O portão da criação do homem
Jacob Boehme
1. Embora isso
já tenha sido explicado suficientemente em outros livros, como nem
todos os tem em
mãos, é necessário que se faça um resumo sobre
a criação do homem, a fim de que a encarnação
de
Cristo seja, mais à frente, bem compreendida. Também por causa
das pérolas, as quais no curso de
sua busca, cabem mais e mais ao homem, sendo reveladas e concedidas à
ele. Recriar a mim mesmo
com Deus, produz em mim grande satisfação.
2. A criação
do homem ocorreu em todos os três Princípios, ou seja, na natureza
e propriedade eterna
do Pai, na natureza e propriedade eterna do Filho, e na natureza e propriedade
deste mundo. No
homem, criado pelo Verbum Fiat, foi soprado o espírito ternário
para sua vida, a partir de três
princípios e fontes. Por um Fiat triplo ele foi criado, compreenda
o que é corporal e essencial; a
vontade do coração do Pai introduziu no homem o espírito,
de acordo com todos os três Princípios.
Compreenda isso da seguinte forma:
3. O homem
foi criado inteiramente à semelhança de Deus. Deus manifestou-se
na humanidade numa
imagem, que deveria ser como Ele próprio. Pois Deus é tudo
e tudo surgiu dele; como nem tudo é
bom, consequentemente o tudo não é chamado Deus. Pois, com
relação à pura divindade, Deus é um
espírito de luz-flamejante e habita em nada, unicamente em si mesmo;
não há nada como ele mesmo.
Mas com relação à propriedade do fogo, de onde a luz
é gerada, conhecemos a propriedade do fogo
como sendo a natureza, que é a causa da vida, movimento e espírito,
de outra forma não haveria
nenhum espírito, nenhuma luz, nenhum ser, mas uma eterna quietude;
não haveria características,
nem virtudes, mas somente um não fundamento sem nenhum ser.
4. Embora a
luz da Majestade habite o não fundamento (falta de fundamento) sem
ser capturada pela
natureza e propriedade ígnea, devemos considerar o fogo e a luz,
da seguinte forma: O fogo possui e
produz uma fonte terrível e consumidora. Ora, há na fonte
um decair, como um morrer, ou uma livre
desistência. Esta livre rendição atinge a liberdade
fora da fonte, como na morte, sem que haja morte
alguma; mas ela descende um grau mais profundo em si mesma sendo libertada
do tormento da
angustia do fogo, mantendo a aspereza do fogo - mas não na angústia
e sim na liberdade.
5. Com isso,
a liberdade e o não fundamento passam a ser uma vida, e tornam-se
uma luz; pois a
liberdade recebe um lampejo da fonte angustiante e passa a desejar a substancialidade;
o desejo se
faz fecundo com a substancialidade da liberdade e da brandura. Pois aquilo
que se aprofunda ou se
volta para longe da fonte da angústia, regozija-se por estar livre
da angústia, atraindo a satisfação
para dentro de si e passa, com sua vontade, para fora de si, penetrando
a vida e o espírito de alegria. Para
expressar tal fato necessitaríamos de uma linguagem angélica.
Mas na seqüência, ofereceremos ao
leitor que ama à Deus, uma curta notificação para sua
reflexão, a fim de compreender a
substancialidade celeste.
6. Em Deus
tudo é poder, espírito e vida; mas o que é substância
não é espírito. Aquilo que descende
do fogo, no não poder, é substância. Pois o espírito
continua no fogo, mas separado em duas fontes:
a do fogo e a que se inclina para a liberdade e para a luz. Esta última
é chamada Deus, pois é branda
e amorosa, contendo em si o reino da satisfação. O mundo angélico
é compreendido na liberdade que
descende da substancialidade.
7. Por termos
abandonado a liberdade do mundo angélico para penetrarmos a fonte
de trevas, cujo
abismo é o fogo, não haveria remédio para nós,
a menos que o poder e o Verbo da luz, como um
Verbo da Vida Divina, torna-se um homem, a fim de nos tirar das trevas,
através do tormento do
fogo, da morte no fogo, penetrando novamente a liberdade da Vida divina,
a essencialidade divina.
Portanto, o Cristo tinha que morrer e com o espírito da alma passar
pelo fogo da Natureza eterna, ou
seja, pelo inferno e pela cólera da Natureza eterna, para a essencialidade
divina, fazendo de nossa
alma um caminho através da morte e da cólera, neste caminho
devemos com Cristo e em Cristo
penetrar a morte para a Vida divina eterna.
8. Mas com
relação a essencialidade divina, ou seja, com relação
a corporalidade divina, devemos
compreender o seguinte: A luz fornece a brandura como um amor ; ora, a angústia
do fogo deseja a
brandura, capaz de saciar sua grande sede; pois o fogo é um desejar
e a brandura um ceder, já que
cede a si mesma. Assim, no desejo da brandura, o ser é produzido,
como uma essencialidade
substancial que escapou da ferocidade, que doa livremente sua própria
vida: tal é a corporalidade.
