O Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain


Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.

Segunda parte
8 - O verdadeiro caminho de Damasco
Todos os caminhos do sonho não levam ao Katmandú..
Michel Delpech , Je suis pour...
Os exegetas da crítica liberal têm descoberto numerosas interpolações no canon neotestamentário. Existem diversas fórmulas destas. Pode introduzir um texto, longo ou curto, em uma obra antiga, no curso de uma nova cópia manuscrita, arrumando-lhe para que o leitor inexperiente não possa dar-se conta.
O exegeta treinado discernirá facilmente esta interpolação ao constatar que, a maior parte do tempo, o fio do discurso inicial se rompe, e que aparece perturbada a harmonia do estilo. Citaremos como exemplo a célebre passagem de Suetonio sobre o incêndio de Roma: "impuseram-se limites ao luxo, reduziram-se os festins públicos a distribuições de mantimentos; proibiu-se vender nas Tavernas nenhum manjar cozido, à exceção das verduras e dos legumes, quando antes se servia todo tipo de comida; entregou-se ao suplício os cristãos, gente dada a uma superstição nova e perigosa; proibiram-se os jogos dos condutores de quadrigas, aos que um antigo costume autorizava a vagar por toda a cidade para divertir-se, e se relegaram de uma vez as pantomimas e suas facções". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, VI.)
É evidente que o estilo de Suetonio merecia mais que essa interpolação, tão áspera como torpe. Como observa Marcel Jouhandeau, "esse autor não perde de vista seu objetivo nem um segundo".
E com efeito, o que faz essa condenação dos cristãos em meio da venda da alface cozida e das verduras, e das farras noturnas dos condutores de carros? Por isso acreditam a maioria dos exegetas imparciais que toda a parte que temos escrito em itálico em nossa entrevista é uma interpolação estranha ao texto inicial de Suetonio.
Nos evangelhos canônicos, uma das interpolações mais audazes que existem é indubitavelmente a que se refere às célebres "chaves", e que afirma assim a primazia do bispo de Roma sobre todos outros. Vejamos esse célebre texto. Jesus acaba de perguntar a seus discípulos (seus irmãos, de fato) o que pensam dele. Todos respondem que lhe acreditam cristo, filho do Deus vivo (Mateus, 16, 13-20; Marcos, 8, 27-30; Lucas, 9, 18-21; por isso com respeito à João, ignora a totalidade deste episódio).
Mas no capítulo de Mateus citado, depois do versículo 16 se interpolou um novo texto, que se converteu nos versículos 17 e 18, e que diz assim: "E Jesus, respondendo, disse: Bem-aventurado você, Simão Bar Jona*, porque não é a carne nem o sangue quem revelou isto, a não ser meu Pai, que está nos céus. E eu digo-lhe que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei eu minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". (Mateus, 16, 17-18.)
*[Barjonna: veja a palavra acádia, que significa "fora da lei, anarquista". Veja-se Jesús o el secreto mortal de los templarios, p. 72.]
Esta audaz interpolação é, necessariamente, posterior ao século IV, dado que naquela época, como já dissemos, por ordem de Constantino e sob a vigilância de doutores como Eusébio da Cesaréia, unificavam-se os evangelhos oficiais, enviavam-se série de cinqüenta exemplares aos diversos bispados do Império Romano e recolhiam-se os antigos, que não estavam de acordo.
É perfeitamente evidente que se esta passagem o tivessem conhecido os anônimos redatores e copistas, os manuscritos mais antigos de Marcos, Lucas e João também o levariam. E não há nada disso. Por outra parte, em nossa época ninguém teria a audácia de introduzi-lo nas versões desses mesmos evangelhos, aos que entretanto se chamam sinóticos.
De todas as sucessivas interpolações de que foram vítimas os textos canônicos, esta foi sem lugar à dúvidas a mais gratificante, e justifica a constatação de Leão X citada em página anterior desta obra.
Vem a seguir o que se conveio em chamar a interpolação repetida. Os manuscritos antigos eram cilindros compostos por tiras de papel ou por páginas quadradas de papiro, grudadas umas depois de outras, a fim de formar uma longa banda. Para introduzir um texto novo no manuscrito inicial bastava separar duas páginas ou duas bandas, e intercalar entre elas, grudando-a por sua vez, a fração de pele ou a página de papiro que contivesse os novos textos.
De qualquer maneira, ao proceder assim, às vezes podia acontecer ao interpolador a fatalidade de ver que uma frase cortada em duas. E então era obrigado a terminar, em cima da fração introduzida, a frase desventuradamente partida. Logo, na parte debaixo da última página introduzida, tinha que colocar, como fora, um texto que enlaçasse com o cabeçalho da antiga página imediatamente posterior. Cada um desses dois fragmentos dava então origem a uma nova frase, mas a segunda constituía um áspero "dublê" da primeira. Repetia os termos e as letras. Daí o nome de "interpolação repetida" que se aplica a esse artifício fraudulento dos escribas anônimos dos primeiros séculos.
O teólogo alemão protestante Wendt foi o primeiro que descobriu nos Atos dos Apóstolos dois casos patentes de interpolação repetida. O primeiro exemplo está relacionado com a lapidação de Estêvão:
"Eles, gritando em vozes altas, tamparam-se os ouvidos e jogaram-se sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e o apedrejaram." (Atos, 7, 57-58.)
"As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado Saulo."(Idem, 58.)
"E enquanto o lapidavam, Estêvão orava, e dizia: Senhor Jesus, recebe meu espírito." (Idem, 59.)
A fim de introduzir um Saulo ainda menino na narração dos Atos, o interpolador efetuou um corte entre os versículos 57 e 59. Sem dúvida trata-se tão somente de uma pequena banda horizontal. Mas esta interpolação resulta torpe, porque, como observa divertido o abade Loisy: "Ao pobre Estêvão parece que o tenham lapidado duas vezes".
Vejamos agora a segunda interpolação descoberta por Wendt. Aqui o falsificador não se ateve com pequenas, porque compreende nada menos que vários capítulos. Tomemos os Atos, capítulo 8, versículo 4: "Os que se dispersaram foram por toda parte pregando a Palavra".
Saltemos agora todo o resto, quer dizer o assunto de Simão, o Mago, enfrentando-se com o Simão-Pedro, logo a história do diácono Felipe e do eunuco etíope da rainha Candaces de Etiópia. Detenhamo-nos para rirmos um pouco pelo caminho, porque o diácono Felipe batiza ao chamado eunuco pelo caminho de Jerusalém a Gaza. Quando aparece, o Espírito Santo o eleva pelos ares, e nosso diácono se encontra, assombrado, na cidade de Açoito, a uns quarenta quilômetros dali, a vôo de pássaro, claro! (Açoito não é outra coisa que o Ashdod bíblico -que em hebreu significa "pilhagem"-, antiga cidade filistéia situada na mesma latitude de Jerusalém, ao norte de Gaza.) Logo segue o relato da conversão de Saulo, a cura de Ananías, a ressurreição (sim!) da Tabita graças aos cuidados de Pedro, a conversão de Cornelio, o aviso que o Céu deu ao Pedro de que abandonasse todos os tabus da Lei judia, etcétera.
E nosso ardiloso interpolador conclui (no século IV pelo menos): "Para ouvir estas coisas, calaram e glorificaram a Deus, dizendo:
De maneira que também aos gentis outorga Deus a penitência para alcançar a vida!". (Atos, 11, 18.)
Amém, diremos nós. E aqui voltamos a nos encontrar com a frase do princípio: "Os que se dispersaram com motivo da perseguição suscitada por Estêvão chegaram até Fenícia, a ilha do Chipre e Antioquia, pregando a palavra somente aos judeus". (Atos, 11, 19.)
É evidente que tudo o que se interpolou, desde 8, 4, até 11, 19, foi com a intenção de justificar ao Paulo, seu apostolado entre os gentis, o acesso destes à nova comunidade, e o abandono dos tabus alimentares judaicos, que, igual à circuncisão, desagradavam aos pagãos e freavam sua conversão. E os relatos nos quais abunda o sobrenatural estão destinados a fazer admitir a autoridade daqueles que supostamente os viveram.
A data desta interpolação, uma das mais importantes do Novo Testamento, pode situar-se nos arredores do ano 360, se recordarmos o que assinalamos ao estudar a Confissão de São Cipriano.
E provavelmente é concomitante a essas "cópias conforme" enviadas por séries de cinqüenta exemplares às igrejas do Império Romano por ordem de Constantino, cópias efetuadas sob a vigilância de seu panegirista Eusébio da Cesaréia e logo repartidas, ao que seguiu, evidentemente, a recuperação dos textos antigos. Não obstante, o que é seguro é que esse mendaz acerto não esteve coordenado; o "nível intelectual" dos destinatários não impunha aos escribas anônimos do século IV muitas precauções ou controles. Como prova temos as contradições observadas nos Atos dos Apóstolos, obra que entretanto está atribuída, oficialmente, ao Lucas, confidente e secretário de Saulo-Paulo, como autor único. Julgue-se:
Em Atos, 9, 7, nos diz que a escolta de Saulo tinha permanecido de pé e estupefata durante a aparição de Jesus. Em Atos, 26, 14, lemos que os homens de Saulo caíram todos ao chão. .
Em Atos, 9, 7, esses mesmos homens armados ouviram a voz de Jesus dirigindo-se ao Saulo, mas não viram ninguém. Em Atos, 22, 9, precisam-nos que viram a misteriosa luz, mas que não ouviram a voz de Jesus.
Se, como afirmou recentemente a comissão vaticana autorizada, todo católico tem a obrigação de admitir que Lucas é o autor único dos Atos dos Apóstolos, o exegeta independente e objetivo tem que tirar a conclusão de que o tal Lucas não tinha as idéias muito claras...
Agora sabemos, pela Confissão de São Cipriano, relato composto por volta dos anos 360-370, que naquela época os Atos dos Apóstolos não mostravam o milagre acontecido à Saulo-Paulo no caminho de Damasco pouco antes de entrar na cidade. Segundo esses mesmos Atos, a conversão do chefe da polícia paralela judeu-romana se produziu muito mais tarde (veja-se pág. 22).
Agora bem, Epífano (falecido em 403), em sua obra principal Adversus Haereses, contribui-nos a tradição dos ebionitas. Esta seita, uma das mais antigas citadas, junto com os nazarenos, reconhecia que o mundo era obra de um Deus Supremo, mas no que se refere a Cristo, adotava a mesma postura que Cerinto e Carpocras para esse eón gnóstico. Viviam à maneira judaica ordinária, e pretendiam justificar-se pela Lei. Segundo eles, foi praticando-a como Jesus se converteu em um justo, no Ungido de Deus, pois ninguém entre os judeus tinha completa a Lei. Mas segue-se o mesmo caminho, alguém se faz idêntico a ele, e qualquer um pode converter-se por sua vez em um Cristo. "Porque, diziam. Jesus era inicialmente um homem igual aos outros." (Cf. Hipólito de Roma, Philosophumena.)
