O Homem de Desejo
Louis Claude de Saint-Martin - O Filósofo Desconhecido


As maravilhas do Senhor parecem lançadas sem ordem e sem desígnio no campo da imensidão.
Brilham esparsas como as flores inumeráveis com que a primavera colore nossos prados.
Não procuremos um plano mais regular para descrevê-las. Princípio dos seres, todos estão ligados a ti.

É a ligação secreta contigo que lhes dá valor, qualquer que seja o lugar e a posição que ocupem.
Ousarei erguer os olhos ao trono de tua glória. Meus pensamentos vivificar-se-ão ao considerar teu amor pelos homens e a sabedoria que reina em tuas obras.
Tua palavra subdividiu-se desde a origem, como uma torrente que do alto das montanhas precipita-se sobre rochas pontiagudas.
Vejo-a irromper em nuvens de vapor; e cada gota d'água que lança aos ares reflete a meus olhos a luz do astro do dia.
Assim, todos os raios de tua palavra fazem brilhar aos olhos do sábio tua luz viva e sagrada; ele vê tua ação produzir e animar todo o universo.

Objetos sublimes de meus cânticos, serei muitas vezes forçado a desviar de vós o meu olhar.
O homem acreditou-se mortal porque encontrou em si algo de mortal;
E mesmo aquele que dá vida a todos os seres foi considerado pelo homem como não tendo vida nem existência.
E a ti, Jerusalém, que censuras não terão a fazer os profetas do Senhor!
Tomaste o que servia para te paramentar, disse o Senhor, e que era feito de meu ouro e de minha prata, que eu te havia dado; formaste imagens de homens, às quais te prostituíste.
Gritos de dor, misturai-vos a meus cantos de alegria; a alegria pura já não é feita para a triste morada do homem.

Provas irrefutáveis sobre as verdades primeiras já não foram manifestadas às nações?
Se ainda vos restam dúvidas, ide purificar-vos nessas fontes. Depois retornareis para unir vossa voz à minha.
E juntos celebraremos as alegrias do homem de desejo, que terá tido a felicidade de chorar pela verdade.


Bendita sejas, luz brilhante, esplendor visível da luz eterna, de onde meu pensamento recebeu a existência.
Se meu pensamento não fosse uma de tuas centelhas, eu não teria o poder de te contemplar.
Não poderia admirar tua grandeza, se não tivesse semeado em mim alguns elementos de tua medida.
Homens célebres, não digais mais: a luz de uma chama comunica-se com outras chamas sem diminuir, e é assim que os espíritos são produzidos por Deus.
Não mais desonreis a luz visível, ao nos falar apenas de seu mecanismo material.
A chama representa a manutenção, e não a lei da geração.
Não será necessária uma substância exterior à chama, para que esta lhe comunique a luz visível?
Mas nosso Deus é a luz; retira de si próprio a substância luminosa do espírito.
Tudo o que emana das mãos do princípio de tudo é completo. Ele quis que a sensação da luz visível se vinculasse à vida de meu corpo.
Ele quis que o sol despertasse em meus olhos essa sensação da luz visível.
Mas ele mesmo quis despertar em minha alma a sensação da luz invisível;
Porque ele mesmo retirou desta luz o germe sagrado que anima a alma humana.
Não saem ramos do candelabro vivo, e sua seiva não é o óleo santo que nutre em mim a luz?
Não é ela esse óleo que se consome sempre e jamais se esgota?
Que a vida se una à minha vida, e que regenere em mim a vida que em mim produziu.
Que meu crescimento imortal e divino seja contínuo, como o de minha fonte eterna.
É penetrando nos seres que Deus os faz sentir sua vida; estão na morte quando já não estão em comunhão com ele.
Vós todos, habitantes da terra, estremecei de alegria; podeis contribuir para a comunhão universal.
Podeis, tal como vestais, conservar o fogo sagrado e fazê-lo brilhar em todas as partes do universo.
Por que os sábios e os prudentes apreciam a luz? Porque sabem que a luz e a alma do homem são duas chamas que jamais se poderão extinguir.
E tu, agente supremo, por que não podes cessar de penetrar em tudo, de tudo ver e de levar a todos os lugares tua claridade?
É que o óleo santo tirado de tua fonte está disseminado por todas as regiões, e tua luz encontra em toda parte um alimento que lhe é próprio.


