OS
SEGREDOS DO GÓLGOTA
Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
PRIMEIRA PARTE
9 - A ressurreição
de Lázaro
Sendo o primeiro na ressurreição dos mortos, tinha que anunciar
a luz ao povo e aos gentis.
Atos, 26, 23
Acabamos de ver que André, apóstolo, não é outro
que Eleazar, cuja abreviatura é Lázaro. Ele é o "ressuscitado"
célebre. Sem dúvida, os espíritos desconfiados há
muito tempo, observaram que essa viagem mais à frente não
lhe deu a conhecer nada novo, e que, tudo o mais, comportou-se como um homem
comum, emergindo de um profundo sonho, natural ou provocado. Vejamos um
pouco mais de perto o relato dos fatos.
Este não nos contribui isso mais que o evangelho citado por João.
Antes aparecera o episódio da filha de Jairo, chefe da Sinagoga (Lucas,
8, 41), mas como nos precisa que a menina dormia e não estava morta
(Jesus disse; Lucas, 8, 52), não se trata somente de um fenômeno
de catalepsia, e não de uma ressurreição.
No caso de Lázaro, aliás Eleazar, aliás André,
(43) a coisa é muito distinta. Este episódio só figura
em João, 11, 1 a 44. Aqui está: "Havia um doente, Lázaro,
da Betânia, da aldeia de Maria e de Marta, sua irmã. Era esta
Maria a que ungiu ao Senhor com ungüento e lhe enxugou os pés
com seus cabelos, cujo irmão Lázaro estava doente. Enviaram,
pois, às irmãs a lhe dizer: "Senhor, que amas está
doente". Ouvindo-o Jesus, disse: "Esta enfermidade não
é de morte, a não ser para Glória de Deus, para que
o Filho de Deus seja glorificado por ela".
"Jesus amava a Marta e a sua irmã e ao Lázaro. Embora
ouviu que estava doente, permaneceu no lugar em que se achava dois dias
mais, passados os quais disse a seus discípulos: "Vamos outra
vez à Judéia". (44)
Os discípulos lhe disseram: "Rabbi, os judeus lhe buscam para
o apedrejar, e de novo vai lá?". Respondeu Jesus: "Não
são doze as horas do dia? Se algum caminhar durante o dia, não
tropeça, porque vê a luz deste mundo; mas se caminhar de noite,
tropeça, porque não há luz nele". Isto disse,
e depois acrescentou: "Lázaro, nosso amigo, está dormido,
mas eu vou despertar-lhe". Dizendo então os discípulos:
"Senhor, se dormir, sarará". Falava Jesus de sua morte,
e eles pensaram que falava do descanso do sonho. Então lhes disse
Jesus claramente: "Lázaro morreu, e me alegro por vós
de não ter estado ali, para que acreditassem. Mas vamos lá".
Disse, pois, Tomás, chamado Dídimo, aos companheiros: "Vamos
também nós morrer com ele".
"Foi, pois, Jesus, e se encontrou com que levava já quatro dias
no sepulcro. Estava Betânia perto de Jerusalém, como a uns
quinze dias, (45) e muitos judeus tinham vindo a Marta e a Maria para consolá-las
por seu irmão.
Marta, pois, assim que ouviu que Jesus chegava, saiu-lhe ao encontro; mas
Maria ficou sentada em casa. Disse Marta ao Jesus: "Senhor, se estivesse
aqui, não teria morrido meu irmão; mas sei que quanto peça
a Deus, Deus o outorgará". Disse-lhe Jesus: "Ressuscitará
seu irmão". Marta lhe disse: "Sei que ressuscitará
na ressurreição, no último dia". Disse-lhe Jesus:
"Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim,
embora morto, viverá; e tudo o que vive e acredita em mim, não
morrerá para sempre. Você crê nisto?". Disse-lhe
ela: "Sim, Senhor, eu acredito que você é o Messias, o
Filho de Deus, que veio a este mundo". (46)
"Dizendo isto, foi e chamou a Maria, sua irmã, dizendo-lhe em
segredo: 'O Mestre está aí, e chama-a'. Quando ouviu isto,
levantou-se imediatamente e se foi a Ele, pois ainda não tinha entrado
Jesus na aldeia, mas sim se achava ainda no local onde encontrara Marta.
Quão judeus estavam com ela consolando-a, vendo que Maria se levantava
com pressa e saía, seguiram-na pensando que ia ao monumento a chorar
ali.
"Assim Maria chegou onde estava Jesus, vendo-lhe, ajoelhou-se a seus
pés, dizendo: "Senhor, se estivesse aqui, não morreria
meu irmão". Jesus vendo-a chorar, e que choravam também
quão judeus vinham com ela, comoveu-se profundamente e se turvou,
e disse: "Onde o pusestes?". Disse-lhe: "Senhor, vêm
e vê".
"Chorou Jesus.
"E os judeus diziam: "Como lhe amava!". Alguns deles disseram:
"Não pôde este, que abriu os olhos do cego, fazer que
não morra?".
"Jesus, outra vez comovido em seu interior, chegou ao monumento, que
era uma cova tampada com uma pedra. Disse Jesus: 'Tirem a pedra'. Dizendo-lhe
Marta, a irmã do morto: 'Senhor, já fede, pois está
há quatro dias'. Jesus lhe disse: 'Não disse que, se acreditar,
verá a glória de Deus?'. Tiraram, pois, a pedra, e Jesus,
elevando os olhos ao céu, disse: 'Pai, dou-te graças porque
me escutaste; eu sei que sempre me escuta, mas pela multidão que
me rodeia o digo, para que acreditem que me enviaste'. Dizendo isto, gritou
forte: 'Lázaro, sai fora!'. Saiu o morto, atado com bandagens pés
e mãos, e o rosto envolto em um sudário. Jesus lhes disse:
'lhe soltem e deixem ir'." (João, 111, 1 a 44).
Aqui expor uma pergunta embaraçosa: Como um homem, com a cara envolta,
os membros atados com ataduras, e reduzido ao estado de múmia impotente,
pôde levantar-se, caminhar, dirigir-se a nenhuma parte?
Voltemos agora atrás, e tomemos de novo ao João, no capítulo
10, e leiamo-o inteiro, até o versículo 39. Tudo o que conta
se desenvolve em Jerusalém: "...celebrava-se então em
Jerusalém a Dedicação. Era inverno. E Jesus passeava
no Templo pelo pórtico de Salomão". (Op. cit., 10, 22-23).
Agora passemos aos versículos 39 a 42 do mesmo capítulo: "(Jesus)
Partiu de novo ao outro lado do Jordão, ao local em que João
batizara a primeira vez, e permaneceu ali". (Op. cit., 10, 40-41).
O lugar "em que João tinha batizado a primeira vez" é
o vau "da Betânia, ao outro lado do Jordão" (João,
1, 28), quer dizer, um lugar situado na Perea, território chamado,
efetivamente, "mais à frente do Jordão" (veja o
mapa nº 8 do Atlas biblique pour tous, de R.P. Grollenger, O.P., Editions
Sequoia). Mas não é a Betânia dos arredores de Jerusalém,
situada na Judéia... Assim, a "Betânia, do outro lado
do Jordão" (João, 1, 28) é desconhecida, e Enon
(mais ou menos: "regiões de fontes"), onde João
batizava "porque havia muita água", "perto de Salim"
(João, 3, 23), tampouco pode localizar-se com certeza, conforme nos
diz R.P. Grollengerg. Mas uma vez mais, e de todo modo, não é
a que está situada a uns dois quilômetros de Jerusalém,
mas sim essa outra está ao menos a quarenta quilômetros, a
vôo de pássaro, do outro lado do chamado Jordão.
João, o Batista, portanto, encontrava-se em Perea, e isso está
bem estabelecido. Agora saltemos de João 10, 42 ao capítulo
12,1: "Seis dias antes da Páscoa, veio Jesus à Betânia,
onde estava Lázaro, a quem Jesus ressuscitara dentre os mortos".
(João, 12, 1). Mas se já estava ali! Se todo o capítulo
precedente o mostra precisamente em Betânia! Decididamente, essa localidade
converteu-se para nossos piedosos falsificadores em uma verdadeira obsessão,
e não sabendo já como sair da miscelânea de mentiras
que elaboraram de maneira tão imprudente, caíram por último
na incoerência.
E, com efeito, do mesmo modo que o episódio da mulher adúltera
(João, 8, 3) não foi introduzido nesse Evangelho até
que acessou ao pontificado o Papa Calixto (217-222), a pseudo-ressurreição
de Lázaro tampouco apareceu nos "acertos" dos monges copistas
até os séculos IV e V. (47) Porque é de todo ponto
evidente que se Mateus, Marcos, Lucas e os Atos dos Apóstolos, assim
como todas as Epístolas de Paulo, Pedro, Santiago, João e
Judas ignoram semelhante prodígio (como é o caso), é
que na época de sua redação ninguém conhecia
tal relato. E fica em pé uma prova peremptória, a passagem
seguinte dos Atos dos Apóstolos, na qual Paulo, então em Cesaréia
Marítima, no ano 58, declara ao rei Agripa e à rainha Berenice:
"Graças ao socorro de Deus persevero firme até hoje,
dando testemunho a pequenos e a grandes e não ensinando outra coisa
a não ser o que os profetas e Moisés disseram que aconteceria:
que o Messias tinha que padecer, que sendo o primeiro na ressurreição
dos mortos, tinha que anunciar a luz ao povo e aos gentis". (Cf. Atos
dos Apóstolos, 26, 23). (48)
De modo que Paulo ignora que o primeiro ressuscitado dentre os mortos foi
Lázaro, e não Jesus. Pelo visto ignora que no instante do
último suspiro deste na cruz da infâmia, ressuscitaram também
numerosos mortos, que até então jaziam nas tumbas do cemitério
ritual de Jerusalém, próximo às Oliveiras, porque:
"A terra tremeu e fenderam as rochas; abriram-se os monumentos, e muitos
corpos de Santos que dormiam, ressuscitaram; e saindo dos sepulcros, depois
da ressurreição Dele, vieram à cidade Santa e apareceram
a muitos". (Cf. Mateus, 27, 52-53). Por conseguinte, se dermos crédito
ao João e ao Mateus, Jesus não pôde ser o primeiro ressuscitado
dentre os mortos. A menos que tudo isso fora imaginado nos séculos
IV e V. Mas se as testemunhas do prodígio que constituiu a ressurreição
de Lázaro tiveram uma existência real, convém desvelar
o engano de que foram vítimas ou cúmplices, pois vamos ver
a forma em que se operou: Em todo o Egito, e principalmente na península
do Sinai, existe uma solanacea chamada sekaron, quer dizer, "a embriagadora".
Pertence ao subgrupo dos belenos, é a Hyoscyamus muticus. Dela, os
antigos extraíam o banj ou bang, que, segundo a dose utilizada, era
um potente narcótico ou um simples alucinógeno.
Por outro lado, convém saber o que era o que se entendia por tumba
ritual naquela época, em Israel.
Em uma parede rochosa, escavava-se primeiro um estreito corredor em suave
pendente e a céu aberto, freqüentemente provido de degraus,
a fim de alcançar mais rapidamente a profundidade requerida. Então,
na fachada da frente à qual desembocaria o corredor, praticava-se
uma abertura muito baixa, que geralmente se obturava com uma laje de pedra.
Se a tumba era importante, utilizava-se um molar de grão, que se
fazia rodar comodamente por uma sarjeta aberta a direita ou a esquerda.
Depois da abertura assim começada na parede, fazia-se uma primeira
câmara funerária, no centro da qual se escavava uma pequena
fossa. Ao redor desta fossa corria um alzapié, espécie de
caminho de ronda que permitia circular.
Na parede do fundo desta primeira câmara, abria-se outra porta, e
escavava-se atrás dela uma segunda câmara funerária.
As paredes desta última tinham nichos, nos quais se depositava aos
mortos. Esses nichos tinham um pendente destinado a facilitar o fluxo dos
líqüidos orgânicos procedentes da decomposição
dos cadáveres, e esses líqüidos eram recolhidos em canais
que desembocavam na fossa central da primeira câmara.
Quando os esqueletos estavam totalmente descarnados e secos, retirava-os
de seu nicho e encerrava-os em pequenos ossários análogos
a nossos "féretros de redução". Os líqüidos
orgânicos evaporavam-se pouco a pouco na fossa central, mas enquanto
esta não secasse, segundo os termos da Lei judia devia-se pintar
de branco, com cal vivo, todo o exterior da tumba: escada, laje de fechamento,
canal, marco da porta. Desde onde a expressão de "sepulcro branqueado",
sinônimo de "lugar impuro". Quando Jesus tratava a seus
adversários com este mesmo termo, a injúria não era
leve, como se vê. Isto equivalia, com efeito, a qualifica-los de "carniça",
ou de "podridão".
Voltemos agora para o Lázaro. Suponhamos que este último aceitasse
desempenhar o papel de "compadre" em um engano destinado a inflar
desmesuradamente a reputação taumatúrgica de Jesus,
e a facilitar assim o recrutamento e a ação do movimento zelote.
(49) Absorveria o banj ou um potente narcótico equivalente. Depois
de um simulacro de enfermidade de evolução rápida e
morte oficial, levar-lhe-iam à uma tumba, sempre dormido, e abandonariam
no rodapé funerário, enrolado dentro do sudário habitual
e provido das bandagens rituais, e a seguir fechariam a tumba. O herbário
secreto do vodu africano ou antilhano possui receitas que permitem fazer
acreditar em uma morte aparente sem discussão possível. Era
com semelhantes procedimentos que se obtinha, não faz ainda muito
tempo, aos famosos zumbis, e o Código penal haitiano se viu na obrigação
de ditar penas extremamente severas para lutar contra estes assassinos mentais.
No caso de Lázaro não se trata mas sim de um soneca. A permanência
de quatro dias nessa capela funerária seria facilitada mediante a
contribuição de alimentos e de água por Marta e Maria.
A impureza ritual e o medo supersticioso aos mortos descartavam qualquer
indiscrição noturna. Não ficava já a não
ser acautelar ao Jesus e esperar sua chegada, o "milagre" estava
pronto. Quanto ao aroma de putrefação, era fácil de
obter no último momento com uma peça de carne passada, no
fundo da cova. Quem pode sabê-lo? Possivelmente a pseudo-ressurreição
de Lázaro não foi em realidade outra coisa que uma tentativa
de ensaio da qual projetava Jesus. A crucificação veio a transtorná-lo
todo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Observar-se-á que:
1. Maria é a irmã de Lázaro, aliás André
(João, 11, 1-4).
2. André é irmão de Simão-Pedro, portanto o
é também de Jesus (veja o capítulo 8).
3. Maria é portanto a irmã de Jesus, por via de conseqüência,
quão mesmo Marta. Essas são as irmãs anônimas
citadas em Mateus (13, 56), e Marcos (6, 3).
4. Agora bem, Maria é a mulher que unge ao Jesus com nardo em Betânia
(João, 1-4).
5. E a mulher que unge ao Jesus é precisamente a pecadora pública
da cidade, uma prostituta, segundo Lucas (7, 38).
6. Maria, irmã de Jesus, é portanto uma mulher de má
vida.
7. E Jesus anima-a a perseverar, apesar das recriminações
de Marta, sua outra irmã (Lucas, 10, 42).
Começa-se a compreender aqui por que Jesus declara, em Mateus (20,
31 e 32), que as prostitutas adiantarão aos outros crentes no reino
de Deus, e por que as pessoas "de má vida" oferecem-lhe
um festim na casa de Levi (Mateus, 9, 10; 11, 19; Marcos, 2, 15-16; Lucas,
5, 30; 14, 1; 15, 2).
10 - Judas-bar-Judas, o gêmeo
Ainda existiam, da raça do Salvador, os netos de Judas, a quem chamavam
irmão carnal daquele...
EUSEBIO de Cesaréia, História eclesiástica, III, XX,
1
Esse Judas (em hebreu: Juda, aliás Iehuda, louvor), citado em Marcos
(6, 3) como irmão de Jesus, não deve ser confundido com o
Judas chamado o Iscariotes (em hebreu: "homem do crime"): "Disse-lhe
Judas, não o Iscariotes: "Senhor...". (Cf. João,
14, 22). Não é outro que Tomás (em hebreu: Taôma,
quer dizer, gêmeo). Taciano, discípulo de São Justino,
em seu Diatessaron (síntese dos quatro Evangelhos canônicos),
declara, por volta do ano 175 de nossa era, que Judas é em realidade
seu verdadeiro nome. Mais tarde, São Efrén (306-375), um dos
padres da Igreja siriaca, confirmará em seus Hinos.
Terá que saber que Tomás não é, em hebreu, um
nome próprio, a não ser simplesmente um adjetivo e um nome
comum: taôma, no plural taômim, significa, como dissemos antes,
gêmeo. Daí o epíteto de dídimo (em grego: gêmeo)
que lhe associa João (11, 16 e 20, 24). A existência de um
irmão gêmeo de Jesus foi já longamente demonstrada,
textos antigos em mão, em uma obra precedente, a que remetemos a
lector. (50) Aqui nos limitaremos a citar, simplesmente, um evangelho muito
velho, em seu manuscrito copto do século V, o Evangelho de Bartolomeu:
"Ele (Jesus) falou com eles em língua hebraica, dizendo: "Saúde
a ti, Pedro, meu zelador, saúde a ti, meu gêmeo, segundo cristo!"...
(Cf. Evangelho de Bartolomeu, 2º fragmento, Imprimatur: Paris, 1904,
Firmin-Didot, édit.).
Outro irmão de Jesus, cuja identidade continua um mistério,
aparece citado por Hipólito de Tebas e por José, o Eclesiástico,
sob o nome de Sidonios, "o de Sidón". (Cf. Abade Mine,
Patrologie, XVI, P. 187). Possivelmente foi em sua casa onde se refugiou
Jesus quando fugiu à Fenícia (Mateus, 15, 21). (51) Também
poderia ser o mesmo que os Evangelhos canônicos citam como Jesus-bar-Aba
ou Barrabás, já que o grande Orígenes assegura que
em manuscritos antigos se dava a esse bandido o nome de Jesus. (52)
O que tem que particular no caso do Judas é que os escribas anônimos
do século IV, que lhe puseram a máscara de Tomás sobre
o rosto para dissimular que Jesus, "Filho único do Altíssimo",
tinha um irmão gêmeo, é que aqueles falsificadores lhe
deram diversos nomes.
Cita-lhe, efetivamente, com o sobrenome de Tomás em Mateus (13, 55),
Marcos (6, 3), Atos (1, 13), Judas (1, 1). O fato de que se tratasse do
mesmo personagem que o irmão gêmeo de Jesus nos confirma isso
Eusebio da Cesaréia: "O mesmo Domiciano ordenou suprimir aos
descendentes de David. Uma antiga tradição conta que alguns
hereges denunciaram aos descendentes de Judas, que era um irmão carnal
do Salvador, como pertencentes à raça de David e aparentados
com o próprio Cristo". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História
eclesiástica, III, XIX). Eusebio contribuía aí o texto
exato de Hegesipo em suas Memórias, compostas por cinco volumes,
e que Eusebio declara tê-lo em suas mãos. E este Hegesipo,
judeu converso, viveu de 110 a 180 de nossa era na Palestina, visitou diversas
igrejas, entre as quais se achava a de Roma sob o Papa Aniceto (155-166),
e, uma vez retornado à sua pátria, compôs seus Hypomnemata,
aonde se documentou amplamente Eusebio da Cesaréia.
Por conseguinte, se por um lado Tomás é o mesmo que Judas,
e é deste modo o irmão gêmeo de Jesus, o nome deste
último é, efetivamente, como diziam Taciano e São Efrén,
Judas, em hebreu Iehuda ou Juda, como seu pai carnal Judas de Gamala. Onde
tudo isto se complica, embora resulte bastante revelador, é na versão
protestante da Bíblia do pastor Louis Segond, quem nos diz que Judas
é também a mesma pessoa que Lebeo, citado em Mateus (10, 3),
e que é Tadeu (op. cit.). E é também o sobrinho de
Levi, aliás Mateus. Dessas relações familiares se desprende,
pois, que o chamado Mateus-Levi era o tio de Jesus (e provavelmente o irmão
de Judas da Gamala ou de Maria), já que era tio do gêmeo do
chamado Jesus... Como se vê, entre os "apóstolos"
nos encontramos realmente "em família".
Em uma obra precedente, (53), já assinalamos que esse Tomás,
taôma em hebreu, ou gêmeo, fora vendido como escravo a fim de
lhe permitir atravessar as fronteiras da Judéia sem temor de ser
identificado e detido pela polícia romana, depois de ter interpretado
seu papel de pseudo-ressuscitado. Mas a seguir teve que voltar forçosamente
ao terreno das atividades zelotes, já que o encontramos executado
por ordem de Cuspio Fado, procurador de Roma em Judéia, em finais
do ano 45 e princípio de 47 de nossa era. Também neste ponto,
consultemos ao Flavio Josefo: "Enquanto Fado era procurador de Roma,
um mago chamado Theudas (54) persuadiu uma grande multidão de gente
para que lhe seguisse, levando seus bens até o Jordão. Pretendia
ser profeta e que, por ordem dele, as águas do rio se dividissem
para assegurar a todos uma passagem fácil. Dizendo isto, seduziu
à muitas pessoas. Mas Fado não lhes permitiu abandonar-se
a sua loucura. Enviou contra eles um esquadrão de cavalaria, que
os surpreendeu, matou a muitos deles e capturou com vida a muitos outros.
Quanto ao Theudas, que foi feito prisioneiro, os a cavalo cortaram a cabeça
e levaram à Jerusalém. Isto é, pois, o que aconteceu
aos judeus durante o tempo em que Cuspio Fado foi procurador". (Cf.
Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, V, 1).
Para encobrir melhor a verdadeira personalidade do irmão gêmeo
de Jesus, deram-lhe, pois, vários nomes: Judas, Theudas, Tadeu, Lebeo,
Tomás. Mas, o que é pior, pouco a pouco fizeram dele um filho
de Santiago, o Menor, pretendido "filho de Alfeu", quem seria
decapitado em Jerusalém no ano 44. E todos os exegetas católicos
e protestantes, ao mesmo tempo, estiveram de acordo.
Acabamos de ver, à luz de uma verificação precisa,
o crédito que pode conceder-se a conclusões tão "autorizadas"
como "unânimes" quando são interessadas, porque é
bem evidente, tendo em conta os documentos antigos que contribuíram
as provas necessárias, que Tomás não foi outro que
o irmão gêmeo de Jesus, e não um vago parente longínquo.
De todo modo, fica um ponto de pé, muito importante, e que se deve
sublinhar. No relato do fim trágico de Judas, aliás Tomás,
aliás Lebeo, aliás Tadeu, encontramos o princípio e
o costume de colacarem a disposição comum dos bens próprios
dos fiéis do movimento zelote, entre as mãos dos chefes da
comunidade, e que ilustra tão bem o assassinato de Ananías
e de Saphira, sua esposa, à mãos dos jovens da guarda de Simão-Pedro.
(55) Isto explica a configuração progressiva, desde Ezequías
e Judas da Gamala, desse enorme tesouro zelote cuja existência nos
revelam os documentos do mar Morto e que já encontramos (veja o capítulo
1).
NOTAS COMPLEMENTARES
A gente poderia sentir saudades de que o irmão gêmeo de Jesus
aceitasse esse papel de ressuscitado, tendo em conta sua incredulidade.
De fato, esse episódio foi fabricado integralmente, e precisamente
para descartar em adiante qualquer caráter de verossimilhança
no referente à existência do chamado gêmeo... Para prova,
basta-nos com o que segue: De Troas, Ignacio, bispo de Antioquia, redigiu
por volta do ano 110 ou 115 de nossa era uma Epístola aos Esmirnos,
quando se encontrava em caminho para Roma, onde seria executado. Pois bem,
nessa carta dirigida à comunidade da Esmirna, contribui-nos a prova
de que o episódio dessa incredulidade de Tomás, todavia não
se imaginou naquela época: "Para mim, eu sei e acredito que,
inclusive depois de sua ressurreição, Jesus Cristo tinha um
corpo. Quando se aproximou de Pedro e a seus companheiros, o que lhes disse?:
"me toquem, me apalpem, e vejam que não sou um espírito
sem corpo". Imediatamente todos lhe tocaram, e ao contato íntimo
de sua carne e de seu espírito, acreditaram". (Cf. Ignacio de
Antioquia, Epístola aos Esmirnos, III).
Porque esse mesmo episódio da incredulidade de Tomás não
o encontramos mais que no evangelho de João (20, 24). Agora bem,
esse evangelho era desconhecido antes do ano 190. E nós não
o possuímos materialmente até o ano IV. Antes o cético
era Simão-Pedro! E Mateus, Marcos e Lucas ignoram a incredulidade
de Tomás, e com razão!
Se a gente recordar que Ignacio foi o discípulo daquele Simão-Pedro,
o que faz dele um dos quatro "Padres apostólicos", ver-se-á
obrigado a admitir que aquele se achava nas fontes mesmas da tradição
oral.
Quanto a Tomás, discretamente evacuado fora da Palestina, em um convento
de escravos, guardou-se bem de continuar esse perigoso jogo. Podemos ler
a seu respeito o seguinte nos Stromates de Clemente de Alexandria: "Escolhidos
não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e não todos
morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe, Tomás,
e muitos outros... " (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates, IV, IV).
Se se recordar que Clemente era o discípulo direto de Pantenio, quem
por sua vez era discípulo direto do apóstolo Marcos, vê-se
que o chamado Clemente se achava nas fontes mesmas da tradição
oral ele também. E confirma implicitamente o que antecede. Uma tradição
eclesiástica pretende que o beijo de Judas Iscariotes teve como finalidade
designar realmente ao Jesus, e evitar aos legionários romanos que
procedessem a deter seu sósia, quer dizer, a seu irmão gêmeo.
Mas para esta tradição o sósia era "seu primo
irmão, Santiago, o Menor". Nos contentemos sabendo que tinha
um sósia, isso já constitui uma confissão ...
11 - Felipe
Eu conheço outros escritos, um pouco menos antigos (por poucos séculos)
que os textos de Qumrân, mas mais ricos, e que ilustram, com extremada
abundância de detalhes, um dos lados mais obscuros desses primeiros
séculos de nossa era.
Jean Doresse, Les Livres secrets des gnostiques d'Egypte, Introdução
Com efeito, em 1947 descobriu-se em Nag-Hamadi, no Alto o Egito, uma biblioteca
gnóstica-cristã extremamente rica. Recebeu o nome de biblioteca
de Khenoboskion, antiga Shenessit do antigo o Egito, e estava composta por
quarenta e nove manuscritos, redigidos bem em subakhmímico, bem em
saídico. Um deles leva por título: Epístola de Pedro
ao Felipe, seu irmão maior e seu companheiro". Está redigido
em saídico, dialeto do Alto Egito, chamado também copto tebano.
Contribui-nos a prova de que no século V, época de sua transcrição
costumavam-se ainda correntemente os laços de parentesco carnal entre
Jesus e seus "discípulos". Nós já demonstramos,
por exemplo, que Simão-Pedro era o irmão menor de Jesús.
(56) Se Felipe era irmão de Pedro, é que o era também
de Jesus.
Sobre este apóstolo dispomos de um duplo testemunho de Clemente de
Alexandria. Era de Betsaida, "a cidade de André e de Pedro"
(João, 1, 44), o que dá a entender que devia ser mais ou menos
primo ou irmão destes, e portanto de filiação davídica
também. Vejamos o que diz Eusebio de Cesaréia: "Não
obstante, Clemente, cujas palavras acabamos de ler, enumera a seguir o que
acaba de ser dito, àqueles dos apóstolos que estiveram casados,
por causa daqueles que condenam o matrimônio: 'Rechaçarão
também aos apóstolos? Pedro e Felipe tiveram filhos. Felipe
inclusive deu à suas filhas à homens. E Paulo não vacilou
em saudar em uma Epístola a sua companheira, a quem não levava
consigo, para maior comodidade de seu ministério'." (Cf. Eusebio
de Cesaréia, História eclesiástica, III, XXX, 1).
O cônego G. Bardy observa que Clemente confunde o apóstolo
Felipe com o diácono Felipe, citado em Atos dos Apóstolos
(21, 9), e essa confusão já cometera Polícrato de Éfeso,
em sua carta ao Papa Víctor. Foi o diácono quem teve quatro
filhas, por certo que profetisas (videntes). Este foi enterrado em Hierápolis,
assim como duas de suas filhas (op. cit., III, XXXI,3). Deixemos, pois,
ao diácono e voltemos para apóstolo, sobre o que não
sabemos nada, salvo a observação de Clemente, já citada:
"Escolhidos, não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e
não todos morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe,
Tomás, e muitos outros..." (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates,
IV, 9).
O que equivale a dizer que esses personagens, depois da morte de Jesus e
o fracasso da revolução dirigida por ele, voltaram para seus
assuntos, menos perigosos e mais proveitosos que as insurreições
zelotes. À exceção, entretanto, de Tomás, o
irmão gêmeo de Jesus, aliás Dídimo, aliás
Judas, aliás Tadeu, o taôma hebreu. Este, como agora sabemos,
embora não "confessasse ao Senhor pela palavra", morreu
apesar de tudo decapitado, sob o nome de Theudas, e por ordem de um tribuno
que estava ao mando da cavalaria legionária enviada em sua perseguição
por ordem de Cuspio Fado, procurador de Judéia. Como não "confessou
ao Senhor pela palavra", foi executado por direito comum.
Sem dúvida, Mateus, Felipe, Tomás, eram daqueles apóstolos
que não caíram na armadilha da pseudo-ressurreição;
e Tomás com maior motivo, já que durante vários dias,
e adotando certas precauções, interpretou o papel de Jesus
"saído da tumba". Porque em Mateus lemos o seguinte, sobre
depois da ressurreição: "Os onze discípulos foram
à Galiléia, ao monte que Jesus lhes indicara, e, vendo-lhe,
prostraram-se, embora alguns vacilaram... (Cf. Mateus, 28, 16-17).
Daí o final desenganado do Evangelho de Pedro: "O último
dia dos ázimos, muitas pessoas retornaram a suas casas, uma vez terminada
a festa. E nós, os doze discípulos do Senhor, chorávamos
e estávamos afligidos. E cada um, entristecido pelos acontecimentos,
retornou a sua casa. Quanto a mim, Simão-Pedro, e André, meu
irmão, tomamos nossas redes e fomos ao mar. E conosco estava Levi,
filho de Alfeu, que o Senhor...". (Cf. Evangelho do Pedro, 58 a 60).
Nenhum deles acreditava, pois, na próxima ressurreição,
apesar dos "milagres".
Deste fragmento final, interrompido bruscamente, teremos em conta, entretanto,
que os apóstolos continuam doze; portanto, Judas Iscariotes ainda
não foi executado. No que concerne ao final de Felipe, a Lenda dourada
o faz morrer em Hierápolis, em Frigia, crucificado e rematado sob
uma chuva de pedras, a instigação dos sacerdotes dos santuários
pagãos. Mas para admitir este fim, terei que saber o que tal Felipe
fazia em Frigia, e o ignoramos. Além disso, se não participou
da propaganda e na agitação zelote depois da morte de Jesus,
no que incomodava aos sacerdotes dos outros cultos? Deixemos a lenda e concluamos
que não sabemos nada sobre esse personagem misterioso, quanto mais
que outras tradições escolásticas o fazem morrer de
enfermidade, também em Hierápolis, e que outras o fazem perecer
crucificado.
NOTAS COMPLEMENTARES
Teve Mateus-Levi descendência? Não é impossível.
Na versão eslava da Guerra dos judeus de Flavio Josefo observamos
esta passagem, relativo ao célebre João da Giscala, que se
ilustrou de diversas maneiras durante o local de Jerusalém: "João
(Iochanan), filho de Levi, mago e homem de maus pensamentos, desejoso de
honras e sedento de guerra para dominar sobre todos... (Cf. Guerra dos judeus,
IV, 1, manuscrito eslavo).
Observemos que esse nome é de origem Galileu (Giscala está
na Galiléia), que é o filho de um Leví, e Mateus, aliás
Leví, é Galileu; que esse João, aliás Iochanan-bar-Leví,
é mago, e a família de Jesus, seus irmãos e ele mesmo
têm essa reputação; que João da Giscala está
desejoso de receber honras e de dominar, e que quer reinar.