O interesse da tradição ebionita, neste caso, consiste em que nos conta o verdadeiro motivo da conversão de Saulo-Paulo. São Epífano nos diz que Saulo tinha nascido de pais pagãos. Aqui encontramos a justificação de todos os argumentos que tiramos de Flavio Josefo. Prendado da filha do supremo sacerdote Gamaliel, teria se feito circuncidar para conseguir casar-se com ela, mas ao ver frustradas suas esperanças, por despeito teria começado a pregar contra a Lei e os tabus judaicos, e claro está, principalmente contra essa mesma circuncisão. (Cf. Epífano, Adversas Haereses, XXX, 16.) assim, o maravilhoso "caminho" de Damasco se teria limitado aos harmoniosos "quadris" de uma formosa judia.
Por que não? "O amor é forte como a morte, seus ardores são ardores de fogo, uma chama do Eterno, e as imensas águas não podem apagá-lo..." (Cantar dos Cantares, 8, 6-7.)
Assim, consciente de seu caráter de estrangeiro à nação judia, Saulo, não emprestando ouvidos a não ser a seu amor pela filha de Gamaliel, fez-se circuncidar; sem isto, ele sabia que para ela teria significado o rechaço da coletividade mística, já que: "A filha de um supremo sacerdote casada com um estrangeiro não comerá já das coisas santas oferecidas por elevação". (Levítico, 21, 12.)
Esta conversão de tipo cirúrgico foi, desgraçadamente, inútil. Ou o Sanedrim vetou semelhante união entre a filha de um supremo sacerdote (não de um simples sacerdote) e um recém convertido (objetando o caráter desprovido de todo misticismo de semelhante conversão), ou a filha se negou a casar-se com ele. E os matrimônios de conveniência estavam religiosamente proibidos em Israel. De maneira que não a podia obrigar em modo algum a casar-se com Saulo. Quanto mais que a Lei judia rechaçava àquele que se fazia partidário por amor a uma mulher.
Agora bem, Saulo-Paulo não era um playboy, nem muito menos, se tivermos que dar crédito à tradição herdada dos Padres da Igreja.
Em primeiro lugar, estava afetado de uma grave enfermidade, que ele menciona, sem dizer qual, em seu II Coríntios (12, 2-9). Monsenhor Ricciotti, em seu Saint Paúl, apotre nos diz sobre ela: "Da passagem de Paulo que citamos se infere de forma evidente que estabeleceu uma relação estreita entre a enfermidade desconhecida e seu rapto ao terceiro céu e ao paraíso, já que considerava seu mal como um remédio que Deus lhe administrava para lhe impedir de orgulhar-se". (Op. cit., P. 168.)
Recordemos esta relação, porque é muito importante.
A tese de que se tratava de epilepsia clássica, proposta já pelo K. L. Ziegler, foi sustentada pelo Krenkel em 1890 com argumentos muito convincentes. Esta tese mantiveram-na muitos exegetas e médicos. Recordou-se casos análogos, nos quais ao mal clássico se acrescentavam manifestações histeriformes, de caráter místico-alucinatório. Cita-se a Julio César, Mahomé, Cola de Rienzo, Fernando o Católico, Cromwell, Pedro o Grande, Napoleão; todos eles tiveram visões ou audições de caráter neuropático.
Dirigiremo-nos agora para outra explicação. Vimos já que os príncipes nabateus e idumeus estavam ligados deste modo a uma espécie de sacralização religiosa. O uso de drogas alucinógenas achava-se muito difundido, precisamente devido a sua relação com os "planos" ocultos. Todo o Oriente Médio conhecia desde fazia séculos o haxixe; o Egito usava já o ópio em tempos de Ramsés II, e gregos e romanos não ignoravam os efeitos da adormidera, chamada em grego mekon. Israel, em suas escolas de profetismo (I Samuel, 10 e 19), utilizava vinhos de ervas, e Síria, Fenícia, Iduméia, Nabatea e Egito conheciam também os efeitos do banj ou Bang, extraído de uma espécie de beleno chamado pelos árabes sekaron, quer dizer "a embriagadora" (cresce em todo o Egito e na península do Sinai; é o Hyosciamus muticus, um alucinógeno ou um narcótico, segundo a dose). Saulo pôde muito bem ser um drogado de maneira intermitente, já que, como veremos, teve numerosas visões em seus périplos, visões provavelmente provocadas, e delas tirava suas próprias instruções apostólicas. Mas há algo ainda mais grave!
Deixemos agora seu estado patológico. Como era fisicamente?
Os Atos de Paulo nos dizem dele: "...homem de pequena estatura, calvo, de pernas arqueadas, de bom estado de saúde, sombrancelhas unidas, de nariz bem grande, cheio de graça...".
Os Principes Apostolorum, atribuídos ao João Crisóstomo, põem-lhe um metro e trinta de altura. Sem dúvida para sublinhar sua pequena estatura, porque isso daria um homem de apenas um metro cinqüenta no máximo, o que é manifiestamente exagerado.
No século VI, Juan Malala nos diz: "Em vida. Paulo foi de pequena estatura, calvo, com a cabeça e a barba grisalhas, um formoso nariz, olhos azul grisáceos, sobrancelhas juntas, pele branca, barba espessa, sorridente...". (Cf. Juan Malala, Chronographia, X, no Migne, Patrologie Grecque, 97.)
As pernas arqueadas podiam justificar-se por causa dos largos exercícios a cavalo, coisa nada surpreendente em um príncipe herodiano. Mas isso também pode significar uma degeneração, sublinhada pela pequena estatura.
Dessas breves descrições surge um retrato robô de Paulo, ao que se rodearam todos os pintores e escultores a partir do século IV.
Consideremos agora outra questão. Admitindo que a circuncisão livremente aceita por ele tivesse derivado do consentimento, por parte da filha de Gamaliel para um eventual matrimônio, terei que suspeitar que Saulo, utilizando seus conhecimentos ocultos, teria obtido o consentimento da jovem por efeito de um sortilégio. Coisa que não seria tão surpreendente, tendo em conta a época e o meio. Assim se compreende a reação violenta do Sanedrim, e provavelmente do próprio Gamaliel, já que a magia era rigorosamente perseguida e condenada, tanto pela Lei judia como pela Lei das Doze Tábuas, aplicada em Roma.
O que nos incita a ter em conta esta hipótese é a seguinte passagem de Flavio Josefo: "Pouco depois do matrimônio da Drusila com Aziz, esta união se rompeu pela razão seguinte: Félix, procurador da Judéia, depois de ter visto a Drusila, a quem nenhuma mulher igualava em beleza, foi inflamado pelo desejo de possui-la, e enviando a ela um judeu seu amigo chamado Simão, cipriota de nascimento, que se fazia passar por mago, esforçou-se por persuadi-la de que abandonasse seu marido e se casasse com ele, prometendo-lhe que a faria feliz se ela não o desdenhasse. Drusila, atuando mal, e querendo fugir do ciúmes de sua irmã Berenice, que não a tratava bem por causa de sua beleza, deixou-se persuadir para atuar contra as instituições de seu povo e casar-se com Félix". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, VII, 2.)
Como vemos, a magia intervinha às vezes nos matrimônios.
O leitor já teria adivinhado que a expressão "cipriota de nascimento" foi interpolada astutamente, a fim de separar do Simão, o Mago, aliás Saulo-Paulo, a responsabilidade desse feitiço de amor que permitiu ao Félix casar-se com Drusila. Não esqueçamos que Flavio Josefo chegou até nós em manuscritos dos séculos IX e XII, quer dizer, que foram obra de copistas da Idade Média. E da cruzada contra os albigenses e da destruição da Ordem dos Templários, a Igreja não ignora que entre os hereges sabem muito bem a que se ater sobre as verdadeiras origens do cristianismo. Remetemos ao leitor ao que dizemos sobre o "segredo da Igreja" em nossa obra precedente.
Em caso afirmativo, e se Saulo-Paulo, aliás Simão o Mago, foi o artífice do matrimônio da bela Drusila com o Antonio Félix (antigo liberto da Antonia, mãe de Claudio César), e isso por meio da velha bruxaria dos árabes nabateus, podemos supor que a data seria posterior ao ano 52, já que até 52 não nomeou o imperador Claudio procurador da Judéia ao Félix.
Agora bem, Aziz, rei de Emeso, primeiro marido de Drusila, morreu no ano 54, e sucedeu a seu irmão Soemas. Então, como pôde Saulo-Paulo reprovar ao Félix e a Drusila sua união, se esta era viúva desde ano 54? Porque nos Atos dos Apóstolos é o que se insinua: "Passados alguns dias, veio Félix com sua mulher Drusila, que era judia, e mandou que viesse Paulo, e lhe escutou a respeito da fé em Cristo. E ao falar ele sobre a justiça, a continência e o julgamento vindouro, Félix se encheu de terror, e lhe disse: É bastante por hora. Retire-se Paulo, quando tiver tempo voltarei a chama-lo". (Atos dos Apóstolos, 24, 24-25.)
Acima de tudo, observamos uma primeira inexatidão. Drusila não é judia, e sim da Iduméia, da família de Herodes. Interessa-se, como muitas mulheres cultas de seu tempo, tanto romanas como gregas, sírias ou iduméias, pelos problemas filosóficos e religiosos. Mas disso a fazer dela uma judia há uma grande distância.
Vejamos agora a segunda inexatidão. Adivinha-se que o escriba anônimo que redigiu esta passagem dos Atos quis insinuar que Paulo queria moralizar ao casal Félix-Drusila. Novo João Batista, considera a Drusila como uma nova Herodías, e por isso os fala de justiça (não se toma a mulher de outro) e de castidade (não se vive em estado de adultério), porque se corre o risco de ser castigado em julgamento vindouro. Não obstante, esta entrevista se situa no ano 58, na Cesaréia. Portanto faz quatro anos que Drusila é viúva. De maneira que já não pode viver em estado de adultério. Mas essas passagens, visivelmente interpolados em versões mais antigas dos Atos, reforçam a alusão ao "judeu, cipriota de nascimento", porque é um mago judeu no Chipre; é comensal e conselheiro do governador da ilha de Pafos, capital do Chipre (Atos, 13, 6-12). Mas se chama Elimas Bar-Jesus, e não Simão.
De fato, a amizade testemunhada pelo procurador Félix para o Paulo é o agradecimento do Antonio Félix ao Simão o Mago" por lhe haver feito obter o amor da bela Drusila. Uma vez mais o amor rege aos homens e às vezes suas ações mais importantes!
