O
Homem de Desejo e o Homem da Torrente
Marc Haven (Dr. Emmanuel Lalande)
A assustadora, esmagadora
a massa de obras publicadas sobre as questões religiosas: livros
sagrados, comentários, apologética, história das religiões
e - especialmente desde o século XVIII crítica dos textos,
estudos sobre os mitos, sobre a evolução das religiões,
pesquisas sobre a natureza da fé, sobre suas origens! O salão
da Biblioteca Nacional não seria suficiente para abrigar todos esses
livros.
É apavorante, atroz, o pensamento dos rios de sangue derramados,
das torturas suportadas desde os tempos primitivos até nossos dias
em nome dessas duas palavras: os dogmas, a fé.
O que existe é o homem, com um coração que ama, que
gostaria de ser amado, de compreender melhor para melhor amar. E isto é
tudo. É isto que sentimos, que sabemos, que nasce em nós,
conosco. O homem ama a partir do momento em que pensa. Como o feto que,
tão logo desligado de sua mãe, torna-se um eu, abre sua boca,
busca o ar em um primeiro grito; da mesma forma a alma humana, desde que
pensa - e isto se dá muito rápido - ama, busca o amor, estende
seus braços às carícias da natureza e às dos
homens.
Surgiu então diante dele um homem com estátuas ou uma mulher
com bonecas, todos os dois o cativando com cantos e imagens atraentes, falando
de misteriosos perigos, de livros sagrados, de promessas, de ameaças,
de segredos.
A partir do momento em que um homem te diz: "Eis o livro sagrado, eis
o único, o verdadeiro livro; eis o Credo que se faz mister saber,
vinde ao Meu Templo
", esteja certo de que tens diante de ti um
homem que o orgulho, o erro ou, ainda mais freqüentemente, o interesse,
fazem falar. Não discuta, fuja, fuja aterrorizado!
A partir do momento em que em tuas pesquisas teus olhos caem sobre um livro
intitulado Críticas de tal religião, exposição
de tal doutrina, ensaio sobre a evolução dos dogmas, etc.,
não o abras, foge, foge desgostoso.
Mais ainda, quando tua razão se mostra inquieta, levanta objeções
sobre a antinomia da Fé e da Ciência, afasta esse fantasma,
reencontra o bom cantinho, a natureza, o mundo vivente, harmonioso; foge
da tua razão! foge dos demônios que deixaste penetrar em ti.
Porque não são os homens, nem os livros, nem tua Ciência
que irão te fornecer a solução do problema; nem o saber,
nem a Paz.
É certo que se podem escrever volumes sobre volumes sem esgotar a
história das loucuras, das crueldades humanas. É certo que
houve segredos, conchavos, autos-de-fé, predicações
e ritos desde a aurora dos tempos até nossos dias. Mas de que serviram
todos esses atos, que adiantaria para ti estudá-los? Que ganharíamos
com isto?
Que ganhará aquele que deixar de ser judeu para tornar-se cristão,
protestante, depois católico? Não terá ele o mesmo
coração, provavelmente inquieto com o mesmo escrúpulo?
Não, o problema é outro e mais simples e resulta do seguinte:
Há duas categorias de seres humanos, apenas duas. Temos, de um lado,
aquele que ainda possui, desenvolvido, o estado de espírito original
de seus primeiros dias e que chamaremos o espírito religioso: esse
ímpeto de amor que ele havia potencialmente engendrado. Ele pode
pertencer a não importa que seita, confissão ou sociedade;
ele busca, deseja a felicidade para si e para os outros; ama e gostaria
de ser amado. Essa emoção que o emudece diante do belo, empurra-o
para o bem, é um movimento irreversível espontâneo,
diante do qual ele esquece inteiramente de si. Amo, desejo, quero compreender
(isto é, tomar em mim, reunir à unidade em mim). Busco por
detrás do objeto da ideia sua tradução em minha língua
pessoal, seu eco em meu coração, seu parentesco com aquele
desconhecido que persigo por todo o Universo, sob todos os fenômenos.
