibilidade
de erro, deve-se contestar que essa possibilidade. que não é
absolutamente necessidade, está implícita nos princípios
supracitados, como sua conseqüência necessária, de modo
que, para suprimi-la, seria imperioso suprimir os princípios que
dão causa, cujo valor não se discute E natural que, onde exista
um "eu" livre, seja também possível o mau uso da
liberdade. E nem por isso o valor desta decresce. De outra forma não
nos encontraríamos em um sistema de liberdade, mas de determinismo,
no qual as criaturas não passariam de autômatos. Ora, Deus
não criou seres dessa espécie, mas sim criaturas participes
das suas próprias qualidades. Dada a estrutura do Sistema, gera-se
uma cadeia de férrea lógica, que conduz dos princípios
a essas conseqüências. A criatura deveria, pois, necessariamente
encontrar-se ante a encruzilhada da escolha.
O ser, portanto, dada a sua estrutura e a do sistema em que existia, deveria
achar-se diante da possibilidade do erro. Em outros termos, o ser passava
por uma prova, por um exame, de cujo resultado dependeria a sua futura posição,
por ele livremente escolhida. Ora, que o sistema contivesse a possibilidade
de um erro, não significa absolutamente fosse ele construído
errado ou defeituoso. Tanto é verdade que ele, como veremos, de fato
não se arruinou pelo erro cometido; pelo contrário, por ser
perfeito, tinha capacidade de auto-regeneração. O Sistema
estava acima do erro nele possível, e fora constituído para
permanecer íntegro, inabalável, para qualquer acontecimento.
Por isso podia permitir em seu seio uma possível violação
e desordem, tanto mais quanto essa possibilidade tinha uma função,
a de aprovar o ser dando-lhe, segundo o princípio de justiça,
se superasse a prova, o pleno direito de aquisição da sua
posição de filho de Deus, somente depois de havê-lo
merecido. O Criador exigia da criatura uma livre aceitação
do Sistema, um espontâneo reconhecimento das recíprocas posições
nele, para então poder conceder ao ser uma livre co-participação
em Sua obra, como o Sistema requer, o que seria impossível com uma
criatura escrava ou um autômato.
A prova da livre escolha não foi, pois, um capricho, um' acaso ou
um erro do Construtor, mas fez parte integrante da lógica do Sistema,
como necessária conseqüência dos princípios que
o constituem. A estrutura do edifício de conceitos e forças
do Sistema, a natureza do Criador e a da criatura, os fins a atingir além
da prova, tudo isto conduzia à necessidade de que a criatura devesse
encontrar-se só e livre na encruzilhada da escolha. A possibilidade
de erro estava implícita no Sistema, não como uma imperfeição,
prelúdio de fracasso, mas como um elemento definido e desejado para
determinados fins, como sua força e não como sua fraqueza.
Veremos, efetivamente, que esses fins são igualmente atingidos também
por outra via e que a obra da criação permanece igualmente,
como um triunfo do plano de Deus.
Os dois princípios acima aludidos, egocentrismo e liberdade comuns
também as criaturas, faziam delas tantos menores eu "sou",
semelhantes a Deus, como tantos Deuses menores em função de
Deus. Deus quis a criatura assim feita, à Sua imagem e semelhança,
Nem o ser Dele saído poderia ser de natureza diversa da Sua. Em um
sistema de esquema de tipo único, a criatura não podia deixar
de ser um "eu sou", centro autônomo e livre, como é
o Criador. E, então, a estrutura do Sistema, como a natureza da criatura,
estando baseadas no princípio da liberdade, tudo quanto dissesse
respeito á criatura não podia ter curso sem o seu consenso.
Ademais, existia um terceiro princípio, fundamento do universo espiritual
- o do Amor - mercê do qual Deus não é egocêntrico
senão para irradiar em Amor. Assim sendo, o Sistema de Deus não
pode basear-se na coação, assim como, em virtude do princípio
de liberdade, não pode basear-se no determinismo, mas apenas na adesão
espontânea. Deus, por ser Amor, não pode querer a criatura
forçadamente prisioneira do Seu Amor. Ele limita-se a atrai-la. Eis
uma nova característica do Sistema, que não pode admitir da
parte da criatura, senão uma correspondência de caráter
espontâneo, sem a qual não há amor. Não é
possível, forçadamente gravitar-se em direção
a Deus, por amor. Assim, pois todo o Sistema, ainda por esse principio,
impunha a livre escolha, qual passagem obrigatória para valorização
do ser, que devia, antes de aceito, conquistar plenamente esse direito,
demonstrando livremente haver compreendido, aceito e querido corresponder
ao Amor de Deus. Mesmo sob esse aspecto, a prova corresponde à perfeita
lógica, pois que o Amor, para ser tal, não pode deixar de
ser espontâneo e recíproco. Estar o Sistema fundamentado no
Amor é outro fato a implicar que ele deve basear-se, também,
na liberdade. 1iberdade e Amor são conexos. Este pressupõe
aquela. Um sistema que não se fundamentasse na liberdade não
o seria no Amor. Os princípios que regem o universo são estreitamente
correlatos. Todos eles se podem reduzir a um só, do qual todos estes
derivam - o Amor. Foi por amor que Deus quis a criatura egocêntrica,
feita à Sua imagem e semelhança, participe das Suas próprias
qualidades. Foi por amor que Deus quis a criatura livre, a fim de que ela
livremente compreendesse e retribuísse esse amor.
