O
Homem-Deus
Tratado das Duas Naturezas
por
Jean Baptiste Willermoz
Da infidelidade do homem primitivo
Vimos, dentro dos primeiros desenvolvimentos da Doutrina, que o homem primitivo
havia sido revestido de um grande poder, que o tornava superior a todos
os agentes espirituais que foram colocados com ele no espaço criado,
para se manifestarem sob sua direção e ação
particular temporal. Que inicialmente tinha sido estabelecido como o dominador
dos espíritos perversos que estavam ali aprisionados em privação.
Que tinha sido colocado ele mesmo ao centro das quatro regiões celestiais
do universo criado, para exercer sua potente ação universal,e
que ali poderia ser um verdadeiro intelecto do bem para os espíritos
perversos, dando-lhes algumas noções deste bem, do qual estavam
eternamente separados.
Mas, este infeliz homem tão poderoso, assim fortemente munido contra
os ataques e os enganos do seu inimigo, tão superior a tudo o que
existia com ele no recinto universal e que não possuía acima
de si nada além de seu Criador tendo sido enganado, seduzido, tombado
no excesso da desgraça e condenado à morte com aqueles que
havia ameaçado, que Ser assim poderoso, suficientemente puro poderia
resgatá-lo deste estado, senão Deus Ele mesmo? Mas, esta imagem
desfigurada do seu Criador atacou a sua unidade e todas suas potências.
Este iníquo delegado, este representante infiel do seu Deus uniu-se,
aliou-se com o seu inimigo para trair os mais caros interesses dos quais
havia sido encarregado. Ele abusou terrivelmente dos dons, de todos os poderes
que havia recebido, e por um excesso inconcebível de ingratidão,
insultou de forma insolente o Seu amor e Sua ternura. Foi necessário,
portanto, uma grande vítima para satisfazer a Justiça Divina,
porque se a Misericórdia de Deus é infinita e sem limite,
sua Justiça também o é, e só pode ser refreada
por uma reparação proporcional à ofensa. Era necessário,
por conseguinte, uma vítima pura e sem mácula, da própria
natureza humana do prevaricador e, dado que foi o homem que, pelo seu crime,
fez entrar a morte no mundo, era necessário que esta santa vítima
se entregasse voluntariamente a uma morte injusta, violenta e ignominiosa
para poder reparar tanto ultraje. Era necessário, enfim, que o Justo,
pelo seu sacrifício voluntário, se tornasse vencedor do pecado
mortal, a fim de que aquilo que a Justiça divina havia proferido
como sentença irrevogável contra a raça do prevaricador,
não fosse mais do que um sono e uma passagem da vida temporal à
vida eterna para todos os que, com seu exemplo, abandonando por toda a duração
de sua expiação individual o seu livre árbitro, a sua
vontade própria à única vontade de Deus, merecesse
colher os frutos.
Um segundo Adão, emanado do seio de Deus em toda pureza e santidade,
sacrificou-se e ofereceu-se como vítima à Justiça Divina
para a salvação de seus irmãos; sua devoção
foi aceita pela Misericórdia. Imediatamente a Sabedoria incriada,
o Verbo de Deus, que é Deus, o Filho único, imagem e esplendor
do Pai Todo-Poderoso, ofereceu-se para se unir intimamente e por toda a
eternidade à inteligência humana do novo Adão, para
fortificá-lo em seu sacrifício, para assegurar, para completar
o seu triunfo e torná-lo, por uma ressurreição gloriosa,
realmente vencedor da morte.
Da união misteriosa das duas naturezas
É pela união incompreensível da natureza divina à
natureza humana, obra-prima do amor infinito de Deus para os homens, que
se realiza a grande obra da Redenção do gênero humano
e o estabelecimento da religião santa que lhe ensina a conhecer o
verdadeiro culto que deve render á seu Criador, e o único
que pode agradar-Lhe. Religião que não podia ser fundada firmemente
a não ser pela revelação de um Deus encarnado, conversando
familiarmente com os homens, e que lhes provaria permanentemente durante
a duração de sua missão temporal, sua Divindade, a
verdade de Seus dogmas, a pureza e a excelência de Sua moral além
dos incontestáveis milagres de todos os tipos. Aí estão
os dois grandes objetos que, nas intenções de Amor e de Misericórdia
de Deus para os homens degradados e corrompidos, tornaram necessária
a união das duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo.