Quero apenas esta relação com a unidade, um número,
um local em um sistema lógico? Não, isto não passaria
de um puro jogo filosófico, que não preencheria nem meu coração,
nem minha vida. É o amor que me preme e que eu chamo, é um
ser vivente e amante que busco, não uma fórmula. Por que?
Porque sou feito assim. Não tenho a pretensão de explicá-lo,
mas eu o sinto, eu o vivo, e isto ultrapassa toda explicação.
O fato de formular este problema, a emoção que me emudece,
já me mostram que a solução existe, que o problema
está mesmo resolvido. "Não me buscarias se já
não me tivesses encontrado" (em ti).
Já encontramos estas palavras de Jesus expressadas quatro mil anos
antes de sua vinda, nos textos dos Sábios da China. É um entusiasmo
imperioso, não uma adivinhação filosófica fria,
indiferente. Eis a diferença!
Aqueles que mantiveram em si esse fogo divino - por menos numerosos que
sejam em alguma família, em algum lugar que o destino os tenha colocado,
pessoas importantes no mundo ou simples camponeses, sacerdotes ou soldados
- fazem parte do mesmo grupo.
Através do espaço, ignorando inclusive suas existências,
eles estão unidos em um mesmo ideal. Nenhuma seita os prende, e nenhuma
raça, nenhuma profissão interpõe barreira entre eles.
Esse estado de espírito não se limita a ser um sentimento
improdutivo. Os que o possuem agem; seus atos são simultâneos,
intercambiáveis e fecundos. Do sentimento nasce o saber, o conhecimento
real, o discernimento dos espíritos (discernir os espíritos
é reconhecer em cada indivíduo seu mandato, seu nome, a função
para a qual ele foi criado e ajudá-lo no cumprimento de sua obra).
Sua vida é caridosa por seu exemplo. O caminho se revela diante deles
e eles podem indicá-lo aos outros. Esse caminho é a renúncia
ao "Eu", o abandono ao espírito, o caminho da Cruz.
Mas não se trata aí de uma religião, menos ainda de
uma ciência ou filosofia. A religião formula seu Deus, seu
Credo. É Manu, Jeová ou o Sol. Ela cria ritos, castas, sanções,
constroem templos e celas. Ela entra no mundo para a conquista desse mundo.
O espírito religioso não formula nada, não limita nada,
conhecedor que é da fragilidade de sua razão, da mobilidade
da sua imaginação. Ele encontra o UM presente tanto na floresta
quanto na cidade. Ele não materializa o espírito nas palavras
ou em pedras; ao contrário, ele transmuta a matéria em espírito,
sabendo que dessas pedras Deus pode fazer nascer os Filhos de Abraão.
Ele faz sacrifício em todos os Templos e mesmo em lugares públicos.
Fato capital que diferencia o espírito religioso do espírito
do mundo, seja em meio aos acadêmicos ou às Igrejas; é
que o espírito religioso é um sentimento e em nada revela
ostentação. É um amor, é o Amor, enquanto que
o espírito do mundo é científico, repousa sobre a experiência,
sobre o raciocínio, recusando qualquer elemento emotivo.
Os que compõem esta segunda classe da humanidade são as pessoas
práticas positivas: homens de negócio, de ação,
os struggle for life, que observam, classificam, pensam tudo e buscam tirar
o melhor partido possível de tudo o que os cerca para a ampliação
do seu Eu. Eles podem atingir, no homem de ciência, no homem de estado,
uma grandeza considerável, elevar-se a alturas metafísicas
que, à primeira vista, se confundem com o espírito religioso,
mas que dele diferem inteiramente pelo fato de partirem da sensação,
atribuindo ao mundo exterior uma importância primordial; apoiam-se
na razão, na lógica, como meio, e têm um único
objetivo: o desenvolvimento do seu Eu ao máximo de suas possibilidades,
mesmo que às expensas de outrem. É o Ser racional que não
abre nele os diques do amor, a não ser que esteja seguro de auferir
daí um proveito imediato ou futuro.