Agora bem, para justificar tais desejos terá que possuir títulos
que o permitam, portanto, provavelmente é "filho de David"
também ele. Porque naquela época só havia três
dinastias que pudessem apresentar candidatos válidos: a davídica,
a asmonea e a herodiana, igual na França era preciso proceder dos
Borbones, os Orléans ou os Bonaparte para ser um candidato sério
à coroa. Por isso, se João da Giscala é filho de Mateus-Leví,
e se este último é um tio de Jesus (em opinião geral),
isso significa que o chamado Mateus-Leví se casou com Maria III,
filha de Salomão e de Hannnah (Ana), e meio-irmã de Maria
I, mãe de Jesus (ver quadro genealógico, cap. 19). E então
o terrível João da Giscala teria sido primo de Jesus, embora
teria nascido muito tempo depois dele. Nas famílias às vezes
há cada embrulho... Como vemos, também aí, e como nós
afirmamos sempre, nas inumeráveis insurreições zelotes
nos encontramos sempre ante a mesma família, os chefes são
todos parentes próximos. E como no caso de Judas Iscariotes, a traição
do tio Leví-Mateus explica-se muito bem: Tentou fazer acontecer a
sucessão dinástica à cabeça de seu próprio
filho. Esta traição, que surpreenderá ao leitor, logo
a encontraremos, é facilmente demonstrável, e está
confirmada pelo Celso em seu Discurso verdadeiro veja o capítulo
27).
12 - Mateus
Falou-se do descobrimento do original de Mateus na tumba de Bernabé,
no Chipre... tentaram nos fazer aceitar diversos farrapos de papiro como
os restos da edição original de Mateus... e tudo sem a menor
verossimilhança!
CHARLES GUIGNEBERT, O Cristo, I, IV
Não transcreveremos o nome de Mateus com dois "t", já
que em espanhol se escreve com uma só quando é um simples
nome próprio, e que em hebreu leva só um taw em Mathan (II
Reis, 11, 18 e Jeremías, 38, 1), quer dizer, mem-taw-nun, pontuados
respectivamente pelo patah e o quamats.
Mateus aparece chamado por Clemente de Alexandria entre aqueles que não
se preocuparam com o apostolado depois da morte de Jesus (veja o capítulo
3) e retornaram a seus assuntos pessoais. Quer dizer, que o primeiro "evangelho"
que leva seu nome, e que desapareceu muito em breve, segundo Orígenes,
que não o conheceu mais que de ouvido, assim como o segundo, que
nós conhecemos agora com esse nome, igual ao Pseudo-Mateus, ou Livro
das infâncias de Maria e de Jesus, todos esses textos não puderam
ter como autor ao personagem chamado sob esse nome em nossos canônicos
ou nos apócrifos.
E conservamos para o final uma opinião autorizada: "Os detalhes
que dá a tradição sobre seu apostolado e seu martírio
não têm valor histórico". (Cf. Dictionnaire de
théologie catholique, tomo X, 1ª. Parte, P. 359; imprimatur
em 26-3-1928, Paris, Letouzey édit., 1929).
Assim, como o que se afirma a respeito do apostolado de Mateus encontra-se
desprovido de todo fundamento histórico, é óbvio que
o mesmo acontece com o "Evangelho segundo São Mateus",
já que não há apostolado sem evangelho. Em uma palavra,
Mateus jamais compôs texto algum com esse nome, ao menos não
o Mateus citado em Mateus (9, 9 e 10, 3), Marcos (3, 18), Lucas (6, 15)
e nos Atos (1, 13).
É o mesmo personagem que Levi, e para convencer-se basta ler em Marcos
(2, 14) e comparar com Mateus (9, 9). E sob esse nome de Levi aparece citado
em Lucas (5, 27), o que confirma a observação seguinte:
a) "Passando Jesus dali, viu um homem sentado ao telonio, de nome Mateus,
e lhe disse: "me siga". E ele, levantando-se, seguiu-lhe...".
(Cf. Mateus, 9, 9).
b) "depois disto (Jesus) saiu e viu um publicano por nome Levi sentado
ao telonio, e lhe disse: "me siga". Ele, deixando tudo, levantou-se
e seguiu-lhe". (Cf. Lutas, 5, 27-28).
Segundo Eusebio e Epifano, citados pelo cardeal Jean Daniélou, S.
J., o Evangelho dos Hebreus, chamado também Evangelho dos Nazarenos,
não seria outro que a versão aramaica do Evangelho de Mateus
(Cf. J. Daniélou, Théologie du judéo-christianisme,
P. 34).
Terá que ter em conta a tradição eclesiástica,
segundo a qual este seria um tio de Jesus? No caso afirmativo, devia tratar-se,
ou do irmão de Judas da Gamala, ou do de Joaquim, o pai de Maria.
Como diz, acerbo, Clemente de Alexandria, nesta indiferença prudente
para as instruções de um sobrinho "iluminado", pode
classificar-se ao Levi-Mateus entre aqueles que na montanha, ante o pseudo-ressuscitado,
duvidaram. (veja o capítulo 3).
Por outro lado, suas funções de pedágio, aliás
publicano, quer dizer, de cobrador de impostos indiretos, ao serviço
dos ocupantes romanos, faziam dele um pequeno "arrendatário
geral", o que implica a posse de uma certa fortuna como ponto de partida,
fortuna investida na aquisição do cargo. Este detalhe pareceria
descartar tal possibilidade em um homem jovem, enquanto que resultaria mais
plausível no caso de um homem amadurecido. Por isso a tradição
nos apresenta isso como o tio de Jesus (e não como um irmão
ou um primo, e menos ainda como um estrangeiro), coisa que deveremos ter
em conta, assim como essa prudência no fato de não querer correr
o risco de perder tudo em agitações estéreis.
Segundo uma tradição mais que legendária, evangelizou
entretanto a Palestina e Etiópia, e ali encontrou o martírio
por querer opor-se ao matrimônio do príncipe Hirtace com sua
parenta Ifigenia; isso é o que acontece meter-se onde a um não
importa. Não obstante, como há grandes possibilidades de que
ninguém se chamou jamais assim em Etiópia, voltaremos para
a opinião autorizada do Dictionnaire de théologie catholique
já citado, ou seja, que não sabemos nada sobre Mateus, e que
não redigiu nada. O que parece muito mais sensato.
Observe-se, por outra parte, que Eusebio de Cesaréia, ao citar com
muita reserva em seu livro III, capítulo I, as regiões nas
quais teriam evangelizado os apóstolos, tem muito cuidado em nos
fazer compreender, dúbio, que daqueles que nos conta, não
se faz absolutamente responsável. Pois bem, nessa passagem não
diz nenhuma palavra sobre Mateus.
Limitemo-nos, pois, à afirmação de Clemente de Alexandria,
ou seja, que o citado Leví-Mateus, à morte de Jesus, retornou
tranqüilamente a seus frutíferos pedágios, mais remunerantes
e menos perigosos que o prosseguimento das lutas zelotes, que terminavam
invariavelmente no tradicional suplício da crucificação.
Sobre sua morte real não sabemos nada válido, evidentemente
Mateus morreu em Luch, ou em Hierópolis, ou em Naddaver (cf. G. Las
Vergnas, Jésus-Christ a-t-il existé? Heraclion nega o martírio
que alguns lhe adjudicam, quão mesmo o grande Dictionnaire de théologie
catholique.) Em um próximo capítulo veremos que o silêncio
da Igreja está mais que motivado, e que é prudente não
insistir muito sobre a vida de "São Mateus", já
que, uma vez mais, também aqui nos espera um escândalo explosivo...
13 - Bartolomeu
Os Evangelhos não são, evidentemente, novelas, mas tampouco
são livros de história...
DANIEL-ROPS, Jesus em seu tempo, Introdução
Já imaginávamos ligeiramente. Mas os governos se esforçam
em fazer acreditar o contrário, através da imprensa, das emissões
religiosas, dos espetáculos televisionados, etc. E aqui temos outra
vez a ocasião de surpreender a muito famosa "tradição"
em estado de total impostura.
O apóstolo Bartolomeu citado em Mateus (10, 3), Marcos (3, 18), Lucas
(6, 14), nos Atos (1, 13). Eusebio da Cesaréia nos diz isto a respeito
dele: "Entre esses homens esteve Pantenio, e se diz que foi às
Índias. Também se diz que lhe antecipara o evangelista Mateus,
já que alguns indígenas do país conheciam Cristo. Àquelas
pessoas, Bartolomeu, um dos apóstolos, pregou-lhes, e deixara-lhes,
em caracteres hebraicos, a obra de Mateus, que conservaram até a
época da qual falamos". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História
eclesiástica, V, X, 3-4).
Sabemos por Orígenes, o grande doutor e exegeta morto no ano 254,
que já em seu tempo o texto inicial em aramaico ou hebreu do Evangelho
de Mateus perdeu-se e era totalmente desconhecido. Supunha-se que estava
composto pelos "ditos" de Jesus, sentenças lapidárias,
axiomas, etc., mas em todo caso não tinha nada em comum com o relato
que Orígenes tinha em mãos. Pois bem, Orígenes era
discípulo direto de Clemente de Alexandria, quem o era de Pantenio.
E o chamado Pantenio, que estivera "nas Índias", não
trouxera a mínima cópia desse precioso documento inicial de
Mateus? Incrível!
E tanto mais que possivelmente poderia inclusive adquirir o original, então
em mãos dos habitantes das Índias, dado que Bartolomeu, apóstolo,
tinha-lhes deixado esse texto imensamente precioso em "caracteres hebraicos".
Coisa que, para os índios, que não conheciam a não
ser os alfabetos indi e sânscrito, e ignoravam o hebreu como linguagem,
não representava evidentemente nenhum interesse. (E além disso,
o cristianismo sempre fracassou nas Índias, em presença das
doutrinas tradicionais ou do Islã. Logo que há cristãos,
e só entre os órfãos recolhidos e logo educados "conforme").
Então, que interesse podia ter Bartolomeu em lhes deixar um exemplar
em hebreu?
Tudo isso soa fabulação.
Observemos que o cônego G. Bardy, em sua tradução de
Eusebio de Cesaréia e em suas notas complementares, diz-nos, página
39 do tomo II (livros V a VII de Eusebio de Cesaréia): "Trata-se
realmente da Índia, ou da Arábia do Sul?..." Esta observação
é muito pertinente, se se considerar quantas vezes os célebres
contos de As Mil e uma Noites chamam a Índia ao que não é
mais que o conjunto das regiões ao sul do mar Vermelho. Mas ao mesmo
tempo é muito perigosa para a lenda oficial, como veremos logo.
Voltemos agora para misterioso personagem de Bartolomeu. Em hebreu é
Bar-Thalmai, mas sem o nome de circuncisão prévio, quer dizer,
X...-bar-Thalmai. Esse nome aparece citado em livro dos Números (13,
22), Josué (15, 14), em II Samuel (3, 3 e 13, 37) e em I Crônicas
(3, 2). Lemaistre de Sacy lhe dá como significado "filho daquele
que detém as águas". Thalmai não significa exatamente
isso, porque também pode ser "filho das fontes de cima",
de tal (em hebreu: altura), e de may (em hebreu: fontes, águas).
Então seria "filho das águas do alto".
A versão sinodal protestante nos precisa, em sua oitava revisão
(Paris, 1962, Société biblique française édit.),
que Bartolomeu era provavelmente o mesmo personagem que Natanael, citado
em João (1, 45 a 50), ao qual Jesus encontraria entre a Betânia
do outro lado do Jordão e Galiléia, para onde volta. Então
seria Natanael-bar-Thalmai.
Sobre a sorte final de Bartolomeu, a Lenda dourada quer nos fazer acreditar
que morreu em Albanópolis, em Armênia, esfolado vivo. Mas Armênia
não está no caminho das Índias, nem no da Arábia
meridional, mais curto. Consultemos, pois, de novo ao Flavio Josefo, quem
nos revelará seu destino final, ao mesmo tempo que o de André,
aliás Eleazar, aliás Lázaro, como vimos na passagem
já citada. Vejamos, agora, o parágrafo que vem imediatamente
depois, e que se refere ao Bartolomeu: "Algum tempo depois (do desterro
de Eleazar), ele (o procurador Cuspio Fado) mandou capturar deste modo ao
Bartholomaeus, cabeça dos bandidos que causara tantos males aos idumeus
e aos árabes, e que fora encadeado. Cuspio Fado condenou-o a morte
e purgou assim a toda a Judéia desses inimigos da segurança
pública..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas,
XX, I). É evidente que Bartholomaeus é a forma greco-latina
de nosso Bartolomeu; parece, pois, que nos aproximamos da verdade. Retrocedamos
um pouco e examinemos a opinião do cônego G. Bardy, quem considera
que a viagem evangélica às Índias do apóstolo
de tal nome é pouco provável, e que se tratou simplesmente
da Arábia do Sul, a Arábia meridional, constituída
pela Iduméia e a Nabatea, esta última reino de Aretas IV,
que possuía além disso a cidade de Damasco, cujo etnarca,
e não os judeus, tentaria capturar Saulo-Paulo quando este foi ali.
(Cf. II Epístola aos Corintios, 11, 32). E a opinião do erudito
cônego é muito plausível! Já demonstramos antes
a impossibilidade e a falta de lógica de uma viagem às Índias
do apóstolo Bartolomeu. Se a este lhe ocorreu evangelizar a Arábia
do Sul (Iduméia e Nabatea), fez de uma maneira muito particular.
Ali, o evangelho cheio de doçura que conheceremos partir do século
IV, para os árabes idumeus e nabateos se apresentará sob a
forma de bandos de zelotes bem armados, perfeitamente treinados para o combate
e os saques consecutivos; o fogo do Espírito Santo lhes transmitia
com tochas, e a imposição das mãos se realizava com
a sicca, aquele sabre curto, meio adaga, meio cimitarra, e que deu nome
aos sicários, ex-zelotes. Já encontramos, pois, ao Bartholomaeus
citado por Flavio Josefo, e que causara "tantos males aos idumeus e
aos árabes" (op. cit.).
Por outra parte, Cuspio Fado (e não Astyage, irmão do rei
de Armênia), o procurador que mandou executar Bartholomaeus, entrou
em funções no ano 45 de nossa era, um ano depois da morte
do rei Herodes Agripa I, e por designação de Claudio César.
Portanto, provavelmente Bartholomaeus foi executado em princípio
do ano 47, já que Tibério Alexandre, sucessor de Cuspio Fado,
entrou em funções no segundo trimestre do ano 47, e em seguida
fez crucificar ao Simão-Pedro e ao Jacobo-Santiago, no mesmo período.
De modo que parece evidente que essa tripla execução pertence
a um episódio global da repressão romana. Os protagonistas
estão relacionados pelos fatos, e Bartolomeu, Simão-Pedro
e Jacobo-Santiago foram capturados e condenados por suas atividades comuns:
uma guerrilha nacionalista, complicada por necessidade vital com banditismo
puro e simples aos olhos de Roma. Porque não esqueçamos que
as incessantes guerras civis terminaram, naquela época concreta,
por levar a fome a toda Judéia. E daí as invasões dos
zelotes na Arábia meridional. Bartolomeu estaria encarregado da intendência
e do aprovisionamento dos grupos ofensivos.
No que concerne a seu tipo de morte, devia ser o habitual: a cruz. Mas precedida
obrigatoriamente de uma terrível flagelação. Também
seria precedida de um interrogatório submetido a tortura. E, através
dos autores antigos, sabemos que os verdugos romanos usavam em todo o Império
luvas de crinas, manoplas ou manoplas de pele de tubarão, inclusive
unhas de ferro, para depois da flagelação. E isto pôde
dar nascimento à lenda de um Bartolomeu esfolado vivo.
14 - Iochanan, ou João o Evangelista
Não importa se forem partidários de Pascal ou de Voltaire,
sua fé não será séria até que não
tenha resistido à confrontação com um adversário...
JEAN GHEHENNO, Ce que je crois
Para a clareza da exposição, observaremos acima de tudo que
convém distinguir a vários Joãos. Em primeiro lugar
está João, o Batista, evidentemente. Foi encarcerado por ordem
de Herodes Antipas na cidadela de Maqueronte, à beira do mar Morto,
em 28 de maio do ano 31 de nossa era, e foi decapitado em 29 de março
do ano 32, menos de um ano mais tarde.
Logo está João, o apóstolo, a quem se chama também
"o discípulo bem-amado". Este será o que estudaremos
aqui.
Está também João, o presbítero, de quem foi
ouvinte Papias. Devia ser um dos setenta e dois discípulos enviados
por Jesus de dois em dois (Lucas, 10, 1 e 17, fala de setenta, alguns manuscritos
falam de setenta e dois).
Está, por último, João, de apelido Marcos, companheiro
de Bernabé e de Saulo, de quem alguns exegetas declaram que é
o mesmo que o Marcos evangelista, discípulo de Simão-Pedro,
e de quem outros afirmam que é um personagem diferente. Os docetas
(57) usavam preferentemente o evangelho de Marcos (cf. Irineu, Contra as
heresias, III, XI, 7), para o versículo 31 do capítulo V,
que contribuíam os discípulos de Valentín, e que sugeria
que Jesus, enquanto estava com vida, tinha já o mesmo "corpo
ilusório" afirmado implicitamente por João, 20, 17.
Sobre as origens familiares de João, o "apóstolo bem-amado",
em Mateus descobrimos isto: "Passando (Jesus) mais adiante, viu outros
dois irmãos, Santiago filho de Zebedeu, e João, seu irmão,
em um barco, com seu pai Zebedeu, que compunham as redes, e os chamou. Eles,
deixando logo o barco e seu pai, seguiram-lhe". (Mateus, 4, 21).
É evidente que se Jacobo (Santiago) e Iochanan (João) obedecem
instantaneamente a esta chamada de Jesus, é que lhe conhecem já.
A menos que fique em jogo uma fascinação hipnótica,
não se vê como dois homens normais podem comportar-se assim,
e menos ainda quando o pai, a quem com semelhante desenvoltura deixam plantado,
com suas redes e seu barco, não estranha, nem protesta. Portanto,
não é a primeira vez que Jesus os chama, o fato é habitual;
reconhecem ao "filho de David", como mais tarde o reconhecerá
a juventude judia de Jerusalém, a sua chegada em Jericó (cf.
Mateus, 21, 9, e Marcos, 11, 9); a seus olhos é o rei legítimo,
senão legal, e esta chamada é uma ordem formal.
Mas, quem é esse Zebedeu? Porque não o voltaremos a encontrar
em nenhuma outra parte. Cita-lhe como pai de Santiago e de João,
sem mais, em Mateus (20, 20-27, 56), em Marcos (3, 17), Lucas (5, 10), João
(21, 1-3). Os Atos dos Apóstolos ignoram-no. Portanto, é evidente
que os escribas anônimos do século IV não quiseram estender-se
sobre este personagem. Isso significa que para o historiador, curioso e
desprovido de complexos dogmáticos, apresenta muito interesse. Voltemos,
pois, ao Mateus, e vejamos mais de perto: "...entre elas Maria Madalena
e Maria a mãe de Santiago e José e a mãe dos filhos
de Zebedeu" (Mateus, 27, 56).
A priori há três mulheres diferentes. Não obstante,
sejamos desconfiados e vamos ao texto grego original: "En aîs
Maria è Magdalenè kai Maria è toû Iakobous kai'Iosef
mèter kai è méter tôn uiôn Zebedaiou ..."
(Mateus, 27, 56).
Isto nos dá, traduzido corretamente:
"Entre elas estavam Maria Madalena, e Maria, a mãe de Santiago
e de José, e mãe também dos filhos de Zebedeu ..."
(op. cit.).
A mãe dos filhos de Zebedeu é a Maria mãe de Santiago
e de José, pelos motivos que seguem: Por que se nomeia a todos os
personagens em questão, salvo a essa "mãe dos filhos
de Zebedeu"? Porque constituiria uma repetição, porque
a acaba de nomear, e não se pode voltar a repetir. Porque se a È,
em grego, significa o ou a, também significa ele ou ela, e se emprega
correntemente para ele mesmo ou ela mesma. (Cf. Gran Dictionaire français-grec
et grec-çfrançais, de G. Ozanneaux, Recteur d'Academie, Inspecteur
général de l'Université, Paris, 1863, tomo II, página
607). Portanto, deve traduzir-se: "... e Maria, mãe de Santiago
e de José, ela mesma mãe dos filhos de Zebedeu... ";
e não ou e mãe dos filhos de Zebedeu..."; "e a mãe..."
a mãe dos filhos de Zebedeu ..."
Esta última tradução falseia totalmente o sentido da
frase, e tanto mais que não é correto repetir o artigo, dobrando-o.
Esse truque é uma prova mais de que quer ocultar cuidadosamente que
em realidade era a mãe dos filhos desse Zebedeu, porque se tratava
da Maria, a mãe de Jesus. Não é acaso o carpinteiro,
filho de Maria, e o irmão de Santiago, de José, de Judas e
de Simão?... (Marcos, 6, 3).
Por outra parte, em Lucas lemos isto: "E igualmente Santiago e João,
filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão..." (Lucas,
5, 10).
O grego koinonoi tem o sentido de companheiros, associados. Em seu Vulgata
latina, São Jerônimo traduz: "... que eram socii Simonis",
quer dizer, associados.
Assim, os filhos de Zebedeu estão associados com os filhos de Judas
da Gamala, e têm um barco em comum. Este barco se acha necessariamente
na borda de Cafarnaum, já que a moradia de Simão-Pedro se
encontra nessa localidade, tal como nos diz Marcos (1, 16 a 31), e Simão
vive ali com André, seu irmão (Marcos, 1, 29).
Como não deduzir que se trata também do barco de Santiago
e de João? Acontece o mesmo quase em todas partes, nos portos pesqueiros.
O ou os proprietários de um barco geralmente empregam primeiro a
seus irmãos ou a seus primos; assim, o barco e a pesca são
coisas familiares. Mas isto implica, como é natural, uma proximidade
de moradia. Além disso, Cafarnaum, ao noroeste do lago de Genezaret,
chamado às vezes pomposamente o mar da Galiléia, é
o porto de atraque de Jesus. Para convencer-se disso, basta relendo ao Marcos
(4, 13; 8, 5; 11, 23; 12, 24), Marcos (1, 21; 2, 1), Lucas (4, 23), João
(2, 12; 4, 46; 6, 17).
Provavelmente inclusive nasceu ali, porque se Nazaréh não
existia naquela época, (58) bem teve que nascer em alguma parte.
Agora bem, alguns exegetas protestantes modernos pensam que foi em Cafarnaum,
e fundamentam sua opinião nesta passagem: "... e você,
Cafarnaum, levantar-se-á até o céu?" (Mateus,
11, 23).
Esta elevação gloriosa da cidade a que Jesus acusará
de ingratidão para a graça que foi outorgada (quer dizer,
seu próprio nascimento), aparece explicitada nesta outra passagem:
"... nos termos de Zabulon e Neftalim, cidade situada à beira
do mar, (...) ao outro lado do Jordão, (...) esse povo viu uma grande
luz..." (Mateus, 4, 13 a 16).
Pois bem, Cafarnaum está situada perto do mar e no território
de Zabulon e de Neftalim, isso é exato. Não obstante, faremos
observar a nossos distintos colegas que o país do outro lado do Jordão
se chama hoje Transjordânia, e que também pode tratar-se da
Besaida-Julias, situada em território de Neftalim, mas na borda oriental
do Jordão. E em Betsaida possuíam bens, sem dúvida
familiares, Simão-Pedro e André-Lázaro: "Era Felipe
de Betsaida, a cidade de André e de Pedro" (cf. João,
1, 44).
Poderia recordar-se também a casa-forte (59) que a família
davídica possuía deste modo em Gamala. De fato, a lenda dos
humildes carpinteiros insuficientemente alojados em Nazaré terá
que relegá-la ao campo das mentiras piedosas. A família de
Judas-bar-Ezequías era rica, rica por atar ao longo das guerras sustentadas
desde fazia mais de meio século à custas dos sírios,
e também pelos dízimos cobrados às facções
que permaneceram fiéis aos descendentes dos antigos reis. (Veja-se
a este respeito a negativa de pagar o pedágio à entrada de
Cafarnaum, precisamente porque ele era filho de rei. (cf. Mateus, 17, 24).
Até agora só conhecíamos, como irmãos de Jesus,
aos quais nos citaram os Evangelhos, ou seja, ao Simão, Santiago,
Judas e José. Nós descobrimos um quinto, André, aliás
Lázaro. Mas esse segundo Santiago (chamado o Menor) e João,
seu irmão, eram-no também de Jesus? Por isso descobrirmos
sobre os "filhos de Zebedeu", resulta que eram meio-irmãos,
nascidos do segundo matrimônio de Maria, depois da morte de Judas
da Gamala, seu primeiro marido. Remetemos ao leitor a nossos argumentos
anteriores, na obra precedente.
Com efeito, no Apocalipse fala-se da voz de "sete trovões":
"Quando tiveram falado os sete trovões..." (Apocalipse,
10, 4). "Sela as coisas que falaram os sete trovões..."
(op. cit., 10, 5).
Em um volume precedente demonstramos que esses sete trovões eram
sete irmãos, (60) e temos em João um eco disso: "depois
disto apareceu Jesus aos discípulos junto ao mar de Tiberíades,
e apareceu assim: estavam juntos Simão-Pedro e Tomás, chamado
Dídimo; Natanael, o de Caná da Galiléia, e os de Zebedeu
e outros dois discípulos. Disse-lhes Simão-Pedro: "vou
pescar". Os outros lhe disseram: "Vamos também nós
contigo". Saíram e entraram no barco..." (João,
21, 1-3).
Sabemos que Natanael é o mesmo personagem que Bartolomeu (veja o
capítulo 13). Estes últimos sete discípulos são,
pois: Simão-Pedro, Judas, aliás Tomás, aliás
Dídimo, aliás o Gêmeo (Taôma em hebreu), Bartolomeu,
aliás Natanael, Santiago, o Menor, João, e outros dois que
não se nomeiam. Por que? Porque que se trata, indubitavelmente, de
André, aliás Eleazar, aliás Lázaro (irmão
de Simão), e de Santiago, o Maior (irmão também de
Simão-Pedro), o que faz sete, a família está completa,
e aí estão os "sete trovões". Só falta
Jesus, que seria o oitavo, mas como é substituído por seu
irmão gêmeo, Tomás, desempenhando o papel de pseudo-ressuscitado,
voltamos para sete.
O termo empregado para dizer "filho do trovão" é
boanerges, e só no evangelho de Marcos (3, 17). São Jerônimo,
contrariado, reproduz esta palavra em seu Vulgata latina, por não
lhe conhecer nenhuma tradução possível nesta língua.
O que significa isso? Pois simplesmente que essa palavra é intraduzível,
tanto em grego como em latim como em hebreu. Assim, procuremos: Boan é
um termo grego associado a toda expressão que evoque ruído
ou fragor de algo. Anergastos designa todo ruído desordenado, tumultuoso,
inarmônico. Quanto a erges, designaria a idéia de ativar, de
estimular, de inspecionar uma obra qualquer, do grego ergon. Pelo contrário,
em dialeto cretense, ergatones ou ergaones designa aos operários
encarregados de inumar aos mortos no campo. E assim, com boanergaones, não
teríamos a um manipulador do raio, a não ser a um cantor de
salmodias fúnebres. Quanto ao Boanergastos, em um jargão muito
popular esse pleonasmo poderia designar um ruído repetido, como um
trovão rugindo ao longe. Mas nada em tudo isto nos demonstra que
os "filhos do trovão" possuíssem o manejo oculto
do raio, como pretendem nos fazer acreditar em Lucas (9, 54): "Senhor,
quer que digamos que baixe fogo do céu que os consuma?..." Na
antigüidade existia, efetivamente, uma seita, por certo que de caráter
internacional, que dava em alguns lugares sacerdotes, e em outros bruxos,
que conheciam o manejo do raio. É um fato provado, e ainda existia
no seio do lamaísmo tibetano, na seita bon-po, os bonés negros,
por volta de 1950, no Tibet oriental, antes da ocupação a
China.
De todo modo, um erudito investigador britânico, John Marco Allegro,
professor da universidade de Manchester (estudos bíblicos), acaba
de proporcionar uma explicação tão sensacional como
inesperada. Ele foi o primeiro representante de Grã-Bretanha na equipe
internacional encarregada de preparar a publicação dos célebres
manuscritos do mar Morto. Em sua obra, traduzida em oito idiomas, e intitulada
De Champignon sacré et a Croix (Paris, 1971, Albin Michel éidt.),
estuda o papel da Amanita muscaria nos antiqüíssimos cultos
da fecundidade do Próximo Oriente. E aqui temos o que podemos conservar
para nosso estudo: O termo de boanerges, como acabamos de ver, não
significa nada do que Jesus pretende expressar em sua frase, relatada por
Marcos em seu evangelho (3, 17), ao menos em grego. Por outro lado, não
procede de nenhum dos dialetos aramaicos conhecidos. Pois bem, como já
observamos em uma obra precedente, o hebreu conservou em seu vocabulário
palavras procedentes das línguas mais antigas: caldeu, assírio,
acádio, e inclusive sumério. Isso aconteceu com todas as línguas,
constituídas por contribuições sucessivos. E John Marco
Allegro, familiarizado com essas línguas mortas, descobriu que boanerges
procedia diretamente do sumério, e que essa palavra não era
a não ser a contração de uma curta frase nesse mesmo
dialeto: GESH-PU-AN-UR, convertida logo em PU-AN-UR-GES, de onde esse termo,
incompreendido pelos escribas dos séculos IV e V: BU-AN-ER-GES, convertido
em boanerges, barbarismo que se tomava por grego.
Esta curta frase, em sumério, significa simplesmente "filho
do trovão", e era tão somente o nome de um cogumelo alucinógeno,
a Amanita muscaria, ou Amanita phalloide, a amanita matamoscas, a célebre
Muchamore dos xamãs siberianos ou kamtchadales, nossa perigosa "falsa
oronja". Esse nome, ou apelido, como se queira, deriva da crença
própria dos homens da Suméria, segundo a qual nascia da voz
mesma do raio ou do estrondo do trovão, já que se constatava
sua aparição no chão imediatamente depois das tormentas.
Aqui deixaremos por um momento as revelações de John Marco
Allegro, para voltar para nossa gramática acadia de M. Rutten, do
Museu de Louvre (Paris, 1937, Adrien-Maisonneuve édit.), Eléments
d'accadien. Os textos acadios mais antigos se remontam à dinastia
semítica de Acad, quer dizer, a 2.800 anos antes de nossa era, e
os últimos ao século I desta. Quer dizer, que não é
surpreendente encontrar termos procedentes de Acad nos diversos dialetos
aramaicos. O grupo oriental acadio das línguas semíticas deu
nascimento ao assírio e ao babilônio. E no acadio (como no
assírio), não há mais que quatro vocais, ou seja, a,
i, u, e, que constituem o tetragrama sagrado por excelência, o nome
divino dos hebreus: IEUA (iéuhah), em hebreu iod-he-vaw-he. Estes,
apoiando-se nessa tradição, tinham-no só no cativeiro
da Babilônia.
Agora bem, se houver uma tradição fundamental na exegese do
Antigo Testamento, essa é a que qualifica ao deus de Israel elohim
da tormenta, porque Yavé é, efetivamente, o deus do raio.
Citemos simplesmente, como justificação: "O trovão
anuncia que vem..." (Jó, 36, 33). "E mostrará (Yavé)
como fere seu braço... (...) entre nuvens, tempestade e furiosos
granizos" (Isaías, 30, 30). "No terceiro dia, ao amanhecer,
houve trovões, relâmpagos, e uma densa nuvem sobre o monte
(Sinai) (...). Todo o monte Sinai estava fumegando, porque sobre ele tinha
descido Yavé no meio de fogos..." (Êxodo, 19, 16-18).
Recorde o papel do peyotl no México, ou dos cogumelos alucinógenas
e teóforas da América do Sul.
Por outro lado, é seguro que, esotericamente, esse cogumelo, a Amanita
muscaria, é o misterioso fruto do Jardim do Éden. Em Plaincourault,
perto de Mérigni (Indre, França), ela é a que, engrandecida
desmesuradamente, flanqueada por Adão e Eva, que velam seus sexos
com as mãos. Esse afresco se remonta ao século XII. Portanto,
o papel secreto da amanita ainda era conhecido naquela época nos
ambientes cristãos heterodoxos mais ou menos "iniciados".
Conseqüência imediata disso, para um primitivo, é evidentemente
que o cogumelo que aparece depois da tormenta, sem que nada justifique seu
broto do chão, é "filho do trovão", seu sinal
e o testemunho da materialidade do deus do raio.
Conseqüência secundária: ao utilizar suas propriedades
alucinógenas impregna-se da natureza, alguém se diviniza.
E então aparecem os fenômenos de intoxicação
psíquica. Aproximadamente uma hora depois da absorção
da Amanita muscaria, o indivíduo é objeto de puxões
nervosos, de tremores de todos os membros; seguem sacudidas tendinosas.