Esta união íntima, absoluta e eternamente inseparável
do Verbo criador de todos os seres com uma pura criatura humana, para poder
instruir publicamente, sofrer e morrer nela, é um ato do Amor de
Deus para com os homens; tão prodigioso, tão inconcebível
e tão extremamente acima de todo entendimento humano, que dos atos
revelados à fé cristã, é este o que perdura
por todos os tempos e que é ainda o mais incontestável. Os
contemporâneos de Jesus Cristo, embora testemunhas diárias
de uma multidão de milagres incontestáveis, que operava na
frente deles, não viam nele nada mais que um homem, e negaram-lhe
sua Divindade. Seus discípulos, mesmo seus apóstolos, embora
instruídos por ele e testemunhas dos mesmos prodígios, não
creram imediatamente, apenas aos três dias após sua morte,
convencidos da verdade de sua ressurreição que ele mesmo havia
predito, e recebendo suas instruções durante quarenta dias,
vendo-o ascender divinamente ao céu, na sua humanidade glorificada.
Da necessidade da encarnação divina
Não é de se surpreender que o homem atual, que não
admite outro testemunho além daqueles de seus sentidos físicos
e materiais, negue ainda para a sua desgraça esta grande verdade.
Existem muitos cuja inteligência é menos envolvida, que também
o negam ou que reconhecem apenas superficialmente e, antes pelo sentimento
de um dever que a instrução sugeriu-lhes que pela persuasão,
porque não sentem ainda a necessidade de uma intervenção
direta e pessoal da Divindade no ato satisfatório de expiação
que o homem deve à Justiça divina. Vendo em Deus e no homem,
decaído do seu estado glorioso, os dois pontos extremos da ordem
espiritual, supõem nas classes angélicas os agentes espirituais
intermediários suficientemente puros e potentes para aproximar o
homem de Deus, sem que seja necessário que Deus mesmo se apresente
à encarnação. A dúvida e o erro daqueles provêm
apenas da ignorância na qual geralmente caem os homens por muito tempo
sobre a causa ocasional da criação do universo, sobre as intenções
de Deus na emanação e emancipação do homem,
sobre seu elevado destino ao centro do espaço criado e, por último,
sobre os grandes privilégios, a grande potência e a grande
superioridade que lhe foram dados sobre todos os seres bons e maus que foram
colocados com ele. Todas estas coisas os chefes da Igreja Cristã,
aos quais o conhecimento era reservado exclusivamente durante os cinco ou
seis primeiros séculos do cristianismo, conheceram perfeitamente.
Mais instruídos sobre estes pontos importantes, teriam concluído
que para reabilitar um ser tão grande, tão potente, era necessário
Deus mesmo. Eles, entre outros que também reconheceram a necessidade
da grande e santa vítima que se sacrificasse voluntariamente ao sofrimento
e à morte para satisfazer à Justiça Divina, porém,
reconhecendo ao mesmo tempo que Deus é impassível em todo
Seu ser, e que a reparação do crime só seria meritória
se fosse realizada por alguém com a mesma pureza e a mesma natureza
de quem o cometeu, negaram a Divindade do Redentor.
Da morte de Deus na Cruz
Sim, sem dúvida, Deus é impassível, e nada na natureza
divina pode sofrer nem morrer; seria uma grande blasfêmia ousar dizer
o contrário. É por isso que os oradores cristãos que
se entregam ao púlpito da verdade com um zelo excessivo, através
de expressões inoportunas que lhes parecem dar mais energia aos seus
pensamentos, gritam freqüentemente: "Deus morreu pelos homens!"