Ora, os dados dos sentidos nos quais ele se apóia são inverificáveis;
nossas sensações subjetivas, incomunicáveis. A razão
é uma máquina muito aperfeiçoada, mas que não
pode trazer nenhum resultado, nenhum novo produto. Ela molda o grão;
não saberia produzi-Ia. Se ela é empregada por um coração
humano, dirigi da e alimentada por ele, então fornecerá um
trabalho melhor ou pior, segundo o valor do operário. Mas, mesmo
neste caso, ela é incapaz de nos revelar o ser e os sentimentos daquele
que o emprega. Já o filósofo conhece apenas a razão,
só quer servir-se dela. Ele parte do nada e chega ao nada; do desconhecido
no infinitamente grande, ao desconhecido no infinitamente pequeno, das nebulosas
ao átomo, da massa inexistente à força incompreensível
sem ela. Ele discute inclusive os postulados de que parte e, sobre esta
ciência, alicerça uma moral, uma sociologia.
Suas produções materiais, suas leis, servem o mal com a mesma
intensidade que o bem. Ele se cerca de um nevoeiro, se enreda nos elos;
cria para si uma vestimenta de folhas e de peles de animais que chegam a
fazer desaparecer seu próprio corpo. Ao cultivar a vontade, o Eu,
semeia o germe das futuras destruições. E não poderia
se dar de forma diferente, já que sua inteligência, oposta
ao espírito, ao UM, traz o selo do binário, da divisão.
É assim que a humanidade se encontra dividida em duas categorias
de seres que, mesmo falando a mesma linguagem, mesmo que intimamente misturados
em sua vida cotidiana e sob o verniz da mais perfeita cortesia, são
e permanecerão eternamente inimigos. É exatamente quando têm
o ar de estarem no mais perfeito acordo, é quando pronunciam as mesmas
frases, que estão mais distanciados do ' coração.
Em todos os países, em todas as raças e religiões,
pode-se encontrar uns - em pequeno número - e outros em massa, porque
o egoísmo, a luta pela vida, reinam na humanidade. Mas essa grande
massa que se inclina diante da ciência, diante da razão, a
última deusa, não tem o poder que se poderia supor. Interesses,
ambições, crenças, fazem de cada um o inimigo daquele
que deveria ser seu companheiro de armas na batalha contra os defensores
do espírito. Os homens de ação, de luta, destroem incessantemente
pela própria prática de seus princípios, essas nações
que eles construíram pela conquista, cercadas de fronteiras, de leis,
nações sempre perturbadas por trustes, greves, guerras, revoluções,
até o ponto em que não restem senão as agulhas das
coníferas.
Entre eles, semeados pelo mundo, estão os outros, aqueles que chamamos
"homens de espírito religioso". Artesãos, camponeses,
padres ou soldados, pouco importa, são os justos de que fala o Zohar,
aqueles dos quais basta um para salvar uma cidade. São os operários
do Senhor, os sustentáculos do Mundo. Eles vivem irreconhecíveis
no meio da multidão, desprezados em geral, longe dos colégios,
das capelas, mais longe ainda das sociedades ditas iniciáticas. Em
torno deles encontram-se alguns homens dotados, que vivem de sua luz, que
respiram suas almas.
É a estes "homens dotados" que falamos, que lembramos a
frase de Lao-Tsé: "Retornai à simplicidade primitiva",
e o ensinamento do Cristo: "Se não vos tornardes crianças,
não conhecereis o Reino de Deus".
Porque na simplicidade primitiva o homem possuía esse poder de amor
que engendra o homem de desejo, depois o Homem-Espírito. A porta
superior do seu coração se abre: o Espírito penetra
nele, ele se torna UNO nesse espírito com o Senhor. Ele tem toda
liberdade, todos os poderes, como disse o apóstolo Paulo: "O
Senhor é espírito; lá onde está o espírito,
está também a liberdade". Aí se encontra o único
problema que se coloca e que se faz mister resolver; é o único
caminho a seguir; é a boa nova (Evangelho) que, de idade em idade,
sob formas diversas, os anjos vêm repetir, da qual eles testemunham
por vezes ao custo de sua vida, sempre ao custo da sua paz e da sua felicidade,
quando não se elevam a esta suprema santidade que Nosso Senhor Jesus
Cristo foi o único a atingir, nas alturas da sua Cruz.
19 de agosto de 1926