Sobre a lamentável e miserável queda do homem
Jacob Boehme
1. Para descrever
claramente a encarnação de Jesus Cristo, é necessário
expor-lhes as causas pelas
quais Deus tornou-se homem. Não se trata de algo sem importância
ou de pouco valor como
consideram os Judeus e os Turcos, e mesmo entre os Cristãos, fica
meio que sem sentido; não pode
ser senão uma causa importante, o que colocou o Deus imutável
em movimento. Guarde bem isso,
iremos expor-lhes as causas.
2. Adão
era um homem e uma imagem de Deus, uma completa semelhança de Deus,
embora Deus não
seja imagem. Ele é o reino e o poder, também a glória
e a eternidade, tudo em tudo. Mas a
profundidade infundada desejou manifestar-se em similitudes; de fato, tal
manifestação ocorreu da
eternidade, na sabedoria de Deus, como numa imagem virginal, que contudo
não era uma genetrix,
mas um espelho da Divindade e da eternidade, como se apresenta no fundamento
e no não
fundamento, um olho da glória de Deus. De acordo com este mesmo olho,
foi criado ali os tronos
dos príncipes como anjos e por fim, o homem, que tinha novamente
o trono em si; ele foi criado da
magia eterna, da Essência de Deus, do nada para algo, do espírito
para o corpo. Como a magia eterna
o gerou de si mesma, no olho das maravilhas e sabedoria de Deus, da mesma
forma ele poderia e
deveria gerar de si mesmo um outro homem, de forma mágica, sem a
dilaceração de seu corpo; pois
o homem foi concebido no desejo ardente de Deus, sendo gerado e trazido
à luz pelo desejo de Deus.
Consequentemente, ele possuía o mesmo desejo ardente em si, para
sua própria fecundação. Pois, a
tintura de Vênus é a matriz, e se torna fecunda com a substância,
como com o súlfur no fogo, o qual
ainda obtém à substância na água de Vênus.
A tintura do fogo oferece a alma; a tintura da luz
oferece o espírito; a água ou a substância oferece o
corpo; o Mercúrio ou o centrum naturae oferece
a roda das essências e a grande vida no fogo e água, celeste
e terrestre; o Sal, celeste e terrestre,
mantém tudo isso no ser, pois ele (o Sal) é o Fiat.
3. O homem
tem em si a constelação externa, que é a sua roda das
essências do mundo exterior e a
causa da fundação afetiva (Gemüth); mas ele tem também
a constelação interna, do centro das
essências ígneas e, no segundo princípio, aquela das
essências divinas de luz-flamejante. Ele tinha
toda a magia do Ser de todas as coisas em si. A possibilidade estava nele:
ele era capaz de criar de
forma mágica, pois amava a si mesmo, desejando, de seu centro, a
semelhança. Tendo sido
concebido do desejo de Deus, e trazido à luz pela genetrix no Fiat,
da mesma forma deveria trazer à
luz sua hoste angélica ou humana.
4. Mas se tudo
deveria ser gerado de um, ou seja, do trono principesco, ou um do outro,
não é
necessário saber. Basta-nos saber o que somos e qual é o nosso
reino. Contudo, acredito, no fundo,
no centro, que um surgia do outro; pois o centro celeste, assim como o terrestre
tem seus momentos,
que estão sempre surgindo, já que a roda das essências
em todos os três Princípios está sempre em movimento,
revelando continuamente uma maravilha após a outra. Assim foi construída
e composta a
imagem do homem, na sabedoria de Deus, onde encontram-se inumeráveis
maravilhas; estas
deveriam ser reveladas pela hoste humana. Sem dúvida, com o curso
do tempo, uma maravilha
maior seria revelada, mais em um do que no outro, sempre de acordo com as
maravilhosas variações
da criação celeste e terrestre; de fato, este é o caso
atual, onde encontramos uma maior ciência e
compreensão em um indivíduo do que em outro. Portanto, concluo
que um homem nascia e dava
origem a outro, em conexão com as grandes maravilhas e para a alegria
e deleite do homem, já que
cada homem criaria seu próprio companheiro. Desta forma, a raça
humana teria permanecido num
processo de nascimento até Deus colocar o terceiro Princípio
deste mundo em seu éter novamente,
pois este é um globo com começo e fim. Quando o começo
atinge o fim, e o que era último for o
primeiro, tudo está consumado. Então o meio será purificado
e penetrará novamente aquilo onde
encontrava-se antes dos tempos deste mundo, exceto as maravilhas que persistem
na sabedoria de
Deus, na grande magia, como uma sombra deste mundo.