Ao princípio permanece consciente; psíquica e interiormente
está de bom humor. Logo começam as alucinações,
os sonhos em vigília, as visões. O indivíduo empalidece,
seus olhos se voltam frágeis. Ainda são possíveis alguns
gestos voluntários e conscientes, logo sobrevêm uma tristeza
ou uma alegria extremadas. Às vezes o indivíduo parece ébrio,
dança ou salta sobre o lugar. Experimenta também a necessidade
de confessar-se publicamente, de esvaziar-se literalmente de todos seus
segredos. É uma verdadeira liberação, um desafogo.
Todos estes dados os tiramos de um grande especialista, L. Lewin, em sua
obra Phantastica (op. cit., cap. IV).
Não recorda isto nada ao leitor? Voltemos para os Evangelhos, a passagem
no que se diz que se tinha ao Jesus por louco: "Ouvindo isto seus parentes,
saíram para apoderar-se dele, pois dizia-se: Está fora de
si..." (Marcos, 3, 21).
São Jerônimo, em seu Vulgata latina, texto oficial da Igreja
católica, traduz por furorem versus, quer dizer, louco furioso. E
nos Atos de João, apócrifo do século IV, redigido em
grego, mostra Jesus dançando antes de sua captura ante seus discípulos
e explicando-lhes o porquê em um curto discurso, totalmente incoerente:
"Quem não dança, não sabe o que vai acontecer!
... Você que dança, olhe em mim, que falo, e vendo, participando,
mantenho silencio sobre meus mistérios..." (Atos de João,
XCIV).
Assim, e para resumir, nossos místicos extremistas, chefes da corrente
zelote, eram drogados. Daí as "visões" proféticas.
E ao qualificar Santiago e João de "filhos do trovão"
(boanerges), Jesus lhes dá simplesmente o nome de sua droga, assimila-os
a ela, algo assim como se a um bêbado inveterado lhe chamasse "bota
de vinho", ou a um devorador de carnes semi-cruas, "rosbife".
E a isso se reduz provavelmente todo o mistério dos pretendidos "manipuladores
do raio". (Cf. JOHN MARCO ALLEGRO, Le champignon sacré et la
croix, em concreto as páginas 225 a 230, onde o autor demonstra que
os zelotes faziam uso da Amanita muscaria).
Maria, mãe de Jesus, aproveitava também as propriedades desse
cogumelo sagrado? Não é impossível. Porque há
documentos muito antigos que lhe atribuem a qualidade de profetisa: "E
o anjo Gabriel entrou em casa da profetisa, e ela concebeu e iluminou a
um filho".
Esta qualificação, in extenso, aparece reproduzida por São
Epifanio, bispo de Salamina, e encontra-na em Codex sinaiticus e em Alexandrinus,
conforme nos diz o abade E. Amann em sua tradução do Protoevangelio
de Santiago. (Protévangile de Jacques, P. 19, nota 1).
Pode então admitir-se que, quando Maria concebeu Jesus de seu legítimo
marido Judas da Gamala, e enquanto ignorava ainda que estava grávida,
ao utilizar com fins vaticinadores segundo seu costume (profetisa) o cogumelo
sagrado, teve a visão de um personagem fabuloso, que ela identificou
logo com o anjo Gabriel, e percebeu intuitivamente que estava grávida,
que daria a luz um filho, etcétera.
O que explicaria que, continuando, ao retornar desse estado ao estado de
vigília habitual, não recordasse já tal alucinação.
E daí a frase do Protoevangelio de Santiago: "Mas Maria tinha
esquecido os mistérios que lhe revelara o anjo Gabriel", e o
fato de que ela não revelasse jamais nada dessa concepção
milagrosa aos irmãos menores de Jesus. (61)
Sobre o fato de que João o Evangelista é irmão de Simão-Pedro,
e por conseguinte irmão também de Jesus, dado que Pedro o
era, (62) temos a prova definitiva na Crônica de George Hamortholos,
documento do século IX, e que tende a demonstrar que seu autor possuía
ainda os cinco livros de Papias: Comentários às palavras do
Professor. Voltemos para Evangelho de João: "Disse-lhe Jesus:
"Apascenta meus cordeiros (...) Na verdade, na verdade te digo: Quando
foi jovem, você se rodeava e foi aonde queria; quando envelhecer,
estenderá suas mãos e outro rodará e se levará
aonde não queira". Isto o disse indicando com que morte havia
(Pedro) de glorificar a Deus. Depois acrescentou: "me siga ... "(João,
21, 15, 18-19).
Então vem a passagem em que Jesus diz de João: "Eu quero
que ele fique assim até que eu venha; que tens tu com isso? Segue-me
tu". (João, 21, 22). E nesses versículos trata-se unicamente
de Simão-Pedro e de João, o Evangelista. Pois bem, em sua
Crônica, Georges Hamortholos nos diz de João que foi "morto
pelos judeus, cumprindo, igual a seu irmão, a palavra que Cristo
pronunciara sobre eles..." (Op. Cit.) Esse irmão é, portanto,
evidentemente Simão, e não é de Santiago de quem se
trata aqui.
Por conseguinte, João é irmão de Simão-Pedro,
e portanto irmão de Jesus, e morreu em Judéia, como eles,
o que suprime toda indecisão sobre as diversas tumbas que se afirma
que são as suas. Mas, sobretudo, isso implica que tiveram a mesma
mãe (e possivelmente o mesmo pai), de onde a frase de João
confirma: "Jesus, vendo sua mãe e ao discípulo a quem
amava, que estava ali, disse à mãe: 'Mulher, eis aí
a seu filho'. Logo ao discípulo: 'Eis aí a sua mãe'..."
(João, 19, 26).
E isto expõe então outro problema, o das relações
de identidade entre o misterioso Alfeu e Simão, o Leproso.
Em Mateus (10, 3), Marcos (3, 18), Lucas (6, 15), e Atos (1, 13) inteiramo-nos
de que há um Santiago (Jacobo) que é filho de Alfeu, e esse
Leví, sentado no posto de pedágio, e por conseguinte publicano,
é o mesmo que Mateus, como já vimos precedentemente (veja
o capítulo 12). Isso confirma que o chamado Alfeu é também
da família, e seu filho Santiago outro tanto.
Agora bem, o grego alphos significa herpes branco, quer dizer, psoriasis.
Não é difícil adivinhar que se trata de um nome helênico
que acompanhava, como era costume, o nome hebreu de circuncisão,
e que tal nome era deste modo um apelido. Qual era então o nome de
circuncisão?
Estamos em nosso direito de supor que se tratava de Simão, o Leproso,
cuja moradia se achava em Betânia, e que vivia com Marta e Maria,
irmãs de Lázaro, aliás André, irmão de
Jesus, irmãs do chamado Jesus (Mateus, 26, 6; Marcos, 14, 3) como
foi demonstrado antes (veja o capítulo 9). Então seria um
mesmo personagem, com diversos nomes, provavelmente um tio avô de
Jesus, já que era o pai de Mateus-Leví, por sua vez tio do
chamado Jesus. E ao estudar a personalidade da jovem Maria, irmã
de Jesus, veremos por que o ostracismo legal comprometido por seu apelido
(a psoriasis naquela época freqüentemente era tomada como uma
lepra), impondo-lhe uma vida à parte, fora de Jerusalém, como
ela.
Por outro lado, Alfeu é a forma helenizada do hebreu Eliphas, que
significa "deus o purificado". Seria então o famoso nome
de substituição que se impunha em Israel a um doente, no curso
de um ritual especial, em lugar do nome de circuncisão, a fim de
desviar uma enfermidade ou um perigo. Eliphas tinha substituído então
ao Zebedeu, ameaçado de lepra (em realidade de psoriasis), e logo
traduzido ao grego por Alfeu, de alphos (herpes branco), porque significaria
a purificação.
Dos versículos nos quais se cita aos dois irmãos, Santiago
e João, como "filhos de Zebedeu", resulta que Santiago
é provavelmente o maior. Acabamos de ver que procediam do segundo
matrimônio de Maria, mãe de Jesus, já que a morte de
Judas da Gamala, seu primeiro marido, situar-se-ia por volta do ano 6 de
nossa era, data da revolução do Censo. Esse segundo matrimônio,
conforme à lei judia, pode situar-se portanto por volta do ano 7
de nossa era. Santiago teria nascido no ano 8, e João, que viria
em seguida, por volta do 9 ou 10.
O prazo legal que separaria a morte, publicada e certificada, de Judas o
Gaulanita, e o novo matrimônio de Maria deveria ser muito curto, já
que com esta segunda união do que se tratava era de dar um protetor
legítimo e eficiente aos filhos do chefe zelote morto em combate.
Os romanos, com efeito, esforçavam-se por suprimir por todos os meios
possíveis à descendência davídica, conforme diz
Eusebio da Cesaréia em sua História eclesiástica (III,
XII, XX, XXXII).
E fica um eco das privações que esta morte conduziu ao lar
familiar na obra atribuída a Clemente de Roma: "A essas palavras,
Pedro respondeu: '... Porque eu e André, meu irmão ao mesmo
tempo carnal e ante Deus, não só fomos criados como órfãos,
mas sim além disso, por causa de nossa pobreza e de nossa situação
penosa, acostumamos desde a infância ao trabalho...'." (Cf. Clemente
de Roma, Homilias clementinas, XII, VI).
Por conseguinte, João contaria uns vinte e quatro ou vinte e cinco
anos na época da crucificação de seu meio-irmão
maior Jesus, no ano 35 de nossa era, época de tal morte, quando Jesus
teria, como já se disse, e segundo São Irineu, uns cinqüenta
anos de idade.
Segundo a tradição eclesiástica, João teria
morrido sob o reinado de Trajano, quer dizer, por volta do ano 98, que foi
quando começou tal reinado. João contaria, por conseguinte,
oitenta e oito anos. Isto nos parece muito, tendo em conta os acontecimentos
trágicos nos quais se viu necessariamente envolto. Porque seu irmão
Santiago (o Menor) morreu no ano 63, quer dizer, à idade aproximada
de cinqüenta e cinco anos. A opinião de vários historiadores
é que João morrera na Palestina, e portanto muito antes do
que diz a lenda.
Sobre este tema citaremos, uma vez mais, Georges Hamartholos (chamado Jorge,
o Monge), quem, em sua Crônica do ano 850 nos conta que "Papias,
testemunha do acontecimento, diz que João morreu às mãos
dos judeus". (Cf. Migne, Patrologie grecque).
O Martirológio de Síria, que é do século IV,
fixa em 27 de dezembro a morte dos dois irmãos, Santiago e João,
que passaram juntos a melhor vida. Tudo isto implica uma dupla inverossimilhança,
das duas tumbas eretas em Éfeso. Haveria, pelo menos, uma a mais.
(Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III,
XXXIX, e e VII, XXV, 16).
À morte de Jesus, seu irmão maior, João teria recebido
dele a missão de velar por Maria, a mãe de ambos; e daí
a célebre passagem: "Jesus, vendo sua mãe e ao discípulo
a quem amava, que estava ali, disse à mãe: 'Mulher, eis aí
a seu filho'. Logo disse ao discípulo: 'Eis aí a sua mãe'...".(João,
19, 26). O texto acrescenta que, a partir desse momento João tomou
em sua casa, o que implica que antes devia viver em casa de seus outros
filhos, e confirma o que dizíamos antes, ou seja, que João
era filho de Maria, e portanto irmão de Jesus.
Entretanto, esse texto parece falseado, por causa de um manuscrito descoberto
recentemente. David Flusser, em seu livro Jesus, citando o descobrimento
desse apócrifo, (63) diz que as palavras reais de Jesus deveriam
ser: "Pega seus filhos e vai!". (op. cit., P. 28).
A presença verossímil, ao pé da cruz, de Simão,
Santiago e Judas, conhecidos como discípulos de Jesus, e portanto,
sujeitos ao risco de ser capturados pelos legionários de guarda naquele
lugar, faz-nos duvidar da veracidade de tal episódio. A menos que
o manuscrito estivesse mal traduzido, que a passagem fora mais ou menos
decifrável, e que terei que ler: "Pega suas filhas e vai...",
porque segundo os canônicos ao pé da cruz patibular só
há mulheres.
Seja o que for, o episódio de João tendo que encarregar-se
de Maria em sua casa parece muito suspeito aos olhos do historiador desconfiado.
Com efeito, segundo São Irineu, discípulo e ouvinte dos "padres
apostólicos" ("que conhecera os apóstolos"),
Jesus morreu com cinqüenta anos, "próximo à velhice".
Como foi crucificado por volta do ano 34 ou 35 de nossa era, nasceu em 16
ou 17 antes desta. Maria, sua mãe, núbil legalmente com idade
de doze anos e meio, pôde tê-lo quando tinha uns quinze anos.
Ela nascera, portanto, por volta do ano 32 antes de nossa era, o que significaria
que nesse momento contaria aproximadamente sessenta e cinco anos.
Pois bem, a quem se fará acreditar que João se ocupou de evangelizar
a Ásia, e que viveu nela, como assegura Eusebio da Cesaréia?
(Cf. História eclesiástica, III, I). Quer dizer, que esteve
sempre caminhando, velando, cuidando e subserviente às necessidades
de uma mãe anciã. Porque naquela época, e mais ainda
em todo o Oriente Médio, uma mulher de mais de sessenta e cinco anos,
e depois de passar por todas as tragédias que sabemos, aparentaria
muito mais. Achamo-nos historicamente muito longe da imaginária de
Saint-Sulpice, em que Maria aparenta sempre uns quinze anos, e nos apresenta
como uma jovem tímida e bem educada. Seguro que o apostolado itinerante
de João não podia acompanhar-se de semelhante carga. (64)
Mas isto não é tudo. Igual a Simão-Pedro e que Jacobo-Santiago,
seus meio-irmãos, desaparece totalmente dos Atos dos Apóstolos
depois do sínodo de Jerusalém, no ano 47. O que se faz dele?
Mistério. Porque vinte e três anos mais tarde, se dermos crédito
ao Tertuliano, encontra-se em Roma, no ano 70, quer dizer, seis anos depois
do incêndio da cidade e do varrido efetuado entre quão cristãos
residiam ali. Que fazia, pois? Apostolado, claro! Mas, neste caso, por que
não se sabe nada de seu trabalho na capital do Império romano?
Chega então o reinado de Domiciano, segundo filho de Vespasiano,
que governará o Império desde ano 81 até o 96. Em 81,
João teria uns setenta e um anos. Ao comprometer-se na perseguição
ordenada por esse imperador contra todas as seitas e sociedades secretas,
sejam as quais forem (os cristãos não são os únicos
afetados), João e outros sofrerão o martírio, segundo
a história oficial. Será submerso em uma cuba de azeite fervendo,
às portas de Roma. Mas sairá dela fresco e bem disposto, claro
está, Tertuliano chega inclusive a acrescentar que "revigorado",
e conseguirá fugir, apesar da guarda e dos espectadores, pela Porta
Latina, de onde seu nome de São-João-porta-latina. Aqui caímos
em pleno delírio piedoso; julgue-se, se não. A Porta Latina.
Porta Latina, abre-se, efetivamente, sobre o caminho que, ao sul de Roma,
conduz para as catacumbas de São Calixto.
Está próxima às termas de Caracalla, e se situa a apenas
mil e quinhentos metros do Coliseu. Pois bem, está aberta na muralha
de defesa construída por ordem do imperador Aureliano, muralha que
foi construída entre os anos 270 e 275 de nossa era, quer dizer,
finais do século III, a fim de proteger à capital do Império
romano das invasões bárbaras. Ao lado desta porta se levanta
a capela de São Giovanni in Oleo, quer dizer, "São João
no azeite", lugar tradicional no qual se afirma que teve lugar o milagre.
Porque, como milagre, é e bem gordo isso de sair intacto de um banho
em uma cuba de azeite em ebulição, e logo fugir por uma porta
que ainda não existe, quão mesmo a muralha da qual forma parte.
Observar-se-á, além disso, que Eusebio da Cesaréia,
que redige sua História eclesiástica no século IV,
ignora totalmente a vinda de João à Roma, e a fritura em azeite
fervendo. Entretanto, Eusebio leu De praescript haeretic de Tertuliano,
morto no ano 240, onde figura este episódio. E não o teve
em conta. Por outra parte, a tradição oriental situava este
episódio em Éfeso. Alguém perde, a verdade! O mais
provável (se é que João foi à Roma, coisa que
resulta bastante duvidosa) é que, importunados por suas prédicas
e escandalizados por seus ataques contra a religião do Império,
os paroquianos agarrassem-no e atirassem-no dentro de um recipiente de azeite
frio ou, mais simplesmente ainda, esvaziaram-lhe uma ânfora de azeite
em cima da cabeça. E tentou fugir, todo viscoso, não seria
pela Porta Latina, ainda inexistente. Logo lhe apanhariam de novo, já
que o encontramos em Patmos, uma das ilhas Espóradas, ao norte do
mar Egeu. O que prova que a aventura do azeite, se admitir sua realidade,
não procedia de uma condenação a morte legal, já
que o banho de azeite fervendo não é um castigo ordenado por
um magistrado, e no caso de uma condenação a morte prévia,
não teria visto tal pena comutada por uma deportação
livre, depois do novo delito de fuga. Toda esta lenda não descansa
sobre nada plausível.
Foi relevado desta deportação à Patmos no ano 98, primeiro
ano do reinado de Nerva, imperador muito benevolente, e foi residir em Éfeso,
cidade de Jonia, também sobre o mar Egeu. Em sua estadia em tal cidade
foi onde morou, claro está, que: "O dia do Senhor (um domingo),
à terceira hora (às nove da manhã), produziu-se um
grande tremor de terra, uma nuvem se elevou de repente ante os olhos de
todos e o transportou à Jerusalém, ante a soleira da moradia
se achava a Virgem Maria, mãe de Deus. Empurrando a porta, entrou..."
(Cf. Méliton, Livre du Passage de Très-Sainte-Vierge Marie,
Mère de Dieu, capítulo IV e seguintes). E o bom São
Melitón, que foi bispo de Sardes, em Lídia, conta-nos, maravilhado
todo ele, como os santos apóstolos, apesar de estarem "dispersos
por toda a terra", chegaram com os mesmos meios sobrenaturais que João
à mansão de Maria, quem subiu aos céus levada pelos
anjos, deixando-lhes dessa ascensão memorável um testemunho
evidente: seu formoso cinturão azul.
Conhecemos outros exemplos destes: em Constantinopla, em Soissons, em Quintin,
em Notre-Dame de Paris, em Chartres, em Assis, em Prato (Italia), em Montserrat
(Cataluña), quer dizer, quatro na Francia, do total de oito. Não
em vão a França é a "filha maior da igreja".
Como isto nos ares, por cima de Jerusalém, desenvolvia-se no ano
98, e Maria nasceu, aproximadamente, como estabelecemos antes, no ano 32
antes de nossa era, quando teve lugar essa ascensão aos céus
ela contaria, portanto, 32 + 98 = 130 anos. O que é muito para uma
viagem assim. Não ria você, leitor. Porque, ante o grande estupor
do mundo protestante, e dos consternados teólogos e exegetas católicos,
o Papa Pio XII fez desta lenda da Ascenção da Virgem, em carne
e osso, um dogma definitivo, e um artigo de fé para toda a Igreja
católica. Mas terá que observar que, quando o bom São
Melitón compôs ou recolheu esse relato, chamado inicialmente
Transitus Mariae, quer dizer, no século IV, ignorava ainda que os
escribas anônimos, que operavam ao mesmo tempo que ele, imaginariam
confiar ao João sua mãe Maria no Evangelho de João
(19, 27), já que os mostra separados desde fazia muito tempo, nem
que mais tarde morresse em Éfeso, em lugar de Jerusalém.
Para concluir, recordando que em Éfeso não faz ainda muitos
anos mostravam-se várias tumbas diferentes do apóstolo João,
e sabendo por outra parte que houve vários personagens com este nome
na história balbuciada dos primeiros séculos, nós manteremos
uma prudente reserva.
E mais quando, igual à Crônica de Georges Hamartholos, um manuscrito
do século IV de Felipe de Sida (por volta do ano 430) contribui-nos
a afirmação de Papias, quem ensinava que "João
morreu em Judéia, muito antes da destruição de Jerusalém
por Tito, no ano 70". O que destrói, evidentemente, toda a lenda.
Deixemos, pois, esses relatos infantis acumulados sobre essa figura tão
interessante do discípulo "que Jesus amava", deixemos aos
historiadores eclesiásticos enredar-se a mais não poder em
suas múltiplos contradições, e nos limitemos a considerar
simplesmente que Iochanan-bar-Zabdi, aliás João filho de Zebedeu,
morreu na Palestina, no curso das represálias romanas exercidas contra
o movimento messianista ou zelote, como todos seus irmãos e meio-irmãos,
e que se a lenda aceitar a mentira, a história, pelo contrário,
exige ter aparelhada a verdade. Porque o que em troca sim é certo,
é que João participou também na luta messianista. E
na História eclesiástica de Eusebio da Cesaréia lemos
o seguinte, que resulta bastante desconcertante: "Também João,
aquele que repousou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote (em hebreu:
cohen), e levou o petalon, que foi mártir e didascalo, repousa em
Éfeso". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica,
III, XXXI, 3).
"O trono (em grego: tronos) de Santiago, daquele que foi o primeiro
que recebeu do Salvador e dos apóstolos o episcopado da Igreja de
Jerusalém, e a quem as divinas Escrituras designam habitualmente
como o irmão de Cristo, conservou-se até nossos dias".
((Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VII,
XIX). O petalon era uma insígnia pontifícia, própria
do supremo sacerdote de Israel. Está descrito no Êxodo (28,
36-38) como uma lâmina de ouro puro, com a inscrição
gravada "Consagrado ao Yavé", e estava fixado sobre a tiara
do pontífice, em meio de sua cinta frontal. (65)
Assim, João seria, em uma espécie de heresia associado à
corrente zelote, o equivalente do pontífice supremo da ortodoxia
judia. Mas se tratava de um cisma, embora dentro da grande linha da Lei
recebida do Sinai. E ante esta constatação de um João,
rival do cohen-ha-gadol, por lógica devemos varrer a imagem de um
João enquadrando-se dentro de todas as elucubrações
heréticas dos fundadores cristãos de Saulo-Paulo. Porque esta
rivalidade entre o João e o pontífice supremo saído
das classes dos saduceus implica que jamais o citado João imaginou
um Deus em três pessoas, uma das quais constituiria seu próprio
irmão. E logo, em seus discípulos, acharemos a prova, quando
estes dizem: "Nem sequer ouvimos que exista um Espírito Santo..."
(Cf. Atos dos Apóstolos, 19, 2).
Por outra parte, os tronos episcopais não aparecerão sob o
aspecto de cadeiras, de pedra ou de mármore, até que os cristãos
possuam basílicas, quer dizer, pelo menos até o século
IV. Esse trono de Santiago, que na opinião dos exegetas católicos
devia ser de madeira, e provavelmente de cedro, era significativo da autoridade
de Santiago, do mesmo modo que o petalon o era de João. Era, portanto,
um trono real, e não uma cadeira que simbolizasse a autoridade espiritual.
Observemos, além disso, que na passagem de Eusebio citada anteriormente,
Santiago recebera "do Salvador e dos apóstolos" a autoridade
sobre a igreja de Jerusalém, quer dizer, toda a Igreja primitiva.
O que varre definitivamente a pretendida "primazia de Simão-Pedro",
tão cômoda para assentar as pretensões da futura Igreja
de Roma, embora Simão-Pedro não estivesse jamais em Roma,
e embora foi indiscutivelmente o primeiro bispo da Antioquia, o que o situaria
esta última imediatamente depois da de Jerusalém. Foi, efetivamente,
quem consagrou ao Evod, primeiro bispo de Antioquia. (Cf. Eusebio da Cesaréia,
História eclesiástica, III, XXII).
Voltando para o duplo poder da corrente zelote, constataremos que o chefe
temporário está sempre acompanhado de um chefe espiritual:
- Judas da Gamala com o cohen fariseu Saddoc.
- Jesus-bar-Juda (Jesus) com o Iochanan-bar-Zakariah (o Batista). (66)
- Jacob-bar-Juda (Santiago) com o Iochanan-bar-Zabdi (João).
- Simão-bar-Kokheba com rabbi Akiba-Ben-Ioseph.
E isto é uma prova mais de que João, "o apóstolo
bem-amado" jamais foi outra coisa que um militante zelote, como todos
seus irmãos. Não obstante, ainda nos parece necessário
aqui um último resumo, como aconteceu com a biografia de Simão-Pedro.
É evidente que se o apóstolo João morreu na Judéia
muito antes do ano 70 (data da destruição de Jerusalém),
tal como testemunha Papias, citado por Felipe de Sida, quem no século
IV ainda possuía sua Exegese das sentenças do Senhor, é
que foi executado ali pelos romanos como zelote, já que naquela época
Roma só perseguia a estes, dado que a perseguição do
ano 64 consecutiva ao incêndio da capital do Império ainda
não transbordara os limites da cidade. (67) E tinha outras coisas
que fazer, em lugar de redigir um evangelho que não aparece citado
mais que, pela primeira vez, na obra de Irineu, quer dizer, por volta do
ano 190 de nossa era...
Conclusão inevitável: o fato de que os irmãos e discípulos
de Jesus fossem todos zelotes militantes, e perecessem no curso dos combates
que respondiam a esta mística, como acabamos de demonstrá-lo,
prova de maneira definitiva que o próprio Jesus não foi jamais
outra coisa que o chefe supremo desse movimento, tal como já desenvolvemos
extensamente em uma obra precedente.
15 - As "línguas de fogo" do Pentecostes
Receberá seu batismo! Esse segundo batismo anunciado por Jesus, e
que caiu sobre os apóstolos um dia de tormenta que a janela estava
aberta!...
GUSTAVE FLAUBERT, La Tentation de Saint Antoine, IV
"Quando a água curva um bastão, minha razão o
endireita...", disse La Fontaine em seu Animal dans la Lune. E é
bastante evidente; mas só o é para a gente com sentido comum,
e a ingenuidade humana, a credulidade faminta de coisas sobrenaturais "a
todo custo", não o entendem assim.
Neste breve estudo consagrado ao "milagre" do Pentecostes, e que
não tem outro objetivo que restabelecer o clima real no que pôde
nascer sua lenda, nos limitaremos a citar os textos concretos, e que não
podem ser discutidos. Releiamos, pois, os Atos dos Apóstolos: "Ao
cumprir o dia do Pentecostes, estando todos juntos em um lugar, produziu-se
de repente um ruído proveniente do céu como o de um vento
que sopra impetuosamente, que invadiu toda a casa em que residiam (os apóstolos).
Apareceram, como divididas, línguas que pareciam de fogo, que se
posaram sobre cada um deles, ficando todos cheios do Espírito Santo;
e começaram a falar em línguas estranhas, conforme o Espírito
outorgava-lhes expressarem-se. Residiam em Jerusalém judeus varões
piedosos, de quantas nações há sob o céu, e
havendo-se deslocado a voz, juntou-se uma multidão, que ficou confusa
para lhes ouvir falar com cada um em sua própria língua. Estupefatos
de admiração, diziam: 'Todos estes que falam, não são
galileus? Pois como nós os ouvimos cada um em nossa própria
língua, em que nascemos? Partos, Medos, Elamitas, os que habitam
Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, o Ponto e a Ásia,
Frígia e Panfília, o Egito e as partes de Líbia que
estão contra Cirene, e os forasteiros romanos, judeus e partidários,
cretenses e árabes, ouvimo-los falar em nossas próprias línguas
as grandezas de Deus!'. Todos, fora de si e perplexos, diziam-se uns aos
outros: 'O que quer dizer isto?'. Outros, escarnecendo, diziam: 'Estão
carregados de mosto'..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 2, 1 a 13).
Antes de mais nada, e dirigido aos leitores que desconheçam as diversas
liturgias, tanto judias como cristãs, recordaremos que a Páscoa
judia tem lugar na lua cheia que segue ao equinócio da primavera.
O sol encontra-se então no signo de Áries (mês de Nisán),
e a Lua, ipso facto, no signo de Libra. A Páscoa segue um período
de cinqüenta dias (cinqüenta, em grego: Pentekostès), que
constitui um ciclo de sete semanas (sete vezes sete dias), seguido de que
faz cinqüenta, dia crucial para os cabalistas e os místicos
judeus. Essa Páscoa comemora a "saída do Egito".
O dia que faz cinqüenta, chamado Chabuoth em hebreu, corresponde à
entrega das pranchas da Lei ao Moisés em Monte Sinai: Matan Torah.
Para realizar na alma do cabalista uma "ascensão" simbólica
para Deus e receber a iluminação pessoal, existe um ritual,
que por certo variou no curso dos séculos, e é o ritual do
Tikun Chabuoth, observado fielmente na noite do Pentecostes por místicos
e cabalistas judeus. E é isso, e nenhuma outra coisa, o que observaram
os díscipulos e irmãos de Jesus naquela noite do Chabuoth
do ano de sua crucificação.
É seguro que, antigamente, esse ritual compreendia fumigações
compostas por produtos vegetais anagógenos, (68) e a ingestão
de vinhos de ervas nos quais se puseram em infusão produtos vegetais
alucinógenos. Sobre o uso desses produtos, basta relendo tudo o que
concerne às escolas de profetas e à embriaguez em rituais
dos cohanim: I Samuel, 9, 9; 10, 10; 19, 20; Isaías, 28, 7; Salmos,
75, 9; Isaías, 29, 9; Miquéias, 2, 11; Êxodo, 15, 20;
Juízes, 4, 4; II Reis, 22, 14; Nehemías, 6, 14; Isaías,
8, 3.
Por isso é que dom J. Dupont O.S.B., professor na abadia beneditina
de Saint-André, tradutor e anotador dos Atos dos Apóstolos
no marco da Bíblia da Escola bíblica de Jerusalém,
esclarece discretamente as coisas em suas notas, que nós resumiremos:
a) há uma afinidade entre o Espírito e o vento, já
que em hebreu Espírito significa sopro;
b) a forma das chamas se relaciona aqui com o dom das línguas; por
sua forma e sua mobilidade, a língua simboliza a chama;
c) o fenômeno do Pentecostes "vincula-se no carisma da glossolalia,
freqüente nos primeiros anos da Igreja". Encontram-se antecedentes
no antigo profetismo israelita. Estavam anunciados "transportes"
desse mesmo estilo para o fim dos tempos;
d) no que concerne à compreensão da mensagem expressa por
um dos "possuídos" pelo Espírito Santo, e isso para
todos os olhares, fosse qual fosse sua nacionalidade, tratava-se de uma
repetição alegórica do que acontecera no Sinai, onde
a voz de Deus ouvia-se em setenta e duas línguas diferentes, tantas
como nações conhecidas havia então. Por último,
diz-nos dom Dupont, o milagre das línguas aparece aqui como "o
símbolo e a antecipação maravilhosa da missão
universal dos apóstolos".
Moderemos, pois, nosso entusiasmo. Tal como sublinha dom Dupont, é
indubitável que, por tudo o que acabamos de ver, tal relato foi "hábil",
deu-lhe uma trama simbólica, e é inútil querer encontrar
nele uma realidade histórica concreta.
Quanto à embriaguez verbal dos apóstolos, que acabavam de
sair da noite do Tikun Chabuoth e de suas fumigações e ingestões
de alucinógenos, o R.P.J. Dupont a qualifica, de forma bastante plausível,
de glossolalia: "O fenômeno do Pentecostes vincula-se no carisma
da glossolalia, freqüente nos primeiros anos da Igreja..." (Cf.
Actes des Apôtres, Editions du Cerf, Paris, 1964, P. 2, nota A.).
E o que é a glossolalia? Perguntar-se-á o leitor. O Nouveau
Petit Larousse, em sua edição de 1969, dará-lhe de
forma bastante sucinta sua definição: glossolalia, N. F. "Enfermidade
perturbadora da linguagem, pela qual o doente cria palavras, dotando-as
de significado." (Grande Enciclopédia Larousse, t.5, P. 273).
É tudo, e é mais que suficiente. Isso significa que "certos
doentes mentais" formulam, em um jargão próprio deles,
"ensinos" recebidos do mesmo Deus, e que alguns ingênuos
se esforçam por encontrar nisso significados proféticos. Em
1785, o cândido Willermoz foi vítima de uma alucinação
deste tipo, e seu jargão demencial incitou inclusive ao L.C. de Saint-Martin
a jogar ao fogo, entusiasmado, seus próprios livros! (69) (Cf. Alice
Joly, Un mystique lyonnais, páginas 230 a 240).
O manuscrito da biblioteca de Grenoble (papéis de Prunelle de Lière,
Livre del Initiés, P. 25) proporciona-nos numerosos casos. Citemos,
por exemplo: "Ser puro, ser sozinho, plenitude em triplo ur, inacessível
ao sentido, vista infinita, inocente amor, vivam nele...? (1), perturbações
dos ur, são inacessíveis a sua emanação, três
vezes afastada do centro do ser. Ousou, esse ser saído do ser mesmo,
atribuir-se à produção. O voulia, seus puros ornos,
que tinha em seus seos..."