Assim, se o sortilégio de amor que uniu Drusila e Félix teve a Saulo-Paulo como autor, não é desatinado supor que este último fizesse uso de algum para obter à filha de Gamaliel. Exponhamos os elementos do problema:
a) Saulo-Paulo não é fisicamente um Apolo;
b) não é judeu.
De maneira que se a filha de Gamaliel mostrou alguma inclinação para ele e lhe disse que "sim", não foi o físico de Saulo-Paulo que a seduziu.
E necessariamente disse que "sim", porque se houvesse dito que "não", Saulo não se teria feito circuncidar, coisa que, em idade adulta, não tem nada de agradável, tendo em conta a cirurgia da época.
O "sim" da jovem teve que obtê-lo, pois, por outros meios. E voltamos a encontrar aqui nossa hipótese: cedeu como conseqüência de um feitiço de amor. Embora não consideramos os efeitos da magia a não ser na perspectiva de uma física transcendental. Cem mil experiências de hipnotismo, há quase um século, estão aí para sublinhar a eficácia de todos esses procedimentos. Também por isso, tendo em conta as confidências de diversos "magnetizadores-hipnotizadores", desaconselhamos absolutamente que uma mulher vá confiar-se a algum deles sem ir acompanhada de algum familiar.
Por outro lado, não se pode negar a magia na vida de Paulo. Citaremos simplesmente estas duas passagens das Epístolas: "Pois eu, ausente em corpo, mas presente em espírito, condenei já, como se estivesse presente, ao que isso tem feito: Em nome de nosso Senhor Jesus, entrego esse homem a Satanás, para a destruição de sua carne". (Cf. Coríntios, 5, 3-5.)
"Entre eles Himeneu e Alexandre, a quem entreguei a Satanás para que aprendam a não blasfemar..." (Cf. I Timóteo, 1, 20.)
No primeiro caso se tratava de um homem jovem que se casou com a viúva de seu pai, e por conseguinte sua madrasta. Ela devia ser muito jovem, segundo o costume da época.
No segundo caso se tratava de cristãos ordinários, que passaram à Gnosis, e portanto , abandonaram os grupos submetidos ao Paulo. Como Satanás era, sob o nome de Samael, o anjo das provas e da tentação, constatar-se-á que Paulo gosta de praticar a magia negra, já que não se trata de outra coisa. De todo modo, terá que suportar seus inconvenientes, pois o chamado Alexandre se converterá em testemunha de cargo durante seu último processo, em Roma: "Alexandre, o ferreiro, tem-me feito muito mal. O Senhor lhe dará pagamento segundo suas obras. Guarde você também dele, porque mostrou forte oposição à minhas palavras". (Cf. Paulo, II Timóteo, 4, 14.)
Além disso, o testemunho deste Alexandre, confirmado pelo original -ou uma cópia- da "primeira carta ao Timóteo", implicará para o Paulo, acusado já de um pouco mais terrível, que analisaremos chegado o momento, a acusação também de magia negra. E esta se achava já sancionada de antemão com a pena capital pela implacável "Lei das Doze Tábuas" para quem quer que praticasse "sortilégios, feitiços ou palavras de encantamento, malefícios contra pessoas, animais ou colheitas".
Já sob Augusto procuraram cuidadosamente todos os livros de bruxaria que pudesse haver no Império. Logo foram imediatamente queimados, por ordem expressa do imperador. Tibério e Nero confirmaram com numerosos decretos a vigência das antigas leis. Estas tinham levado a execução, sob o consulado de Claudio Marcelo e de Valerio Flaco, a 170 bruxas, que tinham arrojado malefícios sobre numerosas pessoas melando as portas de suas casas (provavelmente os trincos) com ungüentos especiais. (Cf. Leg. duodecim Tabular: art. 55, 68, 69, etc.)
O mesmo acontecia na Grécia, onde uma lei castigava a "todos aqueles que, por encantamentos, palavras, ligadura, imagem de cera ou outro malefício encantem ou enfeiticem a alguém, ou se dele sirvam para fazer morrer a homens ou animais de curral, todos esses serão castigados com a morte". (Cf. De Lamarre, Traite de la Pólice, tomo I, título vII.)
Platão nos fala desta lei em seu De Legibus, livro II. E Pausanias, em seu In Elia, livro V, relata uma aplicação: Lemnia, uma bruxa, foi condenada a morte pela denúncia de uma faxineira. Se relacionarmos este nome com o da lamia das lendas, que atraía aos jovens e lhes tirava a vida pouco a pouco com voluptuosos enlaçamentos, devia-se tratar de uma mulher que enfeitiçava aos homens que desejava.
Seja como for, agora vamos encontrar logo ao Paulo em sua obra de mago, mas para ele do que se tratará é de constituir extensas redes de cumplicidades femininas na grande empresa que tentará levar a bom termo.
Fica por elucidar um ponto histórico.
Constatamos na Confissão de São Cipriano e na versão dos Atos dos Apóstolos dessa época que Saulo-Paulo tinha efetuado sua conversão muito depois do episódio de sua visita à Damasco, no curso do qual o etnarca do rei nabateu Aretas IV quis lhe fazer capturar. Ele mesmo nos conta como uns amigos que tinha na cidade lhe ajudaram a baixar de noite, ao longo das muralhas, metido em um cesto de vime (tarsos). Portanto tal conversão temos que procurá-la depois deste desatino de Damasco.
Por outra parte, sabemos pelos manuscritos do mar Morto que a seita dos sadocitas, os "filhos de Sadoc", um dia teve que fugir do lugar e do monastério de Qumrán para refugiar-se em Damasco. Quando teve lugar a volta deste exílio, uma fração da seita ficou ali, embora sem deixar de estar em relação com os repatriados, conforme nos diz o cardeal Jean Daniélou em seu livro Les Symboles chrétiens primitifs. E aqui intervém um curioso dado que devemos ao Lurie. Recorda que a seita sadocita não estava fixada em Damasco mesmo (cf. Document de Damas, VIII, 21; XX, 12), mas quinze quilômetros ao sudoeste, no caminho que levava à Galiléia, e em uma aldeia chamada Kokba (cf. R. North, relatório sobre "Eretz Israel", IV, no Verbum Domini, núm. 35, 1957).
Epífano, em sua obra Adversus Haereses (XXIX, VII, 7), menciona deste modo aos nazarenos entre os refugiados na Kokba, quer dizer judeus-cristãos ortodoxos que pertenciam ao ramo fundado por Santiago, o Maior, e aos arcónticos, judeu-cristãos de caráter gnóstico (Pp. cit., XL, I, 5.) E Julio, o Africano, chamado pelo Eusébio da Cesaréia em sua História eclesiástica (I, VII, 14), diz-nos que provavelmente entre eles havia "parentes carnais do Senhor". Sobre esta questão, veja-se H. J. Schoeps, El judeocristianismo.
Todo o qual conduz ao Dositeo. Este foi o Mestre de Simão, o Mago. Tinha estado em relação com João Batista, e Epífano o apresenta como saduceu (coisa que era, evidentemente, um engano); em realidade era sadocita, levava uma vida muito ascética e praticava o sabbat de forma muito estrita. Segundo os antigos heresiólogos, foi um gnóstico no sentido absoluto do termo. Pois bem, segundo o Talmud (cf. R. North, loe. cit., P. 49), vivia na Kokba.
E Jean Daniélou nos proporciona além disso, em seu livro Les Symboles chrétiens primitifs, o seguinte dado, particularmente significativo:
"Outro detalhe curioso é a existência de uma tradição segundo a qual a conversão de São Paulo teria tido lugar na Kokba. Saulo teria tido ali um primeiro contato com helenistas, que a seguir se encarregariam de sua instrução em Damasco". (Cf. J. Daniélou, op. cit., VII, l'étoile de Jacob.)
Segundo monsenhor Ricciotti esta tradição seria muito antiga (cf. Saint Paúl, apotre, P. 213). O historiador protestante Harnack o confirma no Die Mission und Ausbreitung des Christentums, II, 636, assim como S. Lósch em Deitas Jesu und Antike Apotheose.
"A gente pode perguntar-se deste modo -prossegue Jean Daniélou- se a permanência na Arábia (cf. Epístola aos Gálatas, 1, 17) não designava simplesmente a Kokba. Naquela época a região de Damasco se considerava como parte da Arábia." Com efeito, formava parte do domínio do rei Aretas IV (e havia um etnarca), toda essa parte da Síria era então do reino nabateu.
Recapitulemos, pois, nossas sucessivas conclusões:
1) Saulo-Paulo não é outro que Simão, o Mago, já o vimos;
2) Simão, o Mago, foi antes discípulo de Dositeo;
3) Dositeo vivia em Kokba, a quinze quilômetros de Damasco;
4) Saulo-Paulo teria sido antes instruído pelos helenistas em Kokba, onde vivia Dositeo.
O silogismo é fácil de estabelecer, tendo em conta o que precede, já que a primeira e a segunda premissas são unânimes em sua demonstração de que Saulo-Paulo e Simão o Mago não são a não ser uma mesma pessoa.
Quanto à improbabilidade de uma viagem de Saulo-Paulo a pleno território nabateo, quer dizer a seu capital Petra, confirmam-no dois detalhes:
a) A permanência na região de Damasco, território nabateo, pode explicar a passagem da Epístola aos Gálatas, 1, 17, que diz:
"Não subi a Jerusalém para ver os que me precederam no apostolado, mas sim parti para a Arábia, de onde voltei outra vez a Damasco".
b) Observar-se-á que Saulo-Paulo não retornou jamais à Arábia nabatea no curso de suas numerosas viagens missionárias. Porque, como príncipe das dinastias Iduméia (por via masculina) e nabatea (por via feminina: sua bisavó Cypros I), e por haver-se feito circuncidar para fazer-se judeu e casar-se com a filha do Gamaliel, corria o risco de ser lapidado.
Em efeito, quando sua avó Salomé I decidiu casar-se pela terceira vez, tinha tido um enredo no palácio de seu irmão Herodes o Grande com um árabe nabateo chamado Silaios. Ante a indignação das esposas de Herodes, o árabe, ao ver que suspeitavam dele, partiu, mas retornou três meses mais tarde, para pedir em matrimônio à Salomé. Era o administrador do rei da Arábia Obodas, e era jovem e de aparência agradável. Salomé consentiu, e Herodes também, mas apesar de tudo impôs uma condição: para poder levar-se bem com a população judia, Silaios se converteria ao judaísmo, ao menos aparentemente; sem isso, o matrimônio seria impossível, declarou Herodes. Silaios recusou "dizendo que, se o fazia, seria lapidado pelos árabes" (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, vII).