5. Visto que
Adão era uma imagem tão gloriosa, e além do mais, que
estava no lugar de Lúcifer, que
havia sido expulso, o demônio invejou sua posição, teve
um ciúme violento, estabelecendo seu alvo
e sua ânsia continuamente diante de Adão, deslizou com sua
ânsia na terrenalidade do fruto, fazendo
com que Adão acreditasse que a grande glória residia em sua
terrenidade incandescente. Se bem que
Adão não o conheceu; pois ele não apareceu em sua forma
própria, mas na forma de serpente, como
na forma de uma besta argilosa; ele praticou truques simiescos como um tolo,
que seduz os pássaros
e os captura. Ele havia mais que nada, com seu ímpeto de orgulho,
infectado e aniquilado metade do
reino terrestre, que tornou-se inteiramente corrompido e vão, ainda
que tivesse sido gradualmente
libertado da vaidade. E como o demônio sentiu que Adão era
um filho de Deus, que possuía glória e
poder, ele o perseguiu veementemente. A cólera incandescente de Deus
também perseguiu Adão, a
fim de se deleitar nesta imagem viva.
6. Como vemos,
tudo atraía Adão e desejava possuí-lo. O reino do céu
desejava-o para si, pois ele
havia sido criado para esse reino. Da mesma forma, o reino terrestre o desejava,
pois tinha uma parte
nele; o reino terrestre desejava ser seu mestre, já que ele era apenas
uma criatura. A cólera feroz
lançou suas garras, desejando tornar-se criatura e essencial, a fim
de saciar sua grande e aguda fome.
Adão então, foi tentado por quarenta dias, tanto quanto o
Cristo foi tentado no deserto e Israel, no
monte Sinai, quando Deus deu a eles a lei, para ver se aquele povo teria
condições de permanecer
firme na qualificação do Pai, na lei, diante de Deus; ver
se o homem poderia continuar em
obediência, de tal forma que poderia colocar sua imaginação
em Deus, a fim de que Deus não
precisasse se tornar homem: por conta disso, Deus realizou aquelas maravilhas
no Egito, para que o
homem visse que há um Deus, e que amasse e temesse a Ele. Mas o demônio
era um mentiroso e um
enganador, Israel foi afastada por ele, construindo um bezerro, ao qual
adorou como a um Deus. Não
foi mais possível permanecer firme. Portanto, Moisés desceu
da montanha com as tábuas onde a lei
havia sido escrita e as quebrou, matando os adoradores de bezerro. Com isso,
Moisés não deveria
conduzir o povo à terra prometida; isto era impossível. Josué
teria que fazê-lo e posteriormente
Jesus, que na tentação permaneceu firme diante do demônio
e da cólera de Deus, aquele que venceu
a cólera e despedaçou a morte, como fez Moisés com
as tábuas da lei. O primeiro Adão não
conseguiu permanecer firme, ainda que estivesse no Paraíso e o reino
de Deus estivesse diante de
seus olhos. A cólera de Deus encontrava-se muito mais inflamada,
atraindo Adão; a cólera
encontrava-se muito mais inflamada na terra, por causa da imaginação
e vontade poderosa do
demônio.