O ritual da Ordem Martinista de Papus, composto pelo Teder, conservou alguns
ecos disso, com a chamada a um certo Noudo-Roabts (op. cit., páginas
32 e 80), termo que está diretamente extraído dessa assombrosa
linguagem.
16 - Menahem o "consolador"
...e Menahem, que fora criado com Herodes, o Tetrarca, e Saulo. Atos dos
Apóstolos, 13, 1
Contrariamente ao que se está acostumado a afirmar, Menahem não
era um filho de Judas da Galiléia, a não ser só um
de seus netos, e a cronologia histórica está aí para
demonstrá-lo. Mas de quem era filho? No estado de nossa documentação,
não podemos avançar nenhum nome válido. É um
"filho de David" e um membro da família real, isso é
tudo. Mas afirmar que é o filho de Simão-Pedro, de Santiago
ou de André, é impossível. Tudo o que sabemos dele
o devemos ao Flavio Josefo, como sempre: "Não obstante, Menahem,
filho de Judas, o Galileu, aquele grande sofista que em tempos de Quirino
reprovara os judeus que, em lugar de obedecer só a Deus, eram tão
covardes para reconhecer aos romanos como amos, Menahem, depois de atrair
junto a ele algumas pessoas de alta condição, tomou pela força
Massada, onde se achava o arsenal do rei Herodes, e depois de armar numerosas
pessoas que não tinham nada a perder, e a ladrões que lhe
uniram e aos que utilizava como guarda, retornou à Jerusalém
como rei, erigiu-se em chefe da revolução, e ordenou continuar
o assédio do alto do palácio..." (Cf. Flavio Josefo,
Guerra dos judeus, II, XXXII). (70)
Isto tem lugar sob o procurador Gessio Floro, que entrara em funções
no ano 63, nono ano do reinado de Nero. Esse ano, Saulo-Paulo fora absolvido
em Roma, pelo tribunal imperial ante o qual pedira a comparecer. E a revolução
de Menahem se produziu na primavera do ano 64, pouco antes da Páscoa,
como sempre. A grande guerra judia estalaria dois anos mais tarde, no ano
66, e terminaria com a destruição total de Jerusalém,
no ano 70.
A fim de estimular aos combatentes palestinos em sua luta contra Roma, e
a fim de lhes fazer acreditar na predição do Apocalipse (difundida
já desde o ano 28, em vida de Jesus -seu autor confessado- e não
em 94 ou 96) (71) realizar-se-ia, e que seguiria à chegada do famoso
"reino de Deus" na terra, incendiaram Roma. Este incêndio
seria o anúncio do final dos tempos. Saulo-Paulo seria quem deu a
ordem. E não lhe podia negar isso ao Menahem, com quem fora criado,
e que além disso o tinha sujeito por uma espécie de chantagem
que já desvelamos em "O homem que criou ao Jesus Cristo."
No momento, recordemos simplesmente uma determinada passagem dos Atos dos
Apóstolos: "Havia na igreja de Antioquia 72 profetas e doutores:
Bernabé e Simão, chamado Níger, Lucio de Cirene, e
Menahem, irmão de leite do tetrarca Herodes e Saulo..."(Cf.
Atos dos Apóstolos, 13, 1).
A chegada desse Menahem fora anunciada pelo próprio Jesus, em vida:
"E eu rogarei ao Pai, e lhes dará outro consolador..."
(João, 14, 16).
"Se eu não me for, o consolador não virá a vós..."
(João, 16, 7).
Esse termo de consolador (em grego: paraklétôs) não
significa somente isso, mas também, e sobretudo, defensor, conselheiro.
E em hebreu, o grego paraklétôs, que deu nosso Paráclito,
diz-se simplesmente menahem! Uma vez mais, os escribas anônimos que
compuseram nos séculos IV e V os atuais evangelhos nos fizeram tomar,
astutamente, o Pireo por um homem, mas invertendo a fórmula. A um
homem, sucessor do mais humano de Jesus, fizeram-no passar por uma entidade,
espécie de deus secundário, que com muita dificuldade podem
explicar e justificar frente à Israel. E no ponto no qual pretendiam
fazer esperar uma intervenção celeste, Jesus queria dizer,
simplesmente: "Enviar-lhes-ei a meu sobrinho...".
Mas continuemos a leitura de Flavio Josefo, embora esteja censurado e interpolado:
"Como (ao Menahem) faltavam-lhe máquinas, e não podia
ir abertamente a sapa por causa dos disparos que os assediados (legionários
romanos, mercenários de Agripa, levita regulares) lançavam
do alto, recorreu a uma mina. Começaram a trabalhar de longe, e quando
a conduziram até debaixo de uma torre, saparam os fundamentos e a
sustentaram depois com peças de madeira, às quais prenderam
fogo antes de retirar-se. Quando essas madeiras se queimaram, a torre se
desmoronou. Mas os assediados previsram o que podia acontecer, e uma parede
que tinham construído com extrema diligência surpreendeu e
deteve os assediantes. Assediados não deixaram de enviar recado ao
Menahem e aos outros chefes dos sediciosos, para lhes pedir que pudessem
retirar-se com segurança, e o concederam somente aos judeus e às
tropas do rei Agripa". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXII).
Menahem continua então cercando às tropas romanas que ficaram
sozinhas, e estas evacuaram então o Stratopedon, e se retiram às
torres reais de Hippicos, de Fazael e de Mariamna. Isto aconteceu no 6º
dia de setembro do ano 64. Fazia, portanto, seis meses que Roma tinha ardido.
Ao dia seguinte, os partidários de Menahem, depois matar uma parte
da guarnição de Roma e incendiado o Stratopedon, capturaram
Ananías, o supremo sacerdote, assim como Ezequías, seu irmão,
refugiados nos esgotos do palácio, e executaram-nos, vingando assim
a morte de Santiago, o Menor, lapidado por ordem do citado Ananías
no ano precedente. A seguir sitiaram as três torres reais, onde os
romanos continuaram resistindo.
Mas Menahem, envaidecido por seus êxitos, perdeu de vista a doutrina
dos zelotes: "Deus é o único rei", e logo se tornou
um insuportável tirano, que chegou inclusive a revestir a púrpura
real e a coroa de ouro. Então Eleazar, filho de Ananías, reuniu
a seus partidários saduceus e, aproveitando que o citado Menahem
entrara com grande pompa ao Templo santo para oferecer ali um sacrifício,
atacou ao guarda de Menahem, capturou-o ou matou-o. Alguns fugiram para
a cidadela de Massada, entre eles outro Eleazar, parente de Menahem. Quanto
ao próprio Menahem, foi procurado ativamente, e por último
o capturaram em uma localidade chamada Ophlas, onde estava escondido. Conduziram-no
à Jerusalém "e o executaram em público, depois
de fazer-lhe sofrer uns torturadores inauditos. Do mesmo modo trataram aos
principais ministros de sua tirania, e em especial ao Absalón".
(Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXI).
Assim morreu Menahem, neto de Judas da Gamala e sobrinho de Jesus, sobre
cujo nome, e devido a uma surpreendente confusão, construir-se-ia
a lenda da existência de uma pessoa divina nova: o Espírito
Santo. O que logo surpreenderia muito aos discípulos de João,
o Evangelista, já que nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte:
"No tempo em que Apolo se achava em Corinto, Paulo, atravessando as
regiões altas, chegou a Éfeso, onde achou alguns discípulos,
e lhes disse: 'recebestes ao Espírito Santo ao abraçar a fé?'.
Eles lhe responderam: 'Nem sequer ouvimos que exista um Espírito
Santo!'... "Disse-lhes: 'Pois que batismo recebestes?'. Eles lhe responderam:
'O batismo de João'..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 19,
1-3).
Evidentemente, arrumaram-as para fazer acreditar que se tratava de discípulos
de João, o Batista. Mas isso acontecia no ano 54, ano em que Saulo-Paulo
estava em Éfeso. Como imaginar que o Batista, que morreu no ano 31,
tivesse então discípulos nessa cidade de Jonia, assentada
à beira do mar Egeu? Jamais houve mandeanos (nome dos discípulos
de Batista) na Grécia. Em troca, Éfeso está associada
à estadia de João, o Evangelista, e é simplesmente
aos seus a quem encontra Saulo-Paulo. E, por conseguinte, a gente não
pode a não ser assombrar-se ante o fato de que o discípulo
"que Jesus amava", que devia escrever o "evangelho espiritual",
ignorasse a existência do Espírito Santo, conclusão
aniquilam-lhe, já que nesse mesmo evangelho fala dele. E aí
é onde surpreenderemos uma vez mais aos falsificadores anônimos
do século IV com as mãos na massa.
Porque, tenhamos em conta a versão oficial de discípulos de
João, o Batista, em Éfeso, no ano 54, embora tivesse morrido
vinte e dois anos antes. Não lhes ensinou a existência do Espírito
Santo? Então, como pode lhes falar dele em João (1, 29 a 34),
em Mateus (3, 11), em Marcos (1, 8), em Lucas (3, 16)?
Se, pelo contrário, e mais plausivelmente, em Éfeso do que
se trata é de um grupo de discípulos de João, o Evangelista,
resulta igualmente incoerente. Porque, se João ignorar a existência
de um Espírito Santo, como pode falar dele em seu evangelho? E se
conhecer sua existência, como seus discípulos imediatos podem
ignorar semelhante postulado teológico de partido?
A verdade é que o evangelho de João não é de
João. Aparece com São Irineu, no ano 190, citado pela primeira
vez, e desconhece-se seu autor.
E, como faz observar Ernest Renan com razão, se esse evangelho existisse
na época de Marcion, quer dizer, por volta do ano 150, data média
de sua doutrina pessoal, que emprego não faria dele, em lugar do
de Lucas, e que conclusões não tiraria! Mas o fato de que
Marcion ignore totalmente o evangelho atribuído ao João demonstra
que naquela época, e em todas as comunidades cristãs em que
Marcion passou um tempo, especialmente em Roma, desconhece-se ainda esse
texto capital. E essas comunidades marcionitas são precisamente as
principais bases de partida da nova religião: Sinope, Éfeso,
Hierápolis, Esmirna, etcétera.
O que nos reforça em nossa opinião de partido nesta disgressão,
ou seja, que no pensamento de Jesus, esse "consolador" cuja vinda
previa para depois da sua, esse paraklétôs, era um homem de
carne e osso, seu próprio sobrinho, Menahem, consolador em hebreu.
Quem acabou muito mal, como vimos na leitura de Flavio Josefo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Sem afirmar nada de maneira absoluta, pode supor-se que Menahem bem podia
ser o filho de Eleazar, aliás Lázaro, aliás André,
à leitura das duas velhas versões de Flavio Josefo: "Porque
nesses dias, Maneo, sobrinho de Lázaro, a quem Jesus ressuscitou
da tumba, já podre..." (Cf. Flavio Josefo, Guerras da Judéia,
V, VII, manuscrito eslavo).
Esse texto foi manipulado pelos monges copistas ortodoxos, já que
não há nenhuma possibilidade de que Flavio Josefo falasse
da pseudo-ressurreição de Lázaro. Tomemos, portanto,
a versão grega: "Maneo, filho de Lázaro, depois de ter
fugido para o Tito, contou-lhe que desde o décimo quarto dia de abril,
até o primeiro dia de julho, tinham evacuado 115.880 corpos mortos
pela porta em que ele tinha o mando". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos
judeus, V, XXXVII, manuscrito grego).
Se esse nome de Maneo é a forma helenizada de Menahem, este último
seria, pois, um neto de Judas da Gamala, e seria o filho de André,
aliás Lázaro, sobrinho de Jesus, quão mesmo o Menahem
oficial. E então não seria o fato de querer proclamar-se rei
o que provocou sua execução, a não ser o de transgisir
com Tito, coisa que foi considerada como uma traição.
17 - Simão-bar-Cleofás
Deus não tem necessidade de nossas mentiras. LEÃO XIII
Aqui temos a outro membro da estirpe davídica que, por isso mesmo,
terminou tragicamente sua vida, sob o reinado de Trajano. "Depois de
Nero e Domiciano, sob o reinado daquele cujo tempo examinamos agora (Trajano),
levantou-se uma perseguição contra nós parcialmente
e em algumas cidades, segundo conta a tradição, a conseqüência
de um levantamento dos povos. Simão, filho de Cleofás os povos,
por isso sabemos consumiu sua vida no martírio. Com toda segurança
alguns de seus hereges acusaram ao Simão, filho de Cleofás,
de ser da raça de David e cristão. Como era cristão
(messianista, e portanto zelote N. do A.) foi atormentado de diversas maneiras
durante vários dias, e depois de assombrar profundamente ao juiz
e a quem rodeava, teve um final semelhante à paixão do Senhor".
(Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III,
XXXII).
O Chronicon Paschale situa esta morte no ano 105, precisando-nos que Simão
foi também crucificado: "...Simeon, filius Cleophae, qui in
Hierosolymis episcopatum tenebat crucifigitur cui succedit lustus..."
(Cf. Chronicon Paschale: ad annum 107).
Isto acontecia em Jerusalém, onde o citado Simão era "bispo
e teve como sucessor Justo". Tratou-se, portanto, de uma nova revolução
zelote, que terminou com uma execução de tipo rigorosamente
romano: a cruz.
Mas Simão era bispo de Jerusalém tão somente in partibus
infidelium, porque a igreja de tal nome (a comunidade messianista zelote)
não podia residir ali, dado que a aproximação à
cidade estava proibida a todo judeu de raça, sob pena de morte. De
fato, desde ano 70, a Igreja de Jerusalém tinha sua sede em Bolota,
na Perea (cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica,
III, V, 3), mas foi nessa cidade onde crucificaram ao Simão.
A revolução do ano 105, no curso da qual foi crucificado tal
Simão, "filho de Cleofás", foi seguida de outra,
nos anos 115-117, por parte dos judeus do Egito. (73) Esta tampouco teve
futuro. E agora chegamos à última, a que abocou na dispersão
total da nação judia, ao ficar Jerusalém totalmente
arrasada, e sem que pudesse identificar-se absolutamente nada de sua antiga
topografia, no ano 70 de nossa era, segundo Flavio Josefo; mais de um milhão
de mortos, perto de cem mil prisioneiros levados como escravos: esse foi
o balanço da revolução de Menahem, o "consolador"
anunciado por seu tio Jesus. E desse pseudo-profeta uns ardilosos astuciosos
souberam fazer um terceiro deus, em menos de quatrocentos anos.
18 - Simão-bar-Kokheba
O trágico na vida dos homens são menos seus sofrimentos que
seus fracassos.
THOMAS CARLYLE
Também aqui encontramamo-nos em presença de uma verdadeira
"guerra Santa", e poderemos seguir, até o aplastamento
final, o afã contínuo por observar religiosamente a Lei mosaica.
Ainda existem poucos documentos descobertos sobre a revolução
de Simão-bar-Kokheba. Resumiremos aqui os trabalhos dos diversos
especialistas neste tema:
- de M.P. Prigent, professor na faculdade de teologia protestante da universidade
de Estrasburgo, autor de duas conferências no Centro de Estudos Orientais
da universidade de Genebra;
- de M. Valentín Nikiprowelszky, professor do Collège de France,
especialista em história da corrente zelote, e que prefaciou a reedição
das obras de Flavio Josefo, em sua tradução de Arnauld d'Andilly,
no Editions Lidis;
- de M.A. Dupont-Sommer, professor em Sorbone, diretor na Ecole des Hautes-Etudes,
em seus Nouveaux aperçus sur les manuscrits de la Mer Morte;
- de M. Gérard Nahon, em seu livrinho Les Hébreux, etcétera.
Antes que nada, terá que estabelecer o clima particular no qual viviam
Judéia e Galiléia, depois da terrível repressão
de Tito.
O Templo está arrasado. E, tal como diz o Talmud: "os chacais
se instalaram na convocação do Sancta Santorum..."
Nas moedas romanas cita-se a Judéia como "Judéia capta",
quer dizer, Judéia cativa. Como Jerusalém e seus extensos
arredores estavam proibidos a todo judeu de raça, o Sanedrín,
convertido agora em simples corte de justiça religiosa, deslocar-se-ia
sucessivamente, ao desejo das suspeitas romanas, de Yabné a Uscha,
ao Schefaram, ao Beth-Sheorim, ao Séforis, ao Tiberíades.
Eram tempos de luto. Os chefes de Israel ordenaram então penitência
para comemorar o aniquilamento do santo Templo, e criaram o Ticha b'Ab,
jejum total e pés descalços durante vinte e quatro horas,
leitura das Lamentações de Jeremias, e luzes das sinagogas
apagadas. Durante os oito dias que precediam ao Ticha b'Ab, não se
comia carne, não se bebia vinho, não se cortava o cabelo,
e se postergavam bodas e noivados. Isso constituiria, na Idade Média,
o famoso "Sabbat negro" das comunidades judias da Alemanha.
Apesar do enorme golpe demográfico causado pela derrota, tentaram
voltar a cultivar as terras afastadas de Jerusalém; teriam que viver
apesar de tudo, por Israel do manhã, porque não se perdeu
a esperança.
Os camponeses judeus, convertidos em "escravos de César",
não eram outra coisa que servos medievais. Alguns "colaboradores"
prudentes, em geral os saduceus, conservaram graças a sua covardia
durante a revolução seu patrimônio familiar, e às
vezes inclusive o aumentaram. A história é um eterno voltar
a começar. E estavam também os cristãos ...
Gozavam de um certo número de privilégios, porque a maioria,
se não todos, eram sírios ou gregos, o que lhes permitia residir
na nova Jerusalém, proibida aos judeus. E esse favor acentuaria um
pouco mais o ódio entre essas duas facções religiosas.
Mas, como diria mais tarde Gérard de Nerval em Aurélia, "existe
um segundo sentido dos acontecimentos humanos..." Assim, estimulado
pelas provas de um longínquo passado, às quais aconteceram
consoladoras glórias, Israel rogava pela reconstrução
do santo Templo, "logo e em nossos dias...", como reza a fórmula
ritual. Mas da esperança à ilusão às vezes não
há mais que um passo, e a pressa é má conselheira.
O ingênuo povo imaginará rapidamente que os "dias do Messias"
não estiveram jamais tão próximos. Foi então
quando a corrente zelote, essa corrente que se acreditava definitivamente
extinta dos suicídios de Massada, os queimados vivos da Cesaréia
Marítima e os crucificados de Jerusalém, reapareceu de novo,
como se levantaria de repente um tufão vingador. Um "príncipe
de Israel", Simão-bar-Kokheba, reuniram aos "maquis"
da Alta Galiléia, aos dos estepes desérticos, e levantou o
estandarte da última revolução judia cunhada com a
estrela de David. Era de estirpe davídica, porque descendia também
ele de Judas da Gaulanita. Era, portanto, um sobrinho neto de Jesus, e prova
disso é que Rabbi Akiba-Ben-Ioseph, o célebre doutor e cabalista,
(74) o apresenta como o Messias-Rei, liberador da nação judia.
Deu-lhe o nome místico de Simão-bar-Kokheba, quer dizer, Simão
filho da Estrela, alusão a célebre profecia: "Um astro
se levanta de Jacob, um cetro se eleva de Israel, ferirá os flancos
de Moab, abaterá a todos os filhos de Set, Edom se converterá
em sua posse, e se apropriará de Seir, seu inimigo. Israel manifesta
sua força; e aquele que sai de Jacob, reinará como soberano...
(Cf. Números, 24, 17-19, Oráculo de Balaam, filho de Beor).
(75)
Também o espectro de Judas da Galiléia devia estremecer-se
de alegria quando se remontava ao Sheol cada tarde de cada Sabbat, já
que seus princípios se respeitavam escrupulosamente: o poder espiritual
o exercia Rabbi Akiba, e o poder temporal Simão-bar-Kokheba.
De todo modo, esse entusiasmo geral tropeçou também com alguns
céticos. E Rabbi Iochanan-Ben-Torta não vacilou em declarar,
zombador: "Akiba, antes te brotará erva das mandíbulas,
que o Filho de David chegue..." (Cf. Talmud de Jerusalém, Ta'anith,
IV, 7). Esta ironia, conservada pelos historiadores talmudistas, contribui-nos
entretanto, a prova da filiação davídica de Simão-bar-Kokheba,
porque, senão fosse assim, Rabbi Akiba jamais o apoiasse e assistido
com sua autoridade nesta revolução. Mas esse cepticismo era
próprio dos intelectuais, fartos de tantas guerras inúteis,
porque o povo, entretanto, seguia. Encontramo-nos no ano 132, sob o imperador
Adriano.
E de repente, a tempestade brotada dos guerrilheiros zelotes varreu literalmente
as legiões de Tineius Rufus, legado imperial. A insurreição
generalizou-se. Simão-bar-Kokheba, "príncipe de Israel"
(já não ocultava esta condição) cunhou moedas
oficiais que levavam em cunho: "Pela liberdade de Jerusalém".
Constituiu a seguir um exército regular, nomeou governadores regionais,
percebeu os impostos em dinheiro e os dízimos em espécies.
Mas três anos mais tarde, a "última batalha" tocou
a seu fim, e no ano 135 Julio Severio aniquilou aos últimos rebeldes.
Fugindo de Ein-Gueddi, nas bordas desoladas do mar Morto, quartel general
do "Filho da Estrela", resultaram dizimados pouco a pouco, perseguidos
pelas legiões romanas, superiores em número e armamento, e
fortificaram-se nas grutas de Nahal Hevert e de Murrabaat, para morrer nelas.
Como acabaram? Não se sabe exatamente. O que é seguro é
que foram vencidos sobre tudo pela fome. Julio Severio dispunha de 65.000
homens. De modo que puderam rodear facilmente todo o maciço.
No curso das escavações de 1953 descobriram nessas grutas,
que se abriam a escarpados vertiginosos, esqueletos, sobretudo de mulheres
e de meninos, mortos de fome e de sede. Ainda estão em estudo os
arquivos e os manuscritos. O saque dos rebeldes, composto de objetos que
provinham de templos pagãos, de baixela e de vasilhas de cobre, estava
acompanhado de cestos que continham crânios e ossaturas humanas. De
onde procediam? Mistério. Eram provavelmente os restos de mortos
judeus, em espera do pequeno sepulcro de pedra, arca final de todos os defuntos
em Israel.
O que fizeram de Simão-bar-Kokheba? Morreu no curso dos últimos
combates, e sua cabeça provavelmente foi levada ante Julio Severio,
segundo o costume da época. Quanto ao Rabbi Akiba, foi feito prisioneiro
e mantido encarcerado durante dois anos, e no ano 135, quando caiu Beitar,
onde morreu o "Filho da Estrela", foi esfolado vivo, e logo assado
a fogo lento, na Cesaréia Marítima, ante as autoridades romanas.
Suas últimas palavras foram para proclamar sua fé: "Escuta,
Oh, o Israel: Yavé é nosso Deus, Yavé é um só..."
(Cf. Deuteronômio, 6, 4).
Outros nove doutores, discípulos deles, sofreram suplício
com ele, e só um escapou aos romanos: o célebre Simão-bar-Iochai.
Para isso, viveu doze anos, com seu filho, nas pedreiras próximas
à Cafarnaum, à beira do lago de Genezaret. Seria ali, nas
trevas só rasgadas pela luz da lamparina de azeite, onde comporia
o Sepher-ha-Zohar ou Livro do Esplendor, conforme reza uma lenda tardia.
Esta última revolução, que inicialmente se suscitou
com a intenção de opor-se à reconstrução
de Jerusalém sob o aspecto de uma cidade totalmente pagã e
vedada aos judeus por ordem do imperador Adriano, custou a vida de seiscentas
mil pessoas de ambos os sexos. Nasceu judia desapareceu como entidade política
e geográfica, e a população foi vendida nos mercados
de escravos de todo o Império romano, ou foi deportada por cidades
inteiras, em qualidade de "escravos de César".
O nome de Simão-bar-Kokheba, ou "Filho da Estrela", converteu-se
então no Simão-bar-Kozab, ou "Filho da Mentira"
através de um trocadilho, já que Koseba voltava Kozab (em
hebreu: mentira). E aqui voltaremos a encontrar Jesus, seu tio avô,
com seu conhecimento dos truques sabidos por todos os titeriteiros ambulantes.
No Apocalipse encontramos a seguinte "revelação de Jesus
Cristo" (op. cit. 1, 1), importante alusão a um indiscutível
ilusionismo: "Mandarei minhas duas testemunhas para que profetizem,
durante mil duzentos e sessenta dias, vestidos de saco. Estes são
duas oliveiras e os dois castiçais que estão diante do Senhor
da terra (adonai-ha-aretz). Se alguém quiser lhes fazer mal, sairá
fogo de suas bocas, que devorará a seus inimigos" (Apocalipse,
11, 3-5).
Pois bem, em seu Discurso preliminar ao Dictionnaire des hérésies,
des erreurs et des schismes, dedicado ao monsenhor de Choiseul, arcebispo
de Albi (Besançon, 1817), o abade Pluquet diz o seguinte a respeito
de Simão-Ben-Koseba: "Quando Adriano quis enviar uma colônia
a Jerusalém, o impostor Barcochebas (sic) anunciou-se aos judeus
como um Messias. Com a estopa acesa que levava na boca, e por meio da qual
soprava fogo, persuadiu ao povo de que, com efeito, era o Messias; os principais
rabinos publicaram que era o Cristo, e os judeus o ungiram e o proclamaram
seu rei". (Op. cit., P. 131).
Aqui terá que entender o termo Cristo no sentido judaico tradicional:
Messiah, Messias em hebreu. Não há nenhuma alusão ao
Jesus Cristo, por parte dos judeus, claro está. Mas voltemos para
Apocalipse. Que o redigisse Jesus em vida, por volta do ano 27 ou 28 de
nossa era, como demonstramos em uma obra precedente, (76) ou ditado depois
de sua morte ao João, "o discípulo bem-amado" não
muda o fato de que fora ele seu autor oficial: "Revelação
de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para instruir a seus servos sobre as coisas
que têm que acontecer logo". (Apocalipse, 1, 1).
Pois bem, a nafta e o petróleo conhecem-se da mais remota antigüidade.
Nas civilizações da mesopotâmia e em Fenícia
se utilizava o asfalto para o calafetado dos navios e a construção
das estradas. O petróleo servia deste modo para o sistema de iluminação,
para a limpeza e para fins medicinais. (Cf. Michel Mourre, Dictionnaire
d'histoire universelle, tomo II, P. 1.638: Pétrole). A nafta é
uma espécie de betón líqüido, transparente, ligeiro
e muito inflamável. O petróleo destilado parece-lhe enormemente.
Encontra-se na Persia, nas bordas do mar Caspio, na Sicilia e na Calabria.
É evidente que essa misteriosa "água" que verte
o profeta Elias sobre a lenha de seu altar, no topo do monte Carmelo, (77)
e que se acende imediatamente, ante sua prece, não é outra
coisa que nafta, acesa com ajuda de uma lupa, ou de um cristal que fizesse
as vezes dela. E o "truque" de Simão-Ben-Koseba consistia
em conservar em sua boca uma bola de estopa cheia de petróleo, e
cuspi-lo repentinamente, através da chama de uma pequena tocha sustentada
diante dele. Mas para a época e a um ignorante, o rosto queimado
do adversário o seria por um prodígio inexplicável,
e a profecia do Apocalipse se realizou...
Evidentemente, em nossos dias todo mundo viu um ilusionista que, nas feiras,
nos circos ambulantes, ou inclusive em uma praça pública de
bairro, "cospe fogo" desta maneira. Mas retrocedamos vinte séculos,
nos situemos no centro de uma massa popular totalmente subjugada pelas superstições
mais comuns, e admitiremos que o problema se expõe desde outro ângulo.
Pois bem, em uma obra precedente já vimos que o segredo da pólvora
era conhecido pelos sanedritas. (78) Acabamos de estabelecer que o emprego
do petróleo e da nafta, em matéria de "milagres"
religiosos, também o era. Assim, ao afirmar com antecedência
que esses dois representantes oficiais, essas duas "testemunhas",
cuspirão com sua própria boca fogo sobre seus adversários,
Jesus em seu Apocalipse nos demonstra que se acostumara com esses truques,
que provavelmente ele utilizou, (79) e Celso tinha razão em seu terrível
Discurso verdadeiro ao classificá-lo entre os magos, termo que, em
nossos dias, é sinônimo de ilusionista, já que há
truques que ainda não foram explicados.
E isto nos leva ainda mais longe na via das constatações.
Ao adotar e realizar o truque discretamente aconselhado no Apocalipse para
assentar melhor suas pretensões de Messias liberador, Simão-Ben-Koseba,
príncipe de Israel, revelou-se não só como filho de
David (indispensável para desempenhar esse papel), mas também
como discípulo de Jesus de Nazaré, cujo verdadeiro nome era
Jesus-bar-Juda, já que, acompanhado pelo Rabbi Akiba, pretendia cumprir
a profecia da "testemunha" que cuspiria um fogo mortal.
E em Eusebio da Cesaréia lemos o seguinte: "Um homem chamado
Barchochebas estava então à liderança dos judeus. Esse
nome significa estrela. Pelo resto, era um ladrão e um assassino,
mas, com seu nome, impunha-se aos escravos como se fora uma luz vinda do
céu para lhes ajudar, e milagrosamente destinada a iluminá-los
em suas desgraças". (Cf. Eusebio da Cesaréia, Histórias
eclesiásticas, IV, VI, 2).
Traduzamos: era um zelote, um sicário (de onde a acusação
de que era um assassino), cobrava o dízimo messianista, (80) de onde
a acusação de ladrão. Mas continuemos: "O mesmo
Justino, recordando a guerra que teve então lugar contra os judeus,
acrescenta isto: 'E efetivamente, na guerra judia que teve lugar agora,
Bar-Cochebas, o chefe da revolução dos judeus, conduziu a
terríveis suplícios só aos cristãos, se não
renegavam e não blasfemavam de Jesus Cristo'... " (Cf. Eusebio
da Cesaréia, História eclesiástica, IV, VIII, 4, citando
ao Justino, em I Apologético, XXXI, 6).
Pode demonstrar-se melhor que o "Jesus Cristo" do ano 135, época
da revolução de Simão-Ben-Koseba, é o criado
integralmente por Saulo-Paulo, quer dizer, um Jesus totalmente estranho
ao ideal zelote e, sobretudo, ao Jesus da história real, ao filho
de David crucificado por Poncio Pilatos, e que se Simão-Ben-Koseba
acreditou ter que realizar a promessa do Apocalipse é que se sentia
sucessor de seu verdadeiro autor, e não queria ouvir nada sobre esse
cristianismo obra de Saulo-Paulo, e que a seus olhos isso constituía
a maior traição ao nacionalismo judeu? O ódio que os
judeus extremistas sentiam para Saulo-Paulo provavelmente estava relacionado
com a morte de Simão-Pedro e de Jacobo-Santiago, no ano 47. Suspeitavam
que foram entregues por Saulo-Paulo ao Tibério Alexandre, quem os
fez crucificar em Jerusalém, como já vimos no começo.
De todo modo, a acusação de Eusebio da Cesaréia contra
Bar-Kokheba nos oferece algumas dúvidas, se se tiver em conta que
seu alter ego, Rabbi Akiba, era um feroz adversário da pena de morte.
Agora bem, Saulo-Paulo não fora durante tanto tempo seu desumano
adversário, chefe de uma tropa ao serviço de Roma e dos Herodes,
como para não achar-se na necessidade de ter que justificar aos olhos
de Roma seu passo ao judaísmo nazareno, e para isso deveria mostrar-se
como fiel vassalo, e pactuar alguns compromissos importantes.
A um ex-colaborador é muito difícil escapar a seu passado
e liberar-se da tutela de seus antigos chefes. E ainda lhe é mais
difícil apagar tal passado e converter-se em amigo daqueles a quem
se perseguiu. A história é um eterno voltar a começar.
Acreditam útil resumir brevemente a sorte de cada um dos personagens
evangélicos, à luz do que descobrimos no curso de nossas investigações.
Vejamos, pois, essa recapitulação do mais eloqüente:
Jesus: crucificado no ano 35 em Jerusalém, sob o procurador Poncio
Pilatos.
Judas Iscariotes: enforcado e estripado no ano 35, em Jerusalém,
por ordem dos discípulos imediatos. (81)
Mateus, aliás Leví: desaparecido sem deixar rastro imediatamente
depois da morte de Jesus. Poderia ser executado pelos discípulos.
Felipe: desaparecido sem deixar rastro imediatamente depois da morte de
Jesus.
Judas, aliás Tadeu, aliás Lebeo, aliás Tomás:
decapitado no ano 45 na Judéia, sob o procurador Cuspio Fado.