E esta é a razão, bastante válida, pela qual Saulo-Paulo não retornou jamais, no transcurso de suas viagens missionárias, à Arábia nabatea. O que contribui uma prova a mais à suas origens principescos e árabes. Sua circuncisão "por amor" teria validade também à ele, em território nabateo, a lapidação que temia Silaios.
Porque, para o Saulo, toda esta aventura expunha problemas insolúveis.
Aos olhos da casa do Herodes, tinha abandonado os cultos ancestrais, tradicionais, e isso não era o mais grave, a não ser o fato de que pertencia à religião judia implicava uma naturalização judaica. Já que em Israel religião e raça eram uma só coisa; pertencer à comunidade mística era pertencer ao povo eleito, a sua comunidade física.
Agora bem, uma e outra impunham deveres imperiosos, e esses deveres com muita freqüência eram opostos ao que a dinastia herodiana considerava como direitos. Converter-se em judeu não significava só desertar, a não ser alinhar-se entre os adversários.
Sem dúvida, entre as mulheres cultas da aristocracia Iduméia e romana, produziram-se com freqüência, se não conversões oficiais, ao menos adesões interiores. Mas se limitavam a isso.
Entre os homens tornar-se judeu expunha outros problemas, imensamente mais graves, já que o Império Romano via com muito maus olhos essas conversões masculinas. Aconselhamos ao leitor que releia tudo o que dizemos sobre o particular mais acima.
No que diz respeito a suas relações com as três potências presentes, nosso Saulo se encontra, pois, na situação seguinte, depois de sua conversão por interesse e da circuncisão que o deixou marcado para sempre:
- Judaismo: considera-lhe um convertido não sincero, já que movido inicialmente pelo corriqueiro desejo de uma mulher, jamais lhe viu antes manifestar o mínimo interesse pela religião judia e sua doutrina. Daí lhe rechacem.
- Herodismo: considera-lhe como um desertor, já que fazer-se judeu, para um príncipe herodiano, supõe aderir-se a uma nação que, unanimemente, é hostil aos incircuncisos em geral, e em numerosas ocasiões tentou varrer (se era necessário efetuando grandes matanças) aos membros da descendência do Herodes o Grande.
- Romanismo: passar de maneira total de uma família aliada de Roma e amiga dos imperadores (veja-se o referente às relações de Salomé I e da imperatriz Livia) a uma nação que, em setenta e quatro anos, do 68 antes de nossa era até o 6 d. C., levantou trinta e seis vezes o estandarte da revolução (e com que violência!), implica converter-se a sua vez em inimigo de Roma.
Como se vê, a situação do Saulo era crítica. Aparecia como suspeito para uns e para outros, era rechaçado por todos, e ainda teria que enfrentar-se com um quarto adversário.
Voltemos para assunto de Damasco.
Saulo está circunciso, não obteve a mão da filha de Gamaliel, mas continua sendo o chefe da tropa paralela. Essas funções lhe impõem, se não deveres, ao menos sim atividades.
Estas últimas as exerce em especial em torno dos zelotes, esses integristas judeus a quem a comunidade oficial qualificou de apóstatas. E a esses integristas Saulo os odeia, porque um estado de ânimo semelhante foi o que, ao suscitar o veto dos sanedritas, quebrou para sempre suas esperanças sentimentais.
De maneira que redobra as perseguições e pesquisas contra eles. Montará uma operação contra os de Damasco, porque esta cidade é um centro zelote importante.
Só que, como já precisamos, Damasco é então um enclave nabateo em Síria, e está governado por um etnarca, que representa ali ao rei Aretas IV. Vejamos os dois textos, contraditórios, da Epístola aos Gálatas e os Atos dos Apóstolos.
Como lemos na Confissão de São Cipriano, Paulo e seu grupo de homens armados vão a Damasco a fim de efetuar ali uma batida geral entre os hereges. Entretanto: "Em Damasco, o etnarca do rei Aretas pôs guardas na cidade dos damascenos para me prender. Mas fui desprendido por uma janela, em uma cesta, com o passar do muro, e assim escapei de suas mãos". (Cf. II Coríntios, 11, 32-33.)
Por que quereria prender ao Saulo o etnarca do soberano nabateo? O assunto se remonta a muito longe.
No ano 6 antes de nossa era, Herodes-Antipas, de volta de Roma, levou a seu palácio do Tiberíades ao Herodías, esposa de Herodes Filipo, seu irmão, e filha de ambos, Salomé II. Sua primeira esposa, filha do Aretas III, apressou-se então a empreender a fuga e refugiar-se em casa de seu pai. Este último, para vingar do insulto infligido a sua casa, declarou a guerra a Herodes Antipas. Por último, depois de numerosos momentos de calma aparente, de renovação das hostilidades, etc., as tropas de Herodes Antipas resultaram vencidas. Certas hostilidades duraram perto de quarenta anos. A intervenção romana em favor do Herodes Antipas, por ordem do Tibério César, no ano 36, não mudou nada. E aconteceu uma paz precária, que Calígula, desejoso de consolidá-la por parte de Roma, acreditou selar entregando livremente Damasco aos nabateus.
Mas ao pretender efetuar detenções ali, Saulo cometeu uma imprudência. Este fato ultrajou a soberania do Aretas IV, filho do precedente. E o etnarca deste último tentou então capturar ao Saulo, tanto para castigá-lo para entregar a seu soberano um refém de categoria, o sobrinho neto do Herodes o Grande em pessoa.
De modo que Saulo tentará ficar um tempo junto aos zelotes.
Como as arrumou? Quando nos diz que, depois de uma conversação com o Ananías, "as escamas lhe caíram dos olhos e viu claro" (cf. Atos, 9, 17-18), não vemos a utilidade de imaginar a um Saulo fisicamente cego, com as pupilas cobertas de escamas, que cairão ao chão quando ele receba o batismo. A frase deve entender-se em sentido figurado, é óbvio.
Mas Saulo não é judeu nem está louco. Ele, como chefe de guerra e príncipe herodiano, não ignora a enorme potência militar de Roma. E os sonhos ideológicos dos zelotes, assim como todas as esperanças messianistas judias, deixam-lhe frio, não despertam nele, e com razão, nenhum eco.
Seu plano está, pois, montado. Orientará o messianismo político, quer dizer o zelote, para uma postura especulativo, puramente mística. Fazendo isto, não terá nada que temer de Roma, mas bem ao contrário. Possivelmente esta inclusive lhe dará suporte, já que assim lhes fará o jogo, ao romper a resistência judia em suas raízes espirituais.
De todo modo, como o movimento zelote constituía um bloco muito unido, dificilmente penetrável para um homem só e tão suspeito por seu passado como Saulo, este se dedicaria primeiro a interessar aos gentis na nova ideologia.
Quando tiver em suas mãos uma massa suficientemente numerosa de fiéis, tentará fundir os dois messianismos. Fazendo isto, os que resultarão anexados serão os zelotes, e não os gentis. E por isso não retrocederá em seu empenho de que os primeiros renunciem pouco a pouco aos costumes tradicionais judaicos mais importantes: circuncisão, tabus alimentares, etcétera.
Então se alargará mais o fosso que os separa do judaísmo oficial. E pouco a pouco a corrente zelote acabará por morrer na massa da Gentilidade...
NOTAS COMPLEMENTARES
Para monsenhor Giuseppe Ricciotti, que evoca em seu livro Saint Paúl, Apotre (trad. do italiano pelo F. Hayward, imprimatur 15 de maio de 1952, Robert Laffont édit., Paris), a tradição ebionita contribuída no século IV por São Epífano, "Paulo apaixonou-se pela filha do supremo sacerdote, e para casar-se com ela, teria aceito a circuncisão e o judaísmo. Mas ao não alcançar seu objetivo, para vingar-se, teria passado à oposição, e teria começado a lutar e a escrever contra a circuncisão, o sabbat e a Lei". (Op. cit., P. 82.)
Para o abade Migne e seus colaboradores, na tradução latina do grego antigo do Epífano, Paulo "... quando veio a Jerusalém e fixou aqui sua residência, casou-se com a filha do pontífice. Nesta ocasião se fez partidário e aceitou a circuncisão. Mas como logo se divorciou, escreveu encolerizado contra a circuncisão, o sabbat e a Lei". (Cf. Migne, Patrologie grecque, Epiphane: Adversus Haereses, libero I, tomo II, III, 16, pp. 431-434, Paris, 1858.)
Quem tem razão? Monsenhor Ricciotti ou o abade Migne? Nós acreditamos que o primeiro, que ao ser prelado romano, teve indubitavelmente acesso à célebre Biblioteca do Vaticano e aos manuscritos mais antigos de Epífano, enquanto que o segundo e seus colaboradores se contentaram traduzindo a um excelente latim um manuscrito grego do século XVI, gravado sobre madeira e impresso, das obras completas do mesmo Epífano. E é muito provável, em efeito, que como sempre, as obras deste último sofressem sérios retoques e variações, ao desejo de cada monge copista dos séculos passados; daí as diferenças entre os manuscritos.
Assim, parece mais plausível convir com monsenhor Ricciotti em que Saulo-Paulo se encontrou com que lhe negavam a mão da jovem -daí sua mudança de atitude-, em lugar de atribuir tal mudança ao fato de que Saulo-Paulo tivesse repudiado à moça, porque esta separação depois do matrimônio, segundo os termos da lei judia, não podia correr a não ser a cargo do marido, já que a esposa não possuía este direito.
O único modo de conciliar estes dois variantes seria admitir que Saulo-Paulo e a jovem estiveram oficialmente prometidos, já que este fato, em Israel antigo, equivalia a uma espécie de matrimônio privado, do que o matrimônio oficial não constituía mais que a conclusão legal. Assim, uma vez prometidos, as severas leis sobre o adultério eram já aplicáveis aos noivos, posto que o noivo podia viver já em casa de seu futuro sogro, e usar dos direitos legítimos do matrimônio, e daí a frase de Mateus, que não se entende a não ser nesse contexto: "O homem abandonará a seu pai e a sua mãe e se unirá à mulher" (Mateus, 19, 5). De modo que os recém casados não foram viver à parte ou à casa dos pais do marido até depois do matrimônio oficial e legal.
Pode supor-se, pois, que se rompeu o noivado de Saulo-Paulo por causa da oposição do Sanedrim, e daí sua irritação. Na hipótese inversa, se foi ele quem rompeu o acordo, depois de ter feito uso dos direitos legítimos e ter abusado deste modo da confiança da família e da jovem, é facilmente concebível o furor dos judeus contra esse pagão de má fé.