7. A Razão
diz: Será que o demônio tinha tanto poder? Sim, caro homem,
e o homem também tem; ele
pode remover montanhas, se a penetrar fortemente com sua imaginação.
O demônio procedeu da
grande magia de Deus e era um príncipe ou rei de seu trono. Ele penetrou
o forte poder do fogo, com
a intenção de ser senhor de todas as hostes celestes. Assim,
a magia tornou-se inflamada e a grande turba foi gerada, a qual lutou com
Adão para ver se ele era forte o bastante para possuir o reino do
demônio e reinar ali, em outra fonte. O espírito da razão
de Adão, é verdade, não compreendeu isso;
mas as essências mágicas, de onde surgem o desejo e a vontade,
satisfizeram uma a outra, até que
Adão começasse a imaginar a terrenidade e desejasse obter
o fruto terrestre. Assim foi feito. Pois sua
imagem pura, que deveria alimentar-se unicamente do Verbo de Deus, tornou-se
infectada e
obscurecida: a árvore terrestre da tentação cresceu
imediatamente, pois assim desejou e permitiu a
luxúria de Adão. Ele tinha que ser tentado, para ver se permaneceria
firme. Surge então o severo
mandamento de Deus, que disse à Adão: "Podes comer de
todas as árvores do Jardim. Mas da árvore
do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia
em que dela comeres terás que
morrer" (Ge. 2. 16,17). Quer dizer, morrer para o reino do céu
e tornar-se terrestre. Adão conhecia
muito bem o mandamento, portanto não comeu, mas imaginou ali e foi
tomado prisioneiro de sua
imaginação, e totalmente sem vigor, fraco e debilitado, foi
vencido; Adão caiu então no sono.
8. Desta forma,
ele caiu diante da magia e sua glória foi perdida. Pois adormecer
indica morte e
subjugação. O reino terrestre o subjugou e desejou governá-lo.
O reino sideral desejou possuir Adão
e realizar suas maravilhas através dele, pois nenhuma outra criatura
havia jamais sido tão elevada
quanto o homem, capaz de conter o reino sideral. Portanto, Adão foi
atraído e devidamente tentado,
para ver se poderia ser senhor e rei das estrelas e elementos. O demônio
estava a serviço e também
pensou em atrair o homem e trazê-lo sob o seu poder, a fim de que
este trono pudesse finalmente
permanecer seu reino; pois ele sabia muito bem que se o homem deixasse a
vontade de Deus, ele se
tornaria terrestre. Sabia também que o abismo do inferno encontrava-se
no reino terrestre; portanto,
ele tinha muito o que fazer. Pois se Adão tivesse se manifestado
magicamente, o Paraíso teria
continuado na terra. Isso não interessava ao demônio, ele não
gostava do Paraíso e nem o queria em
seu reino; pois esse não cheirava a enxofre e fogo, mas a amor e
doçura. Então, pensou o demônio:
Tu não irás comer desta erva, pois deixarias de ser um senhor
no fogo.
9. Assim, a
queda de Adão permanece inteiramente na essência terrestre.
Ele perdeu a essência
celeste, de onde surge o amor Divino, e adquiriu a essência terrestre,
de onde surge a cólera, a
malícia, o veneno, a doença e a miséria; perdeu também
os olhos celestes. Além do mais, não mais
podia comer de forma paradisíaca, mas imaginava o fruto proibido,
no qual o bem e o mal estavam
misturados, como ainda estão hoje em dia, todos os frutos na terra.
Assim, os quatro elementos
tornaram-se ativos e operaram efetivamente nele, pois sua vontade, através
da imaginação, tomou o
reino terrestre para habitar o fogo da alma. Desta forma, abandonamos o
Espírito de Deus para
penetrar o espírito das estrelas e dos elementos; estes o receberam
e regozijaram-se nele, pois ali
vieram a ser vivos e poderosos. Anteriormente, eram compelidos a serem submissos
e contraídos;
mas agora haviam obtido o domínio.