faltam ao seu objetivo essencial, porque não devem mais esperar persuadir
os seus ouvintes quando pretendem fazer-lhes crer o impossível. Mas
é Jesus Cristo, que reúne em uma única pessoa e de
modo eternamente inseparável, a natureza divina e a natureza humana
no seu mais elevado grau de perfeição, o homem puro sofre
e morre e quando abandona o seu corpo, e com a sua inteligência humana
que se impregna na essência divina ao qual é indivisivelmente
unido. A potência do Verbo de Deus que reside em toda sua plenitude
em sua santa humanidade e vela por ela, a apóia em seus combates
freqüentes e mortais, multiplica suas forças, fortifica sua
vontade, sua submissão, sua perfeita renúncia, até
a consumação de seu sacrifício expiatório, e
assegura-lhe o triunfo sobre todas as potências do inferno desencadeadas
contra ele, deixando-lhe todas as honras da vitória. E, como prêmio
do bom uso que fez de seus próprios meios, e do potente socorro que
lhe é dado, é ressuscitado da tumba pelo Verbo, glorificado,
divinizado, elevado ao mais alto dos céus, onde é colocado
sobre um trono eterno juntamente com ele, a quem se funde, por assim dizer,
estabelecido como o Soberano Juiz dos vivos e dos mortos, e o Deus eternamente
visível aos anjos e aos homens santificados que reconhece como seus
irmãos.
Da imitação
de Jesus Cristo
As duas naturezas que reconhecemos na pessoa do Divino Reparador Universal
são tão unidas, e aparentemente mescladas, que parecem para
as pessoas comuns, operar simultaneamente em sua ação geral.
Têm, contudo, cada uma a sua própria e distinta ação,
que, normalmente, opera separadamente. Isto é, portanto, importante
para o verdadeiro cristão, já que uma delas é proposta
como modelo, para não confundi-lo para que aprenda a distingui-las.
Este exame pode apenas reafirmar a fé dos que crêem, e pode
ser especialmente útil a este grande número de cristãos
covardes e despreocupados que, para desculpar sua indolência, não
cessam de repetir: "É impossível ao homem imitar a conduta
sempre sábia e irrepreensível de um Deus".
Não, sem dúvida, não é possível a um
homem tão frágil ser também perfeito. Porém,
frágil como é, pode, e deve mesmo esforçar-se sem repouso
a imitar, tanto quanto lhe é possível, o homem puro, unido
a Deus, que Deus mesmo propõe-lhe como modelo.
Da União do Verbo a Jesus
O Divino Reconciliador dos homens, Desejado das nações, Messias
prometido à fé de Abraão, pai dos que crêem predito
por um Jacó moribundo a seus filhos, e tão claramente anunciado
por um grande número de profetas, que se sucederam uns aos outros
por uma longa seqüência de séculos, como nascido de uma
virgem da raça de Abraão e da família do rei Davi surge,
finalmente, sobre a Terra ao fim do quarto milênio do mundo, ao tempo
determinado pela Sabedoria incriada para o cumprimento das grandes intenções
de sua divina Misericórdia.
O arcanjo Gabriel é enviado por Deus à pequena cidade de Nazaré
à virgem Maria, para anunciar-lhe a gloriosa maternidade pela qual
é destinada a cooperar na grande obra da Redenção dos
homens. O aparecimento súbito do anjo causa perturbação
à alma desta virgem tão pura. Seu pudor alarma-se da maternidade
que lhe é anunciada, declarando não conhecer homem algum.
Só dá o seu consentimento após se tranqüilizar
inteiramente sobre os meios, quando o anjo lhe declara que sua maternidade
seria obra do próprio Deus, pela operação do seu Espírito
Santo, e que sua virgindade continuaria intacta.
No momento mesmo do seu consentimento, começa o cumprimento do grande
Mistério; pois no mesmo instante o Verbo de Deus, que é o
próprio Deus, a segunda Pessoa e potência da Santa Trindade,
pressionado pelo seu ardente amor por suas criaturas humanas, une-se indissoluvelmente
e para toda eternidade à alma humana, pura e santa de Jesus que,
pelo amor por seus irmãos, e para reconciliá-los com Deus,
satisfazendo por eles a Justiça Divina, é destinado às
ignomínias, aos sofrimentos e a morte. O Verbo todo poderoso de Deus,
imagem e esplendor do Pai eterno, desce dos céus para vir se incorporar
a alma humana de Jesus, no ventre da bem aventurada Virgem Maria, para serem
eternamente unidos em uma mesma e só Pessoa em duas naturezas distintas.
É, portanto no momento de seu consentimento que o Homem Deus é
formado corporalmente no seio virginal de Maria, de sua pura substância,
de seu verdadeiro e puro limo quintessencial da terra virgem de sua mãe.
