Constituição
do Ser Astral
Papus
"Desde há quanto tempo eu estava morto? Ignoro-o. A noção do tempo tinha neste ponto mudado de aspecto desde a minha transformação, que me foi impossível conceber uma duração conforme minhas ideias anteriores. Tinha vagamente lembrança de uma espécie de letargia semiconsciente que durou até o momento presente. Lembrava-me também do trabalho que tive para me habituar progressivamente a ver, ouvir, pensar e principalmente, coisa estranha, ver pensar sem nenhum dos órgãos materiais cujo emprego me era familiar na terra. E compreendi por que sabedoria providencial estes órgãos de matéria grosseira tinham desaparecido, pois não poderiam nem conter, nem suportar a luz intensa que se escapava de todo o meu ser; meu corpo, com efeito, era inteiramente luminoso; mas tinha conservado quase completamente a forma do meu envoltório terrestre.
Uma luz difusa, porém ainda muito fraca de intensidade, se escapava
do meu corpo; pois apenas nascia para meu novo estado e meus meios de ação
estavam singularmente transformados. "A vontade, que felizmente tinha
desenvolvido do melhor modo possível na terra, era o verdadeiro motor
do meu novo organismo e o desejo constituía o princípio de
todas as ações. Com efeito, a locomoção era
instantânea, e bastava ter o desejo de ir a um lugar deste mundo novo
e fazer um leve esforço de vontade para estar instantaneamente no
lugar desejado.
Esta ausência de transição entre o ponto de partida
e o ponto de chegada é uma das sensações mais difíceis
de conceber para um homem terrestre. "Em sonho, quando estava encarnado,
muitas vezes aconteceu-me voar em paisagens da Terra e esta sensação
de embalamento no ar só pode dar uma ideia grosseira da felicidade
experimentada nestas mudanças instantâneas. Da mesma forma
o sentido do tato estava totalmente abolido em meu novo estado; bastava
pôr atenção numa árvore para apanhar seus menores
detalhes. Se ousasse empregar uma imagem grosseira diria que tateava com
a minha vista. A luz e o ar eram os únicos alimentos de que teriam
necessidade nossos organismos neste mundo singular; porque, se disse que
nada tínhamos de material aqui, exagerei ligeiramente. Devia ter
dito que a matéria era a tal ponto evoluída que dificilmente
se teria reconhecido no envoltório luminoso que nos constituía
o barro escuro utilizado para semelhante emprego na terra. Assim o sentido
do tato, e seu anexo, o sentido do gosto, tinham desaparecido ao mesmo tempo
em que a forma do nosso novo corpo sofrera uma leve transformação
pelo afinamento do ventre que, sendo inútil, se atrofiou completamente.
Entre os sentidos receptivos, a vista e o ouvido tinham tomado uma singular
agudeza, da mesma forma que o olfato, último vestígio de nossa
forma terrestre. "Mas novos sentidos tinham nascido.
A vista, transformando-se, tinha permitido o nascimento da faculdade de
ver a intimidade das coisas penetrando na luz própria delas; mas
o que me encantava e me atemorizava ao mesmo tempo era a faculdade, tão
nova para mim, de ouvir pensar quando os outros queriam principalmente os
entes astrais mais velhos que eu neste mundo. A intuição tão
obscura na terra tinha adquirido tal amplidão que os sentimentos
chegavam quase sempre a substituir as sensações em nossa vida
corrente. Isto é o relativo aos órgãos da sensibilidade.
"Se procurar agora descrever meus órgãos de ação
terei de fazer grandes esforços para ser compreendido por aqueles
que ainda estão encarnados. 26 "Na terra podia agir sobre o
exterior de quatro modos: pelo andar (pernas), pelo gesto (braços),
pela palavra (laringe), e pelo olhar (olho). Da mesma forma que o tato desapareceu,
o andar não existe mais e o gesto se transformou singularmente. "Quando
quero agir sobre um ponto sem me transportar a ele, basta-me estender os
braços para um objeto, e imediatamente um traço de luz colorida
sai de minha mão e vai misturar-se com a luz do objeto.
Falarei adiante desta luz, característica das coisas. Aqui o olhar é motor e tudo é posto em movimento pelo olhar. Este movimento é mantido, se for necessário, pela luz pessoal do operador. Mas a mais bela das minhas novas faculdades, uma faculdade quase divina, é o poder de transformar uma ideia em um ser real pela palavra. Muitas vezes tinha lido na terra esta frase: O verbo é criador; mas só aqui é que pude compreender todo o seu valor. Se uma ideia que acabo de conceber me parece bela, basta-me evocá-la à vida por minhas palavras e logo a ideia, tirando um pouco de minha luz, toma corpo e me aparece. Isto causa uma pequena fadiga; porém como comparar este trabalho agradável ao esforço terrível que é preciso na terra para forçar a matéria a tomar as formas de uma ideia, mesmo tão vulgar como a de uma mesa?
É somente aqui que pude admirar em seu justo valor os inauditos esforços
dos artistas da terra que vêm entre nós procurar suas ideias,
da maneira que logo direi. Porém o que indica que em toda a parte
a sombria fatalidade exerce seu império é que estas formas
viventes, criadas aqui por cada um de nós, são efêmeras
e após cada uma das agradáveis letargias, que são para
nós o que o sono é para vós, nada mais subsiste das
criações da véspera. Estamos condenados, ao menos aqui,
ao que me parece, ao eterno trabalho de Penélope. Todavia a nossa
parte de alegria é demasiado grande para deter-me em maldizer estes
benefícios. Pois, podemos alcançar tal perfeição
das nossas criações ideais, pelo emprego da oração,
que nem mesmo posso procurar dar-vos uma ideia aproximativa disso. "Isto
é, em poucas palavras, o resumo de minha constituição
física; agora falaremos um pouco do meio que me rodeia".