10. Com isso,
o demônio deve ter rido e zombado de Deus; mas ele não sabia
o que estava por trás; ele
ainda nada sabia sobre a esmagadora da serpente, que afastaria o seu trono
e destruiria seu reino. E
assim Adão afundou-se no sono, na magia, pois Deus viu que ele não
permaneceria firme. Portanto,
disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer
uma auxiliar que lhe corresponda" (Gen. 2.
18). Através da qual pudesse edificar sua descendência e se
propagar. Pois ele viu a queda e veio ao
seu auxílio de outra forma, já que não desejava que
sua imagem perecesse.
11. A Razão
pergunta: Por que Deus deixou crescer a árvore pela qual Adão
foi tentado? Deve ter sido
de Sua vontade que Adão fosse tentado. A Razão irá
então atribuir a queda à vontade de Deus, e
pensa que Deus quis que Adão caísse. Deus, segundo ela, desejou
ter um certo número de
individualidades no céu e um certo número no inferno, senão
teria evitado o mal e preservado Adão,
a fim de que ele continuasse bom e no paraíso. Assim julga o mundo
presente. Pois, diz, se Deus não
fizesse nada que fosse mal, não haveria nada mal, já que tudo
é dele proveniente, e só ele é o criador,
quem tudo fez. Seguindo este raciocínio, ele fez o que é mal
e o que é bom. A Razão insiste em manter esta posição.
Pensa também que se não houvesse nada com que o demônio
e também o homem
fosse cativado, vindo a ser mal, o demônio teria permanecido um anjo
e o homem no Paraíso.
12. Resposta:
Sim, cara Razão, agora atingistes o ponto; não podes fracassar
se não és cega. Ouça
atentamente: Por que falas da luz, já que padeces no fogo? Que deleites
não terias, caso não
habitasse o fogo. Colocaria minha tenda junto a ti, mas tu habitas o fogo;
Eu não posso. Tudo o que
tens a fazer é dizer à luz: saia do fogo, então serás
esplendida e encantadora. E se a luz te obedecer,
encontrarás um grande tesouro. Como irás te regozijar se puderes
habitar a luz! Quando o fogo não
puder te queimar. Assim tão longe vai a Razão.
13. Mas veja
corretamente com os olhos mágicos, compreenda com os olhos divinos
e também com os
olhos naturais, então isso lhe será mostrado, ou seja, se
não fores cega e morta. Observe, digo isso
para que compreenda por analogia, visto que a Razão é tola
e nada compreende sobre o espírito de
Deus. Imagine, então, que eu tivesse o poder de tirar a luz do fogo
(o que não pode ser) e ver o que
se segue. Reflita! Se eu separar a luz do fogo, (1) a luz perde a sua essência.
Através da qual brilha;
(2) ela perde a sua vida e se torna desprovida de poder; (3) ela é
perseguida e superada pelas trevas,
extinta em si mesma e se torna um nada, pois ela é a liberdade eterna
e um não fundamento;
enquanto brilha, é boa, e quando se extingue é um nada.
14. Observe
mais! O que eu ainda conservo do fogo se separar dele a luz e o brilho?
Nada, senão um
desejo seco e trevas. Ele perde essência e vida, perde o desejo e
se torna como um nada. Seu súlfur
anterior é morte; consome a si mesmo enquanto existir essência.
Quando não mais houver essência,
haverá um nada, um não fundamento, onde não permanecerá
vestígio algum.
15. Então,
cara alma que busca, medite sobre isto: Deus é a luz eterna, sua
fonte e poder reside na luz.
