COMO O VERBO ETERNO TORNOU-SE HOMEM,
Maria, a Virgem,
quem Ela era no princípio, e que tipo de mãe se tornou
através da concepção de seu filho, Jesus Cristo.
Jacob Boehme
CAPÍTULO
I
A pessoa de Cristo, assim como a sua encarnação, não
pode ser conhecida pela compreensão
comum ou pela letra das Santas Escrituras, sem a Iluminação
Divina. E ainda, sobre a origem do Ser
Divino e Eterno
1. Quando Jesus perguntou a seus discípulos: "Quem, dizem os
homens ser o Filho do Homem?"
Disseram: "Uns afirmam que é João Batista, outros que
é Elias, outros ainda, que é Jeremias ou um
dos profetas" Então lhes perguntou: "E vós, quem
dizeis que eu sou?" Simão Pedro, respondendo
disse: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo". Jesus respondeu-lhe:
"Bem-aventurado és tu, Simão,
filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso,
e sim o meu Pai que está nos
céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei minha Igreja, e as portas do
Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino
dos Céus e o que ligares na
terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será
desligado nos céus". Em seguida, proibiu
severamente os discípulos de falarem a alguém que ele era
o Cristo. A partir dessa época, Jesus
começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário
que fosse a Jerusalém e sofresse muito por
parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que
fosse morto e ressurgisse ao
terceiro dia". (Mt.16, 13-21). Sua intenção era mostrar
que a razão pessoal, no conhecimento e
sabedoria deste mundo, não poderia conhecer ou compreender a pessoa
que era Deus e homem; mas
que essa pessoa seria corretamente conhecida daqueles capazes de entregar-se
inteiramente a ele, e
por seu Nome suportar a cruz, a tribulação e a perseguição,
de forma fiel. De fato, embora essa
pessoa vivesse visivelmente entre nós neste mundo, era pouco conhecido
pelo sábio da razão. E
embora caminhasse nas maravilhas Divinas, a razão exterior era tão
cega e tola que aquelas grandes
maravilhas ou milagres foram atribuídos, pelos mais sábios
da ciência da razão, ao demônio.
Exatamente como no tempo em que vivia visivelmente neste mundo, ele permanece
desconhecido da razão e do conhecimento pessoal, de modo que é
e continua sendo, até agora, irreconhecível e
desconhecido da razão exterior.
2. Tantas contentas e disputas surgiram sobre a sua pessoa, na medida em
que a razão exterior sempre
acredita ter compreendido o que é Deus e o homem, e como podem ser
uma só pessoa. Essa disputa
preencheu a terra, pois a razão pessoal sempre pretendeu ter apoderado-se
da pérola, sem refletir que
o reino de Deus não pertence a este mundo e que a carne e o sangue
não podem conhecer ou
compreendê-lo, muito menos penetrá-lo.
3. Do mesmo modo, convém a todos que pretendem falar sobre os mistérios
Divinos ou mesmo ensinálos,
que possuam o Espírito de Deus, e que saibam à luz Divina
o que expressar como verdade;
nunca se deve extrair o ensinamento de sua própria razão,
nem se apoiar meramente na letra, sem o
conhecimento Divino, arrastando-se nas Escrituras, como faz a razão.
Muitos erros surgem daqui,
pois os homens tem buscado o conhecimento Divino em sua própria compreensão
e ciência,
passando da verdade de Deus para a razão pessoal, considerando a
encarnação de Cristo como algo
remoto e distante, enquanto todos devemos nascer novamente de Deus, nesta
encarnação, se
pretendemos escapar da cólera da natureza Eterna.