Bartolomeu, aliás Natanael: crucificado no ano 47 em Jerusalém,
sob o procurador Cuspio Fado.
Simão-Pedro: crucificado no ano 47, sob o procurador Tibério
Alexandre, ao mesmo tempo que seu irmão Santiago o Maior.
Santiago o Maior: crucificado no ano 47, em Jerusalém, sob o procurador
Tibério Alexandre, ao mesmo tempo que seu irmão Simão-Pedro.
André, aliás Lázaro: capturado no ano 51 pelo procurador
Antonio Félix, enviado à Roma, ante o imperador, liberado
em troca de um resgate por Nero César, voltado para a Judéia
e desaparecido no ano 56.
João: quase com toda segurança lapidado em Jerusalém,
no ano 63, ao mesmo tempo que seu irmão Santiago o Menor.
Santiago o Menor: lapidado em Jerusalém, no ano 63, ao mesmo tempo
que seu irmão João, sob Ananás, supremo sacerdote saduceu,
sendo procurador titular Albino.
Ao terminar a redação deste capítulo, o autor quer
render uma justa comemoração a todos esses homens que souberam
morrer, de uma morte freqüentemente espantosa, para que seus compatriotas
e seus filhos gozassem do bem mais prezado: a liberdade. A desmitificação
do cristianismo inserida necessariamente em uma desmitificação
das massas das quais abusou. Pascal evocou muito bem, em uma de suas frases,
sabiamente evocadora, o aspecto aberrante de toda guerra militar, justificada
pelo fato de que o adversário vive "ao outro lado do rio..."
Mas Henri de Montherlant justificou por sua vez outro aspecto dos combates
sem quartel que enfrentam às vezes aos homens: "A guerra civil
é a boa guerra, aquela em que se sabe a quem se mata e por que se
mata..."
A guerra militar nem sempre pode justificar-se. Recordemos as palavras amargas
de Anatole France: "A gente crê morrer pela pátria, e
morre por alguns industriais!..."
Mas a que levaram a cabo os ferozes zelotes contra os ocupantes romanos
e suas tropas mercenárias foi uma guerra "Santa", justa,
embora o obscuro destino não lhes proporcionasse a vitória.
Por isso, deveria respeitar sua memória, embora terei que lavar sua
história de todas as imposturas acumuladas pelos séculos.
E isto, o autor destas páginas devia dizê-lo.
19 - Maria, mãe de Jesus
Ela elevou os olhos ao céu e disse: Quem sou eu, Senhor, para que
todas as nações da Terra um dia me benzam?..." Porque
Maria esquecera os mistérios que lhe revelara o arcanjo Gabriel...
Protoevangelio de Santiago, XII, 2
O capítulo que tratasse dos "filhos de David" e não
desse o máximo de informações inéditas sobre
Maria, a mãe de todos eles, seria um capítulo incompleto.
Por isso é importante apresentar todo um pequeno universo humano
que, a partir de agora, permanecerá à margem da religião
nova montada por aquele aventureiro de quão místico foi Saulo-Paulo.
(82)
Como já dissemos em nossa primeira obra, (83) e segundo as afirmações
dogmáticas da Igreja católica, ignoramos tudo que possa referir-se
aos pais de Maria, mãe de Jesus; e tal Igreja, considerando este
terreno como terrivelmente perigoso para a lenda cristã, nega-se,
por conseguinte, a ensinar nada oficial a este respeito. Não obstante,
nós, que não nos atenemos a essa prudente reserva, e por motivos
diametralmente opostos, abordaremos o problema das origens familiares da
mãe de Jesus da história.
As genealogias reproduzidas nos evangelhos de Mateus e de Lucas, por contraditórias
que sejam, só se aplicam ao pai oficial de Jesus, quer dizer, ao
evanescente José da lenda, cujo suposto nome de circuncisão,
segundo Lucas (3, 24), era Ioseph-bar-Heli, e segundo Mateus (1, 16), era
Ioseph-Ben-Iacob. Como se vê, os escribas do século IV não
ficaram de acordo ao compor seus relatos.
Nos canônicos não têm nada sobre Maria, e é um
apócrifo célebre, do qual a Igreja tira abundante informação
para suas necessidades iconográficas, o Protoevangelio de Santiago,
que nos diz que seu pai se chamava Joaquim e sua mãe Ana, em hebreu
Hannah.
Esse silêncio reprovador e rabugento dos exegetas oficiais nos oculta,
evidentemente, algo, coisa que cabe ao historiador sincero, curioso por
natureza, a desentranhar o motivo secreto de tal silêncio. Em primeiro
lugar afirmaremos que Maria procedia de uma família bastante rica,
por surpreendente que resulte esta afirmação. Este fato o
estabelecemos seriamente a partir de uma constatação do mais
corriqueiro: a da riqueza indiscutível da família davídica
em geral, quer dizer, a importância dos bens que possuía, mais
a importância dos diversos ganhos recebidos por seus membros. Sobre
estes, remetemos ao leitor a nossa obra precedente e a seu capítulo
intitulado "O dízimo messianista". (84) Sobre os bens imóveis
desta família podemos tomar já em conta com toda certeza a
casa familiar de Gamala, aquele ninho de águias penduradas por cima
da borda oriental do mar da Galiléia; a moradia de Cafarnaum, citada
em Mateus (4, 13) e em Marcos (1, 29) como propriedade de Simão e
André, irmão de Jesús; (85) a de Séforis, destruída
durante os anos 6 aos 4 antes de nossa era pelas legiões de Varo,
legado de Síria, durante a primeira revolução de Judas
da Gamala, marido de Maria e pai de Jesus; esta moradia desapareceu, evidentemente,
no incêndio de tal cidade. Podemos acrescentar a de Betsaida, "a
cidade de André e de Pedro" (João, 1, 44), já
que, repitamo-lo, eram irmãos de Jesus, no sentido carnal de termo.
(86)
Conhecemos também a passagem da História eclesiástica
de Eusebio da Cesaréia, no qual o autor mostra aos "parentes
carnais do Salvador, bem para vangloriar-se, ou simplesmente por dizê-lo..."
(cf. Eusebio da Cesaréia, op. cit., I, VII, 11-14), que nos revela
as verdadeiras origens da família herodiana. Pois bem, para conhecer
a genealogia de uma família, para vangloriar-se, terá que
ser familiar dela, mais ou menos próximo. E mais tarde abordaremos
o problema do matrimônio de Herodes, o Grande, com uma "filha
de David", parenta de Jesus, por ser meio-irmã de sua mãe
Maria.
Observaremos, de passagem, que Tischendorf considera como autênticos
os nomes dos pais de Maria (cf. Tischendorf, De evangeliorum apocryphum
origine et usu). E, efetivamente, nas lendas judias, Maria chamam-na filha
de Heli, aliás Jehohakim, que de fato é o mesmo nome (Heliakim).
Assinalaremos, a este respeito, a concordância do Talmud de Babilônia
(op. cit., Sanedrín: f° 67) com o Talmud de Jerusalém
(op. cit., fº 77).
O Protoevangelio de Santiago nos diz o seguinte: "Havia um homem rico,
rico em excesso, chamado Joaquim, que levava suas oferendas ao Templo em
quantidade dupla, dizendo: 'O que sobre será para todo o povo' (depois
dos sacerdotes)..." (Cf. Protoevangelio do Santiago, 1, 1). E Eustaquio,
bispo de Antioquia e mártir ( 360), contribui os mesmos dados,
sem considerá-los como legendários, a não ser dando-os
por certos. (Cf. Commentaire sur l'oeuvre des six jours, in Patrologie grecque,
tomo XVIII, col. 772).
Sobre a filiação real e davídica de Maria, observemos
de passagem que o mesmo Protoevangelio de Santiago nos mostra à faxineira
da Ana, mãe de Maria, aconselhando a sua ama que rodeie a diadema
real que possui, para afastar a tristeza causada por sua esterilidade (cf.
Protoevangelio de Santiago, II, 2). Sua união com Joaquim, da mesma
filiação davídica que ela, está testemunhada
por outro documento antigo: "Quando ele (Joaquim) tinha vinte anos,
tomou por esposa Ana, filha de Isacar, e de sua própria tribo, quer
dizer, da raça de David..." (Cf. Pseudo-Mateus, I, 2).
Do mesmo modo, o abade Emile Amann, doutor em teologia, ao traduzir e comentar
o Protoevangelio de Santiago consagrado à Maria, à suas origens
e à sua infância, pode observar que, segundo o próprio
texto: "Joaquim (o pai de Maria) é 'extremamente rico'; eis
aí uma resposta direta às acusações judias sobre
a pobreza de Maria..." (Cf. E. Amann, Protoevangelio de Santiago, P.
181, Imprimatur de 1 de fevereiro de 1910, Letouzey Edith., Paris, 1910).
Encontramo-nos, pois, muito longe da família miserável que
nos apresenta sem cessar para nos enternecer.
Conhecemos, com efeito, a acusação injuriosa de Toledoth Ieshuah
(A geração de Jesus), que afirmava que este era o filho bastardo
de Maria e de um mercenário romano chamado Pantero. Paralelamente,
o Talmud nos contribui um eco disso: "Descobri em Jerusalém
um manuscrito genealógico no qual está escrito que este (Jesus)
é o filho bastardo de uma mulher adúltera..." (Cf. Rabbi
Simão-Ben-Azzai, Talmud).
Estimamos que se trata aí de uma ignorância voluntária
da verdadeira acusação inicial, porque é indubitável
que semelhante delito por parte de Maria conduzisse-lhe sérias dificuldades,
por crime de adultério. A Lei de Moisés implicava, com efeito,
a lapidação para a mulher a que se reconhecia culpada de tal
delito (cf. Levítico, XX, 10). Em troca, nenhum autor judeu pretendeu
jamais que esta arriscasse nada neste campo. Pelo contrário, e como
já se sublinhou, Jesus conta ao menos com quatro mulheres culpadas
desse importante delito em Israel entre sua mais ilustre antepassada, (87)
e sua indulgência para elas se estende inclusive às prostitutas,
que entretanto são severamente rechaçadas pela Lei de Moisés
e pelos profetas. Provavelmente ao que os talmudistas faziam alusão
era a essa ascendência molesta, mas logo mal compreendida pela tradição
oral.
Seja o que for, e ao escolher semelhante ascendência, o "filho
de Deus" estaria muito mal inspirado se logo condenasse à mulher
adúltera que um dia lhe apresentou para que a julgasse (João,
VIII, 3 a 11). Mas voltemos para Maria, sua mãe. (88)
Segundo São João Damasceno, em sua Homilia sobre o Natal da
Bem-aventurada Virgem Maria (Patrologia, XCVI, col. 664-667), Maria teria
nascido em Séforis, na Galiléia, a alguns quilômetros
de Nazaré atual (então inexistente), e muito perto de Presépio
da Galiléia. Para embrulhar melhor o problema, os escribas anônimos
que "arrumaram" os evangelhos antigos no século IV, tiveram
a idéia de situar o nascimento de Jesus em Belém da Judéia,
a uns dez quilômetros ao sul de Jerusalém, e não já
na Galiléia, e sim na Judéia. E tudo isso a fim de que nascesse
na cidade onde o próprio David tinha nascido. Mas, já que
era descendente de David por linha de sangue, Jesus podia muito bem prescindir
de tal mentira para continuar sendo-o, indiscutivelmente, do mesmo modo
que jamais um Delfin da França precisou nascer em Paris, em l'Île
de la Cité, berço dos Capetos, para ser logo rei legítimo.
Porque entre Presépio da Galiléia e Belém da Judéia
há, a vôo de pássaro, uns cento e dez quilômetros...
É evidente que semelhantes enganos foram premeditados. É muito
provável que Maria, galiléia de nascimento, como precisa João
Damasceno, permanecesse em sua província natal e entre sua família
para iluminar a seu "primogênito" (Lucas, 2, 6-7), e sem
dúvida também aos seguintes (Marcos, 6, 3). E o famoso censo
de Quirino não serve para nada, como já demostramos, (89)
e menos quando se tem em conta que Jesus não nasceu nessa época,
a não ser uns vinte e três anos antes.
Observemos de passagem que em dezembro de 1969, o professor Harmut Stegemann,
doutor em teologia protestante da universidade de Bonn, publicou uma tese
segundo a qual Jesus não teria nascido nem em Belém da Judéia
nem Nazaré da Galiléia, e sim em Cafarnaum, quer dizer, na
Galiléia, à beira do lago de Genezaret, e ao extremo norte
deste. Teria se falado de "Jesus de Nazaré" porque (no
século IV) ignorava-se a raiz aramaica de tal nome. Este significaria,
em realidade, mais ou menos: "Guardião da justiça de
Deus". Observemos também que tal doutor protestante nos contribui
aqui uma confirmação do papel tipicamente messiânico,
no sentido zelote do termo, de Jesus da história.
A imprensa da Alemanha federal reproduziu numerosas passagens dessa tese,
às vezes em primeira página, em especial a Kölnische
Rundeschau, que pouco antes do Natal de 1969 consagrou um editorial a essa
autêntica "bomba" lançada por um teólogo conhecido.
Assim, o teólogo Stegeman considera que há motivos fundados
para pensar que Jesus nasceu em Cafarnaum, onde se estabeleceram seus parentes.
Por nossa parte, estamos de acordo com esse exegeta sobre o fato de que
Jesus não nasceu, em modo algum, em Belém da Judéia.
Mas sim que pôde ter nascido em Presépio da Galiléia,
perto de Séforis, onde nasceu sua mãe, muito perto dessa Nazaré
que se criaria no século VIII para dar satisfação aos
peregrinos, depois de havê-la imaginado simplesmente no século
IV.
Mas Presépio da Galiléia é uma localização
perigosa para a verdade, quão mesmo Séforis, já que
se acham a pouco menos de trinta e cinco quilômetros a vôo de
pássaro da Gamala, a cidade refúgio dos zelotes, pendurada
de seu esporão rochoso, como um falcão escrutinando a planície,
ao outro lado do lago de Genezaret. É a famosa "montanha"
que sai repetidamente nos evangelhos, montanha que se guardam bem de nos
nomear... E Cafarnaum está a menos de quinze quilômetros, muito
perto do feudo familiar de Judas da Gamala, aliás Judas, o Gaulanita,
ou Judas da Galiléia (Atos, V, 37), o herói da revolução
do Censo, o primeiro marido de Maria, o pai de seus cinco primeiros filhos
e de suas duas filhas.
Por isso é provavelmente que o primeiro ato deste último,
quando levantará o estandarte de sua primeira revolução,
no ano 6 de nossa era, consistirá em apoderar-se de Séforis,
do palácio de Herodes, de seu arsenal e de seu tesouro. E, por essa
eleição, pode suspeitar existência de uma relação
entre a primeira investida das unidades de zelotes que descendiam do ninho
de águias da Gamala, e a localidade aonde nasceu Maria, esposa de
Judas da Galiléia, seu chefe, e mãe de seus filhos. Segundo
o Protoevangelio do Santiago, ela nasceria no ano 14 antes de nossa era,
de modo que quando teve lugar a crucificação de Jesus contaria
quarenta e nove anos, e vinte e seis quando este foi submetido, à
idade de doze anos, ao exame de sua maioria de idade civil e religiosa ante
os doutores da Lei. Então ele se convertia, como todos os pequenos
judeus do mundo, em um Ben-ha-torah, um "filho da Lei". (90) Esta
cronologia daria como resultado que Maria deu a luz à idade de quatorze
anos.
Mas estes dados são falsos. De toda nossa investigação,
dos desacoplados e das severas confrontações cronológicas
às quais nos entregamos há uns dez anos, resulta que Jesus
nasceu por volta do ano 16 ou 17 antes de nossa era, (91) e se Maria deu
a luz quando contava quinze anos (as meninas, em Israel, eram núbiles
a partir dos doze anos e meio), ela deveria nascer ao redor do ano 32 antes
de dita era. Por outra parte, o mesmo João Damasceno nos dá
em seu De fide orthodoxia (IV, Patrologia, XCIV, col. 21.157) a genealogia
de Maria. Como é natural, só nos fala de José, e não
de Judas da Gamala. Vejamo-la reproduzida a seguir:
David
teve de Betsabé, esposa de Uria Estirpe de Salomão Estirpe
de Natán
Mathan Mathat Pantheros
Jacob...(irmãos carnais) ... Heli Bar-Pantheros
Joaquim
José (quem se casou com) Maria
No concernente à vida de Maria depois da crucificação
de Jesus, sua morte e a época desta, já tratamos estes temas
no estudo do destino de João (veja o capítulo 14), portanto
não voltaremos sobre isso.
Por outra parte, no primeiro volume já chamamos a atenção
do leitor sobre a inexistência de uma mulher apresentada sob o nome
de Maria de Magdala. Com efeito, Tertuliano, que investiga à própria
Magdala (aliás Tariquea segundo alguns, e que nós consideramos
errôneo), não pôde recolher ali informação
alguma; Maria Madalena era totalmente desconhecida naquele lugar. Esta investigação,
efetuada entre os ambientes cristãos, deveria recolher, entretanto,
uma tradição, por mínima que fosse, se esta mulher
tivesse existido. Mas não houve nada disso. Tertuliano nasceu por
volta dos anos 150/160 de nossa era, e morreu por volta de 240. Sua viagem
produziu-se por volta do ano 200. E logo nada mais... Pois bem, os Atos
dos Apóstolos, as Epístolas de Paulo, as de Pedro, de Santiago,
de João e de Judas, a História eclesiástica de Eusebio
da Cesaréia, todos estes textos, que se afirmam que são sérios,
todos eles ignoram também a existência de tal mulher.
O mesmo acontece com a maioria dos apócrifos neotestamentários.
O que é pior ainda: alguns deles identificam Maria, mãe de
Jesus, com aquela que os evangelhos canônicos denominam como Maria
de Magdala, quando, na ressurreição de Jesus, este pede a
sua primeira interlocutora que não lhe toque fisicamente, por não
ter remontado ainda até seu Pai. Comparemos simplesmente esses textos,
e o leitor ficará informado. Vejamos, primeiro, o evangelho de João:
"No primeiro dia da semana, Maria Madalena veio muito de madrugada,
quando ainda era de noite, ao sepulcro, e viu retirada a pedra (...) Maria
ficou junto ao monumento, do lado de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se
para o monumento, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados um à
cabeceira e outro aos pés de onde estivera o corpo de Jesus. Disseram-lhe:
"por que choras, mulher?" Ela lhes disse: "Porque levaram
a meu Senhor e não sei onde o puseram". Dizendo isto, voltou-se
para atrás e viu Jesus que estava ali, mas não reconheceu
que fosse Jesus. "Disse-lhe Jesus: "Mulher, por que choras? A
quem buscas?" Ela, acreditando que era o hortelão, disse-lhe:
"Senhor, se tu o levastes, dize-me onde o puseste, e eu o levarei".
Disse-lhe Jesus: "Maria!". Ela, voltando-se, disse-lhe em hebreu:
"Rabboni!", que quer dizer Mestre). Jesus lhe disse: "Não
me toques, porque ainda não subi ao Pai"... (João, 20,
1 a 17).
Observar-se-á que a hipotética Maria de Magdala fora à
horta de José de Arimatéia com a intenção de
retirar dele o cadáver de Jesus, e levar-lhe. E isto, extraído
do mais célebre dos evangelhos canônicos, aquele no qual se
apóiam todos os mistagogos das seitas cristãs heterodoxas
mais descabeladas quão mesmo os fiéis das igrejas ortodoxas
até não poder mais, isto confirma o que já demonstramos
no primeiro volume deste estudo, (92) ou seja, que os fiéis de Jesus
contavam levando seu cadáver para retirar a seu destino final o que
levava de lhe denigrirem a primeira inumação. Se não
lhe podia deixar na tumba oferecida por José de Arimatéia,
era porque esta, em realidade, não era outra coisa que a fossa infamante
(fossa infâmia), em que se tornava aos corpos dos condenados a morte
depois de sua execução.
Segunda conclusão, José de Arimatéia era, efetivamente,
o Ioseph-har-ha-mettim, o "José da fossa dos mortos" que
já desvelamos em uma obra precedente, e não um "conselheiro
distinto" como pretende Marcos (15, 43). (93)
Mas voltemos para a misteriosa Maria de Magdala: Vejamos agora o Evangelho
dos Doze Apóstolos, que o grande Orígenes considerava como
um dos mais antigos evangelhos conhecidos, anterior inclusive ao Lucas atual:
"As mães deste país viram a morte de seus filhos e vão
à tumba para ver o corpo daqueles aos que choram... Ela abriu os
olhos, porque os tinha baixados, para não olhar ao chão por
causa dos escândalos. Disse com alegria: 'Mestre! Meu Senhor e meu
Deus! meu filho! ressuscitaste, ressuscitaste de verdade...' E queria agarrá-lo
e beijá-lo na boca. Mas ele a impediu e lhe rogou, dizendo: 'Mãe,
não me toque. Espera um pouco ... Não é possível
que nada carnal me toque até que eu vá ao céu. Entretanto,
este corpo é aquele com o que passei nove meses em seu seio... Sabe
estas coisas, OH minha mãe, sabe que sou eu, a quem você alimentou.
Não duvide, mãe, de que eu sou seu filho. Sou eu, quem a deixou
em mãos de João quando eu estava pendurando da cruz. Agora,
minha mãe, apresse em advertir a meus irmãos e dizer-lhe (Cf.
Evangelho dos Doze Apóstolos, 14º fragmento).
Pois bem, o evangelho de João, no versículo 17 do capítulo
XX, menciona a mesma ordem de Jesus a Maria de Magdala, de que fosse advertir
a seus irmãos. Todo o desenvolvimento é, portanto, idêntico
nos dois evangelhos. Só que, enquanto no dos Doze Apóstolos
a interlocutora de Jesus é sua mãe Maria, nos de João,
de Lucas, de Marcos e de Mateus, trata-se de Maria Madalena.
Vejamos agora o Evangelho de Bartolomeu. Seguimo-nos encontrando ante o
sepulcro, a manhã da ressurreição: "E Jesus gritou
na língua divina: "Marikha! Marima! Thiath!. O que significa:
'Maria! Mãe do Filho de Deus!' Maria conhecia o significado destas
palavras. Virou-se e disse: 'Mestre! Filho de Deus Todo-poderoso!... Meu
Senhor e meu filho!...' E El Salvador lhe disse: 'Saúde a ti, que
levaste a vida do mundo inteiro! Saúde, minha mãe, minha arca
Santa! Saúde a ti, minha mãe, minha cidade e meu lugar de
repouso!... Vá junto a meus irmãos para lhes dizer que ressuscitei
que entre os mortos'..." (Cf. Evangelho de Bartolomeu. 2º fragmento).
Vejamos ainda o Evangelho de Gamaliel, que ainda não foi publicado
com divisão em capítulos e versículos. Foi descoberto
no ano 1956, em um convento de Etiópia, pelo R.P. Van den Oudenrijn,
da universidade de Friburgo, com outros quatro manuscritos. Forma parte
do que se chama os apócrifos etíopes, e, como todos os outros
já conhecidos, pertenceu ao velho fundo primitivo dos cristãos
coptos do Egito e da Abisinia, junto com o Evangelho dos Doze Apóstolos
e o de Bartolomeu. E este Evangelho de Gamaliel nos confirmará também
o valor de nosso descobrimento.
Muito cedo, Maria, mãe de Jesus, foi junto à tumba de seu
filho. Coisa que resulta ainda muito mais plausível, porque é
mais humano que o fato de nos apresentar a uma mulher de costumes duvidosos,
que não pertencia à família, como a primeira em apresentar-se
com o defunto, deixando à mãe alheia a este piedoso dever.
E Maria, mãe de Jesus, segundo este evangelho não encontrou
o corpo de seu filho, mas sim discutiu com um desconhecido, que ela supôs
que era o hortelão, igual nos textos canônicos já citados.
"Isto senhor é o que entristece, porque nessa tumba não
encontrei o corpo de meu filho bem-amado, para chorar sobre ele, o que teria
consolado minha tristeza... E agora, se forem o guardião desta horta,
vos conjuro a que me informem"... E Jesus lhe disse: "Maria...
Já derramaste suficientes lágrimas até agora... Olhe-me
no rosto, minha mãe, para te convencer de que sou seu filho..."
E ela disse então: "Então ressuscitaste, Oh, meu senhor
e meu filho...". (Cf. Evangelho de Gamaliel, extratos).
É perfeitamente evidente, para qualquer que o veja com boa fé,
que a cena relatada por esses três evangelhos antigos é absolutamente
idêntica à descrita em João (20, 1-18), mas lá
onde este último põe em cena a uma tal Maria de Magdala, desconhecida
pelos textos neotestamentários posteriores (Atos dos Apóstolos,
Epístolas diversas, História eclesiástica, etc.), os
antiqüíssimos manuscritos coptos citados nos falam por sua vez,
de Maria, mãe de Jesus...
E vamos ver agora um argumento que reforçará o que demos na
obra precedente (94) sobre a identidade absoluta entre a Maria, mãe
de Jesus, e Maria de Magdala.
Tomemos para isso o importante estudo que o abade Loisy, ilustre exegeta
e probo historiador, consagrou precisamente a esse episódio de Maria
na tumba, na manhã da ressurreição, em seu enorme trabalho
intitulado Le quatrième évangile: "Segundo São
Efrén (Exposé de la concordance des évangiles, Moesinger,
268), as palavras: 'Não me toque...', etc., Jesus dirigiu-as à
sua mãe, e parece seguro que o Diatessaron de Ticiano contava da
mãe de Jesus o que nosso Evangelho conta de Maria de Magdala. O mesmo
acontece com um tratado da Antioquia do século IV, falsamente atribuído
ao Justino Mártir (Questions et réponses de l'orthodoxie,
Q. 48, cf. Harnack, no Theol.-Literatur-Zeitung, 1899, P. 176), que não
depende de São Efrén, mas sim poderia depender também
de Diatessaron. É lícito, portanto, perguntar se Taciano,
em lugar de interpretar nosso evangelho (de João) por uma tradição
apócrifa, não conheceria, pelo contrário, por um ou
outro caminho, o dado primitivo, e se o evangelista que conduziu à
mãe de Jesus ao pé da cruz não lhe teria dado um papel
capital no relato da ressurreição, e logo esse papel seria
atenuado em uma redação posterior, e transladado a Maria de
Magdala para concordar com a tradição sinótica... Efrén
diz que Maria duvidara da ressurreição, tal como lhe havia
predito Simão (cf. Lucas, 2, 35). (Sobre essa "dúvida",
veja-se nosso livro: Évangiles synoptiques, tomo I, P. 359)".
(Cf. Alfred Loisy, Le quatrième évangile, Paris, 1921, E.
Nourry, édit., P. 504).
Já lemos São Efrén: "Maria duvidava da ressurreição..."
Efrén é o pai da Igreja siríaca, assistiu ao concílio
de Nicéia, foi amigo de São Basilio e o pai da Escola mística
da Edesa. Nasceu por volta do ano 306, e morreu em 373. Suas conclusões
exegéticas fizeram chiar os dentes a alguns mistagogos de pequenos
cenáculos heterodoxos. Pior para eles; este tipo de problemas ultrapassa
seu entendimento.
Porque se Maria, efetivamente (segundo a profecia do velho Simão
quando teve lugar a apresentação de Jesus ao templo pouco
depois de seu nascimento [Lucas, 2, 25 e 34-35]: "e uma espada atravessará
sua alma...", deveria sofrer a pena mais terrível que possa
sentir uma mãe, é que então tinha que enfrentar-se
com o mais horrível desespero ante a morte de seu filho, e isso implicava
que não acreditasse em sua futura ressurreição nem
na deificação que lhe aconteceria, e portanto, que jamais
dera fé a suas palavras. O que aparece confirmado por Mateus (12,
46-50), Marcos (3, 21), João (7, 2-4). Realmente, esquecera ao arcanjo
Gabriel, se é que alguma vez houve tal arcanjo.
O certo é que toda a documentação contribuída
pelo abade Loisy e citada in extenso antes, reforça nossa tese, ou
seja, que na tradição primitiva era a Maria, mãe de
Jesus, a quem se dirigiu Jesus ressuscitado, e não a Maria de Magdala.
E esta ignorância geral dos textos neotestamentários ulteriores,
como a dos Padres da Igreja já citados, prova-nos que jamais houve
uma mulher com tal nome no séquito de Jesus, ao menos não
uma mulher distinta à sua mãe. Maria, mãe de Jesus,
e Maria de Magdala são uma só e mesma pessoa.
Por outro lado, uma tradição eclesiástica pretende
que esta Maria de Magdala morreu em Éfeso, onde foi inumada. Em finais
do século IX, o imperador Leão VI o Sábio devolveu
seus restos à Constantinopla. É fácil compreender que
se tratava de Maria, mãe de Jesus, morta e inumada em Éfeso...
As lendas provenzais do desembarque das três "Marias" em
Saintes-Maries-de-la-Mer e dos trinta e três anos de penitência
lacrimosa de Maria de Magdala no topo do pico de Sainte-Baume, (95) onde
morreu, foram elaboradas no século XI para esconder a verdade. Logo
voltaremos para este tema das diversas tumbas de Maria.
E agora voltamos de novo, através de outra série de argumentos,
às conclusões de nossa obra precedente, quer dizer, que Maria,
esposa de Judas da Gamala, mãe de Jesus e de suas irmãs e
irmãos, é a mesma Maria Madalena, e portanto que jamais existiu
uma cortesã de alta linhagem que levasse tal nome.
Quanto à explicação admitida pelo abade Loisy, ou seja,
que se transferiu um personagem real a outro puramente imaginário,
simplesmente para que o evangelho de João concordasse com os de Mateus,
Marcos e Lucas, não acreditam que seja válida. Porque então
ficaria por justificar a criação inicial de uma Maria de Magdala.
Esta explicação é muito singela, já a demos
em nossa primeira obra. (96) Só faltaria:
a) suprimir toda alusão que permitisse adivinhar que o Apocalipse
era em realidade muito anterior aos evangelhos, e que a história
dos "sete trovões" era uma perigosa chave do problema;
b) suprimir a prova de que esses "sete trovões" eram sete
irmãos, um dos quais era Jesus, o primogênito, e que todos
eram filhos de Maria, quão mesmo as jovens às quais os evangelhos
canônicos chamam "suas irmãs" (cf. Marcos, 6, 3).
Fazendo isto podia ao fim afirmar a virgindade perpétua de Maria;
c) fazer acreditar que a mulher que no sepulcro, ante aquele a quem ela
toma pelo hortelão, desespera-se pela morte de Jesus, e por conseguinte
não crê absolutamente na ressurreição prometida,
não podia ser Maria, sua mãe. E por parte de uma mulher estranha
à família, isso resultava mais plausível.
Claro que ficam outros pontos curiosos nesta impostura dos escribas do século
IV. Por exemplo, magdala pode significar também penteadora, perfumeira,
em aramaico. Maria, em um momento dado de sua vida, depois da morte de seu
marido Judas da Gamala, bem pôde ver-se na obrigação
de fazer subsistir a seus filhos, e ficar a exercer esta profissão
junto a algumas mulheres da aristocracia Iduméia.
Com efeito, segundo o Talmud de Babilônia (cf. Shabbath, 104 B, e
Hagigag, 4 b), Maria teria exercido a profissão de penteadora, mas
segundo o mesmo Talmud de Babilônia (Sanedrín 106 b), ao descender
dos reis de Israel, teria se comprometido com um héresch, palavra
hebréia que significa bem um carpinteiro, bem um mago. (97)
Por outra parte, a aldeia de tal nome evoca curiosamente a cidade zelote,
já que, com uma só letra de diferença, Magdala é
o anagrama da Gamala, só sobra a letra daleth. E é sabida
a importância das transposições de letras na cabala.
Não se atreveriam a falar de Maria de Magdala e acrescentariam a
daleth (d) para velar melhor esse nome que convinha não voltar a
pronunciar jamais: Maria de Gamala, porque senão se estabeleceria
imediatamente uma relação evidente com Judas da Gamala.