Entendidas a necessidade, a lógica e a utilidade da prova, observemos como se comporta o ser neste momento supremo.
Eis a criatura, substancialmente espírito, centelha de Deus, apenas
destacada do seio do Pai que a gerou. Ela fita o Centro, do qual derivou
por ato de Amor, a que deve a sua existência. A estrutura do sistema
impõe uma resposta sua a esse ato, a correspondência de um
recíproco ato com que essa criatura, por sua livre aceitação,
confirme ou renegue, como queira, permaneça no Sistema ou dele se
desligue, ponha-se dentro ou fora dele, agindo livremente e definindo, assim,
a sua posição. O Criador respeita tanto a liberdade que Ele
deu à criatura, fazendo-a à Sua imagem e semelhança,
que submete a Sua obra de Criador a essa criatura, como ocorre no consentimento
necessário de duas partes num contrato bilateral. Somente quando
a livre criatura tiver dito: "Sim", a criação estará
completa, aperfeiçoada até a esse momento, em que a criatura
é quase chamada, com seu consentimento, a colaborar. Parece enorme,
absurda, tanta bondade. Mas essa é a estrutura do Sistema, assim
quer o Amor de Deus.
Eis o ser diante de Deus. Apenas criado, ele ainda não falou. Deve
dizer agora a sua primeira palavra, que Deus lhe pede em resposta ao Seu
ato criador: a palavra decisiva. Deus lhe fala primeiramente: "Olha,
ó criatura, o que há diante de ti. Eu sou o Pai que te criou.
Quis fazer-te da Minha própria substância, um "eu sou",
centro, livre como "Eu Sou". Fiz-te grande com a minha grandeza,
poderoso com o meu poder, sábio com a minha sabedoria. Fiz assim
espontaneamente, por um ato de Amor para contigo, minha criatura. A este
Meu ato falta somente um último retoque para ser perfeito e ele deve
partir de ti. Espero-o de ti, que o farás com plena liberdade. Ofereço-te
a existência como um grande pacto de amizade. Ele é baseado
no Amor com que te criei e a que deves o teu ser. Podes aceitar ou não
este Meu Amor. Todo pacto é bilateral, toda aceitação
de amor deve ser espontânea. E absurda uma imposta correspondência
de amor. Escolhe Vê o que Eu já fiz por ti. Eu ti precedi com
o exemplo. Tu me vês. Olha e decide. Qualquer pressão Minha
fará de ti uma criatura escrava e Eu te quis livre, porque deves
assemelhar-te a Mim. Para que Eu pudesse amar-te como quero, devias ser
semelhante a Mim. Não se pode pedir Amor a um escravo, mas somente
obediência imposta, o que está fora do Meu sistema e seria
a sua inversão. Vem pois, a Mim, corresponde ao Meu Amor que te chama
e te atrai Confirma a Minha obra com a tua aceitação. Por
tua livre escolha. consente, entra e coordena-te no Meu Sistema, do qual
Eu sou centro. Subordina o teu "eu sou" menor ao "Eu Sou",
o Uno-Deus, supremo vértice que rege o Todo. Reconhece a ordem da
qual Eu sou o chefe. Promete obediência à Lei que exprime o
Meu pensamento e vontade. Por Amor te peço, pois que és meu
filho, que me retribuas o Amor com que te gerei".
Após essas palavras, por um instante ficou suspensa a respiração
do universo, enquanto as falanges dos espíritos criados oscilavam
em cósmicas ondulações. O ser olha e pensa. Ele sente
o poder que lhe vem do Pai, uma imensidade que o torna semelhante a Deus.
É livre, como um "eu sou" autônomo, senhor do seu
sistema, das suas forças e equilíbrios interiores. A sua própria
estrutura, permeada de divina grandeza, impele-o a repetir em sentido autônomo,
separatista, o egocentrismo que ele continha do "Eu Sou" máximo:
Deus.
Mas, do outro lado há uma força oposta, anti-egocêntrica,
tendente a neutralizar a primeira: o Amor. Ele se manifesta como silenciosa
atração, que se impõe por bondade. Quem compreendeu
esse apelo, verdadeiramente compreendeu Deus.
As duas forças, assim diversas, movem as falanges dos espíritos,
que as examinam e pesam. Belo é o Amor, mas acarreta uma renúncia
cheia de deveres, uma renúncia à plenitude total do "eu
sou", implica obediência, o reconhecimento de uma posição
subordinada. Eis o perigo tentador: exagerar, em seu juízo, a própria
semelhança com Deus e admitir uma pretensão de identidade.
Ao invés de seguir o caminho do Amor, coordenando-se com obediência
na ordem, tomar a via oposta. Devendo coordenar o próprio "eu
sou", reforçar sua autonomia, fazendo-se isoladamente centro
do sistema com sua própria lei. Imitar Deus somente para superá-Lo.