4. Cabe aos filhos de Deus uma obra íntima e inerente, com a qual
deveriam ocupar-se de hora em
hora, diariamente, a fim de penetrar continuamente a encarnação
de Cristo, deixar a razão terrestre, e
assim, durante esta vida de sofrimento, nascer no nascimento e encarnação
de Cristo, caso queiram
ser os filhos de Deus em Cristo: Eu me propus a escrever sobre este alto
mistério, de acordo com
meu conhecimento e dons, para um memorial, para que eu possa assim, ter
a oportunidade de recriar
e renovar a mim mesmo cordialmente com meu Emanuel, - pois, encontro-me
como outros filhos de
Deus neste nascimento, - para que eu tenha um memorial e um apoio, caso
os trevosos e terrestres,
carne e sangue, colocarem em mim o veneno do demônio, obscurecendo
minha imagem. Proponho
este trabalho como um exercício de fé, através do qual
minha alma possa, como um ramo em sua
árvore, Jesus Cristo, renovar-se com sua seiva e poder. Assim, não
com instrução e grandes
discursos da ciência ou luzes da razão deste mundo, mas segundo
o conhecimento que tenho de
minha árvore que é o Cristo, para que meu ramo também
possa florescer e crescer, ao lado de outros,
na árvore e vida de Deus. Embora meu fundamento seja elevado e profundo,
explicarei de forma
clara; contudo devo dizer ao leitor, que sem o espírito de Deus,
tudo será para ele um mistério
incompreendido. Portanto, que cada um reflita sobre o julgamento que emprega,
a fim de não cair no
julgamento de Deus, ser agarrado por sua própria turba, e derrotado
pela razão. Digo isto com boa
intenção e afeição, para reflexão do
leitor.
5. Se iremos escrever sobre a encarnação e nascimento de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, corretamente,
devemos refletir sobre a causa, considerando o que movimentou Deus a tornar-se
homem, tendo em
vista que isso não era necessário para a realização
de seu ser. Não se pode dizer que o ser de Deus,
propriamente dito, tenha sido modificado na encarnação. Deus
é imutável, e ainda assim tornou-se o
que Ele não era; mas sua propriedade permaneceu, ao mesmo tempo,
imutável. Foi unicamente por
causa da queda e salvação do homem, para que Ele pudesse trazê-lo
novamente ao Paraíso. É preciso
considerar o primeiro homem, da forma que era antes da queda, o que motivou
a movimentação da
Divindade.
6. Sabemos que Moisés diz: "Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou" (Gn 1,27). Compreenda, então, que
Deus, que é um Espírito, olhou a
si mesmo numa imagem, como numa semelhança. Ele também criou
este mundo, para que pudesse
manifestar a Natureza Eterna em essência e substância, assim
como nas criaturas e figuras viventes,
para que tudo isso pudesse ser uma semelhança e uma produção
da Natureza Eterna do primeiro
Princípio. Semelhança, que antes dos tempos do mundo, permanecia
na sabedoria de Deus, como uma magia oculta, e que foi vista na sabedoria
pelo Espírito de Deus, que no princípio deste mundo
movimentou a Natureza Eterna, manifestando e revelando a semelhança
do mundo divino oculto.
Pois, o mundo ígneo encontrava-se como que absorvido e oculto na
luz de Deus, a luz da Majestade
reinava sozinha em si mesma. Não se deve pensar, no entanto, que
o mundo ígneo não existia.
Existia; mas separado em seu próprio princípio, e não
estava manifestado na luz da Majestade de
Deus. Podemos conceber este fato, observando o fogo e a luz; o fogo é,
de fato, a causa da luz, e a
luz habita no fogo, sem ser capturada por ele, e tendo uma outra vida além
do fogo. Pois, o fogo é
ferocidade e consome, e a luz é brandura, e de seu poder surge a
substancialidade, como a água ou
súlfur de algo, que o fogo atrai para si e usa para sua força
e vida, formando com isso um laço
eterno.
7. Este fogo e a luz divina permaneceram, desde a eternidade, em si mesmos,
cada um em sua ordem,
em seu princípio, sem possuir fundamento ou começo. Pois o
fogo tem em si sua própria forma
como fonte, a saber, o Desejo, no qual e do qual todas as formas da natureza
são geradas, uma como
causa da outra, como já foi detalhado em outros escritos. Encontramos,
na luz da natureza, que o
fogo em sua essência própria, na fonte amarga do desejo, era
trevas, e estava como que absorvido na
brandura de Deus, sem inflamação; embora queimasse, só
era perceptível como um princípio
especial, na brandura de Deus. Pois, desde a eternidade só haviam
dois princípios: o mundo ígneo,
em si mesmo, e o outro também contido em si mesmo, o mundo da luz-flamejante;
embora não
estivessem separados, como o fogo e a luz não estão separados,
a luz habitava o fogo, sem ser
capturada por ele.