A luz produz brandura, e da brandura o ser é produzido; esse ser
é o ser de Deus, e a fonte da luz é o
Espírito de Deus, que é a origem. Não há outro
Deus do que este Deus. Na luz está o poder, e o
poder é o reino. A luz e o poder possuem apenas uma vontade-amor,
que não deseja nada mal; ela,
de fato, deseja ser, mas a partir de sua própria essência,
ou a partir do amor e da doçura, pois isso é
como a luz. Mas, a luz surge do fogo, e sem o fogo ela não seria
nada, não haveria essência sem o
fogo. O fogo provoca a vida e o movimento e é a natureza, mas tem
uma vontade diferente da luz.
Pois ele é uma fúria ou voracidade e seu único desejo
é consumir. Ele só tira e cresce no orgulho;
enquanto que a luz nada tira, mas oferece, sendo assim preservado o fogo.
A fonte do fogo é a
ferocidade, sua essência é amarga, seu ferrão é
hostil e desagradável. Ele é um inimigo em si, e se
auto consome; e se a luz não vier em seu auxílio, ele se devora,
a fim de se tornar um nada.
16. Portanto,
cara alma que busca, reflita sobre isto, e logo irás alcançar
o objetivo e a paz. Deus é,
desde a eternidade, o poder e a luz, sendo chamado de Deus, de acordo com
a luz e de acordo com o
poder da luz, de acordo com o espírito da luz e não segundo
o espírito do fogo. Pois o espírito do
fogo é chamado de sua ira, cólera e não é denominado
Deus, mas um fogo consumidor do poder de
Deus. O fogo é chamado natureza e a luz não é chamada
natureza; é verdade que ela possui a
propriedade do fogo, mas transmudada, de cólera em amor, de devoradora
e consumidora em
realizadora, de inimigo e dor amarga em doce beneficência, desejo
amigável e plenitude perpétua;
pois o desejo-amor extrai a brandura da luz e é uma virgem fecundada,
ou seja, fecundada com a
compreensão e sabedoria do poder da Divindade.
17. Assim,
estamos altamente qualificados para reconhecer o que é Deus e a natureza,
o fundamento e o
não fundamento, e também a profundeza da eternidade. Reconhecemos,
então, que o fogo eterno é
mágico e que é gerado na vontade que deseja. Se o eterno e
insondável é mágico, também é mágico
o que nasce do eterno, pois a partir do desejo surgiram todas as coisas.
O céu e a terra são mágicos,
assim como a mente e as essências; se pudéssemos ao menos conhecer
a nós mesmos!
18. Ora, o
que pode fazer a luz se o fogo captura e absorve algo, quando, contudo,
o objeto capturado
pelo fogo também é mágico? Se tem uma vida, poder e
compreensão da luz, por que então corre para
o fogo? O demônio era um anjo e Adão uma imagem de Deus; ambos
possuíam o fogo e a luz, e
mais que isso, possuíam a compreensão divina em si. Por que
o demônio imaginou no fogo e Adão
na terra? Eles eram livres. Não foi a luz e o poder de Deus o que
atraiu o demônio para o fogo, mas a
cólera da natureza. Por que seu espírito consentiu? A Magia
fez por ele, aquilo que ele tinha dentro
de si. O demônio fez para si o inferno, era isso o que ele tinha.
Adão se fez terrestre, é isso o que ele
é. Deus não é uma criatura, nem um realizador, mas
um Espírito e um Revelador. Com o evento da
criação, a posição pode ser considerada e apreendida
da seguinte forma: O fogo e a luz despertaram,
ao mesmo tempo, no desejo, e desejaram um espelho ou imagem de acordo com
a eternidade; o
conhecimento real nos diz, que a ferocidade ou a natureza do fogo não
é realizadora; ela não tornou
nada substancial de si mesma, pois isto não pode ser; mas ela tem
feito fonte e espírito. Ora,
nenhuma criatura tem sua subsistência apenas na essência. Se
uma criatura tiver que existir, deve ser
através da substância, assim como pelo poder ou súlfur,
deve consistir do sal espiritual; então, do
fogo-fonte surge um mercúrio e uma verdadeira vida essencial; além
disso ela deve ter brilho, caso
se queira encontrar nela inteligência e cognição.