Temos um exemplo dessas transposições de letras na toponimia
da França, e é o da célebre gruta de Lourdes. Na época
de Maria Bernarda Soubirous ainda se chamava a essa gruta Massabielle. Pois
bem, esse nome não é mais que a transposição
anagramática de Beelissama, espécie de Astarté importada
pelos navegantes fenícios, e cujo nome não era outra coisa
que a deformação afeminada de Bell-Samîn, o "Senhor
dos Céus". E na gruta de Massabielle, no começo de nossa
era, celebrava-se o culto a essa mesma deusa Beelissama. Durante muito tempo,
na gruta onde Bernarda acreditou ver a Virgem Maria, quando contava uns
quinze anos, houve um bloco de mármore desconhecido nos Pirineus,
e que era um resíduo dessas liturgias pagãs. Esse bloco desapareceu
rapidamente. Possivelmente foi o condensador daquele que se desprendeu,
em 11 de fevereiro de 1858, forma-pensamento que impressionou o psiquismo
da menina. Um altar religioso sempre está mais ou menos carregado
magneticamente. (98)
Voltando para a Maria, mãe de Jesus, constataremos que os manuscritos
mais antigos do evangelho de Mateus nos precisam que "Jacob engendrou
ao José, o marido de Maria, e José engendrou ao Jesus"
(cf. Mateus, 1, 16). Fato confirmado por Saulo-Paulo: "... a respeito
de seu filho, nascido da semente de David segundo a carne". (cf. Paulo,
Epístola aos Romanos, 1, 3). É evidente que esta semente não
vem de Maria, mas sim de José, afirmação que prova
que naquela época dava ao Jesus ainda um pai perfeitamente carnal,
o que excluía a virgindade de sua mãe. Se duvidássemos
disso, não teríamos mais que reler a Vulgata latina de São
Jerônimo, versão oficial da Igreja católica, e leríamos
nela que: "...de Filio suo, qui factur est ei ex-semine David secundum
carnem..." (cf. Epistula ad Romanos: I, 3). Os originais gregos mais
antigos utilizam o termo spermatos, que significa o esperma masculino, quão
mesmo o termo semine utilizado por Jerônimo.
Ocumenius (cf. Patrologia grega, CXVIII, col. 217) e Teofilacto, bispo da
Acrida na Bulgária antes de 1078 (cf. Patrología grega, CXXII,
col 293), dizem-nos: "Santiago, a quem o Senhor designou com antecedência
bispo de Jerusalém, era o filho de José o carpinteiro, o pai
segundo a carne, do N. S. Jesus Cristo".
Assim, até finais do século XI, nas igrejas do Oriente não
se ignorava que Jesus tivera um pai perfeitamente carnal, e que o Espírito
Santo não tinha tido nada a ver nesta geração.
Voltemos, pois, a genealogia de Maria, dada por João Damasceno (supra,
p. 138). Vemos nela que seu pai chamava-se Joaquim, e seu avô X...-bar-Pantheros.
Trata-se, evidentemente, do mesmo Panthero da Toledoth Ieshuah que já
vimos. E é avô de Maria, o pseudo-amante mercenário
de Roma.
E se Maria nasceu no ano 32 antes de nossa era, se seu pai a engendrou aos
vinte anos, se ele mesmo foi engendrado pelo seu quando este contava também
vinte anos (a idade limite do matrimônio dos jovens no Israel antigo),
isso nos dá a data descoberta por Daniel-Rops em Jesus em seu tempo
(P. 68), porque 32 + 20 + 20 = 72, data muito próxima a de 78 dada
por tal autor (evidentemente antes de nossa era).
E portanto, teria morrido no curso das lutas civis que rasgaram durante
seis anos à nação judia sob o reinado sangrento de
Alexandre Janeo. Este rei, que pertencia à dinastia asmonea (os macabeus,
99) contemplou sadicamente, de terraço de seu palácio em Jerusalém,
e rodeado de suas concubinas, a crucificação de oitocentos
de seus adversários, enquanto se procedia, ante seus olhos, a degolar
suas esposas e filhos (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIII,
XXII). O avô de Maria devia participar dessas lutas fratricidas, porque,
ao helenizar seu nome, segundo o costume judeu da época, fez-se de
Panthero, Pantherôs, em grego pantera. E este nome não podia
designar a um homem particularmente pacífico.
Pelo que antecede podemos admitir que a família de Maria pertencia
também ao clã dos kanaim, ou zelotes, o que justifica que
lhe escolhessem um marido dentro do mesmo meio, ou seja, Judas-bar-Ezequías,
futuro Judas da Galiléia.
No que concerne à virgindade perpétua de Maria, "antes
durante e depois" dessa união tão humana com o herói
judeu que devia ilustrar seu nome com grande rapidez, acreditam que fizemos
justiça a esta inverossimilhança em nossa primeira obra. (100)
E nem sequer o moderno tema da partenogênesis, mediante o qual uma
fêmea se fecunda e dá a luz sem a colaboração
de um macho, afirmação muito discutida no que se refere a
sua possibilidade no seio da humanidade ou dos animais superiores, este
tema não poderia sustentar-se como explicação plausível
para essa concepção milagrosa por parte da Maria dos evangelhos.
Porque se o fato pode produzir-se em teoria no seio da humanidade, a mulher
não poderia parir jamais outra coisa que uma criatura de seu próprio
sexo, quer dizer, uma filha. E jamais se pôs em dúvida o sexo
masculino de Jesus, quanto mais que a Igreja católica possui em seus
templos, religiosamente conservados pelo clero e os fiéis, dezenove
prepúcios do menino divino, todos eles o qual mais autêntico,
o que constitui uma prova definitiva de tal masculinidade.
Não obstante, aos argumentos apresentados na primeira obra, (101)
convém acrescentar a confissão implícita dos teólogos.
Nos Diaconales de monsenhor Bouvier, bispo de Le Mans, membro da congregação
do Indice, inseridos em Dissertatio in sextum decalogi praeceptum et Supplementum
ad Tractatum de Matrimonio (Le Mans, 1827, exemplar da Bibloteca real),
descobrimos este estudo de um caso particular:
"Pergunta-se: 1º) Se um homem e uma mulher, bem instruídos
de sua comum impotência ou de um deles, podem contrair matrimônio
com a intenção de prestarem-se mútuo socorro e de permanecer
sempre na castidade.
"R. Sánchez (I; 7, disp. 97, nº 13) e muitos outros teólogos
que cita, afirmam que o matrimônio é lícito neste caso,
e apóiam sua opinião nas provas seguintes: os que contraíram
matrimônio, embora afetados por uma mesma enfermidade, podem viver
juntos como irmão e irmã, evitando o perigo de cair no pecado;
portanto, se pensarem razoavelmente que não terá que temer
tal perigo, podem casar-se com vistas a ajudarem-se mutuamente, apesar do
conhecimento que têm de sua impotência. Assim foi como a bem-aventurada
Virgem e São José contraíram verdadeiro matrimônio,
com a intenção formal de conservarem-se castos e de não
fazer uso do coito.
"Mas a opinião mais geral de outros teólogos é
que semelhante matrimônio não é lícito, já
que, conforme dizem, um matrimônio assim seria nulo se não
houvesse esperança de consumá-lo. Seria uma verdadeira impostura,
uma profanação das cerimônias religiosas, e por conseguinte
um sacrilégio, o fato de contrair voluntariamente um matrimônio
nulo; jamais devem autorizar-se semelhantes uniões. Quanto ao exemplo
contribuído mais acima, negam que seja aplicável nesse caso,
já que o matrimônio da bem-aventurada Maria e de São
José era válido". (Op. cit., Supplementum, 1º Quest.).
Era válido... Do que antecede, umas quantas conclusões se
impõem por si mesmas:
a) o marido verdadeiro de Maria não era impotente, e ela não
era estéril, já que seu matrimônio seria nulo, o que
a maioria dos doutores católicos negam, como acabamos que ver;
b) não se trataria, pois, do tal José, já que no momento
de sua união com Maria contaria uns oitenta e um anos, (102) se se
der crédito aos diversos Evangelhos da Infância. Pelo visto
morreria por volta dos cento e onze anos, e uns trinta anos antes é
duvidoso que se achou ainda em estado de procriar. Além disso, o
matrimônio de um homem em estado de impotência sexual estava
proibido pela Lei judia, e o desgraçado marido não tinha então
mais que duas semanas para lhe devolver a liberdade a sua esposa; (103)
c) se os teólogos cristãos afirmarem em sua grande maioria
(op. cit., dixit) que o matrimônio de Maria era válido, e o
marido não podia ser José, essa união se consumou,
pois, com o Judas da Galiléia, aliás Judas da Gamala, de onde
o nascimento de Jesus e de seus irmãos e irmãs menores.
Ficam ainda um conjunto de documentos ainda mais provadores a este respeito,
e não os silenciaremos, tendo em conta a autoridade de seus autores.
Sabemos por Eusebio da Cesaréia que Orígenes, o grande didáscalo
alexandrino, a quem o Papa Leão XIII qualificava de "o maior
dos Padres da Igreja do Oriente", adquirira em propriedade as Escrituras
conservadas pelos judeus e redigidas em caracteres hebreus. Para as ler,
aprendeu tal língua. Logo "fez-se à busca das diversas
edições daqueles que, além da versão chamada
dos Setenta, traduziram as sagradas Escrituras; e, além das traduções
correntes e em uso, as de Aquila, de Simmaco e de Theodotion". (Cf.
Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VI, XVI,
I, 2).
Dessas quatro versões do Antigo Testamento conformou seus célebres
Tetraples, texto sinótico onde os versículos de cada versão
estão dispostos frente a frente em quatro colunas, com o fim de estabelecer
comparações.
A versão chamada dos Setenta (setenta tradutores "inspirados"
dão uma versão idêntica do texto, mas a história
de tal "inspiração" está fundada na carta
de Aristeo, apócrifo do século II) foi realizada a pedido
de Ptolomeo, filho de Lagus, no século III antes de nossa era, para
a célebre Biblioteca de Alexandria. Nesse texto, a célebre
passagem de Isaías (7, 14) aparece traduzido assim: "Por isso
o Senhor lhes dará ele mesmo um prodígio: uma virgem conceberá,
e dará a luz a um filho que será chamado Emmanuel".
Pois bem, esta é a única versão dos Setenta que utiliza
a palavra grega parthenos (virgem). As outras versões utilizam o
termo neanis, quer dizer, jovem. Quem foram seus autores? Simmaco, Theodotion
e Aquila.
Simmaco era ebionita (aliás nazareno). Tinha legado suas obras a
uma tal Juliana, que as deu diretamente ao Orígenes (cf. Eusebio
da Cesaréia, História eclesiástica, VI, XVII). Portanto
era quase contemporâneo de Orígenes, e vivia, pois, no século
II, tenhamo-lo em conta.
Ao Theodotion de Éfeso não lhe conhecemos apenas, mas devia
ser um personagem importante do cristianismo, já que o grande Orígenes
conserva sua tradução de Isaías.
Este, original de Sinope, a cidade onde nasceu Marción, viveu também
no século II de nossa era. Primeiro foi discípulo de Taciano,
fez-se marcionita e logo ebionita em Éfeso. A Igreja ortodoxa não
rechaçou sua tradução da Bíblia, e sua versão
de Daniel ainda em nossos dias continua utilizada pelas igrejas do Oriente.
Fica Aquila de Ponto. Arquiteto originário também de Sinope,
parente do imperador Adriano, recebeu deste o encargo de reconstruir Jerusalém
por volta dos anos 130-135. Primeiro sentiu-se seduzido pela religião
judia, mas a seguir converteu-se ao cristianismo, cuja comunidade estava
autorizada a residir nessa cidade, proibida aos judeus. Logo voltou para
judaísmo, e por volta do ano 138 de nossa era redigiu uma versão
da Bíblia que leva seu nome e que durante muito tempo preferiu-se
à dos Setenta.
Assim, no século II, notemos bem, estamos em presença de quatro
textos gregos da mesma passagem de Isaías, e os quatro se apoiavam
em um texto hebreu inicial. A lógica nos impõe, portanto,
recorrer simplesmente a este último. Tomemos por conseguinte a Bíblia
do rabinato francês, em Isaías, 7, 14, e vejamos que termo
hebreu utilizou o profeta. O texto francês da versão masorética
está redigido assim: "Ah, certo! O Senhor lhes dá um
sinal de si mesmo. Eis aí que a moça está grávida,
e dará a luz a um filho, ao que chamará Immanuël".
(Isaías, 7, 14).
O hebreu não permite distinguir quem tem razão, dentre a versão
do rabinato francês (moça) ou da de Theodotion de Éfeso,
de Aquila do Ponto, e de Simmaco (jovem). Mas há outros argumentos,
estes irrefutáveis, que não permitem admitir nem por um instante
a tradução dos Setenta: virgem. Porque moça ou jovem,
no espírito do profeta Isaías, é necessário
e indevidamente o mesmo, já que segundo a Lei judia a jovem não
podia conceber fora do matrimônio, sob pena de morte, e portanto converter-se
em moça.
Se se tratava de uma virgem a quem nenhum homem tinha fecundado, é
que foi o Eterno, através de seu ruah elohim (espírito santo),
o progenitor do menino por nascer. Tese dogmaticamente afirmada pela Igreja
católica, as igrejas do Oriente e o protestantismo.
Agora bem, para um profeta do século VIII antes de nossa era (Isaías
viveu sob o reinado de Ezequías), imaginar que Yavé se rebaixasse
e se degradasse, através de seu ruah, violando as leis naturais que
ele estabelecera, e atuasse sobre o sistema reprodutor de uma adamita, contrariamente
a suas prescrições do Sinai, era algo pura e simplesmente
impensável... (104)
Com efeito, no Deuteronômio lemos o seguinte: "Se não
se encontraram os sinais da virgindade da jovem (no matrimônio), levarão
a jovem à porta da casa de seu pai, e as pessoas da cidade a lapidarão
até que mora" (Deuteronômio, 22, 20-21).
Dito de outro modo, Yavé ditou uma lei no Sinai, segundo a qual quão
virgem fora depositária de sua oculta atividade fecundadora deveria
ser lapidada até a morte, assim que se constatasse que levava o futuro
Emmanuel... A isso chama-se tentar ao diabo!
Por outra parte, Yavé administra a si mesmo uma severa sanção,
porque na Gênese se lê isto: "Quando os homens começaram
a multiplicar-se sobre a superfície da terra e nasceram filhas, então
os filhos de Deus (os anjos) viram que as filhas dos homens eram agradáveis
e tomaram por esposas quantas preferiram..." (Gênese, 6,. 1-2).
Desse incubado coletivo, o célebre livro de Enoch nos proporciona
todos os detalhes: esta obra, muito antiga, aparece já citada por
dois fragmentos recolhidos no século I antes de nossa era por Alexandre
Polyhistor, e conservados por Eusebio da Cesaréia (cf. Princípios
evangélicos, IX, XVII, 8). Além disso, o Livro dos jubileus,
composto pouco depois do ano 135 antes de nossa era, cita-o sob o título
de Livro da queda dos anjos.
"E o Senhor disse ao Gabriel: 'Vá a esses bastardos e a esses
réprobos, e aos filhos das cortesãs, e os faz desaparecer,
a esses filhos dos Veladores do Céu'..." (Op. cit., 10, 9).
"E o Senhor disse ao Mikael: 'Vê, encadeia Semyaza e a seus companheiros,
que se uniram às mulheres a fim de manchar-se com elas em toda sua
impureza. E quando todos seus filhos estejam degolados, e quando eles mesmos
virem o fim de seus bem-amados, encadeia-os para setenta gerações
sob as colinas da terra, até o dia que se consome o Julgamento eterno'..."
(Op. cit., 10, II).
"Logo Mikael, Gabriel, Rafael e Phanuel se apoderarão deles
nesse grande dia, e os precipitarão à fogueira ardente, a
fim de que o Senhor de todos os Espíritos os castigue por sua iniqüidade..."
(Op. cit., 54, 6).
Esse texto é, portanto, a condenação formal de toda
fecundação de uma mulher por uma criatura espiritual. Partindo
desse princípio, a Igreja católica afirmou a possibilidade
dos demônios de fecundar a uma mulher (incubat), ou de acoplar-se
de noite com um homem (succubat). (105)
Não inventamos nada. Tomás de Aquino estudou esses fatos com
detalhe em sua Suma teológica, esses princípios são
de fé, porque também aí "Roma falou", mas
como, para um católico de estrita observância, não oferece
discussão possível.
Vejamos o texto oficial de Tomás de Aquino: "Terá que
dizer, com São Agustín, que muitos afirmam saber por sua própria
experiência, ou pelo que contam outros, que os Faunos e os Silvanos,
chamados íncubos pelo vulgo, freqüentemente foram maus para
com as mulheres, e obtiveram delas gozos sexuais; portanto, seria imprudente
negá-lo. Agora bem, se do coito demoníaco houver algum que
nasça, não é pelo esperma dos demônios nem pelo
corpo que estes revestem, mas sim pelo esperma do homem, que serve de súcubo
ao demônio que desempenhou logo o papel de íncubo com uma mulher..."
(106)
Tira-se daqui e fica de lá... O célebre teólogo não
nos deu o motivo dessas copulações diabólicas nem o
interesse que o diabo podia ter nelas. Acrescentemos que todos os Padres
da Igreja, em sua cândida ingenuidade, acreditavam na existência
de glifos, de dragões, etc. São Jerônimo nos afirma
que "Toda Alexandria pôde ver um sátiro vivo...".
O mesmo o contemplou! E uma manada de centauros, ao encontrar Jesus no deserto,
renderam-lhe comemoração (cf. Vieu de Paul l'ermite, VII,
VIII). São Agustín nos diz: "Eu era já bispo de
Hipona, quando fui à Etiópia com alguns servidores de Cristo
para pregar ali o evangelho. Vimos muitos homens e mulheres sem cabeça,
com dois grandes olhos no peito..." (cf. São Agustín,
Sermões, XX-XIII). Não nos burlemos deles; a televisão
francesa, no curso de um debate, apresentou a um catedrático do Instituto
des Hautes Etudes, que afirmou sua crença no valor dos pactos selados
com Satanás, embora estes não apareceram "a não
ser na época em que tinha lugar os contratos em sua boa e devida
forma...". O diabo mantém-se comum na atualidade, ele não
é um espírito retrógrado!
Quão mesmo o Livro de Enoch, o Zohar Hadash (seção
Yitro) precisa-nos que Samael, o anjo tentador, e seu par feminino Lilith,
corromperam o primeiro casal humano, Samael com Eva, e Lilith com Adão.
O Sepher Ammudé-Schiba nos conta a mesma lenda, mas Lilith chama-se
Heva, e Samael converte-se em Leviathan. Outro texto, o Sepehr Emmeck-Ameleh
nos transmite o mesmo tema. Como se vê, a sexualidade "de grupo"
não é nada novo.
Então, tendo em conta essa tradição religiosa que considera
com horror toda copulação psico-pneumática entre uma
criatura humana e uma criatura espiritual, como supor nem por um instante
que o profeta Isaías pudesse imaginar a fecundação
de uma mulher, embora virgem, pelo Eterno, o Deus inacessível de
Israel? E mais quanto que o "Messias" dos cristãos não
se chamou Emmanuel, a não ser só Jesus, e que não viveu
jamais em um tempo em que Israel tivesse que temer uma dupla ocupação,
"procedente do Egito e de Assíria" (op. cit., 7, 18-20),
a não ser uma única ocupação, a de Roma, quer
dizer, do outro lado dos mares. A profecia não coincide com os fatos
históricos e sua época, e o Messias anunciado não se
chama Jesus.
Voltemos para Maria, mãe de Jesus. A primeira esposa do pseudo-José
teria chamado Salomé, teria sido a filha de Aggeo, irmão de
Zacarias, e portanto prima irmã de João, o Batista, conforme
nos diz Nicéforo, citando ao Hipólito de Porto. Ou também
teria chamado Escha, traduzido às vezes por Estha ou por Esther,
segundo outras tradições. Tampouco aqui os fabricantes de
lendas puderam ficar de acordo, tendo em conta as dificuldades da época
em matéria de relações epistolares.
Por outra parte, um certo número de observações complementares
contribuem com provas mais contundentes neste terreno. E é indubitável
que o que nossos teólogos modernos constróem sobre a "divinização"
da mãe de Jesus deixaria absolutamente estupefatos aos discípulos
de seu filho.
Em primeiro lugar, Jesus despreza a sua mãe. Julgue-se:
1. "Mulher, o que há em comum entre eu e você?..."
(João, 2, 4). Observar-se-á que se situa, de forma bastante
descortês, antes dela na frase.
2. "Alguém lhe disse então: 'Sua mãe e seus irmãos
estão fora e desejam te falar'. Ele, respondendo, disse ao que lhe
falava: 'Quem é minha mãe e os quem são meus irmãos?...'
E estendendo sua mão sobre seus discípulos, disse: 'Eis aqui
minha mãe e meus irmãos. Porque quem fez a vontade de meu
Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, e
minha irmã, e minha mãe'..." (Mateus, 12, 47-50).
Essa passagem, muito precisa, demonstra-nos perfeitamente que no caso de
seus irmãos, não se trata de discípulos, porque estes
acreditariam nele. (107)
Agora bem, segundo o dogma clássico, Jesus é uma das três
"pessoas" da Trindade, em qualidade de Filho; portanto, participou
"antes do tempo" (Concílios de Éfeso, da Calcedonia,
de Constantinopla II) na dotação privilegiada que foi próprio
da alma lhe preexistam de Maria, ou seja, sua concepção imaculada,
livre de pecado original. (Cf. Tomás de Aquino, Suma teológica,
XXVII; Pio IX, Definição do dogma da Imaculada Concepção).
E entretanto, de tudo isso, Jesus, deus encarnado, não se lembra.
E daí seu desprezo pelas mulheres em geral, e por sua mãe
em particular: "Simão-Pedro disse: 'Que Maria saia dentre nós,
porque as mulheres não são dignas da vida eterna...'. E Jesus
disse: 'Eu a atrairei a fim de voltá-la varão, para que se
converta em um espírito lhe vivifiquem semelhante a vós, os
varões... Porque toda mulher masculinizada entrará no Reino
dos Céus'..." (Cf. Evangelho conforme Tomás, manuscrito
copto do século IV, P. 118).
"E Tomás perguntou: 'Quando oramos, de que maneira devemos orar?'.
E Jesus respondeu: Orem no lugar onde não haja nenhuma mulher'..."
(Cf. Diálogo do Salvador, manuscrito copto, P. 142).
"A mulher não é digna da vida eterna..." (Cf. Jesus:
Loggion, 101).
Devemos convir que tudo isto contradiz muito nossos dogmas modernos.
E mais quando no instante de sua morte, segundo o novo dogma do Encargo,
promulgado pelo Papa Pio XII, ela entraria "em carne e osso",
a instâncias de seu Filho, no Paraíso, levada por uns anjos
que vieram procurá-la. E tampouco disto se lembra Jesus, o Filho,
quem de acordo com o Pai e com o Espírito Santo lhe concedeu de antemão
esse privilégio inaudito. E entretanto, essa decisão, anterior
ao nascimento de Maria, tomaram em comum as três "pessoas"
da Trindade.
Por último, Maria não concedeu nenhum valor às revelações
do arcanjo Gabriel. Vejamos de novo o que dizem os Evangelhos:
1. "Porque Maria esquecera os mistérios que lhe revelara o arcanjo
Gabriel..." (Cf. Protoevangelio de Santiago, XII, 2).
2. "Porque seus irmãos tampouco acreditavam nele..." (Cf.
João, 7, 5).
Assim, Maria não lhes revelara quem era em realidade seu irmão
maior, e isso porque formulara em alta voz sua aceitação de
ser fecundada pelo Espírito Santo, e seu parto foi tão milagroso
como essa mesma fecundação, porque logo permaneceu igual virgem
como antes. E tudo isso não a surpreendia o mínimo!
Entretanto, se ela não lhes tinha crédulo tudo que de maravilhoso
tinha acompanhado à chegada de seu filho maior, mediante essa revelação
ela lhes evitava duvidar dele, e Judas, seu neto, (108) não poderia
já entregar ao Jesus e prejudicar-se ao fazê-lo, já
que essa traição não era necessária para a Redenção,
dado que a ameaça de crucificação, procedente dos romanos,
pesava sempre sobre a cabeça de Jesus.
Voltando para a mistificação do Encargo, "em carne e
osso", pois o é, e grande, embora se tenha elevado ao nível
dogmático, ante o estupor de todo o mundo protestante, expor agora
aos católicos de estrita observância algumas pergunta embaraçosas:
O que pensar, por exemplo, disto?:
"Mas não se tem nenhuma prova da partida de João; pode
inclusive conjeturar-se que a viagem de João à Éfeso
não foi anterior ao ano 58. Nessa data Paulo se deteve, passou um
tempo ali e evangelizou a Igreja de Éfeso, apesar de que tinha como
regra não compilar no campo de outro, isso significa que, naquela
época, o apóstolo João não tinha adquirido ainda
os direitos sobre a Igreja de Éfeso. Pois bem, no ano 58 Maria estava
com setenta e seis anos, e nessa idade parece bastante inverossímil
uma mudança de residência que conduzisse uma viagem tão
fatigante e tão longa como a de Jerusalém à Éfeso;
portanto, Maria não teria abandonado Jerusalém, e teria morrido
ali". (Cf. Dom H. Leclercq, Dictionnaire d'archéologie chrétienne
et de liturgie, VIII, col. 1.382).
Deixemos a Dom Leclercq com suas ilusões cronológicas e atentemos
só às suas conclusões, lógicas até não
poder mais.
Aqui citaremos Patrice Bousset, conservador da Biblioteca histórica
da Cidade de Paris: "No século IV se ignora tudo referente às
circunstâncias de tal morte, mas no século seguinte há
duas teorias opostas, a da sepultura em Jerusalém e a de sepultura
em Éfeso. E no século VI se afirma a existência de uma
tumba e de uma igreja consagrada à Virgem em Getsemani, tumba que
estaria convocada no mesmo lugar da casa em que viveu e morreu Maria. A
basílica, reconstruída em princípio do século
VII, seria destruída no século XI. Segundo a tese da morte
em Éfeso, Maria passou os últimos anos de sua vida em uma
casa que João construira para ela nos arredores da cidade, teria
morrido em tal casa e enterrada pelos apóstolos. Naturalmente, umas
escavações permitiram encontrar "a casa da Santíssima
Virgem" em Éfeso, do mesmo modo que em Jerusalém se mostrava
aos peregrinos o terreno sobre o qual Maria emitiu seu último suspiro".
(Cf. Patrice Boussel, Des reliques et de leur bon usage, 8.) E por que não?
Terei que atrair aos peregrinos.
O leitor convirá em que essas contradições e esses
testemunhos opostos fazem cair toda a lenda Mariana. Porque ainda no século
VI, Grégoire de Tours assinala a presença de relíquias
do corpo da Virgem em uma igreja de Auvernia, e no século IX se fala
de outras novas em Luçon. Mais adiante, como é evidente, e
à medida que ia perfilando a lenda da ascensão de Maria, mãe
de Jesus, aos céus, levada pelos anjos, fez-se desaparecer essas
comprometedoras relíquias. Mas esqueceram de censurar os numerosos
manuscritos existentes.
E, o que é mais, em 1952 descobriram no monte das Oliveiras, perto
de "Dominus Flevit", convocações de tumbas contemporâneas
à época de Jesus. Nelas se acharam um certo número
de sepulcros pequenos, de redução, nos quais se depositava
os ossos descarnados e secos, depois de uma permanência mais ou menos
longa nas tumbas clássicas de duas câmaras funerárias.
Sobre esses pequenos sepulcros de redução estava inscrito
o nome do defunto, ou em grego, ou em aramaico. Entre eles descobriram,
agrupados, os de Jairo, Marta, Maria, Simão-bar-Jona (aliás
Simão-Pedro), Jesus, Salomé e Filón de Cirene (cf.
R.P. Luc H. Grollengerg, Atlas biblique pour tous, P. 177). É evidente
que são falsos, que foram rubricados em uma época para os
séculos IV-V- no qual do que se tratava era de deslumbrar aos peregrinos.
E isso demonstra que naquela mesma época a lenda cristã não
possuía ainda todo seu caráter maravilhoso. E concretamente
a ascensão de Jesus não tinha sido ainda establecida. (109)
E partindo dessa base, como imaginar a de Maria, sua mãe?... E se
eram autênticos é ainda mais grave, já que nos demonstra
que Jesus foi inumado em carne e que não houve jamais ressurreição
alguma, já que o cadáver se decompôs e logo os ossos
foram juntados em um sarcófago de redução. E então
a mesma conclusão se impõe para o caso de sua mãe,
Maria. Se duvidássemos disso, não teríamos mais que
recordar as questões provocadas pelas três tumbas diferentes
situadas em Jerusalém, Getsemani e Éfeso, e pelas relíquias
corporais conservadas em Auvernia e em Luçon.
Em outro campo, o da arte, temos a mesma constatação.
Nenhuma tradição cristã, nenhum documento canônico
mostra Maria recebendo em seus braços o corpo de Jesus, à
descida da cruz. Nenhum documento deste tipo pinta a Maria banhada em lágrimas
ante seu filho crucificado. E isso é significativo. (110)
Para chorar a seus filhos mortos, as mães antigas tiveram às
vezes acentos de uma trágica beleza. E o primeiro voccero corso,
aquele hino imprecatório com o que se abria toda vingança,
punho em alto, na soleira do famoso "palácio verde", foi
indubitavelmente clamado por uma delas, sob o fúnebre mezzaro negro.
Sempre ignoraremos como se comportaria Maria a noite da morte de Jesus.
Conforme nos conta Flavio Josefo, os zelotes tinham como princípio
não lamentar-se jamais, nem em seu próprio suplício
nem ao contemplar o de outros. E tanto por seu passado familiar, que acabamos
de ver, como pelo exemplo do marido morto em combate, Myrhiam-bath-Ioachim
teria como máxima o verso de seu antepassado o salmista: "Que
o eterno seja sempre a rocha de meu coração..." (Cf.
Salmos, 73, 26). E semelhante atitude engrandece àquela mulher que
foi a muito digna esposa de Judas o Gaulanita, muito mais que as afetações
lacrimosas das pseudo-tradições marianas. Maria, "mãe
dos sete trovões", não podia derramar lágrimas.
NOTAS COMPLEMENTARES
Enquanto corrigíamos as provas da presente obra, nosso amigo Francis
Mazières nos indicou que se acabava de abrir a tumba da Virgem Maria
em Éfeso. Essa tumba resultou estar completamente vazia, o que demonstra
a veracidade do encargo de Maria em carne e osso. Absolutamente luminosa
idéia! Agora não fica já mais que abrir as de Jerusalém,
de Getsemani, recuperar os fragmentos corporais que se disputaram as cidades
da Idade Média, e ninguém poderá negar já o
prodígio. Quão mesmo nós, o leitor se persuadirá
de que a tumba de Éfeso foi já aberta no século IX
pelo imperador Leão VI, e que os restos que esta continha foram transferidos
à Constantinopla. Sob o nome de Maria de Magdala... Inumada já
em Saint-Maximin, perto de Sainte-Baume... Um milagre mais!
20 - As grandes famílias
Aquele que possui mulher e filhos proporcionou reféns à Fortuna,
já que são obstáculos para as grandes empresas, tanto
virtuosas como malignas...
FRANCIS BACON Du mariage au célibat
Em sua primeira obra, L'Enigme de Jésus-Cristo, Daniel Massé,
fazendo-se eco das tese anteriores de Arthur Heulhard (de verdadeiro nome
Arthur Nivernoys), diz-nos que Maria, mãe de Jesus, foi durante um
tempo a filha política de Herodes, o Grande: "sua mãe,
viúva, tornara a casar-se, com Herodes, o Grande", (op. cit.,
P. 98).
Daniel Massé equivoca-se uma vez mais. Mas terá que reconhecer
a este autor que, através de uma massa enorme de afirmações
diversas, às vezes incontroladas ou errôneas, em ocasiões
teve brilhos de uma intuição absolutamente fulgurantes. Como
nas obras que sucederam não nos contribuiu a prova desta aliança
matrimonial, vimo-nos na obrigação de procurá-la. Não
foi uma tarefa nada fácil, já que os monges copistas manipularam
suficientemente o texto inicial de Flavio Josefo para que os manuscritos
medievais que chegaram até nós (os únicos, lástima!)
constituam um labirinto de contradições e de incoerências
totalmente desconcertante. Necessitamos de uma maior paciência, de
inumeráveis horas (a maioria delas noturnas), de reflexão
e de verificações, para chegar a estabelecer essa prova desencorajadora
da aliança matrimonial entre as famílias davídica e
herodiana, que, não obstante, não afeta diretamente Maria,
mãe de Jesus.
Mas a conclusão é realmente gratificante, porque faz que este
último, durante um tempo, fora sobrinho de Herodes, o Grande, primo
por aliança de seu filho e sucessor Herodes Arquelao, de seus outros
filhos Herodes Antipas e Herodes Filipo I, tio por aliança das princesas
Berenice e Drusilla, sem esquecer a seu amável primo Saul-bar-Antipater,
futuro "São Paulo". Quanto a sua mãe Maria, esposa
e viúva de Judas da Gamala, converte-se não na esposa, a não
ser na irmã política do próprio Herodes, o Grande...