Ele foi formado e composto, como todos os outros homens que vem por algum
tempo sobre a Terra, de uma substância tripla, quer dizer, de um espírito
puro, inteligente e imortal; de uma alma passiva ou vida passageira; e de
um corpo de matéria, porém de uma matéria pura e não
conspurcada, que não provem, como os demais seres humanos, da concupiscência
dos sentidos, mas unicamente da operação do Espírito
Santo, sem a participação de homem algum, nem de algum agente
físico da matéria. É através deste prodígio
do amor infinito de Deus por sua criatura querida e seduzida, tornado por
seu crime para sempre escravo e vítima do Demônio, que se cumpre
o inefável e incompreensível mistério da encarnação
divina para a redenção dos homens, por Jesus Cristo nosso
único Senhor e Mestre que quis, por vontade própria para garantir
o resultado final, unir indissoluvelmente a natureza humana do prevaricador
à sua própria natureza divina.
Da natureza quaternária de Jesus Cristo
Reconhecemos que o animal ou a fera é um binário composto
de uma alma, ou vida passiva e passageira, e de um corpo de matéria
que desaparecem totalmente após a duração que lhes
é prescrita; o homem é, durante a sua estada passageira sobre
a Terra, um composto ternário formado das duas mesmas substâncias
passageiras que acabamos de citar e que o constituem em animal, como fera,
e de um espírito inteligente e imortal pelo qual é realmente
imagem e semelhança divina. Mas, em Jesus Cristo, homem-Deus e divino,
encontra-se, durante a sua vida temporal sobre a Terra, uma composição
quaternária que o distingue eminentemente de todas as criaturas,
a saber: as três substâncias que acabamos de conhecer no homem
temporal, e a substância do próprio Ser de Deus, que se uniu
pela eternidade ao ser inteligente e imortal do homem, para formar um ser
único, e somente uma Pessoa em duas naturezas.
Aquele que, por esta união tão gloriosa, podia nascer à
sua escolha na família mais opulenta, no seio das grandezas, sobre
o trono mais incontestável, prefere nascer em um estábulo,
em uma família desconhecida e pobre, com uma profissão abjeta,
mais exposta aos despeitos e as humilhações, que acompanham
geralmente a indigência. E é bem evidente, por isso, que sua
entrada no mundo é para ser o modelo e a consolação
dos pobres, que quer ao mesmo tempo inspirar o despeito das riquezas e fazer
sentir aos que as possuem os grandes perigos aos quais expõem todos
os que não fazem o uso prescrito pela sua moral e por seus preceitos.
Dos Nomes dados
ao Messias
Veremos agora nos santos Evangelhos sob quais nomes o Divino Messias apresentou-se
aos homens, como os Evangelistas designam-no e qualificam-no, e como se
qualifica Ele mesmo. Nós aqui encontraremos, sob novas designações,
um novo fundo de instruções com a confirmação
que dizemos de mais elevado sobre este importante tema. Nós o temos
chamado, às vezes, Jesus ou o filho do homem. Tanto Deus-Homem ou
homem-Deus, enfim o filho ou Jesus Cristo. Estas diversas denominações
aplicadas ao mesmo ser quase podem parecer à primeira vista como
sinônimos, mas, não são, porque apresentam sentidos
muito diferentes que é necessário não confundir, pois
que são relativos às duas naturezas distintas que se encontram
unidas no único e mesmo ser. Uma reflexão sobre Suas ações
durante a vida temporal, demonstra esta verdade.
Com efeito, vê-se em Jesus apenas o homem puro e santo que tem um
sublime destino, abstração feita da Divindade que reside nele,
mas que ainda não se manifestou. No filho do homem vê-se apenas
a mesma natureza humana. Ele se qualifica assim enquanto quiser esconder
aos Judeus e aos Demônios sua Divindade, que se apresenta a eles como
um descendente de Adão, pai comum dos homens, e suposto não
ser mais do que o filho de José, até que o grande mistério
da encarnação seja revelado aos homens. Como Deus, é
o homem puro e santo, cuja ação parece predominar a da Divindade
que se encobre nele. No Homem é, pelo contrário, a ação
divina que se mostra predominante sobre a do homem. No filho de Deus, que
é a qualidade essencial que o arcanjo deu-lhe anunciando à
Maria a sua encarnação, é a Divindade que se manifesta
com esplendor pelo órgão da sua santa humanidade. Enfim, em
Jesus Cristo, é o homem-Deus e divino, são as duas naturezas
unidas em só um e mesmo ser que operam juntas sob uma forma humana,
as ações reunidas que pertencem a elas.