19. Assim,
sabemos que toda criatura tem sua subsistência no súlfur, mercúrio
e sal espiritual. Mas o
espírito por si só não realiza tudo isso; deve haver
súlfur, onde há o Fiat, ou seja, a matriz salgada
para o centrum naturae, onde o espírito é mantido; é
preciso haver substância. Pois onde não há
substância, não há forma. Um espirito criaturalizado
não é um ser compreensível; ele precisa atrair
substância para si, através da imaginação, caso
contrário não subsiste.
20. Se o demônio
atraiu ferocidade em seu espírito, e o homem a materialidade, o que
poderia o amor
da essencialidade de Deus fazer com relação a isso? Pois o
amor e a brandura de Deus, com a
essência divina, estava presente e se ofereceu ao demônio, assim
como ao homem. Quem pode
acusar a Deus? Que a essência colérica era demasiadamente forte
no demônio, a ponto de extinguir a
essência-amor: o que Deus pode fazer? Se uma boa árvore for
plantada, e mesmo assim morrer, o
que pode a terra fazer? Ela concede à árvore, no entanto,
seiva e energia. Por que a árvore não as
toma para si? Tu poderás dizer: Suas essências são muitos
frágeis. Mas o que pode a terra fazer, ou
mesmo aquele que plantou a árvore? Sua vontade é apenas que
cresça, para sua satisfação, uma boa
árvore, e pensa em aproveitar o seu fruto. Se ele soubesse que a
árvore fosse perecer, nunca a teria
plantado.
21. Temos que
reconhecer que os anjos foram criados, não como uma árvore
que foi plantada, mas a
partir do movimento de Deus, a partir dos dois princípios, ou seja,
da luz e das trevas, onde o fogo
está oculto. O fogo não queimou no ato da criação
e no movimento, como não queima agora, pois
ele tem seu princípio próprio. Por que Lúcifer o despertou?
A vontade surgiu de seu ser
criaturalizado, e não de fora dele. Ele desejava ser o senhor do
fogo e da luz; desejou extinguir a luz,
e ignorou a brandura; ele desejou ser o senhor-fogo. Vendo que ele desprezou
a luz e o seu
nascimento na brandura, acabou sendo simplesmente expulso. Desta forma,
perdeu o fogo e a luz,
tendo que habitar no abismo das trevas. Se ele tivesse o fogo, ele o inflamaria
com sua malícia, na
imaginação. Além disso, este fogo não queima
propriamente para ele, mas somente na fonte
essencial feroz, de acordo com as quatro formas no centrum naturae que fornece
o fogo em si
mesmas. A primeira forma é azeda, dura, áspera e fria; a segunda
forma, no centro, é amarga, aguda,
hostil; a terceira forma é ansiedade, dor e tormento; e com a ansiedade,
como no movimento e na
vida, ele (Lúcifer) lançou fogo na dura amargura, entre a
dureza e o amargor azedo, a fim de brilhar
como um raio de luz, que é a quarta forma. E se não há
brandura ou essência da brandura, não se
produz a luz, mas unicamente um lampejo; pois a angústia terá
a liberdade, mas é muito aguda, e a
tem senão como um lampejo, ou seja, fogo, ainda que não possua
nenhuma estabilidade ou fundamento. Assim, o demônio deve habitar
nas trevas, e tem apenas o lampejo ígneo em si mesmo;
além do mais, toda a imagem de sua habitação é
como um lampejo ígneo, como se houvesse um
trovão: assim a propriedade infernal se apresenta na fonte.