E fica um último ponto, ou seja: quem era o pai da jovem? Era o pontífice de Israel, quer dizer o supremo sacerdote, o cohen-ha-gadol, ou era Gamaliel, o rabban, quer dizer o "professor dos professores", o "doutor dos doutores", ou seja o próprio presidente do Sanedrim, o Hahan-ha-hahanim (sábio dos sábios), possivelmente inclusive Rosch-Galouta (príncipe do Exílio) ou Daion-di-baba (Juiz supremo)?
Pessoalmente, nos inclinamos pelo Gamaliel, já que os Atos dos Apóstolos contribuem, apesar de tudo, uma lembrança, possivelmente deformada, mas nada desdenhável, das relações entre Saulo-Paulo e Gamaliel (Atos, 22, 3), assim como nos mostram o mesmo Saulo-Paulo na incapacidade de reconhecer e de identificar ao pontífice. (Atos, 23, 1-5.)
9 - A família de Saulo-Paulo
A herança é como uma diligência em que viajassem todos nossos antepassados. De vez em quando um deles tira a cabeça pela portinhola e vem a nos causar todo tipo de complicações. O. W. Holmes, seleção
Começamos já a enfocar suficientemente o personagem múltiplo que se oculta sob os nomes sucessivos de Shaul, Saulo, Paulo para estar agora em condições de abordar numerosos detalhes sobre sua existência. E em primeiro lugar, quando e onde nasceu.
Tomamos cuidadosamente nota de que tinha sido educado com:
a) Menahem, neto de Judas da Gamala, de filiação davídica e real, e que levantará o estandarte de uma nova revolução judia no ano 64 de nossa era. Será o bisavô do Jonathan-Ben-Menahem, intendente geral do Simão-Ben-Koseba, príncipe de Israel, chefe da última revolução no ano 132;
b) Herodes, o Tetrarca, e é este último que nos permitirá marcar datas importantes da vida de Saulo.
Trata-se, com efeito, de Herodes Agripa II, filho de Herodes Agripa I, rei da Judéia e da Samaria, nascido no ano 10 antes de nossa era e morto em 44 desta. Herodes Agripa II foi o irmão de Berenice, esposa de Herodes do Calcis, e que, uma vez viúva, foi ao lado de seu irmão, com quem sustentou, segundo os rumores públicos, umas relações incestuosas. Sua segunda irmã era Drusila, que se casou com Aziz, rei de Emeso (morto no ano 54), e o abandonara no 52 para viver com Antonio Félix, procurador de Roma na Judéia, no ano 53.
Herodes Agripa II foi com toda certeza educado em princípio na Cesaréia e em Tiberíades, na corte de seu pai. Nasceu no ano 27 de nossa era, já que contava 17 anos de idade à morte deste, em Cesaréia, em 44. Chamado à Roma por Claudio César, ao advento deste imperador, quer dizer em princípio do ano 41. Não retornou à Judéia até muito mais tarde, porque Claudio César não quis confiar tais responsabilidades a um adolescente. Em sua ausência, Judéia teve como procuradores, sucessivamente, a: Marcelo (44), Cuspio Fado (45-46), Tibério Alexandre (46-48), Ventidio Cumano (48-51) e Antonio Félix (51-58). Enquanto isso, no ano 51, a tetrarquia da Traconítide fora concedida ao Herodes Agripa II, daí seu nome de tetrarca. Mas, como vemos, não foi realmente rei, e não reinou como seu pai sobre a Judéia e Samaria.
Teve que haver aí uma manifestação de desconfiança por parte de Claudio César, porque sua saída de Roma coincidiu com o decreto deste imperador expulsando aos judeus livres da capital do Império. Ali não ficaram mais que os escravos e os que não tinham alforria por completo ante o pretor.
Portanto, foi com Herodes Agripa II e com Menahem com quem foi criado Saulo. Podemos admitir que este último fora algo maior. De todo modo, se Estêvão foi realmente lapidado no ano 36, Saulo não devia ter alcançado ainda a maioridade civil e religiosa do bar-mitzva (aproximadamente aos doze anos), posto que não participou da lapidação, e os judeus se limitaram a lhe confiar a vigilância de suas roupas (Atos, 7, 58).
Mas, já que agora sabemos que não era judeu, a não ser idumeu, o problema não se expõe sob este ângulo. De todo modo, dizem que aprovou o assassinato legal de Estêvão (Atos, 22, 20). Assim, estiveram obrigados a recorrer a uma aprovação, ao menos tácita, de Saulo, o que implica que tinha já certa autoridade. E com efeito, imediatamente depois do enterro de Estêvão, vemo-lo penetrar nas moradias e arrancar delas homens e mulheres para colocá-los na prisão (Atos, 8, 3); logo abandona Jerusalém para estender suas pesquisas e suas batidas até Damasco, em Síria (Atos, 8, 1-2).
Semelhantes atividades, que implicam uma autoridade policial, não são exclusivas da adolescência nos séculos passados. Não esqueçamos que seu avô Herodes, o Grande, só tinha vinte e sete anos quando capturou ao Ezequías, pai de Judas da Gamala e avô de Jesus, e o fez crucificar no curso de suas campanhas contra esse "filho de David" que fazia estragos em Síria, à cabeça de seus partidários. E o próprio Herodes, o Grande, recebera já de seu pai Antípater, amigo de César, o governo da Galiléia, "embora fosse então extremamente jovem" (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VIII). Durante muito tempo será assim, e na França, por exemplo, chegou até Capelos. Luis XI exercerá um mando militar efetivo aos quatorze anos, e fomentará a revolta da Pragueria contra seu pai Carlos VII aos dezessete anos. Então nomeia-lhe governador do Delfinado. Carlos V foi regente do reino da França aos dezoito anos. Os reis, com efeito, eram maiores de idade aos quatorze anos, e Luis XIII foi aos treze.
Por conseguinte, a juventude de Saulo quando lapidaram Estêvão, e imediatamente depois seu papel na repressão do neomessianismo, não fazem a não ser confirmar a inanidade da tese segundo a qual não se tratava senão de um judeu comum, quando tudo demonstra, pelo contrário, que era um príncipe herodiano, que gozava de todos os privilégios de seu berço e de todas as responsabilidades inerentes a esta.

Filiação da dinastia Iduméia
Saulo nasceu, portanto, entre os anos 23 e 25 de nossa era, e morreu aos quarenta ou quarenta e cinco anos. Estes dados o fazem três ou quatro anos maior que seu süntrophós Herodes o Tetrarca (Atos, 13, 1). Este termo grego significa "companheiro de juventude, amigo da infância", e é a palavra que figura nos manuscritos gregos dos Atos dos Apóstolos.
Assim, se se criou na Cesaréia e em Tiberíades, na corte de Herodes Antipas, não pôde conhecer nem ter visto antes ao Jesus, posto que este jamais pôs os pés em tais cidades, impuras para um judeu integrista, a primeira por ser meio helenística, e a segunda porque estava construída sobre um antigo cemitério. Herodes Antipas tampouco nunca vira Jesus, porque foi Poncio Pilatos quem o enviou à Jerusalém, depois de sua captura. E o evangelho de Lucas nos diz: "Quando Herodes viu Jesus, teve uma grande alegria, já que desde fazia tempo desejava vê-lo, pois tinha ouvido dizer muitas coisas dele, e esperava lhe ver fazer algum milagre". (Lucas, 23, 8.) Observe-se que Mateus, Marcos e João ignoram este comparecimento de Jesus ante o Herodes Antipas.
Achamo-nos agora em situação de poder estabelecer a genealogia de Saulo-Paulo:
Genealogia do Shaul-bar-Antípater
Primeiro grau: Herodes do Ascalón, sacerdote do templo do Apolo no Ascalón. De sua união com o X... nasceu Antípater.
Segundo grau: Antípater, epimeleta da Palestina. De sua união com Cypros I, pertencente a uma das mais ilustres famílias da Arábia nabatea, nasceram quatro filhos, Fazael, Herodes o Grande, José e Perora, e uma filha, Salomé I. Morreu no ano 43 antes de nossa era, acredita-se que envenenado.
Terceiro grau: Salomé I, que esteve primeiro casada com um tal José, do que não possuímos nenhuma informação, salvo que foi assassinado por ordem de Herodes o Grande, assim como Mariana, esposa deste último, no ano 29 antes de nossa era, depois de serem acusados de adultério por Salomé I ante seu irmão. Esta se casou a seguir com Costobaro I, íntimo amigo de Herodes o Grande, quem antes de que tivesse lugar o enlace o nomeou governador da Iduméia e da Gaza, no ano 37 antes de nossa era. Costobaro I procedia de uma das maiores famílias da Iduméia, e seus antepassados nos tempos dos príncipes-sacerdotes, tinham sido sacrificadores do deus Cosas -divindade que as tribos Iduméias adoravam com grande devoção-, antes de que Hircano os obrigasse a abraçar a religião judia, se não sinceramente, ao menos na aparência. Como Costobaro I conspirasse com Cleópatra, rainha do Egito, para separar Iduméia do reino do Herodes a fim de fazer-se independente, este o mandou executar por volta do ano 28 antes de nossa era. Logo Salomé I se casou pela terceira vez com um tal Alexas.
De sua segunda união com Costobaro I, Salomé teve duas filhas. De uma delas se ignora o nome; sabe-se que se casou com Caleas, filho de Alexas, terceiro marido de Salomé I. A outra se chamava Berenice, e se casou com Aristóbulo, filho de Herodes, o Grande. Salomé I teve um filho, chamado Antípater, de que falaremos a seguir. Ela morreu no ano 14 de nossa era.
Quarto grau: Antípater II, filho de Costobaro I e de Salomé I, casou-se com Cypros II, filha de Herodes, o Grande, e de Mariana. Desta união nasceram uma filha, Cypros III, que se casou com Alexias Helsius, e dois filhos, Shaul e Costobaro II. Observar-se-á que o nome primitivo de Saulo-Paulo era Shaul, posto que é o que os Atos dão no capítulo 9, versículo 4, no episódio do caminho de Damasco. Essa é a forma aramaica do nome, e Saulós era a forma grega. Pois bem, o aramaico se falava na Palestina e na Síria, e nesta época se estendeu do Sinai ao Taurus e mais à frente do golfo Pérsico.