Em geral Jesus, desde o seu nascimento até seu batismo no Jordão,
na tentação do Demônio que sofreu no deserto, na sua
agonia no Jardim das Oliveiras, em todo curso da sua Paixão e sobre
a Cruz, apresenta apenas o homem puro, santo e perfeito, inteiramente sacrificado
à Justiça divina e abandonado a ele mesmo, ao seu livre arbítrio.
A Divindade que reside essencialmente nele, parece suspender a sua ação
para deixar à sua santa humanidade toda honra da vitória corretiva
sem, contudo, separar-se só um momento. Realiza-se como espectadora
do grande combate, e o apóia durante toda sua duração,
pela sua presença. É ai onde o homem- Deus, assim abandonado,
é realmente o modelo realizado dos homens.
Mas quando Jesus Cristo, que começa a sua missão com o pedido
da sua mãe que lhe é apresentado no banquete do Casamento
de Canaã, altera a água em vinho. Quando, no deserto e sobre
a montanha, multiplica alguns pães e alguns peixes numa quantidade
suficiente para alimentar às vezes 4000 e às vezes 5000 homens
extenuados pela necessidade e que permanece em pedaços coletados,
após tê-los satisfeito totalmente, com cestos tão cheios
quanto havia antes da distribuição. Quando força os
demônios a obedecer à suas ordens e abandonar imediatamente
os corpos pecadores que possuem; aquele que ordena, como Mestre, ao mar,
aos ventos e à tempestade que se acalmem, e que lhe obedecem. Quando
faz andar e levantar de seu leito o paralítico que, desde os 38 anos,
esperava em vão junto à piscina o socorro de um anjo e a sua
cura. Quando revela o fundo dos pensamentos mais secretos da mulher Samaritana
e muitos outros; quando reanima a filha de Jairo, o filho único da
viúva de Naïm que o levava em terra e, mais particularmente
ainda em Lázaro, o querido irmão de Marta e de Maria, que
Jesus amava, que depois de quatro dias encerrado no sepulcro e cujo corpo
corrompido exalava já uma grande infecção, que, ao
seu comando, sai da tumba e caminha diante de todas as testemunhas, ainda
tendo o corpo envolto em ataduras. Aquele que operou todas estas coisas
e muitas outras tão prodigiosas, quem poderia duvidar que era o Verbo
todo poderoso de Deus que falava e comandava toda a natureza pela boca do
homem-Deus?
Da vida temporal de Jesus Cristo
Tendo, por conseguinte, distinguido nele duas naturezas indivisivelmente
reunidas em uma só e mesma pessoa, percorramos rapidamente as principais
circunstâncias da sua vida temporal, para completar a nossa instrução.
Jesus criança, adolescente e até à idade de 30 anos,
parece ser apenas um homem comum, distinguido apenas por uma sabedoria acima
de sua idade, pela sua docilidade e sua submissão a seus pais. É
sujeitado a todos os trabalhos, todos os cansaços e todas as necessidades
da vida comum. Ao atingir a idade de 30 anos, época à qual
deve começar publicamente a sua missão corretiva e a instrução
de seus discípulos, após ter sido batizado no Jordão
por João que o reconhece e o proclama como o Messias prometido, sua
Divindade é, pela primeira vez, manifestada pela descida do Espírito
Santo que vem pousar sobre ele, e pelas incontestáveis palavras do
Pai celestial que o proclama altamente como o seu Filho bem-amado "em
que colocou toda Suas afeições, e ordena aos homens que o
ouçam". Neste momento, começa a sua missão divina.