22. Desta mesma
forma devemos compreender a árvore da tentação, a qual
Adão despertou através de
sua imaginação: ele desejou, e a matrix naturae apresentou-lhe
aquilo que ele desejava. Deus o
proibiu de tocá-la; mas a matrix terrestre teria Adão, pois
ela reconheceu nele o poder divino. Isto
porque o poder divino havia se tornado terrestre através da inflamação
do demônio, embora não
estivesse morto, ele buscava ser o que era antes, ou seja, buscava a liberdade,
para ficar livre da
vaidade; e em Adão estava a liberdade.
23. Foi assim
que ela atraiu Adão, a fim de que ele começasse a imaginar;
e Adão cobiçou a vontade e o
comando de Deus, como encontramos em Paulo: "Pois a carne tem aspirações
contrárias ao espírito
e o espírito contrárias à carne" (Gal. 5, 17).
A carne de Adão era metade celeste e metade terrestre, e
assim o espírito de Adão também havia trazido, pela
imaginação, um poder para a terra, e a matrix
naturae deu a ele aquilo que ele desejou. Ele havia que ser tentado, para
ver se podia permanecer
firme, como um anjo no lugar de Lúcifer. Portanto, Deus não
o criou meramente como um anjo, a
fim de que, se ele caísse e não permanecesse firme, Ele poderia
ajudá-lo, para que ele não perecesse
na cólera feroz, como Lúcifer. Por causa disso, Adão
foi criado da matéria, e seu espírito foi
introduzido na matéria, ou seja, num súlfur de água
e fogo, para que Deus fosse capaz de gerar nele
uma nova vida: como uma bela flor, doce e perfumada, cresce da terra. Este
era o objetivo de Deus
também porque ele sabia que o homem não ficaria firme. Paulo
também diz: "Somos pré ordenados
em Cristo Jesus antes da fundação do mundo", ou seja,
quando Lúcifer caiu, a fundação do mundo
ainda não estava estabelecida, mas o homem já havia sido visto
na sabedoria de Deus. Se, contudo,
ele haveria de ser criado a partir dos três princípios, já
havia perigo, por conta do súlfur inflamado
dos materiais. Embora ele houvesse sido criado acima da terra, mesmo assim
o súlfur havia sido
extraído da matrix da terra, como uma floração da terra,
o perigo já existia. Aqui, o doce nome de
Jesus introduziu-se formativamente, como um salvador e um regenerador; pois
o homem é o maior
mistério produzido por Deus. Ele tem a imagem na qual se vê
como a Natureza Divina tem, desde a
eternidade, se gerado a partir da ferocidade, a partir do fogo, mergulhando,
perecendo, num outro
princípio, de uma outra fonte. Assim, ele também é
resgatado da morte, e cresce da morte num outro
princípio, de outra fonte e poder, onde é totalmente libertado
da terrenidade.
24. É
extremamente benéfico para nós que tenhamos, com relação
a parte terrestre, caído a ponto de
dividir a terra, se é que ao mesmo tempo, obtenhamos a parte divina.
Pois desta forma, fazemos de
nós mesmos praticamente puros, voltando ao reino de Deus totalmente
perfeitos, apesar de qualquer
anelo do demônio. Somos um mistério muito maior do que os anjos.
Devemos também superá-los
em essência divina. Pois eles são chamas de fogo, iluminados
pela luz; mas nós possuímos a grande
fonte de brandura e amor que surge na santa essência de Deus.
25. Portanto,
comportam-se falsa e erroneamente aqueles que dizem que Deus não
quis ter todos os
homens no céu. Ele quis que todos fossem salvos; é a própria
falta do homem, o que não permite que
ele seja salvo; muito embora, muitos tenham uma tendência má,
isto não procede de Deus, mas da
matrix naturae. Poderias tu acusar à Deus? Mentes; o Espírito
de Deus não se extrai de nenhum
outro. Expulsa tua fraqueza, penetra a brandura, a verdade, o amor e te
entrega à Deus, então serás
salvo; foi por isso que Jesus nasceu, porque ele quis salvar. Tu dizes:
Estou preso, não posso.