Aqui, o manuscrito grego das Antigüidades judaicas de Flavio Josefo mostra uma importante lacuna. Os famosos monges copistas deram-lhe em mãos, já que os originais desapareceram misteriosamente, e não possuímos mais que transcrições medievais dos séculos IX e XIL. A Igreja velou zelosamente pela ortodoxia das cópias das obras de tal autor. Hoje em dia, na Biblioteca de Friburgo, encontra-se um manuscrito de Flavio Josefo que, no século XV, era ainda propriedade privada do arcebispo de Toulouse, Monsenhor Rieux, e que procedia possivelmente das expropriações inquisitoriais entre os albigenses e os cátaros, ou do processo contra a Ordem do Templo. A Igreja citou ao arcebispo e seu manuscrito ante o Parlamento de Paris, a fim de que o manuscrito fora examinado, e requisitado se era necessário, e o arcebispo interrogado sobre sua ortodoxia. Esta lacuna na filiação da dinastia Iduméia não deve, pois, nos surpreender; tratava-se de fazer desaparecer da verdade histórica a esse príncipe herodiano de origens muito significativos. Na obra de Flavio Josefo só encontramos a seguinte referência:
Quinto grau: "Costobaro [II] e Shaul tinham também consigo grande número de guerreiros, e o fato de que fossem príncipes de sangue real e parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos, sempre dispostos a oprimir aos mais débeis." (Flavio Josefo, op. cit.) Costobaro II formou parte da delegação enviada ao rei Herodes Agripa II para lhe pedir que fora a Jerusalém com tropas, a fim de sufocar a rebelião. Logo, durante a estância de Nero César na Acaia, foi enviado a este por Cestio Galo, governador de Síria, para que lhe explicasse os motivos de sua derrota.
Como vemos indiscutivelmente, Saulo-Paulo foi pois o autêntico neto de Herodes, o Grande, graças ao matrimônio de seu pai Antípater II com a filha daquele (Cypros II), e é também seu sobrinho-neto, por ser neto da irmã de Herodes, Salomé I, mãe de Antípater II.
De maneira que nos achamos muito longe desse casal de judeus desconhecidos, deportados ao Tarso, dos quais inclusive se ignora o nome. Coisa que não impedirá à certos críticos bem pensantes negar-se a discutir nossos argumentos, embora sem contribuir eles com os seus.
Não obstante, observaremos que Saulo-Paulo não é cem por cento idumeu, já que sua avó materna, Mariana (mãe de Cypros II), era filha de Alexandre e de Alexandra, e portanto neta de Hircano II, rei e supremo sacerdote, descendente direto de uma linhagem de supremos sacerdotes de Israel que se remontava até o Matatias, pai de Judas Macabeo, o herói da luta judia contra Antíoco IV Epífanes (veja a árvore genealógica acima). Assim, por esta avó judia, Saulo-Paulo tem 25% de sangue judeu (sua mãe, Cypros II, tem 50%), e o resto, 75 %, de sangue Iduméia e nabatea.
Por outra parte, se isto lhe facilitar a circuncisão ulterior, o fato de contar em sua ascendência materna com quatro supremos sacerdotes de Israel (Hircano II, Alexandre Janeo, Juan Hircano I e Simão-bar-Matatias) seria incitado a considerar como possível uma união com a filha de Gamaliel.
Mas, além de que o valor moral desta circuncisão tardia foi discutido pelo Sanedrim, a dinastia asmonea, procedente de Matatias e seus filhos, deixara lembranças muito penosas e sangrentas nas memórias judias para que o povo aceitasse tal união; de fato, ante a alternativa, preferiam a filiação davídica.
E isso não podia a não ser agravar as más relações posteriores entre Saulo-Paulo, asmoneo por parte de mãe e idumeu por parte de pai, e Simão-Pedro, "filho de David", como seu irmão maior Jesus, como seu pai Judas da Gamala e como seu avô Ezequias, crucificado por Herodes, avô de Saulo-Paulo. Esses ódios familiares explicarão muitos dramas, especialmente a crucificação de Simão-Pedro e de Santiago, seu irmão, no ano 47 em Jerusalém, por ordem de Tibério Alexandre, procurador de Roma.
Porque esta dupla execução tem lugar em plena nova revolução judia, durante a enorme fome que assolou o Império romano naquela época, anunciada pelo vidente Agabus (Atos, 11, 28), e que se produziu ao término do primeiro "concílio" de Jerusalém, verdadeiro conselho de guerra, onde se enfrentaram os adversários dos tabus legais, e sobretudo da circuncisão, agrupados ao redor de Saulo-Paulo e vindos da Gentilidade, e os judeus-cristãos tradicionalistas, agrupados ao redor de Simão-Pedro, e procedentes, ou da corrente zelote, ou da seita fariseu.
É provável que as origens principescas de Saulo-Paulo e suas antigas funções o colocassem em situação de poder alertar eficazmente às autoridades romanas contra o que ele considerava como irredutíveis obstáculos a suas ambições e a seus planos. Porque fica uma alusão muito clara a este drama: "Pedro, quem, vítima de um injusto ciúmes, passou não por uma, mas sim por numerosas provas, e quem, depois de ter sofrido assim seu martírio, foi à glória que lhe estava devida...". (Cf. Clemente de Roma, Epístola aos Coríntios, V, 4.)
E isso é o que vamos estudar agora.
Este estudo genealógico poderia parecemos fastidioso e inútil se não nos pusesse em presença de uma verdade pasmosa, verdade que, como efeito de uma bomba cega, permitir-nos-á compreender muitas coisas. Que o leitor tenha a bondade de remeter-se aos quadros genealógicos das páginas anteriores, que podem resumir-se como se indica no esquema desta página.
Não faz falta ser um grande letrado para constatar que Saulo-Paulo é o segundo primo do rei Herodes Agripa I, quem a sua vez é primo em terceiro grau de seu filho Herodes Agripa II e de suas filhas, as princesas Berenice (viúva de seu tio Herodes, rei do Calcis) e Drusila (viúva do Aziz, rei do Emeso), e que por conseguinte, quando esta última se casou com o Antonio Félix, procurador de Roma, irmão do Palante (favorito do imperador Claudio), este matrimônio converteu Félix e Paulo em primos por aliança.
Genitores Primos irmãos Primos segundos Primos em terceiro grau
Herodes, o Grande, casado com a Mariana;
Sua irmã é: Salomé I, casada com Costobaro I; de onde:
Antípater II, casado com Cypros II;
de onde:
Saulo-Paulo e Costobaro II
de onde:
Alexandre Aristóbulo, casado com Glafira;
de onde:
Herodes Agripa I, casado com X...;
de onde:
Herodes Agripa II, cujas irmãs são: Berenice e Drusila, casada com Félix, o procurador romano
Assim se compreende facilmente por que Claudio Lisias, tribuno das coortes e governador da Antonia, em Jerusalém, fez conduzir Saulo-Paulo à Cesaréia Marítima, sob a proteção de quatrocentos e setenta soldados, com várias montarias para o "prisioneiro Paulo" (sic). Era para pô-lo sob o amparo de seu primo Félix.
Porque detrás deste último estava seu irmão Palante, secretário de Claudio César, e o tribuno Lisias era tão bom diplomático como perito soldado...
Referências Bibliográficas Flavio Josefo: Antigüidades judaicas (manuscrito grego): XIV, XII; XV, XI; XVI, VII; XVII, I; XVII, I; XVIII, V; XVIII, V; XX, VIII. Guerra dos judeus (manuscrito eslavo): I, IX; I, XI; I, XVII; II, XXXI; II, XII.
As cifras romanas maiúsculas indicam o livro da obra, e as cifras romanas minúsculas precisam os capítulos de tais livros.
Nota: Segundo costume em genealogia, e a fim de diferenciar aos personagens do mesmo nome mas com graus diferentes de filiação, demos um indicativo de ordem a cada um dos membros desta família: Salomé I, Costobaro II, Cypros III, etc. Se se examina a árvore genealógica da Casa dos Herodes se observará, em efeito, que há um uso constante dos mesmos nomes. Trata-se de uma espécie de costume tribal.
Por outra parte, Shaul ou Saulo é um nome raramente utilizado no Antigo Testamento. Primeiro está o de um dos filhos de Esaú, um dos reis do Edom, adversários dos filhos de Israel (Gênesis, 36, 37). Há logo um Saúl, filho de Simão e de uma cananéia, e neto de Jacob. Sua descendência constituiu um ramo à parte, pelo mesmo fato desta aliança com uma mulher de raça estrangeira. (Gênesis, 46, 10, e Números, 26, 13.) Está, por último, o Saúl que precedeu ao David (I Samuel, II Samuel, I Crônicas). Como vemos, isto confirma que Saúl não era um nome verdadeiramente judeu, mas, ao contrário muito utilizado entre os árabes.
Os sacrilégios de Saulo-Paulo
Resulta que a desonra e a própria santidade, devidamente identificadas, aconselham deste modo uma certa prudência, e representam, de cara ao mundo, os dois pólos de um campo atemorizador.
R. Caillois, L'Homme elle Sacre
Nos Atos dos Apóstolos lêem o que segue: "E seguiu até chegar ao Derbe e a Listra. E se encontrou ali com um discípulo chamado Timóteo, filho de uma mulher judia crente e de pai grego, que tinha a seu favor o testemunho dos irmãos que havia em Listra e em Iconio. Quis Paulo que se fora com ele, e tomando, circundou-lhe por causa de quão judeus havia naqueles lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego". (Atos dos Apóstolos, 16, 1-5.)
O que quer dizer com isto? Porque o mesmo texto nos contribui a seguir sua própria contradição: "Ao passar pelas cidades, comunicava-lhes os decretos dados pelos apóstolos e anciões de Jerusalém, lhes encarregando que os guardassem". (Atos dos Apóstolos, 16, 4.)
Que decretos são esses? Aqui os temos: "Porque pareceu bom ao Espírito Santo e a nós não lhes impor nenhuma outra carga mais que estas necessárias: que lhes abstenham das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, dos animais estrangulados e da fornicação, do qual farão bem em lhes guardar". (Atos dos Apóstolos, 15, 28-29.)
Aqui não se fala em nada de circuncisão... Porque do que aqui se trata é da Lei de Noé, menos severo que a Lei de Moisés. Logo voltaremos sobre este tema.
Por conseguinte, a operação efetuada sobre Timóteo pelo próprio Paulo foi uma circuncisão clandestina, não ritual, com o fim de enganar, e portanto mendaz e sacrílega.
Agora bem, ele não tinha nenhuma autoridade para efetuá-la, por não ser judeu, e menos ainda sacrifícador. E se fosse judeu. Paulo, a quem nos apresenta como chefe de uma tropa ao serviço do Sanedrim, demonstrava com esta função puramente laica que não era sacerdote. Porque é mais que incerto que Gamaliel, doutor supremo de Israel, recebesse entre seus discípulos a um jovem judeu destinado simplesmente a desempenhar o papel de jenízaro. Assim, Paulo mentiu ao pretender ter sido educado "aos pés do Gamaliel" (Atos dos Apóstolos, 22, 3).
Vejamos como se desenvolvia essa circuncisão ritual.