8. Devemos compreender dois tipos de espíritos unidos um no outro,
ou seja, primeiro um espírito
ígneo, em conformidade com a essência da natureza severa e
amarga, procedendo do fogo essencial
feroz que é frio e quente, conhecido como sendo o espírito
da cólera de Deus, pertencente à
propriedade do Pai, de acordo com a qual ele se denomina um Deus ciumento
e colérico; um fogo
consumidor pelo qual o Primeiro Princípio é compreendido.
Segundo, um espírito gentil de luzflamejante,
que desde a eternidade recebe sua transformação no centro
da luz; pois no Primeiro
Princípio, na propriedade do Pai, esse é um espírito
ígneo, e no segundo Princípio, na luz, um
espírito brando de luz-flamejante, gerado desta forma desde a eternidade,
sendo um, não dois. Mas
que é compreendido numa fonte dupla, ou seja, no fogo e na luz, segundo
a propriedade de cada
fonte, como pode ser suficientemente compreendido em qualquer fogo exterior,
onde a fonte do fogo
origina um espírito feroz e consumidor, e a fonte da luz fornece
um espírito amoroso e brando, ainda
que originalmente haja senão um espírito.
9. Da mesma forma, devemos considerar o Ser da eternidade ou a Santa Trindade,
que na luz da
Majestade reconhecemos como sendo a Divindade, e no fogo como sendo a Natureza
Eterna. Pois o
espírito todo poderoso de Deus, com os dois Princípios, tem
sido desde a eternidade o Todo; não há
nada anterior a ele, ele é o próprio fundamento e o não
fundamento. O Ser divino é considerado
especialmente como uma única existência em si, habitando fora
da natureza e propriedade ígnea, na
propriedade da luz, e é chamado Deus; não da propriedade do
fogo, mas da propriedade da luz,
embora as duas propriedades sejam inseparáveis. Como vemos neste
mundo, que um fogo oculto
permanece oculto nas profundezas da natureza e em todos os seres, sem o
qual nenhum fogo exterior
poderia ser produzido. Observamos como a brandura da água mantém
esse fogo oculto aprisionado
em si mesma, a fim de que ele não possa ser revelado; pois está
como que absorvido na água, sendo
portanto essencial e não substancial, sendo conhecido e qualificado
ao despertar-se; tudo era um
nada e um não fundamento sem o fogo.
10. Assim, compreendemos também que o terceiro Princípio,
ou a fonte e o espírito deste mundo
encontrava-se oculto, desde a eternidade, na Natureza Eterna da propriedade
do Pai, e que fora visto
pelo Espírito de luz-flamejante na santa Magia, na sabedoria de Deus
e na tintura divina.
Consequentemente, a Divindade movimentou-se de acordo com a natureza da
genetrix, manifestando o
grande mistério, onde encontra-se tudo o que a Natureza Eterna pode
fazer. Isso era, contudo, apenas
um mysterium, e não assemelhava-se a nenhuma criatura, mas que continha
tudo em si, como num
caos. A natureza colérica e feroz gerou um caos escuro, e a natureza
de luz-flamejante, em sua
propriedade, gerou chamas na Majestade e na brandura, que tem sido, desde
a eternidade, a fonte de
água e causa da santa e divina essencialidade. Era somente poder
e espírito, sem paralelo, nada era
discernido ali, senão o Espírito de Deus numa fonte e forma
dupla, ou seja, a severa fonte do fogo,
fria e quente, e a branda fonte do amor, na forma de fogo e luz.
11. É como um mistério que penetra um no outro, sem que um
compreenda o outro, mas que ao mesmo
tempo permanecia em dois princípios. Aqui então o azedume
ou o pai da natureza busca a essência
no mistério, onde quer que tivesse sido formada como que numa imagem,
ainda que não houvesse
nenhuma imagem, mas como que a sombra de uma imagem. Tudo sempre teve, no
mistério, um
eterno começo, e não se pode dizer que algo tenha surgido
sem ter sua figura como sombra na
grande Magia eterna; mas não havia ser, somente uma vibração
espiritual, uma na outra,
constituindo a Magia das grandes maravilhas de Deus, onde sempre houve origem,
onde não havia
nada, senão uma existência infundada. Este nada, na natureza
do fogo e da luz, avançou para um
fundamento, ainda que tenha saído do nada senão do espírito
da fonte, que não é um ser, mas uma
fonte que origina-se de si mesma em si mesma em duas propriedades, e da
mesma forma, separa-se
em dois princípios. Não há separador ou realizador,
nem qualquer causa de sua própria criatividade,
ela própria é a causa.