Realmente! Tu irás então desejar; assim como o demônio
desejou. Se és um cavaleiro, por que não
lutas contra o mal? Mas se lutas contra o bem, és um inimigo de Deus.
Pensas que Deus irá colocar
uma coroa angélica sobre o demônio? Se és um inimigo,
não és amigo. Se pretendes ser um amigo,
abandona a inimizade e vá até ao Pai, então serás
um filho. Onde quer que seja, quem quer que seja
que acuse à Deus é um mentiroso e um assassino como o demônio.
Tu és, de fato, teu próprio realizador, por que te fazes mal?
Embora sejas um material de má espécie, Deus deu a ti seu
coração e
espírito. Use estes dons para a realização de si mesmo,
e farás de ti algo bom. Mas se usas a inveja e
o orgulho, e também o prazer da vida terrestre, o que Deus pode fazer?
Irá Deus se posicionar junto
ao teu orgulho desprezível? Não, esta não é
sua fonte. Mas tu dirás: Eu sou uma fonte mal, e não
posso, estou preso. Bem, deixe a fonte demoníaca de lado e penetre
com tua Vontade-Espírito no
amor-espírito de Deus, entrega-te à Sua misericórdia;
algum dia, certamente serás libertado da fonte
má. Esta nasce da morte. Quando a terra recebe o corpo, ela pode
tomar para si a maldade que
pertence ao corpo; mas tu és e continuas sendo um espírito
na vontade de Deus, em seu amor. Deixe
que o mal Adão morra; um novo e bom irá florescer do velho,
em ti, como uma bela flor floresce do
adubo mal cheiroso. Tenha o cuidado de manter o espírito em Deus.
Não há necessidade de grandes
preocupações quanto ao corpo mal, que está repleto
de maus efeitos. Se ele tiver uma inclinação à
fraqueza, não lhe dê o que é bom; não lhe dê
a oportunidade de exercitar a lascívia. Mantê-lo em
restrição é um bom remédio; Mas abusar da bebida
e da comida é afundar-se com o demônio na
lama, onde ele se enlameia como um suíno. Ser sóbrio, ter
uma vida equilibrada, é um excelente
purgatório para o mal ignorante; não dar a ele aquilo que
anseia, deixa-lo jejuar freqüentemente, a
fim de que não impeça a oração, é extremamente
benéfico. Ele recusa, é claro, mas a Compreensão
deve ser mestre e senhora, pois contém a imagem de Deus.
26. Na verdade,
isto não é nada agradável ao mundo da Razão,
na esfera dos prazeres carnais. Mas por
não ser agradável, e além disso atrair e beber nada
além da sensualidade terrestre e má, a cólera
mistura-se a ela, fazendo com que passe com Adão constantemente para
fora do Paraíso, e com
Lúcifer para o abismo. Lá irás comer e beber aquilo
que, na vida presente atraiu voluntariamente
para ti. Mas à Deus não deves acusar; senão serás
um mentiroso e inimigo da verdade. Deus não
habita em nenhum mal, nem há nele qualquer pensamento mal. Ele tem
senão uma só fonte, ou seja,
a do amor e da alegria; mas sua cólera feroz, ou seja, a natureza,
tem muitas fontes. Portanto, que
cada um tome cuidado com o que faz. Cada homem é seu próprio
Deus e também seu próprio
demônio: a fonte para a qual se inclina e para a qual se entrega,
é aquela que o impele e o guia: ele se
torna seu operário.
27. É
uma grande miséria o fato do homem ser tão cego a ponto de
não reconhecer o que é Deus,
embora ele viva em Deus. Há homens que até mesmo fazem disso
assunto proibido, afirmando, que
não se deve questionar sobre o que é Deus, ao mesmo tempo
que são reconhecidos como mestres de
Deus. Estes são mestres do demônio, trabalhando para que ele
e seu reino de falsidades hipócritas
não seja revelado e conhecido.