Pois, através do poder na brandura, torna-se substancial, sendo atraída
e retida pelo amargor, ou seja,
pelo Fiat eterno. Chama-se substancialidade ou corporalidade porque encontra-se
rebaixada à fonteígnea
e espírito, estando relativamente fraca, morta ou sem poder, embora
seja uma vida essencial.
9. É
preciso que o leitor entenda bem. Quando Deus criou os anjos, apenas dois
Princípios estavam
manifestados no ser, ou seja, a existência no fogo e na luz, quer
dizer, primeiro envolvendo a
essencialidade ígnea no Fiat severo e amargo, com as formas da natureza
ígnea; em segundo lugar,
envolvendo a essencialidade celeste do santo poder com as fontes-aquosas
da brandura da vida de
satisfação, na qual, como no amor e na brandura, o divino
súlfur foi gerado, seu Fiat foi a vontade
desejosa de Deus.
10. Desta Essência
divina, assim como da Natureza de Deus, os anjos foram criados como criaturas.
O
espírito dos anjos, ou fonte de vida, continua no fogo; pois sem
fogo não existe espírito algum. Mas
passam do fogo para a luz, onde recebem a fonte do amor. O fogo foi apenas
a causa de suas vidas;
mas a ferocidade do fogo foi extinta pelo amor, na luz.
11. Lucifer
desprezou isso e permaneceu um espírito de fogo. Assim, ele se elevou
e acendeu a
essencialidade em seu locus, de onde a terra e as pedras foram produzidas;
ele foi banido. Começa
aqui a terceira corporalidade e o terceiro Princípio, juntamente
com o reino deste mundo.
12. Como o
demônio foi banido do terceiro Princípio para as trevas, Deus
criou uma outra imagem à
Sua semelhança para esta região. Mas se esta imagem deveria
ser a imagem de Deus, segundo todos
os três Princípios, tinha que ser tirada de todos os três,
e de cada entidade desta região, assim como o
Fiat tinha, na criação, se manifestado no éter, em
conexão com o trono principesco de Lúcifer. Pois o
homem ocupou o lugar de Lúcifer; desde então, a grande inveja
dos demônios não atribui ao homem
esta honra, mas o tem guiado continuamente pelo caminho corrupto e demoníaco,
a fim de poderem
aumentar seu reino. Fazem isso em rebeldia à brandura ou ao amor
de Deus. Além do mais, acreditam,
por viverem na ferocidade do forte poder, serem maiores do que o Espírito
de Deus, que consiste de
amor e brandura.
13. Assim,
a Vontade-Espírito de Deus ou o santo Espírito dispôs
o Fiat duplo em dois princípios, ou
seja, o interno no mundo angélico e o externo neste mundo, criando
o homem (Mesch ou Mensch)
como uma pessoa mista. Pois deveria ser uma imagem do mundo interior e exterior,
devendo reinar
pela qualidade interior sobre a qualidade exterior: desta forma ele seria
a semelhança de Deus; pois a
natureza exterior estava suspensa na natureza interior. O paraíso
florescia através da terra e o homem
estava neste mundo, na terra, no Paraíso. O fruto paradisíaco
crescia para ele até a queda. Quando o
Senhor amaldiçoou a terra, o Paraíso passou para o mistério,
tornando-se para o homem um mistério
ou segredo; contudo, se o homem nascer de novo de Deus, habitará
pelo homem interior, no Paraíso,
mas pelo homem exterior, neste mundo.
14. Iremos
mais além no que se refere à origem do homem. Deus criou seu
corpo da matriz da terra, de
onde a terra foi criada. Tudo encontrava-se misturado, e ainda assim dividido
em três Princípios
coexistentes com os três tipos de essências, no entanto aquela
da cólera feroz não era conhecida. Se
Adão tivesse permanecido na inocência, teria vivido o tempo
todo deste mundo em dois Princípios
unicamente, e teria reinado por um sobre todos; o reino da cólera
feroz nunca teria sido manifestado
ou conhecido, embora este reino estivesse dentro dele.
15. O corpo
de Adão foi criado pelo Fiat interno, a partir do elemento interior,
onde permanece o
firmamento interno e o céu com as essências celestes; foi criado
também, pelo Fiat externo, a partir
dos quatro elementos da natureza externa e das estrelas. Pois, na matriz
da terra o Fiat interno e
externo encontravam-se misturados. O paraíso estava lá, e
o corpo foi criado mais que nada para o
Paraíso. Ele possuía a essencialidade terrestre e divina em
si; mas a terrestre encontrava-se como que
absorvida na essencialidade divina ou desprovida de poder. A substância
ou matéria da qual o corpo
foi feito ou criado era uma massa, ou uma água e um fogo, com as
essências dos dois Princípios;
embora o primeiro também estivesse contido nele, não estava
ativo. Cada Princípio deveria
permanecer em seu lugar, sem se misturar com os outros, como ocorre em Deus:
desta forma, o
homem seria uma completa semelhança do ser de Deus.