(111)
Como bem se vê através desta breve exposição
genealógica, o problema merecia que lhe consagrassem numerosas horas
de investigação. De todo modo, e sem antecipar conclusões,
podemos já assegurar ao leitor que, por parte da família davídica,
não se tratava de outra coisa que de um plano bem maturado e preconcebido,
que tinha como objetivo a retomada do trono de Israel, então composto
pelos reino da Judéia e da Samaria. E disso permanece uma confissão
de Jesus, confissão que demonstra que jamais pensou em outra coisa:
"Jerusalém, Jerusalém, que matas aos profetas e apedreja
aos que lhe são enviados! Quantas vezes quis reunir a seus filhos
à maneira que a galinha reúne a seus frangos sob as asas,
e não quis!..." (Cf. Mateus, 23, 47).
E daí as relações com o território impuro de
Samaria, apesar das proibições judias. Porque se, frente ao
poderio romano, conseguia reunificar a Judéia e a Samaria, Israel
podia esperar sua liberação, enquanto que se um filho de Herodes
continuava ocupando o trono e reinando sobre esse conjunto, Roma continuava
sendo a potência ocupante.
E agora passemos à demonstração histórica desta
assombrosa aliança.
O abade Migne, em seu Dictionnaire des apocryphes (tomo II, Paris, 1858),
diz-nos que a Igreja do Oriente tomou como válido um texto intitulado
Do nascimento da Virgem e atribuído a São Cirilo da Alexandria.
Segundo essa tradição manuscrita, Ana (em hebreu Hannah),
a mãe de Maria, era por sua vez filha de um tal Stolano e de sua
esposa Emerantia, nomes gregos que, segundo costume da época, acompanhavam
aos sobrenomes hebreus, já que o nome de circuncisão desse
Stolano seria Mathan, como veremos seguidamente.
Segundo esse manuscrito, Ana casou-se com dezoito anos com Joaquim, que
tinha vinte, e de quem o Protoevangelio de Santiago diz que pertencia à
estirpe de David como Ana, que era um homem muito rico e que pertencia à
estirpe sacerdotal, já que em certas épocas foi pontífice
no Templo (cf. abade Emile Amann, O Protévangile de Jacques, Paris,
1910, Letouzey & Ané, Imprimatur do 1-2-1910).
Observemos que Eli, sua forma completa de Eliakim, e também Iehojakim
são um mesmo nome. (Cf. Talmud de Babilônia; Sanedrín,
fº 67, e Talmud de Jerusalém, fº 77).
Recordemos tudo isto: filiação davídica, sacerdotal,
e uma grande riqueza familiar. Essas três qualidades são muito
importantes, já que permitem situar à família de Maria
e de Jesus em um nível social bastante elevado.
Em primeiro lugar, e durante vinte anos, Ana não pôde conceber
nenhum filho. E só aos trinta e oito anos pôde dar a luz por
fim a uma filha, que recebeu o nome de Maria (em hebreu Miryâm), filha
que mais adiante se converteria em esposa de Judas da Gamala e mãe
de Jesus. Esse mesmo ano Ana enviuvou, e então se casou em segundas
núpcias, "conforme mandava o Senhor" (op. cit.), com seu
cunhado, um tal Clopas, porque não tinha podido dar um filho ao Joaquim,
seu primeiro marido. E este era, efetivamente, o costume que se impunha
imprescritivelmente em Israel. (Deuteronômio, 25, 5).
O mesmo ano desse novo matrimônio legal, Ana deu a luz uma segunda
filha, a que se deu deste modo o nome de Maria (II) em lembrança
de quão prodígios tinham precedido (segundo a lenda) ao nascimento
da primeira, e que nos relata o Protoevangelio do Santiago.
Esse segundo marido, necessariamente irmão do primeiro, morreu antes
do nascimento da Maria II, e Ana o chorava ainda quando um anjo lhe apareceu
e a ameaçou a que se preparasse a contrair novas núpcias.
De fato, ela seguia na obrigação legal de casar-se com o terceiro
irmão, ao não ter podido dar a luz a nenhum varão que
pudesse perpetuar o nome do pai defunto, e não é absolutamente
necessário imaginar uma aparição angélica para
obter a aplicação da lei judia, coisa comum naquela época.
E temos, pois, Ana casada com seu segundo cunhado, que se chamava Salomão
(e não Salomé, como põe por engano o texto grego).
Um ano mais tarde nascia uma terceira filha, a que se voltou a pôr
o nome de Maria (III). E pouco depois, conforme nos diz o Livro do nascimento
da Virgem, Ana era viúva pela terceira vez.
Isto é muito menos seguro, e o constataremos em seguida, no exame
de outros documentos que nos contribuirão o por que das mortes dos
dois primeiros maridos, tão próximas que não podiam
a não ser estar integradas em uma catástrofe geral.
Completando a tradição desse texto do Nascimento da Virgem,
o Dictionnaire de Bible do abade Vigouroux (tomo I, Paris, 1925, Letouzey
& Ané, Imprimatur do 28-10-1891, 1ª edição),
diz-nos que Ana era filha de Mathan, cohen, quer dizer, sacerdote pontífice,
nascido em Belém da Judéia, e que ela era a última
das três filhas do chamado Mathan, chamadas Maria, Sovei e Ana. Como
se vê, a árvore genealógica começa a perfilar-se.
Provavelmente para mascarar este caminho, que resultará ser do mais
revelador, a Igreja católica declararia de uma vez por todas "fazer
profissão de fé de não saber nenhuma das circunstâncias
que acompanharam o natal de Maria, e não nos dizer nada dela já
que a Escritura e a tradição apostólica não
lhe tinham contribuído nada..." (cf. O Protévangile de
Jacques, op. Cit., P. 49, citando ao célebre hagiógrafo Adrien
Baillet). Entretanto: "Não vacilo em considerar esses nomes
(os dos familiares de Maria) como autênticos -diz-nos o não
menos célebre exegeta Tischendorf. Com efeito, em meados do século
II (por volta de 150) lhes podia conhecer melhor. Que necessidade havia,
pois, de forjar outros novos?..." (Cf. Tischendorf, De evangeliorum
apocryphorum origine et usu, 1851).
O historiador independente tem interesse em ser mais curioso.
Para isso é necessário estudar um pouco esse nome de Maria,
sobretudo do ponto de vista onomástico, já que se converterá
em uma das chaves do enigma por resolver. Maria não é nome
hebreu comum. Não se encontra citado mais que uma só vez no
Antigo Testamento, no caso da irmã de Moisés (cf. Êxodo,
15, 20; Números, 12, 1; 20, 1; 26, 59; Deuteronômio, 24, 9;
Miquéias, 6, 4). E isso é bastante estranho: uma só
mulher se chamou assim em toda a história de Israel, ao menos dentre
os personagens históricos conhecidos.
Hiller, em seu Onomasticum sacrum (Tubinga, 1706, P. 173), demonstrou que
na forma hebréia Miryâm, a terminação am não
tem nenhum significado preciso, que é uma simples forma final. Esse
nome derivaria simplesmente do árabe marja (o j tomado aqui por um
i, quer dizer, acentuando o caráter gutural de r). Teria o significado
de "grossa, forte", termos sinônimos de beleza feminina
nessas regiões do Oriente Médio. A forma assíria é
marû. Hiller nos precisa além que a pontuação
masorética -os pontos vocais em hebreu- dá miryâm, mas
versões diversas fazem supor que dá maryâm. Já
o temos! Quando mais adiante nos encontrarmos em presença de um nome
de origem hebraica que se pronuncie Mariamna, recordaremos que Flavio Josefo
simplesmente compilou aos historiadores e panegiristas de Herodes, o Grande,
Nicolás de Damasco e seu irmão Ptolomeo de Ascalon, e que
estes eram sírios, quer dizer, árabes. Eles utilizaram a forma
árabe de marja (Maria em grego), acrescentando a desinência
helênica am, já que redigiam suas Histórias em língua
antiga.
Voltemos agora para segundo marido de Ana chamado Clopas, aliás Cleophas
(cf. João, 19, 25, e Lucas, 24, 18). Nos manuscritos iniciais dos
evangelhos canônicos, redigidos como se sabe em grego, esse nome aparece
transcrito como Klopa, contração do grego Kleopatros, que
significa "(nascido) de um pai ilustre"; portanto, tem o mesmo
significado que Antipas ou Antipater, em grego Antipâtros: "(nascido)
de um pai ilustre".
O nome hebreu Abraham, que significa "pai elevado de uma multidão",
e que procede de Abram, que significa "pai elevado", é
o que melhor lhe corresponde. Em língua árabe dá Ibrahim.
Pelo contrário, a forma ortográfica da Klopa mostra uma derivação
de uma raiz aramaica.
Passemos agora a seu feminino Cleópatra (em grego Kleopâtra),
que logo encontraremos como duplo helênico de Mariamna em hebreu.
Numerosas princesas egípcias levaram esse nome entre as procedentes
das dinastias selêucida e ptolemaica. A mais célebre foi, indubitavelmente,
Cleópatra VII, nascida em Alexandria no ano 66 antes de nossa era,
e morta na mesma cidade no ano 30 antes da mesma, aos trinta e seis anos
de idade. Foi filha de Ptolomeo XI o Auletes, e se casou, segundo o costume
do Egito, com seu próprio irmão Ptolomeo XII. Foi amante sucessivamente
de Julio César e de Antonio, corrompeu literalmente a este último
e fez com ele iniciando-o nas orgias, clássicas e homossexuais, comuns
e compartilhadas, nas quais ela era perita. Uma rainha de Síria levou
também esse nome. Significava, quão mesmo Klopa, "(nascida)
de um pai ilustre".
Concluamos já que, quando vemos aparecer esse nome aplicado a uma
princesa judia, esposa de Herodes, o Grande, é que haverá
uma possível associação de idéias com a do Egito,
e provavelmente pelas mesmas razões. (112)
E agora voltemos para a história.
No evangelho de João se diz que Clopas tinha uma esposa chamada Maria:
"Estavam, junto à cruz de Jesus sua mãe e a irmã
de sua mãe, Maria a de Cleofás..." (Cf. João,
19, 25). Pois bem, os manuscritos gregos dos evangelhos canônicos
jamais apresentam uma construção gramatical deste tipo para
explicar semelhantes relações conjugais.
Assim, por exemplo, em Mateus (27, 19), à esposa de Pilatos a chama
em grego guné (mulher, esposa); em Lucas (17, 32), à esposa
de Lot a chama igual; e em João (4, 7), a mulher de Samaria recebe
o mesmo qualificativo. Assim: "...Juana, mulher de Chuza, intendente
de Herodes...", traduz-se: "... Iokana, guné Kouza ..."
(op. Cit.) Pelo contrário, a frase de João (19, 25): "...
Maria, mulher de Cleofás...", está composta de modo totalmente
distinto: "... Maria é tou Klopâ...", quer dizer:
"... Maria (filha) de Klopa ...", e não "mulher de".
Essa é a antiga tradução da citada passagem do evangelho
de João. A nova versão não é mais que uma modificação
mais, destinada a nos fazer perder o fio do enigma. Vejamos a prova: Existem
uns Atos apostólicos (Actus apostolorum) atribuídos a um tal
Abdías, que seria bispo de Babilônia, quer dizer, em realidade
de Roma, segundo o vocabulário petrino convencional. Esses Atos,
redigidos primeiro em hebreu, logo traduzidos por seu discípulo Eutropio
ao grego, e logo do grego ao latim por Julio, o Africano, a Igreja católica
os considera apesar de tudo como uma obra redigida inicialmente em latim,
e datada do século VI (cf. J.A. Fabricius: Codex Apocryphum, Novum
Testamentum, Hamburgo, 1703). E nesses Atos apostólicos de Abdías,
Maria II aparece não como a mulher, mas sim como a filha de Clopas,
como afirmávamos antes. E há ainda outro testemunho disso:
"Clopas era irmão de José, e ao morrer Clopas sem filhos,
José, segundo alguns, casou-se com sua mulher e procurou filhos a
seu irmão. Maria (Maria de Clopas), aqui mencionada, seria um de
seus filhos". (Cf. Teofilacto, bispo de Acrida na Bulgaria, por volta
do ano 1078, na Patrología grega, tomo CXXIII, col. 293).
Este autor confunde, portanto, ao José e àquele Salomão
com o que Ana, mãe da Maria I, teria se casado em terceiras núpcias.
Como já demonstramos a inexistência de tal José, (113)
imaginado para fazer desaparecer ao Judas da Gamala, temos que voltar para
o Salomão citado pelo documento atribuído ao Cirilo de Alexandria
e intitulado O Nascimento da Virgem. Mas segue em pé o segundo testemunho:
Maria II era a filha de Clopas, e não sua esposa.
Voltamos, portanto, a estar em posse das ferramentas e as chaves necessárias
para forçar a porta do tenebroso calabouço aonde a Igreja
dos primeiros séculos encerrou a verdade histórica. Retornemos,
pois, à dinastia herodiana, e, para começar, façamos
o inventário do verdadeiro harém que possuiu Herodes, o Grande,
conforme os costumes de sua época, já que Flavio Josefo nos
diz a respeito que "esse príncipe gozava com o abuso da liberdade
que nos dá a Lei de possuir várias esposas..." (Cf. Flavio
Josefo, A guerra dos judeus, I, XVII).
Terá que acrescentar, em favor dele, que foi durante toda sua vida
um grande amante da beleza feminina, e que jamais escolheu a suas esposas
por suas riquezas familiares, a não ser acima de tudo por sua beleza,
e já só por isso lhe será perdoado muito! Não
obstante, tampouco esqueceu associar a isso nobres origens, já que
Flavio Josefo nos diz que mandou queimar as genealogias dos hebreus, depositada
no Templo, a fim de não permitir que nenhuma delas pudesse, como
no caso da primeira Mariamna, humilhá-lo incessantemente, tendo em
conta suas próprias origens não reais.
A lista de suas esposas e dos filhos que estas lhe deram nos proporciona
o texto das Antigüidades judaicas (XVIII, I) e o Da guerra dos judeus
(I, XVII), em sua versão grega. O mesmo pode dizer-se da versão
eslava: Herodes, o Grande se casou, pois, sucessivamente, com:
1º: Doris, que foi mãe de Antipater. Foi repudiada pela primeira
vez quando o rei decidiu casar-se com Mariamna I, que lhe segue. À
morte desta, Doris foi reintegrada a pedido de seu filho no favor e o leito
de Herodes, e logo repudiada pela segunda vez quando teve lugar o complô
de Antipater, e então foi despojada de todos seus bens e jóias.
Era provavelmente uma grega de Decápolis, federação
helenística de dez cidades, situadas ao leste do lago de Tiberíades,
e que Pompeyo tinha liberado da dominação judia no ano 62
antes de nossa era. Com efeito, este nome se encontra, em sua forma balcânica
de Dorisca, na Hungria, Yugoslavia e Transilvania, onde visivelmente é
de origem grega.
2º: Mariamna I, filha do rei Alexandre e da rainha Alexandra. Era,
pois, a neta de Hircano II, rei e supremo sacerdote, e de Aristóbulo
II, rei e supremo sacerdote. Pertencia, portanto, à dinastia asmonea,
chamada dos macabeus. Foi executada por uma falsa acusação
de adultério, por ordem de Herodes, o Grande, quem, quando teve reconhecido
seu engano, esteve a ponto de perder a razão. O rei teve dela cinco
filhos: duas filhas e três filhos. O maior, Alexandre, casou-se com
Glapyra, filha de Arquelao, rei da Capadocia, e o menor, Antígono,
casou-se com a filha de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande,
quão mesma tinha acusado de adultério a Mariamna I.
3º: Mariamna II, filha de Simão, cohen e pontífice, e
que foi elevado ao pontificado pelo Herodes com ocasião de tal matrimônio.
Teve um filho chamado Herodes Filipo I (que se casaria com Herodias, neta
por sua vez de Mariamna I e de Herodes), e que morreu no ano 34 de nossa
era. Primeiro foi criado em Roma, e designado mais tarde como sucessor de
Herodes, o Grande, em segunda posição, depois de seu meio-irmão
Arquelao. Entretanto, foi apagado desta sucessão quando descobriu
o complô no qual participou sua mãe Mariamna II, e sobre o
que teremos que voltar.
4º: Malthaké, a Samaritana, possivelmente, apesar de tudo, de
origem grega também (Decápolis), já que seu nome, Maltakia
em grego, significa "doçura, brandura". Deu ao rei dois
filhos: Arquelao e Antipas, e uma filha, Olympia. Morreu durante os enfrentamentos
contra Roma, frente a César Augusto, dos membros da dinastia herodiana
e seu filho Arquelao. Possivelmente aproveitaram a ausência destes
para suprimi-la. Também pôde perecer durante a guerra civil
que enfrentou aos partidários de Achiab, tio avô de Salomé
II, aos de Arquelao. Já analisamos este episódio das lutas
dinásticas em nossa primeira obra. (114)
5º: Cleópatra de Jerusalém. Esta indicação
de origem e de residência precisam que foi judia. Teria um filho,
segundo os historiadores modernos (em seguida teremos a prova), e dois segundo
seus predecessores, chamar-se-iam Herodes e Filipo. Este último teria
sido educado em Roma também, quão mesmo seu meio-irmão
Herodes Filipo I, filho de Mariamna II. E então se expõe a
pergunta: por que ele, e não seu irmão maior? Como não
se encontra nenhum rastro válido desses dois personagens, geralmente
se considera que se trata simplesmente de um texto corrompido nos manuscritos
gregos, ao ter dado lugar um mau declínio à introdução
da "e" entre o Herodes e Filipo, quando terei que ler simplesmente
Herodes Filipo. Mais adiante veremos que, com efeito, não é
mais que o mesmo personagem que Herodes Filipo I, filho de Mariamna II,
o que implica que esta última não seja outra que a citada
Cleópatra de Jerusalém.
6º: Pallas, de quem Herodes teve um filho chamado Fazael.
7º: Fedra, que foi mãe de uma filha chamada Roxana.
8º: Elpide, que lhe deu uma filha chamada Salomé (Salomé
III).
9º: X ..., filha de um de seus irmãos, e portanto sua própria
sobrinha. O costume do Oriente Médio permitia a um tio casar-se com
a filha de seu irmão ou de sua irmã. Sob o Claudio César
e a proposição de Vitelio, o Senado romano confirmou por unanimidade
este costume e a legalizou (cf. Tácito, Annales, XII, VI-VII). Desta
união Herodes não teve filhos.
10º: X' ..., sua prima irmã, provavelmente nabatea e filha de
um irmão ou de uma irmã de sua mãe Cypros I, tampouco
desta união teve Herodes descendência.
Pois bem, primeira observação: Flavio Josefo enumera com toda
precisão a dez esposas, e antes tinha declarado que Herodes, o Grande,
tinha tido nove (cf. Antigüidades judaicas, XVII, I), portanto há
uma repetida. E isso é assim nas diversas versões de Flavio
Josefo, tanto na grega como na eslava, tanto nas Antigüidades judaicas
como na guerra dos judeus. Este engano terá que imputá-lo
aos copistas medievais, quem em sua paixão por fazer desaparecer
de tal autor tudo que pudesse revelar a verdade histórica, jamais
tiveram a suficiente inteligência e fria razão para controlar
suas censuras, interpolações, etcétera.
Sabendo que procuramos uma esposa da dinastia davídica, vejamos quais
das esposas de Herodes, o Grande, respondem a dita exigência. Observar-se-á
que a versão eslava da guerra dos judeus fala apenas de uma Mariamna,
filha de um supremo sacerdote. Por instinto, o copista retificou o número
das esposas, mas fazendo-o cometeu outro engano!
Vejamos agora em que condições se casou Herodes, o Grande,
com a segunda Mariamna, depois de mandar executar à primeira, fundando-se
em uma denúncia caluniosa de sua irmã Salomé I, quem
queria desembaraçar-se dessa cunhada a que odiava e de seu marido,
de quem fez o amante daquela. Flavio Josefo nos diz o seguinte: "Ele
(Herodes) pensou em voltar a casar-se, e como não procurava seu prazer
na mudança, quis escolher a uma pessoa em quem pudesse depositar
todo seu afeto. E assim tomou uma puramente por amor, à maneira que
vou contar. Simão, filho de Boeto Alexandre (115) que era pontífice
e de uma raça muito nobre, tinha uma filha de uma beleza tão
extraordinária que não se falava de outra coisa em Jerusalém.
O rumor chegou até Herodes. Quis vê-la, e jamais amor algum
a primeira vista foi maior que o que este sentiu por ela. Julgou que não
devia abusar de seu poder raptando-a, como poderia fazê-lo, por medo
de passar por um tirano, e acreditou que melhor seria casar-se com ela.
Mas como Simão não era de uma tão grande qualidade
como para tão alta aliança, nem tampouco de uma condição
nada desprezível, quis elevá-lo a uma grande honra a fim de
fazê-lo mais considerável. assim, privou do supremo sacerdócio
ao Jesus, filho de Phabet, a deu, e se casou com sua filha". (Cf. Flavio
Josefo, Antigüidades judaicas, XV, XII).
Israel jamais teve a não ser duas dinastias reinantes em toda sua
história. A dinastia asmonea, chamada dos macabeus, que precedeu
a não judia dos Herodes, não reinou mais de um século,
do ano 135 aos 37 antes de nossa era. Não se beneficiava de nenhuma
profecia ilustrativa. Em troca era muito distinta no caso da dinastia dos
filhos de David, que governou Israel desde ano 1015 até o 107 antes
de nossa era, bem de fato, bem legitimamente. Em seu caso possuía
a promessa de Yavé, expressa ao rei David pelo profeta Natán:
"Ocorrerá que quando seus dias tenham chegado ao cúmulo
e tenha repousado com seus pais, eu farei subsistir a semente que sairá
de suas vísceras e farei estável seu reino (...) E eu farei
estável o trono de seu reino para sempre (...) Por isso serão
estáveis sua casa e seu reino para sempre ante mim. Seu trono permanecerá
firme para sempre!" (Cf. Samuel, 7, 12 a 16).
Esta promessa se realizou durante mais de um milênio, às boas
ou às más. Tudo isso está, pois, muito claro. A "raça
muito nobre" a que faz alusão Flavio Josefo para referir-se
a Mariamna II e a seu pai Simão é, indubitavelmente, a de
David, tanto mais que, por outro lado, é de filiação
sacerdotal, e por conseguinte descendente deste modo de Aarão. E
daí que fora elevado ao supremo sacerdócio. A nova esposa
de Herodes, o Grande, era assim de sangue real e filha do pontífice
de Israel.
Temos, pois, por conseguinte a prova absoluta de que o rei contou efetivamente,
entre suas esposas, com uma "filha de David". Mas quais podiam
ser os laços familiares diretos desta Mariamna II com a Maria, mãe
de Jesus? Essa é a segunda parte do enigma que temos que resolver.
Antes que nada convém precisar quem essa era "Cleópatra
de Jerusalém" com a que se casou depois de Malthaké a
Samaritana, com quem o tinha feito por volta do ano 21 antes de nossa era.
Necessariamente, e apesar de seu nome, Cleópatra era judia, já
que nos precisa que era "de Jerusalém". Sabemos que naquela
época era já antigo o costume de levar um nome grego acrescentado
no nome hebreu. Sabemos deste modo que Cleópatra significa "(nascida)
de um pai ilustre" (em grego Kleopâtra). Quão mesmo Clopas
(em grego Klopâ). Quem podia ser, pois, essa judia "nascida de
um pai ilustre", de suficiente "nobre raça" para ser
tomada por esposa pelo rei Herodes, o Grande? Conhecendo as deformações
fáceis utilizadas pelos monges copistas quando desejavam obscurecer
um ponto da história, podemos imaginar que seu nome era, em hebreu,
Bath-Clopas ("filha de Clopas"), quão mesmo essa Maria
de Clopas, em grego "Maria é tou Klopâ", que os Atos
apostólicos de Abdías, bispo de Babilônia, afirmam que
foi a filha de Clopas, e não sua esposa, como diz João (19,
25). Dado que este evangelho apareceu por volta do ano 190 de nossa era,
que ignoramos de que João se trata (em todo caso não do apóstolo),
concederemos nosso voto ao Abdías. Possivelmente houve além
outro motivo para o apelido helênico dado a essa filha de Clopas,
uma alusão à Cleópatra rainha do Egito, e em seguida
o analisaremos.
Por outra parte, Mariamna não é outra coisa, como vimos anteriormente,
que uma desinência grega do hebreu Miryâm, aliás Maria.
Se podemos estabelecer que Mariamna II e Cleópatra foram uma mesma
e única mulher, teremos desatado completamente o nó do enigma.
De sua união com Herodes, o Grande, Mariamna II tivera um filho chamado
Herodes Filipo I, que se casou com Herodias, sua prima, neta de Mariamna
I e de Herodes, o Grande. Cleópatra de Jerusalém, por sua
parte, tivera um filho chamado Herodes Filipo II, quem se casaria com Salomé
II, filha de Herodes Filipo I e de Herodias. Daniel-Rops, em Jesus em seu
tempo, adere-se, evidentemente, a esta cômoda solução
para afogar a verdade histórica (op. cit.; III, Um canton dans l'Empire).
"Dos quatro filhos de Herodes, todos estavam vivos quanto Jesus, mas
nenhum tinha seus poderes. O maior, Herodes Filipo I, neto por parte de
mãe do supremo sacerdote Simão, tinha sido explicitamente
deserdado; a falta de território, esperava obter o soberano pontificado,
mas a mitra branca e o peitoral sagrado, em lugar de recompensar sua espera,
recaíram sobre seus tios avós, um após o outro...,
deixando a ele, simples sacerdote, como presa dos sarcasmos de sua ambiciosa
esposa Herodias". (Op. cit.)
E, em outro capítulo, Daniel-Rops não vacila em dar a Salomé
II como esposa ao fantasma Herodes Filipo II: "E Filipo-Herodes Filipo
II-, irmão do tetrarca, e tetrarca a sua vez de Gaulanítide
e a Traconítide, que pouco depois se casaria com Salomé..."
(Op. cit.: V, A sémence d l'Eglise).
Todas estas afirmações de Daniel-Rops constituem uma série
de enganos interessados, e tudo isto é falso, contrário aos
textos antigos, já que Flavio Josefo jamais deu o nome da esposa
do pseudo-Herodes Filipo II. E, em primeiro lugar, Daniel-Rops reconhece
que Herodes não teve mais que quatro filhos.
Nomeemo-los:
1º: Antipater, filho de Doris,
2º: Herodes Filipo I, filho de Mariamna II,
3º: Herodes Antipas, filho de Malthaké a Samaritana,
4º: Herodes Arquelao, filho da mesma.
Tendo em conta que os dois filhos de Mariamna I, Alexandre e Aristóbulo,
estão já mortos, isso não dá a não ser
quatro filhos, e aí estamos de acordo com Daniel-Rops. Mas como pode
falar então desse Herodes Filipo II, filho de Cleópatra de
Jerusalém, o que elevaria a cinco o número dos filhos de Herodes,
o Grande, vivos naquele tempo? Quão mesmo os monges copistas da Idade
Média, Daniel-Rops se embrulhou em seu esforço por dissimular
a verdade...
E vejamos outras provas de que este Herodes Filipo II jamais existiu.
Na versão eslava da guerra dos judeus de Flavio Josefo, é
Herodes Filipo I, filho de Mariamna II, o marido de Herodias, quem é
o tetrarca, e isto o confirma o relato, no mesmo Flavio Josefo, da partilha
do reino de Herodes, o Grande, por César Augusto, assim como um velho
evangelho apócrifo copto, mais antigo que o segundo Lucas, se dermos
crédito ao Orígenes, e que nós denominamos O evangelho
dos Doze Apóstolos.
Aqui estão esses textos definitivos que varrem ao mesmo tempo por
todas as interpretações "arrumadas" de Daniel-Rops:
"Você confiscará ao Filipo, tirará sua casa, dará
procuração de seus bens, de seus servidores, de seu gado,
de todas suas riquezas, de tudo o que é dele; e você me enviará
essas coisas à sede de meu império. Todos seus bens, você
os contará para mim, e não lhe deixará nada, exceto
sua vida, a de sua mulher e de sua filha. Isto é o que diz Tibério
ao ímpio Herodes Antipas". (Cf. Evangelho dos Doze Apóstolos,
2º fragmento).
Trata-se, pois, sem lugar a dúvida, de Herodes Filipo I, o tetrarca,
marido de Herodias e pai de Salomé II, aquele ao que Daniel-Rops
converte em um pobre cohen, sem nenhuma tetrarquia. Continuemos: "Filipo,
achando-se em sua província, teve um sonho: uma águia lhe
tinha arrancado os dois olhos. Reuniu a seus sabios. (116) Como todos explicavam
o sonho de forma diferente, esse homem que representamos antes, que ia vestido
com peles de animais e que desencardia ao povo nas águas do Jordão,
acudiu subitamente a seu encontro sem ser chamado, e disse: 'Escuta a palavra
do Senhor. Nesse sonho que viu, a águia é seu amor ao lucro,
porque esse pássaro é violento e rapace, e esse pecado te
arrancará seus olhos, que são sua província e sua mulher'."
(Cf. Flavio Josefo, A guerra dos judeus, II, 4, manuscrito eslavo).
Também aqui, como se vê, trata-se de Herodes Filipo I, marido
de Herodias e pai de Salomé II, e que é tetrarca, como sublinha
Flavio Josefo. A águia designa Roma, e neste caso concreto ao Tibério.
Continuemos. À morte de Herodes, o Grande, e ao ser protestado seu
testamento, a família herodiana acudiu à Roma para levar o
litígio ante o imperador Augusto. Depois de ter ouvido as partes,
o imperador resolveu assim o problema: "Não proclamou rei ao
Arquelao, mas sim da metade do reino que antes estava submetido ao Herodes
(o Grande) fez uma etnarquia que lhe concedeu, prometendo honrá-lo
mais tarde com o título de rei se por sua virtude se mostrava digno
disso. Depois de dividir a outra metade em duas partes, as deu aos outros
dois filhos de Herodes, ao Filipo e ao Antipas... Antipas teve por sua parte
a Perea e a Galiléia, que anualmente lhe rendiam duzentos talentos.
A Batanea, com a Traconítide e a Auranítide, e uma parte do
que se chamou o domínio de Zenodoro reportaram ao Filipo cem talentos".
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, XI, manuscrito grego).
O quarto filho de Herodes, o Grande, tinha morrido, efetivamente, pouco
antes do desaparecimento de seu pai, executado por ordem dele e com o consentimento
do imperador, por complô criminal contra o rei. Era Antipater, filho
de Doris. Não ficavam, pois, mais que três: Arquelao, Herodes
Filipo I e Herodes Antipas.
Como se vê, este Herodes Filipo I, filho de Mariamna II, que fora
deserdado pelo Herodes, o Grande, em ocasião do complô de sua
mãe, foi restabelecido em seus direitos de herdeiro parcial por César
Augusto, porque não participara da conjuração materna.
E foi efetivamente ele o primeiro marido de Herodias, o pai de Salomé
II, que mais tarde foi despojado por Tibério César de sua
tetrarquia, por causa da acusação caluniosa de seu meio-irmão
Herodes Antipas.
Mas, perguntará o leitor, e Herodes Filipo II, do que Daniel-Rops
fazia um tetrarca e o marido de Salomé II? É, simplesmente,
o mesmo personagem que Herodes Filipo I, que foi desdobrado pelos monges
copistas e Daniel-Rops, para fundamentar a existência dessa Cleópatra
de Jerusalém, personagem tão imaginário como ele, e
duplo engano de Mariamna II, como acabamos de demonstrar. Para isso inventou
um filho. Quanto ao verdadeiro personagem de tal nome, encontraremo-lo em
outro lugar, no próximo capítulo.
E uma nova pergunta aflora nos lábios, ou seja, o por que dessa nova
falsificação de Flavio Josefo por parte dos copistas medievais.
A armadilha é muito hábil. Naquela época as fortalezas
possuíam sempre vários recintos murados, ou ao menos seu torreão.
O mesmo aconteceu aqui. Porque vamos descobrir a uma "filha de David",
parente próxima de Maria, mãe de Jesus, e cujo comportamento,
inclusive justificado por uma conjuração política,
é simplesmente escandaloso. Ao criar a um dupla de tal personagem,
sempre lhe poderá dissociar de Jesus e de sua mãe, e a honra
davídica ficará a salvo... Se um historiador curioso consegue
estabelecer que uma meio-irmã de Maria se casou com Herodes, o Grande,
argumentar-se-á amplamente sobre o rigor moral de seu comportamento,
muito diferente ao da outra, escandaloso, e a base estará jogada.
Em montaria a isto lhe chama por parte da caça, "dar o cambalacho",
e as trombas de caça o assinalam mediante uma formosa e forte fanfarra...
Recapitulemos, pois, sobre o resultado de nossas investigações:
1) Mariamna II não é outra que uma Miryâm, filha de
David, esposa indiscutível de Herodes, o Grande, mãe de Herodes
Filipo I, e portanto sogra de Herodias e avó de Salomé II.