Exigia a presença de três mohelim (sacrifícadores), e de sete testemunhas varões adultos. A circuncisão, que começava com a faca ritual o primeiro mohel, terminava-se dentibus. A primeira aspiração de sangue a tragava esse primeiro mohel, que representava a "Deus, o primeiro servido". As duas aspirações seguintes as cuspiam a seguir os outros dois mohelim em uma taça de vinho de bênção. Com esse vinho consagrado se esfregava os lábios do jovem circunciso. A taça circulava logo do pai aos convidados varões, e todos bebiam dela. Tinha lugar assim a comunhão com Israel humano, e logo vinha a comunhão com Deus. O resto do vinho passava à mãe, que o mesclava com bolos e com geléias que eram distribuídas em seguida entre os amigos da família. (Cf. León de Módena, grande rabino de Veneza, Cérémonies & Coutumes juives, p.131.)
Por último, durante esta tripla comunhão com Deus, os sacerdotes e os laicos, cantava-se o salmo 16 de Ezequiel: "Revive em seu sangue!". E esta era a única circunstância em que os judeus podiam ingerir sangue, e mesmo assim se tratava de sangue humano, rigorosamente judeu, o que elimina a abominável lenda dos crimes rituais imputados aos judeus, e dos meninos cristãos sacrificados durante a Páscoa.
Como se vê por este relato; Paulo não tinha complexos, e para tratar com semelhante desenvoltura o rito mais sagrado da Antiga Aliança, tinha que ser totalmente alheio à raça judia, porque naquela época um filho de Israel "educado os pés de Gamaliel" jamais se atreveria a cometer tal impiedade.
Este constitui, pois, o primeiro sacrilégio de Saulo-Paulo, e é fácil de conceber que suscitasse entre os judeus um forte ódio quando fora conhecido por eles.
Vejamos agora o segundo: "Quando chegamos à Jerusalém, fomos recebidos pelos irmãos com alegria. Ao dia seguinte, Paulo, acompanhado de nós, visitou Santiago, e ali se reuniram todos os anciões. Depois de havê-los saudado, contou uma por uma as coisas que Deus tinha obrado entre os gentis por seu ministério. Logo eles lhe disseram: Já vê, irmão, quantos milhares de crentes há entre os judeus, e todos são zeladores da lei. Mas ouviram que ensina aos judeus da dispersão que terá que renunciar ao Moisés, e lhes diz que não circuncidem a seus filhos e não sigam os costumes mosaicos. O que fazer, pois? Indubitavelmente a gente se reunirá, porque saberão que veio! Por isso faz o que vamos dizer: Há entre nós quatro homens que têm feito voto. Toma-os contigo, purifica-se com eles e lhes pague os gastos para que se raspem a cabeça. E assim todos conhecerão que não há nada de quanto ouviram sobre si, mas sim você também segue na observância da Lei. [...] Então Paulo, tomando consigo aos varões, purificou-se, e entrou na manhã seguinte no Templo com eles para anunciar que dia se cumpriria a purificação, e a oferenda apresentada por cada um deles". (Atos dos Apóstolos, 21, 17-26.)
Os quatro homens que deviam cumprir essas cerimônias de purificação eram judeus que tinham feito o voto do nazireato para um tempo dado. Essas cerimônias implicavam gastos consideráveis; compreende-se, pois, que ao tomar Paulo a seu cargo a estes, infiltrando-se entre eles sem ter feito antes o voto prévio (e com razão!), cai no caso de corrupção de quatro nazirim, crime muito grave, tanto para ele como para eles, e no de falsa declaração de nazireato, verdadeiro sacrilégio, já que profanava as cerimônias de liberação desse estado.
E chegamos agora ao terceiro: Em Jerusalém, o tribuno Lisias convoca ao Sanedrim e chama a sua presença Paulo, que vai sob o amparo dos legionários. É então quando nosso Paulo tem a audácia mendaz de declarar: "Varões irmãos, eu com toda boa consciência procedi ante Deus até este dia" (Atos dos Apóstolos, 23, 1); o supremo sacerdote Ananías ordena a um dos que estão a seu lado que lhe golpeiem na boca. Então Paulo declara, furioso: "Deus golpeará a ti, parede branqueada!" (op. cit., 23, 3).
Com cal vivo branqueavam-se as soleiras, os pingentes as portas dos sepulcros utilizados para alertar aos judeus e lhes evitar o contato com um lugar impuro, no que se decompunha lentamente um cadáver. Os epítetos de "sepulcro" e de "parede branqueada" equivaliam portanto a tratar a alguém de podridão ou de carniça. (Jesus, por certo, tampouco se privou de utilizá-los; veja-se Mateus, 22, 27, e Lucas, 11, 44.)
Paulo, dando-se conta então da magnitude da estupidez que tinha cometido, replicou sem alterar-se aos judeus que lhe acusavam de ter insultado ao "soberano pontífice de Deus" (Atos dos Apóstolos, 23, 4): "Não sabia, irmãos, que fora o pontífice. Porque escrito está: Não injuriará ao príncipe de seu povo". (Atos dos Apóstolos, 23, 5, citando o Êxodo, 22, 27.)
Isto constitui uma prova mais de que não era judeu, e que não cresceu espiritualmente "aos pés de Gamaliel", como afirma. Porque nesse caso conheceria o rosto daquele que lhe sucedeu, seu sucessor direto; teria que lhe encontrar forçosamente, como simples cohén, na casa de Gamaliel. Mas, sobretudo, conheceria suas roupas e ornamentos rituais, e saberia, assim identificá-lo entre os sanedritas.
O que caberia pensar, por exemplo, de um sacerdote católico romano que, em presença de um concílio, não soubesse distinguir ao Papa por seus ornamentos particulares, seu posto, sua importância e sua autoridade?
O judaísmo compreendia duas categorias de fiéis, e um só se convertia verdadeiramente em filho de Israel ao final de duas etapas, ou seja:
1) partidários de primeiro grau, chamados "temerosos deste Deus observavam a Lei de Noé -daí seu nome de noacitas-, quer dizer que não consumiam sangue, e por este motivo, nenhuma carne procedente de animal morto (cf. Gênesis, 9, 1-7);
2) partidários de segundo grau, chamados "de justiça". Observavam a Lei de Moisés com todo seu rigor: proibição de sangue, de carnes consagradas e oferecidas em altares dedicados a outros deuses, de carnes procedentes de animais mortos ou impuros, etc. (cf. Deuteronômio, caps. 12-26).
É fácil tirar a conclusão de que Saulo-Paulo nem sequer foi partidário de primeiro grau, um "temeroso de Deus", porque ao ter que respeitar a Lei de Noé, que impunha a fecundidade sexual (Gênesis, 9, 7), não poderia aconselhar seus seguidores: "Quem casa a sua filha donzela faz bem. Mas quem não a casa faz melhor". (Cf. I Epístola aos Coríntios, 7, 38.)
Quanto à circuncisão por complacência, aceita para poder casar-se com uma das filhas do Gamaliel, é provável que fora igual de irregular que a de seu discípulo Timóteo, e não nos está proibido supor que nem sequer foi um cohén regular o que a praticou.
Nota: Observar-se-á que no texto grego dos Atos, 13, 1: "... e Menahem, que fora criado com Herodes, o Tetrarca, e Saulo...", o escriba do século IV pôs este último nome em nominativo (Saúlos), o que implica, em seu espírito, que Saulo não foi criado com Menahem e Herodes, o Tetrarca, futuro Herodes Agripa I. Trata-se de uma artimanha indiscutível, já que é evidente que, muito mais que Menahem, membro de uma família rival da de Herodes, o Saulo "príncipe de sangue real", como o qualifica Flavio Josefo, esteve em situação de poder ser criado com seu primo Herodes, o Tetrarca. Quanto mais que as obras deste autor nos mostram sem cessar aos membros desta dinastia mesclados em uma espécie de vida em comum, verdadeira corte reunida nos diversos palácios em torno de um dos príncipes descendentes de Herodes, o Grande. De onde essas múltiplas intrigas que marcam tragicamente a história de tal família.
10 - Paulo e as mulheres
Se me amarem tanto como eu vos amo, nenhum mortal é, então, tão amado como eu.
Gregorio VII Carta a Mathilda, duquesa da Toscana, sua concubina.
"Há uma raça nova de homens, nascidos ontem, sem pátria nem tradições, unidos contra todas as instituições civis e religiosas, perseguidos pela justiça, pontuados universalmente de infâmia, mas que se vangloriam da abominação comum: são os cristãos... Os perigos que os cristãos confrontam por suas crenças, Sócrates soube encará-los por si com um valor inquebrável e uma serenidade maravilhosa. Os preceitos de sua moral, no que tem de melhor, ensinaram-nos os filósofos antes deles. Suas críticas à idolatria, que consistem em dizer que as estátuas realizadas por homens freqüentemente desprezíveis não são deuses, foram repetidas inumeráveis vezes. Heráclito, por exemplo, disse: "Dirigir orações à imagens, sem saber o que são os deuses e os heróis que representam, é o mesmo que falar com pedras".
"O poder que parecem possuir lhes vem de nomes misteriosos e da invocação de certos demônios. Através da magia foi como seu Mestre realizou tudo que de assombroso houve em suas ações. Logo pôs grande cuidado em advertir à seus discípulos que se protegessem daqueles que, ao conhecer os mesmos segredos, poderiam fazer quão mesmo ele e fingir, igual a ele, que participassem do Poder Divino. Divertida e escandalosa contradição! Porque se condena com razão a quem imita, como não se voltar contra ele sua própria condenação? E se ele não é nem impostor nem perverso por ter realizado ditos prodígios, por que seus imitadores, pelo fato de levar a cabo as mesmas coisas mediante os mesmos meios teriam que sê-lo mais que ele?..." (Cf. Celso: Discurso da Verdade, 1-3.)
Antes nosso terrível autor assinala os círculos familiares nos quais os cristãos tentam, preferencialmente, obter partidários: "vêem-se cardadores de lã, sapateiros, tecelões, gente da maior ignorância e desprovidos de toda educação, que, em presença de seus professores, homens de experiência e de julgamento, guardam-se bem de abrir a boca. Mas quando surpreendem aos meninos da casa, ou inclusive às mulheres, que não têm mais razão que eles mesmos, começam a lhes contar maravilhas! É a eles sozinhos a quem terá que acreditar; o pai de família, os preceptores, são loucos que ignoram o verdadeiro bem e são incapazes de ensiná-lo. Só eles sabem como terá que viver; os meninos farão bem de segui-los, e através deles a felicidade visitará toda a família! Não obstante, se enquanto eles pregavam aparece um dos preceptores, ou o próprio pai de família, ou alguma pessoa séria, os mais tímidos não se calam; os descarados não deixam de incitar aos meninos a que sacudam o jugo, insinuando em surdina que não querem lhes ensinar nada em presença de seu pai ou seu preceptor, para não expor-se à brutalidade dessas gente corrompidas, e que lhes castigariam. Mas que aqueles que desejem saber a verdade, suplantem ao pai e preceptor, e vão com as mulheres e os meninos ao gineceu, ou à tenda do sapateiro ou a do tecelão, para aprender a vida perfeita". (Op. cit., tradução de Louis Rougier, Jean-Jacques Pauvert, éditeur. Paris 1965.)