Espraiei meu olhar pela natureza.
Rios, para onde correis com tanta impetuosidade?
Vamos ajudar a preencher o abismo e a sepultar a iniqüidade sob as águas.
Vamos apagar esses vulcões, essas tochas fumegantes que são como os restos do grande incêndio.
Quando tivermos cumprido essa obra, nossas fontes se estancarão.
O limo se acumulará nos abismos.
Planícies férteis se elevarão no lugar dos precipícios.
Os rebanhos pastarão em paz nos lugares onde nadavam os peixes vorazes;
E os habitantes pacíficos viverão felizes em meio a seus campos férteis, onde outrora as vagas do mar eram agitadas por tempestades.
O homem despreocupado e desatento atravessa este mundo sem abrir os olhos de seu espírito.
As diferentes cenas da natureza sucedem-se diante dele sem que seu interesse se desperte e que seu pensamento se amplie.
Só veio a este mundo para abarcar o universo com sua inteligência, e permite continuamente que sua inteligência seja absorvida pelos menores objetos que o cercam.
Será preciso que as catástrofes da natureza se repitam para despertares de seu torpor? Se não estás preparado, elas te assustariam e não te instruiriam.
A face da terra apresenta as marcas de três leis que dirigiram suas revoluções.
Todos os elementos agitados, que puseram o globo em convulsão e produziram as montanhas secundárias e os vulcões:
Eis o fogo e o número.
As ondulações lentas e sucessivas das vagas, que produziram as colinas e os vales:
Eis a água e a medida.
E a força pacífica e tranqüila que produziu as planícies:
Eis a terra e o peso.
Por toda parte a vida se esforça por se mostrar; todas as desordens eram estranhas à natureza.
A alma humana por toda parte anuncia a fertilidade; anuncia por toda parte que é feita para a vida.
Tem também em si marcas das horríveis convulsões que sofreu.
Mas pode, como a chama dos vulcões, elevar-se acima destes abismos e vagar nas regiões puras da atmosfera.

Homem, desejarias afligir teu amigo? Não desejarias renunciar a fazê-lo sofrer?
Ele sofre, no entanto, enquanto o homem não procura conhecer a obra do Senhor.
Quem poderia, portanto, conceber o quanto os prevaricadores devem fazer Deus sofrer, quando levam seu erro até o ponto de agir contra ele?
Não, homem, não suportarias a visão de um quadro tão opressivo. Quem além de Deus teria a força para isso?
Também só ele perdoa e só com ele aprendemos a caridade.
Abre a cada dia as sendas dessa escola, se queres aprender o que é a obra do Senhor.
Que o mestre que aí ensina encontre em ti o mais assíduo dos ouvintes.
Podes julgar inúteis a teu amigo teus sofrimentos interiores causados pela caridade?
Não é exagero dizer que eles te aproximam de Deus, que agradam a Deus, pois te associam a ele e te tornam semelhante a seu amor.
Eis a obra; eis o primeiro degrau da obra. Que todas as nações me ouçam.
Que se tornem suficientemente puras para sentir os sofrimentos interiores da caridade.
Vejo duas palavras escritas nesta árvore da vida: Espada e Amor.
Pela espada da palavra submeterei todos os inimigos de meu Deus, e os prenderei e impedirei que causem dor ao meu Deus.
Pelo amor eu lhe suplicarei com fervor que derrame sobre mim um raio de sua caridade;
E que faça com que o eu alivie, encarregando-me de alguns dos sofrimentos de seu amor.
Não te ofendas, ó meu Deus, com a ousadia desta idéia; foste tu que a fizeste nascer em meu coração;
E ela está tão viva que nela creio ver traçados os mais belos títulos de minha destinação primitiva.
São nossos vínculos terrestres que velam para nós esta antiga e divina destina ção.
Ela não pode deixar de se fazer conhecer naturalmente por aqueles cuja alma tem a força de levantar seus ferros.

Não produzistes nenhum ser, ó sabedoria profunda! Sem lhe dar uma medida de desejo e de força para conservar-se.
Fundastes todos os seres sobre esta base, porque são todos um reflexo de vossa potência e porque desejais manifestar-vos em todas as vossas obras.
Destes ao homem a mais abundante medida desse poder.
Ora! de onde lhe adviriam esta arte de multiplicar seus prazeres, esta habilidade de afastar de si os males e curá-los?
Só poderiam vir de uma medida suprema desse desejo conservador e desse instinto que repartisses entre os seres!
E só ele junta à medida suprema deste desejo conservador a medida suprema da potência oposta!
Somente ele pode combater e sufocar esse instinto vivo, mais imperioso nele do que em qualquer outro ser!
E só ele, enfim, pode matar-se! Só ele pode combinar e escolher os meios de se dar a
morte!...
Doutrina de mentiras, aplaude teu triunfo, cegaste completamente o homem.
Só o fizeste ver, nestes dois extremos, um único e mesmo princípio;
Tu o fazes querer que o único e mesmo agente se conserve e se destrua;
Tu o fazes crer que a morte e a vida, a produção e a destruição pertencem ao mesmo germe.
Em vão procuras justificativas nos exemplos dos animais; e neles não encontras nada que diminua aos olhos do pensamento esta terrível contradição.

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