Ele retira-se para o deserto para preparar-se como homem, cumprindo em oração
um jejum rigoroso durante 40 dias. Após estes 40 dias, prova a fome,
necessidade humana que demonstra claramente que era sua pura e única
humanidade que se preparava assim rigorosamente para os atos importantes
que devia operar. O momento ou prova desta necessidade física da
humanidade é, ao mesmo instante em que o Príncipe dos Demônios
surge para tentá-lo em todo seu ser, ou seja, nas necessidades físicas
do seu corpo, a vida passiva e passageira deste corpo, e a sua natureza
ativa e espiritual, para esclarecer as suspeitas que concebeu sobre a verdadeira
natureza de Jesus e para assegurar-se se a Divindade residia ou não
residia mais nele, por último se era ou não o Messias prometido;
Mistério que a Sabedoria Divina queria esconder do Demônio,
para que pudesse realizar-se inteiramente. É necessário observar
com cuidado os três diferentes tipos de ataque que o Demônio
executa astuciosamente sobre as três partes constituintes do homem
físico. Primeiramente, ataca Jesus na sua forma corporal, relativamente
às suas necessidades, dizendo-lhe sobre o cume de uma elevação:
"Se é o filho de Deus, ordena que estas pedras tornem-se pães".
Em segundo lugar, após esta inútil tentativa, ele o ataca
na sua vida passiva, animal, corporal, dizendo-lhe sobre o cume de uma elevação:
"Se és o filho de Deus, precipita-te, você não
sofrerá nenhum mal". Em terceiro lugar, após este segundo
ataque no qual é afastado como na primeira, dirige o terceiro, que
é mais importante, sobre o ser espiritual de Jesus, dizendo: "Se
te prostrares diante de mim e me adorares te darei todos os reinos do mundo
que vês, e que me pertencem".
Este ataque do demônio é ainda o mesmo, e atualmente é
por sua forma corporal que ataca o homem. Ele o seduz pelos seus sentidos
materiais, pelo amor da vida animal e passageira, e por suas afeições
animais e sensíveis. Estas são as portas por onde ele tenta
se introduzir para atacar com maior sucesso ao seu ser espiritual. O homem-Deus
susta este ataque pela força de sua pura vontade humana e assim recebe
o prêmio pois os anjos virão lhe servir. Sua vitória
sobre o Demônio nos lembra a derrota do homem primitivo em ocasião
similar. Jesus, segundo Adão, fez o que o primeiro, através
de seu livre arbítrio, devia ter feito e não fez. Provamos
todos os funestos resultados da queda do primeiro, e todos os salutares
efeitos da firme vontade reparadora do segundo.
Do primeiro e do segundo Adão
O primeiro Adão, como imagem e semelhança divina, como representante
da Divindade no universo criado, tinha sido dotado de toda força,
de todas as virtudes e de todas as potências necessárias para
cumprir sua missão. O principal objeto desta missão era de
perturbar o príncipe do mal, contê-lo nos limites que a Justiça
divina havia prescrito à sua ação perversa, e confiná-lo
tanto em seus limites, que seria forçado a reconhecer a sua inferioridade
e sua dependência original do Divino Criador de tudo, do qual pretendia
ser um igual e de reconhecer ao mesmo tempo a superioridade do homem sobre
ele e sobre todos seus sequazes, o que teria destruído o Mal por
se arrependerem de tê-lo criado e parido. Este era o grande objetivo
da Misericórdia divina sobre os primeiros culpados, que a prevaricação
do homem destruiu. O segundo Adão em Jesus Cristo, como homem puro
que não participou de modo algum nesta prevaricação,
nem possuindo os vícios da concepção das formas corporais
que infectou toda sua posteridade, foi dotado não somente das mesmas
forças, virtudes e potências como o primeiro, mas elas foram
fortificadas eminentemente pela união íntima e eterna que
o Verbo Divino fez de sua natureza pura com a do homem, para assegurar o
total sucesso de sua missão corretiva.