2) Cleópatra de Jerusalém não tem existência
histórica, quão mesmo seu pseudo-filho Herodes Filipo II,
quem jamais foi, e com razão, nem tetrarca nem marido de Salomé
II. O nome desta esposa imaginária deriva do apelido helênico
de seu pai Clopas (em grego Klopâ) e, como ele (Kleopatrâ),
ela é "de pai ilustre". Trata-se, portanto, de Mariamna
II.
3) Mariamna II, aliás Miryâm, filha de David, chamar-se-á
Maria em nosso idioma, e Maria em grego. Como é o mesmo personagem
que a Cleópatra de Jerusalém, é efetivamente a "Maria
de Cleofás" do evangelho de João (19, 25), no texto grego
deste: "Marie é tou Klopâ".
4) Como Maria de Cleofás era a segunda filha de Ana, mãe de
Maria, mãe de Jesus, embora de pai diferente (seu tio, segundo a
lei judia), era, pois, meio-irmã de Maria I, mãe de Jesus,
e tia deste último.
5) Por seu matrimônio com Herodes, o Grande, Mariamna II, aliás
Maria de Cleofás, meio-irmã de Maria mãe de Jesus,
fez deste último o sobrinho por aliança do rei Herodes, o
Grande, e primo por aliança de seus filhos, os tetrarcas Herodes
Antipas e Herodes Filipo I.
Agora, e segundo a técnica habitual de l'Ecole des chartes, método
comprovadamente válido, convém controlar e delimitar cronologicamente
todas essas assombrosas conclusões:
- Maria I, mãe de Jesus, teria nascido por volta do ano 30 ou 32
antes de Cristo. Sua mãe, Ana, contaria então 38 anos, segundo
os textos já citados.
- Jesus nasce por volta dos anos 15 ou 17 antes de nossa era (segundo São
Irineu), e morre aproximadamente aos cinqüenta anos de idade, no ano
35 de nossa era.
- Se Joaquim morreu no ano 30 ou 32 a.C., Clopas (Cleofás) teria
morrido no -28.
- Ana, mãe de Maria I, nascera por volta dos anos - 68 ou -70. Herodes,
o Grande, viera ao mundo no ano -73; portanto, contava mais ou menos a mesma
idade que Ana, pois só era três ou quatro anos maior que ela.
- Ana teve uma segunda filha com Cleofás, aproximadamente no ano
-28. Esta (aliás Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém)
teria nascido, por conseguinte, por volta do ano -28.
- Em -28 Herodes, o Grande, contava com 45 anos. Casou-se com Mariamna I
(filha de Hircano) no ano -37, e a mandou executar no ano -29, oito anos
mais tarde. Casaria com Mariamna II no ano -13 ou -11, portanto ela contava
então quinze anos de idade, conforme era costume naquelas regiões,
e teria nascido nos anos -28 ou -26. Como Maria I, mãe de Jesus,
tinha nascido por volta do ano -30, os dados coincidem.
- Herodes, o Grande, morre no ano -4, aos sessenta e nove anos de idade.
Mariamna conta então uns vinte e dois anos. Caíra em desgraça
no -5, e Antipater, filho de Doris, tinha morrido no -4.
- Herodias tinha nascido no -7 e morreu no ano 39 de nossa era; portanto
contava doze anos quando se casou com Herodes Filipo I, no ano 5 ou 7 de
nossa era. Ele morreu no 34 do mesmo, e tinha nascido por volta do ano -10.
- Salomé II, a filha de ambos, nasceu por volta dos anos 6 ou 8 de
nossa era, e morreu em 73 desta, quando contava uns sessenta e cinco anos
de idade; portanto, tinha 28 anos à morte de Jesus.
E quando teve lugar tal execução, no ano 35 de nossa era,
as três Marias (117) contavam portanto:
- Maria I, mãe de Jesus, nascida por volta do ano -30 ou -32, uns
sessenta e cinco anos.
- Maria II, aliás Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém,
nascida por volta do ano -28, uns sessenta e três anos de idade.
- Maria III, outra meio-irmã, nascida por volta do ano -26, uns sessenta
e um anos de idade. Também aqui coincide tudo.
Por outra parte, se como dizem os textos eclesiásticos, Mariamna
II, aliás Maria II, é a filha de Cleofás, e se Cleofás
for o irmão de José, em realidade Judas da Gamala, Mariamna
II, aliás Cleópatra de Jerusalém, é nem mais
nem menos que a tia de Jesus. Como foi esposa de Herodes, o Grande, dos
anos -13 ou -11 ao -5, quer dizer, durante seis ou oito anos, Jesus foi
o sobrinho de Herodes, o Grande, durante todo esse tempo... E foi primo
de seus filhos: Antipater, Herodes Antipas, Herodes Filipo I, de suas filhas:
Olympia, Roxana, Salomé III, Cypros III, Salampsio; de suas netas:
as princesas Drusilla e Berenice, e, especialmente, daquela que cedeu sua
cama e seu mesa: (118) a princesa Salomé II, viúva de Herodes
Lysanias, ao que logo estudaremos, e futura esposa de Aristóbulo
III, rei de Armênia...
Tudo isto explica muito melhor que o sonho premonitório da esposa
de Pilatos o fato de que este quisesse "liberar o Jesus" (cf.
Lucas, 23, 20, e João, 19, 12). Coisa que nos oculta cuidadosamente.
E tudo o que é mais ainda, esse parentesco "por aliança"
(porque, apesar de tudo, não é mais que isso) estende-se de
Jesus a Saulo-Paulo. Como este último era o neto de Herodes, o Grande,
por parte de sua mãe Cypros II, e seu sobrinho neto por parte de
seu pai Antipater II, (119) se estabelece um laço de parentesco entre
ambos personagens, queira ou não. Porque a irmã de Herodes,
o Grande, a vingativa e ciumenta Salomé I, converteu-se em tia de
Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém, aliás
Maria II, quando esta se casou com Herodes, o Grande, nos anos -13 ou -11;
e Salomé não morreu até um ano mais tarde, no 10 antes
de nossa era. De todo modo, se Cleofás era o pai de Mariamna II,
este morreu, conforme nos dizem, antes do nascimento de sua filha. E então,
como pôde Herodes, o Grande, fazer dele um pontífice de Israel
quando se casou com sua filha Mariamna II doze ou quinze anos mais tarde,
por volta do ano 11 antes de nossa era? E além disso, como podia
chamar-se Simão?
Vejamos a explicação, que é muito singela, Cleofás,
segundo marido de Ana, mãe de Maria I, realmente tinha morrido, e
foi seu irmão, que por seu matrimônio com Ana se converteu
no padrasto de sua filha Mariamna II, quem a deu em matrimônio ao
Herodes, o Grande, e por esse fato se converteu em supremo sacerdote. É
que o hebreu utiliza a mesma expressão para designar ao pai e ao
padrasto.
Esta função de supremo sacerdote a recebeu necessariamente
sob o nome hebreu de Simão, aliás Simão, seu nome de
circuncisão, portanto ritual (e não de Salomé, que
é um nome feminino, como diz equivocadamente o texto grego do livro
Do nascimento da virgem). Os nomes de circuncisão iniciais às
vezes eram modificados no curso da vida, em certas circunstâncias
graves, e seguindo um ritual concreto. Então do que se tratava era
de desviar para um nome que já não era levado por nenhum ser
vivente, ameaças de ordem particular ou geral. Assim, por exemplo,
Flavio Josefo nos diz que Caifás, o pontífice que julgou ao
Jesus do ponto de vista religioso, chamava-se inicialmente Josefo (cf. Flavio
Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, II, 35).
Por outra parte, o leitor não deixará de assombrar-se ante
essa série de mortes entre os maridos sucessivos da desafortunada
Ana, condenada pelo destino a uma viuvez permanente. E a priori isso parece
incrível. Primeiro nós acreditamos em uma lenda construída
por contistas dotados da clássica simplicidade infantil, comum antigamente
a essas regiões. Mas ante a verdade histórica tudo se explica,
pelo contrário, muito bem. Se partirmos da cronologia cristã
clássica, com um Jesus nascido no ano 1 de nossa era, temos uma Maria
sua mãe nascida provavelmente por volta do ano 15 de nossa era. Agora
bem, neste período da história judia, nada justifica a morte
de seu pai, logo a de seu padrasto, em dois anos sucessivos.
Se, pelo contrário, levassemos em conta a afirmação
de São Irineu, de um Jesus "morto na soleira da velhice, e próximo
aos cinqüenta anos de idade", é que nascera por volta do
ano 17 antes de nossa era, e sua mãe, Maria I, por volta do ano 34
ou 32 antes desta. E precisamente essa época é um período
especialmente cruel para Israel, e logo vamos poder julgá-lo.
Antígono, filho de Aristóbulo, disputa com seu tio Hircano
o trono da Judéia. Expulso da Galiléia por Herodes, o Grande,
futuro rei dessa província, Antígono se refugia entre os partos
e vai, junto com seu rei, apoderar-se de Jerusalém. Hircano e Fazael
caem prisioneiros. Fazael, carregado de cadeias, se suicidará partindo
o crânio contra os muros de sua cela. Em caso de necessidade, ajudaram-lhe.
Ao Hircano cortaram as orelhas por ordem do Antígono, a fim de que,
por tal mutilação infamante, seja indigno do supremo sacerdócio.
E Antígono ocupa então o trono da Judéia. Mas Herodes,
que primeiro se refugiou no Egito, vai à Roma implorar o apoio de
Antonio, e este último o faz proclamar rei da Judéia pelo
Senado romano. Além disso, proporciona-lhe tropas mercenárias
para expulsar por sua vez ao Antígono e aos partos de seu novo reino.
Achamo-nos no ano 39 antes de nossa era.
Herodes embarca então com seu exército romano e estabelece
moradia em Jerusalém. Durante essa operação se casa
com Mariamna I, filha de Hircano, tanto por sua beleza para legitimar com
dita aliança seu acesso ao trono, já que mediante ela se converte,
efetivamente, no genro do rei legítimo.
Ao cabo de seis semanas de moradia, Jerusalém cai em poder dos assediantes;
todos os inimigos de Herodes caem, degolados, e apesar da intervenção
do próprio Herodes saqueiam a cidade, devastam o Templo, multiplicam-se
as pilhagens, as violações e os assassinatos à medida
que se ocupa à Cidade Santa por parte dos mercenários. Antígono
é capturado e imediatamente enviado à Roma, onde Antonio o
manda executar. Mas na Judéia, Herodes enfrenta sérias oposições,
sobretudo no âmbito fariseu. Então é quando manda dar
morte a todos os militantes da oposição, degolar a todos os
membros do Sanedrín, e afogar no Jordão a seu cunhado Aristóbulo,
irmão de Mariamna I, sua própria esposa. Não lhe perdoará
nada de tudo isto. Tais fatos são relatados por Flavio Josefo em
sua Guerra dos judeus (manuscrito eslavo, 1, 16, e manuscrito grego, I,
XII).
Encontramo-nos no ano 37 de nossa era. Avancemos sete anos e nos encontramos
no ano 30 antes da mesma. Uma série de terríveis tremores
de terra devasta toda Judéia, mal reposta ainda dessa desumana guerra.
Contam-se mais de trinta mil mortos, e perece quase todo o gado. Por causa
das dezenas de milhares de cadáveres de homens e de animais, a cólera
faz sua aparição, e ipso facto a febre tifóide, devido
às fontes e cisternas poluídas. Ao ver isto, os árabes
nabateos, caso que o Israel se achava muito debilitada por tais desgraças,
invadiram o território nacional e, como não resistiram melhor
às diversas epidemias, aumentaram o número dos mortos (cf.
Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XV, VII).
Tendo em conta que se produzem inexatidões em matéria cronológica
(em todo esse período as datas estabelecidas o são com um
ano, como mínimo, de margem de engano; o monge Denys-le-Petit se
equivocou efetivamente em seus cálculos, já que nossa era
teria que ter começado, em realidade, cinco anos antes), pode supor-se
que as mortes dos maridos de Ana, mãe de Maria I, produziram-se nessa
terrível época que vai da proclamação de Herodes
como rei da Judéia, no ano 39 antes de nossa era, até a tomada
de Jerusalém dois anos mais tarde (no ano -37), as matanças
que a seguiram, os sismos, as epidemias, e logo a invasão árabe
no ano -32.
Por conseguinte, e por muito surpreendente que pareçam por sua cercania
no tempo, as viuvez sucessivas de Ana não foram inventadas pelos
cronistas que redigiram o livro Do nascimento da Virgem, atribuído
a São Cirilo de Alexandria e tido como válido pela Igreja
do Oriente. São, como se vê por seu marco histórico
geral, algo do mais plausível. E voltemos agora para Mariamna II.
Fica ainda por precisar o verdadeiro rosto dessa inesperada tia. É,
quando menos, estranhamente curioso, mas para compreendê-lo terá
que voltá-lo para situar dentro do conjunto dos personagens desse
surpreendente afresco.
Em sua Guerra dos judeus (manuscrito grego, I, XIX), Flavio Josefo mostra
ao Herodes, o Grande, expulsando de sua corte a seu irmão Feroras,
porque não queria repudiar a sua esposa, que tramava um complô
contra o rei. Feroras morreu pouco depois em seus domínios. Herodes
descobriu então que queria envenená-lo à instâncias
de Antipater, filho de Doris, e repudiou esta pela segunda vez. Logo apagou
de seu testamento ao Herodes Filipo I, filho de Mariamna II (Maria de Cleofás)
e destituiu ao Simão, supremo sacerdote, pai desta. O manuscrito
eslavo da Guerra dos judeus nos dá os mesmos detalhes, e seria uma
lástima não publicá-los, e agora vai poder se ver por
que: "Essas palavras foram como uma punhalada para o rei. Submeteu
a tortura a todas as mulheres que estavam em sua casa. Uma delas, em meio
dos torturas, exclamou: 'Deus que rege o céu e a terra, faz recair
sua vingança sobre a mãe de Antipater (Doris), pois ela é
a autora de todos nossos males...'. O rei recolheu estas palavras e seguiu
interrogando para tentar saber a verdade. A mulher contou então quanto
se amavam a mãe de Antipater (Doris) e Feroras (irmão de Herodes,
o Grande) e como se reuniam às escondidas Antipater, Feroras e as
damas: 'Ao voltar de sua casa bebiam durante a noite, sem admitir junto
a eles a nenhum escravo nem homem livre, nem homem, nem mulher'. Depois
de falar assim esta mulher, Herodes ordenou que se submetesse a tortura
às escravas, mas todas em separado. E sob os golpes deram todas uma
resposta unânime: quão mesma dera aquela mulher". (Cf.
Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, I, 12).
O texto grego das Antigüidades judaicas nos confirma a relação
eslava da Guerra dos judeus, o que demonstra que a convicção
do autor estava perfeitamente fundada: "As torturas dessas mulheres
(faxineiras) revelaram-no tudo: as orgias, as reuniões clandestinas,
e inclusive as palavras ditas em segredo pelo rei Herodes a seu filho (Antipater),
e contadas às mulheres de Feroras..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, XVII, IV, manuscrito grego). Essas palavras secretas demonstram
a exatidão das afirmações das serventes, e elas não
inventaram nada sob a tortura, e mais tendo em conta que foram interrogadas
em separado. Portanto, tratava-se de orgias sexuais e mágicas, no
curso das quais se tentava enfeitiçar ao Herodes, o Grande. Há
uma confirmação disso nos Salmos de Salomão, documento
composto no século que coroava o início de nossa era, dado
que nisso lemos o seguinte: "Em ocultos subterrâneos cometiam
suas exasperantes iniqüidades; uniam-se o filho com a mãe, e
o pai com a filha. Fornicavam cada um com a mulher de seu vizinho, e faziam
entre eles pactos baixo juramento a este respeito..." (Cf. Salmos de
Salomão, VIII, 9-11, Paris, 1911, Letouzey & Ané édit.).
Como se vê, tudo se produz do mesmo modo que nas cerimônias
mágico-sexuais do tantrismo ou nos sabbats medievais: a violação
dos tabus através da liberação alimentar e sexual,
as conjurações, os julgamentos de obediência, etcétera.
Pois bem, Mariamna II, aliás Maria de Cleofás, meio-irmã
de Maria e tia de Jesus, era membro de tal conjuração e participava
de sortes orgias: "Parecia que os emane do Alexandre e de Aristóbulo120
erravam por toda parte para fazer descobrir as coisas mais ocultas, e tirar
testemunhos e provas da boca daqueles que estavam mais afastados de toda
suspeita. Porque ao submeter a tortura aos irmãos de Mariamna, filha
de Simão, supremo sacerdote, descobriu por suas confissões
que ela era culpada de tal conspiração. Herodes fez pagar
aos filhos o crime de sua mãe, e apagou de seu testamento ao Herodes
Filipo I, o filho que tivera dela e a quem tinha declarado seu sucessor.
(Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, I, XIX, manuscrito grego).
Herodes, com efeito, não podia englobar em sua vingança a
seu próprio filho, já que Herodes Filipo I não contava
então mais que cinco anos de idade, dado que sua mãe Mariamna
II caiu em desgraça no ano 5 antes de nossa era, e ele tinha nascido
no ano 10. Assim, Maria de Cleofás, tia de Jesus por ser meio-irmã
de Maria sua mãe, e esposa de Herodes com o nome de Mariamna II,
participara do complô encaminhado à morte deste e às
orgias sexuais e mágicas celebradas com tal fim. Tendo em conta tudo
que develamos em nosso primeiro volumen, (121) pode supor-se que isso o
realizava em benefício da dinastia davídica em geral, e de
seu sobrinho Jesus em particular. Como tinha nascido no ano -17, no ano
-5, quando teve lugar o complô de sua tia, contava já doze
anos, quer dizer, a maioridade civil e religiosa. E é bastante duvidoso
que Maria, sua mãe, ignorasse a conspiração que se
realizava em favor de seu filho primogênito. E isto confirma o que
sustentamos desde o começo de nossa investigação, ou
seja, que o judeu-cristianismo primitivo não foi jamais outra coisa
que uma extensa empresa política, e nada mais, e em modo algum uma
predicação mística, como nos tentam fazer acreditar
há vinte séculos.
Convém observar a este respeito que o repúdio de Mariamna
II e os motivos de tal sanção não alteraram em modo
algum as relações entre ela e sua meio-irmã Maria I,
mãe de Jesus. Temos a prova disso nos próprios evangelhos
canônicos: "Estavam junto à cruz de Jesus sua mãe
e a irmã de sua mãe, Maria a de Cleofás..." (Cf.
João, 19, 25).
Agora sabemos que terá que ler "filha de" Cleofás.
Não obstante, esse grupo permanecera relativamente herodiano, já
que entre as mulheres que seguiram Jesus "e lhe serviam" quando
estava na Galiléia, achava-se Salomé II (cf. Marcos, 15, 41),
quem durante um tempo foi a concubina de Jesus (veja o capítulo 27),
e "Juana, mulher de Chuza, intendente de Herodes" (cf. Lucas,
8, 3). Aqui se trata, evidentemente, de Herodes Antipas, e não de
Herodes, o Grande, que morrera já fazia tempo.
A presença de Salomé II, neta de Herodes, o Grande, viúva
de Lysanias, tetrarca de Abilene, a da Juana, mulher de Chuza, intendente
de Antipas, junto à Maria, mãe de Jesus, e Maria, filha de
Cleofás, aliás Mariamna II, esposa repudiada de Herodes, o
Grande, em resumo, tudo o que se costuma chamar "ás santas mulheres"
segundo a tradição cristã, situa-nos em presença
de um ambiente do mais curioso. Porque sua santidade está ainda por
demonstrar.
No caso da Maria II, filha de Cleofás, as orgias sexuais e mágicas
nas quais participou da vida de Herodes excluem toda santidade, é
bem evidente. Salomé II foi a concubina de Jesus como o demonstra
o Evangelho conforme Tomás, isto não a desprestigia, já
que ela foi viúva naquela época, e Jesus não estava
casado, conforme se supõe. Mas esta situação, batizada
pelo judeu-cristianismo com o nome de fornicação, não
implica tampouco nada de santidade... Sobre a Juana, esposa de Chuza, intendente
de Herodes Antipas, a gente poderia perguntar-se por que seu marido a deixava
vagabundear assim desde a Galiléia, no seio de um grupo zelote, que
praticava não só a comunidade de bens, mas também a
de mulheres, como veremos em seguida. Possivelmente era a donzela de Salomé
II, ou possivelmente fora repudiada por Chuza, por sua conduta. O que fica
disso é que as "santas mulheres" como as qualifica piedosamente
Daniel-Rops, não constituem a não ser uma lenda mais.
Agora bem, com sua presença em Jerusalém durante a execução
de Jesus, contribuem uma explicação complementar a todos esses
favores e amparos misteriosos das que ele se beneficiou até o dia
em que, aos olhos de Roma e de seu procurador, a taça ficou cheia.
Em uma obra cunhada com o Imprimatur (Paris, 15-1-1957) e intitulada La
Date de Cène, Annie Jaubert faz alusão a isso (P. 129), e
Oscar Cullmann, pastor protestante, demonstrou em seu livro Deus e César
que o processo de Jesus tinha sido um processo puramente zelote. Como se
vê, nossa tese se mantém.
Vamos agora abordar um tema particularmente delicado, e cujas conclusões
causarão escândalo, embora não tenham escapatória
possível: o da comunidade de bens que incluía... as mulheres,
nos meios apostólicos primitivos.
Sabemos por Flavio Josefo, que durante três anos foi membro de sua
seita, que os essênios aceitavam, não o matrimônio, a
não ser simplesmente a união sexual, com vistas à procriação
de filhos e a renovação de seus membros, mas com mulheres
cuidadosamente escolhidas, e purificadas cada vez, antes do coito, mediante
ritos bem precisos (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, VII, IX; II,
VIII, X; Antigüidades judaicas, XVIII, I, 5).
Como os essênios estavam repartidos em quatro classes separadas, é
fácil compreender que unicamente os membros da classe mais baixa,
por conseguinte os mais jovens, tinham a possibilidade de copular. Mas,
dirão vocês, como conciliar isto com a afirmação
de Filón de Alexandria, quem nos assegura, por outra parte que: "Nenhum
essênio pode tomar mulher..."? (Cf. Filón, Quod omnis
probus liber, XII). E tanto mais que Plinio o confirma: "...sine ulla
femina, omni venere abdicata..." (cf. Plinio, Natura historiarum, V,
XVII).
Captar-se-á melhor o matiz recordando que praticavam o comunismo
absoluto. Qualquer que entrasse na sociedade, abandonava tudo o que possuía
em mãos da comunidade, e isso é o que com toda segurança
impressionou mais ao Flavio Josefo e o que possivelmente lhe moveu a sair
dela (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, VIII, 3).
Podemos, pois, concluir que os essênios efetivamente não se
enredavam nos laços do matrimônio legal e segundo a tradição
corrente em Israel, expressa pela lei judia, mas sim assumiam simplesmente
a procriação, necessária para perpetuar sua seita,
fecundando mulheres que tinham em comum, quando tinha lugar seu passo pelo
grau mais baixo, umas mulheres que, entretanto, eram escolhidas e purificadas
com este fim. E isso é, provavelmente, o que explica que os membros
dos graus superiores da Ordem se achassem na necessidade de purificar-se
por sua vez quando tinham contato material com os dos graus inferiores,
aos que consideravam como impuros por causa de sua vida sexual.
Pois bem, nós sabemos agora que os zelotes procediam inicialmente
dos essênios. Igual a eles, rechaçavam um bom número
de tabus legais, mas, pelo contrário, observavam muitos outros costumes
de maneira particularmente integral. E a comunidade de bens a encontramos
entre os discípulos de Jesus: "A multidão dos que tinham
acreditado tinha um coração e uma alma sozinha, e nenhum tinha
por própria coisa alguma, antes o tinham tudo em comum (...) Quantos
eram donos de fazendas ou casas, vendiam-nas e levavam o preço da
venda, e o depositavam aos pés dos apóstolos, e a cada um
lhe repartia segundo sua necessidade." (Cf. Atos dos Apóstolos,
4, 32-35).
Esta apreciação, nossos apóstolos sabiam orientá-la
perfeitamente segundo seus próprios interesses, já que lemos
um pouco mais adiante: "Por aqueles dias, tendo crescido o número
dos discípulos, surgiu uma falação dos helênicos
contra os hebreus, porque as viúvas daqueles eram mal atendidas no
serviço cotidiano..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 6, 1).
(122)
E vamos agora constatar que nosso santos discípulos do Senhor não
só praticavam, mas sim, além disso, exigiam, colocarem a disposição
comum de suas esposas, e muito provavelmente também de suas filhas.
Tomemos uma vez mais a História eclesiástica de Eusebio da
Cesaréia: "Naqueles tempos nasceu também a heresia chamada
dos nicolaítas, que durou muito pouco (123) e da que também
faz menção o Apocalipse chamado de São João.
(124) Esses hereges pretendiam que Nicolás era um dos diáconos,
companheiros de Estêvão, escolhidos pelos apóstolos
para o serviço dos indigentes". (Cf. Atos dos Apóstolos,
6, 5). Ao menos Clemente de Alexandria, no terceiro Stromate, conta com
seus próprios termos o seguinte a respeito: "Diz-se que tinha
uma mulher na flor de sua vida. Depois da ascensão do Salvador, os
apóstolos lhe reprovaram que estivesse ciumento. Então conduziu
a sua esposa ao centro da assembléia e a abandonou a quem queria
casar-se com ela. Diz-se que essa ação se ajustava à
fórmula: "Terá que fazer pouco caso da carne...".
E quando imitam sua ação e suas palavras, sem exame, os que
seguem sua heresia, se prostituem de maneira vergonhosa... Estando assim
as coisas, o abandono em meio dos apóstolos de sua mulher, que era
um objeto de ciúmes, era sinal de renúncia à paixão,
e a continência frente aos prazeres procurados com mais afinco ensinava
a fazer pouco caso da carne. Em meu parecer, não queria, conforme
ao mandamento do Senhor, servir a dois amos: ao prazer e ao Senhor".
(Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III,
XXIX, 1-2, citando Clemente de Alexandria, Stromates, III, 52-53).
Este texto exige já várias observações:
a) Nicolás o diácono, que recebera o Espírito Santo
(cf. Atos, 6, 5-6), estava não obstante muito ciumento de sua bonita
esposa. Sem dúvida tinha razões para isso, já que via
que a desejavam, conforme era costume, posto que:
b) os apóstolos, que também receberam ao Espírito Santo,
o reprovam, o que demonstra que há entre eles homens que desejam
possui-la por sua vez, segundo o habitual entre sua comunidade de bens.
Mas isso prova deste modo que tampouco eles estão liberados dos "gozos
grosseiros da carne"...
c) conforme ao uso apostólico e zelote, procedente dos essênios,
Nicolás o diácono se inclina, e conduz a sua bonita esposa
ao centro da assembléia apostólica e dos discípulos,
abandonando-a a eles;
d) Clemente de Alexandria "pensa" que se deve interpretar sua
decisão no sentido de um desprendimento das coisas carnais, mas,
como se vê, não está do todo seguro, não o afirma.
E, efetivamente, se Nicolás estava ciumento de sua formosa mulher,
é porque a queria, e tinha boas razões para estar em guarda
e passar por um ciumento. Entretanto, a execução sumária,
por ordem de Simão-Pedro, de Ananías e de Saphira, sua esposa,
por infração grave das regras comunitárias, fizeram-lhe
reflexionar; (125)
e) a mulher de Nicolás não foi oferecida em matrimônio
a quem queria tomá-la por esposa (que já era o cúmulo!),
tal como diz Eusebio da Cesaréia, e seu tradutor, o cônego
G. Bardy retrocedeu ante a enormidade escandalosa da frase exata, já
que o texto grego desse Stromate de Clemente de Alexandria emprega o termo
épétrepem, que vem de épitrepo, que significa entregar,
ceder, abandonar e de maneira nenhuma casar-se. De fato a jovem foi entregue
à comunidade dos "Santos homens de Deus". Rasputín
existiu em todas as épocas, como se vê.
Essa comunidade das mulheres se estendia deste modo às moças,
o que exclui, igual no seio dos essênios, a constituição
de casais duradouros e legais. Vejamos uma vez mais o testemunho de Clemente
de Alexandria, contribuído por Eusebio da Cesaréia: "Não
obstante, Clemente, cujas palavras acabamos de ler, enumera a seguir do
que acaba de ser dito, àqueles dos apóstolos que estiveram
casados, por causa daqueles que condenam o matrimônio: "Rechaçarão
também aos apóstolos? Pedro e Felipe tiveram filhos. Felipe
inclusive deu suas filhas a homens. E Paulo não vacilou em saudar
em uma Epístola a sua companheira, a quem não levara consigo
para maior comodidade de seu ministério..." (Cf. Eusebio da
Cesaréia, História eclesiástica, III, XXX, 1, citando
a Clemente da Alexandria, Stromates, III, 25-26).
Pois bem, aqui está o texto grego de Clemente: "Philippe dé
kai tas Tugatéras andrasin exedoken" (op. cit.).
E exedoken vem de ekdidomi, que significa tanto entregar (um escravo ou
uma mulher), como dar em matrimônio. Dado que acabamos de ter a prova
de que os meios apostólicos primitivos punham em comum às
esposas, não pode se ter em conta o segundo sentido de ekdidomi,
a não ser só o de entregar, abandonar como foi também
o caso da muito formosa esposa de Nicolás o diácono, "objeto
de ciúmes" (sic), entre os discípulos. E tanto mais que
uma forte corrente majoritária condenava o matrimônio. Não
ficava, então, como única solução possível,
mais que o concubinato sucessivo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Um fato parece não surpreender ninguém no mundo dos historiadores
do cristianismo: o fato de que Jesus, modesto carpinteiro em parada perpétua,
e que dizia ser de origem muito humilde, fora julgado por Pilatos, procurador
de Roma.
Em Jesus em seu tempo, Daniel-Rops escreve: "De fato, esta história
não teve para o cidadão de Roma que viveu sob o Tibério
mais importância da que teria para nós a aparição
de qualquer obscuro profeta em Madagascar ou a Reunião" (Op.
cit.: Introduction. Ce qu'en su les contemporains).
Pois bem, em Roma é o imperador, pontifex maximus (pontífice
supremo) e César (sagrado), quem delega os poderes de oferecer sacrifícios
aos deuses do Império, assim como de justiçar e de pronunciar
sentenças; dele emanam e descendem os diversos poderes religiosos,
civis e militares, até os mais humildes magistrados romanos, como
uma cascata legalista. Como imaginar ao Pilatos, que representava ao César
na Judéia, e que portanto constituía a máxima autoridade
romana, sancionando roubos de galinhas, agressões diurnas e noturnas,
e crimes diversos? Isso é algo simplesmente impensável. Em
todas as cidades dependentes de Roma havia magistrados encarregados de repartir
a justiça romana segundo as leis de Roma e os costumes locais, combinadas
e associadas.
Se Jesus fosse um obscuro agitador, uma vez capturado podia ser executado
ou crucificado sobre o terreno, por ordem de um simples centurião,
por havê-lo surpreso com as mãos na massa, e sobrou exemplos
disso. Em caso de ser um personagem mais importante, podia ser enviado ao
magistrado romano da cidade mais próxima, para o exercício
do jus gladii. Se era ainda mais importante, uma vez conduzido à
Jerusalém bastava fazendo-o comparecer ante o tribuno das coortes,
governador de Antonia e chefe de armas de Jerusalém. O tribuno das
coortes, como magistrado militar, conservava ainda sob o Império
os privilégios honoríficos que, sob a República, davam-lhe
classe de cônsul, a falta dos poderes deste.
Quer dizer que, como chefe de todo o movimento zelote, e inclusive como
"filho de David" e pretendente do trono de Israel, se se fazia
comparecer ao Jesus ante o governador de Antonia lhe concedia, já
só com isto, uma enorme importância, e a sentença do
tribuno das coortes fosse deste modo igual de regular e legal que se pronunciada
pelo procurador de Roma. (126)
Isso significa, pois, que Jesus era efetivamente um pouco muito distinto
a um simples chefe rebelde, e por isso foi levado a comparecer ante Pilatos.
Ao fazê-lo, não ignoravam que ia gozar de poderosas influências,
e que unicamente o procurador imperial estava em posição de
apreciar o valor e o interesse destas, para tê-las em conta ou ignora-las.
(127) Coisas todas que um tribuno das coortes não podia permitir-se
confrontar. E isto o que faz não é mais que vir em apoio de
tudo que dissemos sobre as relações que uniam as dinastias
herodiana, asmonea, davídica, ante as autoridades, tanto romanas
como judeus e religiosas.
CONTINUA