Responder ao doce apelo de Amor com um desafio: "Não! Deus,
eu, criatura, sou maior do que Tu. Eu sou Deus, não Tu"!
Então, muitos "Deuses" menores, feitos de substância
divina, livremente decidiram tornar-se "Deuses" maiores, iguais
a Deus. A escolha foi por eles feita, e o universo, abalado até aos
fundamentos que estão no espírito, estremeceu e parte dele
desmoronou, involvendo na matéria. Mas não foi assim para
todos os seres. A balança em que foram colocados os dois impulsos,
para uma outra multidão de espíritos se inclinou, ao invés,
para o lado Amor, oposto ao da rebelião por orgulho.
Eles reconheceram a superioridade de Deus e se fundiram na Sua Ordem, tornando-se-Lhe
colaboradores, livremente aceitando-a e compreendendo. Os primeiros não
quiseram reconhecer a Sua supremacia; destacaram-se da Sua Ordem e se transformaram
em demolidores. Não quiseram aceitá-la e corresponder. Seu
chefe foi Lúcifer. Precipitaram-se, assim, para fora do sistema,
em posição invertida que lhes será a característica
de toda a existência.
É certo que a queda foi devida à falta de conhecimento das
conseqüências da revolta, mas é também certo que
a criatura não poderia ser onisciente, igual a Deus. Pode-se objetar,
então, que, se ela ignorava, como lhe pode ser imputada a culpa de
haver caído? Deus deveria tê-la dotado do conhecimento suficiente
para compreender antecipadamente as conseqüências da desobediência,
de modo a não incidir nela. A tal objeção pode-se contrapor
que a criatura assim teria seguido Deus unicamente no seu egoístico
interesse, a fim de furtar-se a um dano e não por amor. Ora, um ato
de aceitação tão fundamental no sistema, não
poderia basear-se num interesse nascido do egoísmo, isto é,
em um princípio antípoda àquele que rege todo o sistema,
como é o Amor. Ele deveria resultar de uma espontânea adesão
por amor, ao compreender a bondade do Criador. Como é fundamental
no sistema o princípio do Amor, prova-o o fato de o próprio
Deus, no seu aspecto imanente, ter seguido o Sistema desmoronado para reconstruí-lo,
jamais abandonando a criatura por mais injusta e rebelde que fosse. E Deus
não lhe pedia senão uma prova de amor! Os espíritos
obedientes a deram, ainda que em conhecimento sendo iguais aos espirites
caídos.
Tiveram, então, início no ser decaído, duas vias opostas,
que o distinguem. De um lado, o orgulho, o mal, a dor, as trevas, o caos
e, consequentemente a criação e vida na matéria. Do
outro a obediência, o bem, a luz, a ordem e a vida perfeita do puro
espírito. A queda é a involução, da qual se
sobe redimido pelo esforço da evolução, absorvendo
o mal em dor, edificando-se pelo sofrimento com a experiência da vida,
assim se desmaterializando e espiritualizando na ascensão ao encontro
de Deus, que não abandonou o ser que caiu, mas apenas lhe disse:
"Destruíste o esplêndido edifício. Contudo, continuas
a ser meu filho. Reconstruirás, porém, tudo com o teu esforço".
Usamos neste capítulo a expressão "queda dos anjos",
porque tradicional e de mais fácil compreensão. Todavia, é
bom esclarecer ser ele uma expressão antropomórfica, que reduz
o fenômeno às dimensões inferiores da matéria.
Ainda que acanhado, o antropomorfismo constitui uma necessidade, porque,
embora contenha o defeito de desfigurar o real aspecto do fenômeno,
tem o valor de aproximá-lo de nosso mundo tão diferente. Cumpre-nos,
pois, aqui realçar que a expressão "queda dos anjos"
representa uma redução da realidade, na medida limitada da
psicologia humana. De fato, o fenômeno ocorreu em planos de existência
tão elevados, que para nós se situam no superconcebível;
ocorreu em dimensões em que as nossas representações
de espaço e de tempo não têm mais sentido. A imagem,
pois, que tivemos de escolher representa u'a mutilação e não
uma expressão da realidade.
Se devêssemos explicar a um homem inculto um conceito abstrato, um
processo matemático, um desenvolvimento filosófico ou coisas
semelhantes, seríamos constrangidos, se quiséssemos fazer-nos
entender, a apresentar tudo revestido de formas materiais, a usar expressões
bem concretas, para adequar-nos à psicologia desse homem, a ponto
de os conceitos originais ficarem deformados, tornando-se quase irreconhecíveis.
Mais verdadeiro é esse fato relativamente à queda dos "anjos",
em face da grande altura em que se deu o fenômeno e sua distância
de nós. Era, porém, necessário adaptar-se à
mente humana, se se quisesse dar uma expressão ao fenômeno,
denominando-o "queda" Mais adiante será explicado o seu
significado de desmoronamento de dimensões, a partir de um ponto
que, estando situado em planos altíssimos, na sua substância
foge completamente à nossa compreensão.