Dos sentidos
dos milagres de Jesus Cristo
Não pretendemos aqui considerar os fatos específicos da vida
pública de Jesus Cristo, a leitura dos santos Evangelhos é
suficiente para conhecê-los. Eles não deixam nenhuma dúvida
sobre sua Divindade, dado que Ela manifesta-se neles permanentemente, por
uma multidão de milagres dos mais incontestáveis. Devemos,
contudo, fazer observar que mesmo operando tantos fatos prodigiosos, que
devemos atribuir essencialmente à Divindade que reside nele, quer
fazer conhecer a seus discípulos que há uma grande potência
inata no homem reconciliado, pela qual pode operar fatos ainda mais prodigiosos
quando está unido a Deus por uma fé viva. Porque, vendo seus
Apóstolos surpresos de admiração em vista dos milagres
incontestáveis que opera, acusa-lhes a sua pouca fé, declarando
lhes que, se tivessem a fé necessária, eles realizariam os
mesmos prodígios e outros maiores ainda. O que não teria podido
dizer se esta potência não fosse inata na natureza do homem,
que nunca foi reconhecida nos anjos que são apenas os ministros da
Vontade de Deus, em ocasiões específicas onde os emprega.
Da revelação progressiva de Jesus Cristo
Surpreendemo-nos ao ler os santos Evangelhos e ver os cuidados e as precauções
que Jesus toma para esconder sua Divindade e não mostrar mais além
de filho do homem, e procuramos os motivos. A encarnação do
Verbo de Deus unido à natureza humana e o advento temporal do Messias
tinha sido claramente predito pelo profeta Isaías e muitos outros,
que os homens esperavam que se cumprisse, mas esqueceram que era uma vítima
sacrificada voluntariamente a uma morte violenta e ignominiosa, pela qual
devia operar a reconciliação do gênero humano. O Demônio
não podia ignorar esta promessa, nem as demais, humilhantes para
o seu orgulho, que ele devia ter. Ele temia o cumprimento que iria arrancar-lhe
tantas vítimas de sua fúria e preservar os demais. Tinha,
portanto, o maior interesse em fazer falhar a profecia e impedir a todo
custo que o Cristo fosse levado à morte. E, se Jesus desde o princípio,
desde o início de sua missão, fosse clara e publicamente se
declarado o Filho de Deus provando-o a toda a nação, convencendo-os
publicamente por seus milagres que o era realmente, qual seria a potência
humana que ousaria e poderia condená-lo à morte? E, não
morrendo, o que se tornava então a Redenção prometida
por sua morte? Era necessário, portanto, que morresse, que fosse
ignorado. Aí está porque o Demônio procurava esclarecer
suas dúvidas, suas suspeitas sobre sua dupla natureza, e se o fez
perseguir, se o fez em seguida condenar a uma morte ignominiosa, não
fez mais do que por uma confusão de sua parte, não considerando
Jesus Cristo mais do que um homem puro, cuja doutrina, santidade e potência
de suas operações humanas, lhe atraíam uma multidão
de partidários.
Mas, como a Divindade de Jesus Cristo era o dogma fundamental da religião
santa que viria a estabelecer, e seria a prova da verdade de sua doutrina,
era necessário que o dogma de sua Divindade fosse também declarado
e provado por ele mesmo, para operar a convicção de todos
os que o Pai celestial Lhe deu, e que devem ser salvos pela fé Nele.
Foi, portanto, o que fez. Se, no início de sua missão, pôs
alguma reserva às testemunhas que o interrogavam sobre este ponto
tão importante, era para nos fazer saber que a Verdade apresenta-se
apenas às almas puras, e que pode entrar apenas nos corações
dispostos a recebê-la. Aí está porque faz preceder a
declaração, a confissão formal de sua Divindade, pelo
ensino de sua doutrina que dispunha os espíritos a crer. E, quando
multiplicou seus discípulos pelo grande número dos milagres
que realizou e pela atração irresistível que lhes inspirava
sua doutrina, não dissimulou mais sua Divindade, declarando mesmo
na frente de seus mortais inimigos, que tomam ocasião destas confissões
para persegui-lo mais violentamente, para jurar sua perda e para fazê-lo
condenar à morte. E, é assim mesmo que se tornam, pela sua
ignorância e sua malicia, os cegos instrumentos do cumprimento dos
decretos divinos para a Redenção dos homens.