12. Assim, somos capazes agora de reconhecer a criação deste
mundo, incluindo tanto a criação dos
anjos como a do homem e de todas as criaturas. Tudo foi criado a partir
do grande mistério. Pois, o
terceiro Princípio posicionou-se diante de Deus como uma magia, não
sendo manifestado por inteiro.
Deus não tinha nenhuma semelhança, na qual pudesse manter
seu próprio ser, mas somente a
sabedoria. Este era seu anseio, e estava lá em sua vontade, com seu
espírito, como uma grande
maravilha na magia divina de luz-flamejante do Espírito de Deus.
Pois, a sabedoria era a morada do
Espírito de Deus, e não uma genetrix, mas a revelação
de Deus, uma virgem e causa da divina
essencialidade, pois nela encontra-se a tintura divina de luz-flamejante
para o coração de Deus,
assim como para o Verbo da vida da Divindade, a revelação
da Santa Trindade. Não que a sabedoria
tenha manifestado a Deus através de seu próprio poder e produtividade,
mas o centro divino, ou seja,
o coração de Deus ou ser, manifestou-se nela. A sabedoria
é como se fosse o espelho da Divindade;
pois nenhum espelho produz ou mantém qualquer imagem, apenas recebe
a imagem. Da mesma
forma esta virgem da sabedoria é um espelho da Divindade, no qual
o Espírito de Deus se mantém,
assim como todas as maravilhas da magia, que chegaram à existência
com a criação do terceiro
Princípio. Tudo foi criado a partir do grande mistério, e
a virgem da sabedoria de Deus permaneceu
no mistério e nela o Espírito de Deus viu as formas das criaturas.
Pois isto é aquilo que é
pronunciado, aquilo que o Pai pronuncia através do Espírito
Santo, a partir de seu centro da
propriedade divina de luz-flamejante, do centro de seu coração,
do Verbo da Divindade. A sabedoria
permanece diante da Divindade como Seu reflexo ou espelho, onde a Divindade
se mantém, e nela
repousa o reino divino da alegria e da vontade divina, ou seja, as grandes
maravilhas da eternidade,
que não tem começo nem fim, nem número, mas tudo é
um eterno começo e um eterno fim, e juntos
assemelham-se a um olho que vê, onde contudo não há
nada a vista, ainda que a vista surja da
essência do fogo e da luz.
13. Assim, compreenda na essência do fogo, a propriedade do Pai e
o primeiro Princípio; na fonte e
propriedade da Luz a natureza do Filho ou o segundo Princípio; e
o Espírito governante que procede
destas duas propriedades compreenda como o Espírito de Deus, que
no primeiro Princípio é colérico,
severo, amargo, azedo, frio e feroz, o espírito propulsor na cólera.
Portanto ele não reside na cólera e
na ferocidade, mas sai e sopra o fogo essencial, unindo-se novamente à
essência do fogo, pois as essências ígneas atraem o espírito
novamente para si, já que o espírito é a sua fonte
e a sua vida;
novamente, no fogo inflamado na luz, o espírito procede do Pai e
do Filho, revelando as essências
ígneas na fonte da luz, através da qual as essências
ígneas queimam num grande desejo de amor, e a
fonte austera rigorosa não é conhecida na fonte da luz, a
fim de que a severidade do fogo seja apenas
uma causa da majestade da luz-flamejante e o amor desejoso.
14. Assim, devemos compreender o Ser da Divindade e também da Natureza
Eterna. Compreendamos
sempre o ser divino na luz da majestade, pois a luz branda torna a natureza
severa do Pai gentil,
amorosa e misericordiosa, quando Deus é denominado um Pai de misericórdia,
de acordo com seu
coração ou Filho. Pois a propriedade do Pai encontra-se no
fogo e na luz. Ele é o Ser de todos os
seres. Ele é o não fundamento e o fundamento, e no nascimento
eterno divide-se em três princípios,
embora na eternidade haja senão dois princípios no ser, e
o terceiro é como um espelho dos dois
primeiros, do qual este mundo foi criado como uma existência palpável
num começo e fim.