Ceia Pascal
Estando terminado o tempo da missão temporal de Jesus Cristo, prepara-se
para voltar ao Pai. Mas, antes quer fazer com seus apóstolos a última
Ceia (a Ceia Pascal) a qual desejou com tanto ardor e na qual manifesta
ao mesmo tempo o Divino Todo-Poderoso e o amor mais inconcebível
de Deus para os homens. Ele quer, deixando-os, residir para sempre com eles
e dar-Se Ele mesmo a eles nas duas naturezas, divina e humana, que estão
unidas Nele. Pois no sacramento de seu corpo e de seu sangue, verdadeira
e inteiramente, dá-Se a eles e a todos os que participarem na fé
até o fim do mundo. A verdade deste augusto sacramento freqüentemente
foi, e ainda é, violentamente atacada. É o fruto do orgulho
que quer raciocinar onde a fraca razão humana deve calar-se, do orgulho
que quer apresentar aos sentidos físicos materiais o que pode ser
concebido apenas pela inteligência pura, iluminada pela fé.
Tenham pena do destino desastroso dos chefes das seitas cujo orgulho fez
tanta devastação no campo da verdade. Tenham pena também
daqueles que têm adotado como seus mestres os homens que deviam ser-lhes
ainda mais suspeitos, que não dissimulam o despeito e o orgulho que
os dirigem nos seus desvios. Mas sejam indulgentes e orem para os que, insistindo
de boa fé no erro, conservam a fé e o amor para Jesus Cristo.
Esperem mesmo, como bem o disse Ele mesmo, aqueles que não perecerão,
pois o amor e a fé que conservam Nele os salvarão. De todas
as seitas cristãs que atacaram a verdade deste sacramento, mais inconseqüente
e mais culpada é a que não quer admitir que uma simples comemoração
da Santa Ceia se baseia nas palavras de Jesus Cristo: "façam
isto em memória de mim". Se tivessem tido um pouco de boa fé
no exame a que foram temerariamente autorizados, teriam reconhecido logo
que punham Jesus Cristo numa evidente contradição consigo
mesmo, porque negam que Jesus Cristo tenha dito em termos formais: "Isto
é o meu corpo que é dado por vós. Isto é o meu
sangue que é derramado para a remissão dos pecados: tomem
e comam, tomem e bebam todos".Ora, era aos apóstolos, que eram
os únicos presentes na Ceia, que foi dado comer o verdadeiro corpo
e beber o verdadeiro sangue? Que nos digam, portanto onde esta interpretação
é provada. Ele disse noutro lugar: "A minha carne é verdadeiramente
um alimento, o meu sangue é realmente uma bebida: quem come a minha
carne e bebe o meu sangue reside em Mim e Eu nele". E, contudo, se
os apóstolos, como únicos presentes em realidade, são
os únicos que podem comer a sua carne e beber o seu sangue, e que
não seja para nós mais que uma simples comemoração
desta realidade, todos os homens, excluindo os apóstolos, devem,
por conseguinte renunciar a ter Jesus Cristo residindo neles, e residir
Nele por esta preocupação real que lhes seria de todo impossível.
Isto é concebível? Poderemos crer de boa fé que Ele
quis fazer promessas tão consoladoras, para enganá-los em
sua espera pela impossibilidade ou na expectativa de ver o cumprimento?
Mais ainda diz em outro lugar: "Se não comes a carne do filho
do homem e se não bebes o seu sangue, não terás a vida
em vós, não terás parte comigo": aí está,
por conseguinte uma maldição eterna, formalmente pronunciada
contra os que não comerem a sua carne e não beberem o seu
sangue. E qual! Este Deus cheio de amor e misericórdia para comigo,
que quer sofrer e morrer na sua carne por mim, entregar-me-ia a uma condenação
eterna por não ter feito isto e não me teria deixado nenhum
meio para fazer? É um excesso de delírio inconcebível
de imaginá-lo. E, contudo, se não estabeleceu entre os homens
sucessores de seus apóstolos, um meio para perpetuar a consagração
real do pão no seu corpo e do vinho no seu sangue como o fez Ele
mesmo em sua presença, inevitavelmente, por isso mesmo, sou condenado
à maldição eterna, porque nunca a comemoração
de um ato tão augusto, tão importante, que estes sectários
amoldam à sua realidade, poderá substituir a preocupação
real que Ele tão expressamente recomendou. O erro destes homens orgulhosos
tende, por conseguinte, evidentemente a tornar o homem eternamente infeliz
pela injustiça de Deus, que teria exigido dele o impossível.
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