Vimos, indiscutivelmente, um quadro tomado ao vivo. Uma coisa assim não se inventa. E Celso, amigo do imperador Juliano, seu companheiro de estudos nas escolas de Atenas, a quem Juliano fez governador das províncias da Capadocia, Cilícia, pretor da Bitinia, com toda segurança teve que se ver com propagandistas cristãos.
Agora bem, vamos encontrar nos próprios textos cristãos esta ação insidiosa entre as mulheres, e sobretudo as jovens. Freqüentemente estas últimas eram "dadas em matrimônio" pelo pater familias, sem preocupar-se o mínimo por suas inclinações do momento (coisa que em Israel a Lei religiosa proibia fazer). Disso resultavam feridas morais incuráveis, e se compreende facilmente que os pregadores da nova religião encontrassem terreno abonado para lhes pregar a castidade.
Pois bem, nos Atos de Paulo, chamados também Atos de Paulo e de Tecla, cujas versões siríaca, eslava e árabe são do século VI (existem fragmentos da versão grega em um pergaminho do século VI), vamos encontrar provas formais desta ação insidiosa de Paulo entre as mulheres. E esta ação, tendo em conta as crenças daqueles tempos, revestirá um aspecto mágico não menos seguro.
Por uma parte, Paulo aconselhará a quão jovens não se casem. Por outra, aconselhará às jovens e às mulheres o mesmo. Mas enquanto o efeito sobre os primeiros é menos tangível, a ação, ou, como poderíamos dizer, a influência, por volta das segundas, é total. Julgue-se:
"Afortunados aqueles que têm mulheres como se não tivessem, porque terão a Deus como herança..." (Op. cit., V.)
"Enquanto Paulo assim falava em meio da assembléia, na mansão de Onesiforo, uma virgem, cuja mãe se chamava Teoclia, e que estava prometida a um jovem chamado Tamiris, sentada na janela mais próxima a sua casa, escutava dia e noite a palavra de Deus anunciada por Paulo... E não se movia da janela... Além disso, como via mulheres e virgens ao lado de Paulo... Porque ela não tinha visto ainda nunca as facções de Paulo, só tinha ouvido sua palavra." (Op. cit., VII.)
"E Teoclia disse: Tenho detalhes novos para dar, Tamiris. Faz três dias e três noites que sua prometida não se separa da janela, nem para comer nem para beber, mas sim, como extraviada de gozo, aterra-se de tal maneira a um homem estrangeiro que ensina palavras enganosas e artificiosas, que estou surpreendida de que o tão grande pudor da jovem esteja turbado de forma tão penosa." (Op. cit., VIII.)
"Tamiris, este homem transtorna a cidade dos iconianos, como a sua própria pregação, já que todas as mulheres e os jovens vão a ele... E minha filha também, encadeada como uma aranha a sua janela pelo que ele diz, está dominada por um desejo novo e por uma temível paixão... E a jovem está gostando muito..." (Op. cit., IX.)
"E todos choravam amargamente, Tamiris porque perdia a sua futura esposa, Teoclia a sua filha, os jovens escravos a sua ama. Reinava, pois, na casa uma grande e geral confusão de pesar. E enquanto isso, Tecla não mudava, e permanecia sempre atenta ao verbo de Paulo." (Op cit., X.)
"Tamiris, quando ouviu isto, ficou com ciúmes e cólera. Logo que amanheceu se levantou e foi à casa de Onesiforo com magistrados, funcionários, e um grupo bastante numeroso armado de fortificações, e disse ao Paulo: "seduziste à cidade dos iconianos e a minha prometida, de modo que esta já não quer casar-se comigo; vamos ante o governador Cestilio". E o grupo inteiro disse: "leve este bruxo, porque seduziu todas nossas esposas"; e a multidão era desta mesma opinião." (Op. cit., XV.)
"Tamiris, diante do tribunal, disse aos gritos: "pró-cônsul, não sabemos de onde vem este homem que impede de casar-se às jovens. Que diga ante ti por que ensina essas coisas"..." (Op. cit., XVI.)
Ao revelar o interrogatório de Paulo que este era cristão, o governador ordenou prendê-lo e colocá-lo na prisão, esperando que, ao ter mais tempo livre, pudesse escutá-lo mais a fundo.
"Mas Tecla, durante a noite, tirou os braceletes e os deu ao porteiro, e quando teve aberta a porta, encaminhou-se para a prisão. Deu de presente ao carcereiro um espelho de prata, entrou junto ao Paulo e, depois de sentar-se a seus pés, escutou a grandeza de Deus. E Paulo não temia nada e se conduzia com a liberdade de Deus, e sua fé recobrou firmeza nela, enquanto lhe beijava as algemas." (Op. cit., XVIII.)
A liberdade de Deus ou a liberdade dos filhos de Deus? O que pretende isto dizer? Porque essa expressão em desuso designa o fato de efetuar não importa que ação, na ignorância do bem e do mal!
Aqui abriremos um parêntese. A tradução deste velho apócrifo (a versão copta é do século V, mas aparece citado no ano 200 por Tertuliano) é do abade Vouaux, catedrático de universidade, professor no Collége de Malgrange. O imprimatur é de Paris, de 1912, e foi editado pela Librairie Letouzey et Ané.
Agora bem, em relação ao último versículo citado acima, o tradutor toma a precaução de assinalar: "A observação acautela de todo escândalo, mas este seria muito similar em tais circunstâncias, e possivelmente mais valeria calar-se, e não desflorar essa ingenuidade assinalando de forma muito vigorosa. Humildade no amor puro, essa é a comovedora virtude da pecadora arrependida (Lucas, 7, 38), e essa é também a de Tecla...". (Op. cit., notas da página 181.)
Observar-se-á que se os Atos de Paulo e de Tecla estão classificados entre os apócrifos, e se o Papa Leão e Toribio da Astorga (por volta de 450) condenam a estes últimos por terem utilizados seitas heréticas, só o foram por este motivo, já que: "...sem nenhum gênero de dúvidas, essas maravilhas e esses milagres descritos nos apócrifos, ou são dos santos apóstolos, ou puderam ser deles". Coisa que nos dá a razão!
Quisemos oferecer estes comentários do abade Vouaux para demonstrar que se tratava de uma atração de ordem sentimental, que foi justificada a seguir em função de uma conversão final. Agora bem, o aspecto físico de Paulo não justifica uma influência semelhante sobre as mulheres, como já vimos Or-ffav outra coisa, que logo abordaremos. Mas prossigamos, porque o texto vale a pena:
"Enquanto isso Tecla era procurada por seus familiares e por Tamiris. Acreditando-a perdida, foram em sua busca pelas ruas. Mas um dos escravos, companheiro do porteiro, declarou que tinha saído durante a noite. Então perguntaram ao porteiro, e este lhes disse que tinha ido encontrar-se com o estrangeiro na prisão. Seguindo esta indicação, foram ali, e encontraram-na, por assim dizê-lo, encadeada pelo amor. Saíram então da prisão, arrastaram às multidões atrás deles, e revelaram ao governador o que tinha acontecido." (Op. cit., XIX.)
"Este ordenou que conduzissem Paulo diante de seu tribunal. Mas Tecla rodava pelo chão, no lugar exato em que, sentado na prisão, tinha-a instruído Paulo. E o governador ordenou que a levassem-na também diante do tribunal. Ela, cheia de alegria, saiu prazerosa. Mas quando traziam já de retorno Paulo, as multidões gritavam com mais violência: É um bruxo, matem! Mas o governador escutava agradando ao Paulo, que falava de suas obras santas; logo, depois de reunir a seu conselho, chamou Tecla e lhe disse: "por que não se casa com Tamiris, segundo a lei dos iconianos?" Mas ela olhava entusiasmada ao Paulo. E como não respondia, sua mãe interrompeu neste grito: "Queima esta perversa; queima a esta inimizade no meio do teatro, para que todas as mulheres instruídas por este homem cobrem medo"." (Op. cit., XX.)
"O governador sofreu atrozmente, mas mandou flagelar ao Paulo e o expulsou da cidade, e condenou Tecla à fogueira. Imediatamente se levantou e foi ao teatro, e todo o povo foi contemplar este castigo, legalmente imposto. Mas Tecla, igual ao cordeiro no deserto olhou por todos lados em busca do pastor, do mesmo modo procurava Tecla ao Paulo! E quando passou seu olhar pela multidão, viu um senhor sentado, com os traços de Paulo. Ela disse: "Como se eu pudesse fraquejar, Paulo veio a me contemplar". E o olhou fixamente, encantada. Mas ele ascendeu de novo aos céus." (Op. cit., XXI.)
Continuando, um motim levado a cabo por mulheres tenta opor-se ao suplício de Tecla. Conseguem-no, e Tecla irá a pé, vestida de homem, mesclada com um grupo de meninos e garotas jovens, em busca de seu querido Paulo, ao Myras, aliás Antioquia de Pisidia.
Deixemos de lado todo o sobrenatural abundantemente aumentado, como está mandado em todos estes textos apócrifos. O que fica é que a história de Tecla "teve uma grande acolhida e alta veneração em toda a Igreja", como nos diz o abade Vouaux, tradutor da versão grega citada.
Assim, o "encanto" do qual fazia uso Saulo-Paulo para com as mulheres, a fim de lhe permitir fazer delas elementos propagandísticos da doutrina de que era autor, esse "encanto" é inegável, e segue sem explicação racional. Evidentemente, nos objetará que era obra do Espírito Santo. Mas que o Espírito Santo faça que uma moça se derrube pelo chão no lugar que ocupasse seu querido Paulo em um calabouço, que a deixe muda de admiração ao contemplá-lo, que distribua suas jóias para ir a seu encontro tão longe, a mais de cem quilômetros de sua residência familiar, tudo isso causará cepticismo em todo leitor com sentido comum.
E isso não faz a não ser reforçar nossa primeira hipótese, ou seja, que o judeu chamado Simão, que conseguiu mediante seus sortilégios que a princesa Drusila abandonasse a seu marido Aziz, rei do Emeso, para viver com um antigo escravo liberto, o procurador Félix, esse Simão poderia muito bem ser Simão, o Mago, aliás Paulo, aliás Saulo, antigo príncipe herodiano...
E a segunda hipótese, segundo a qual Saulo teria obtido o "sim" da filha de Gamaliel (coisa que lhe decidiu a praticar-se previamente a circuncisão) unicamente graças a um sortilégio, e em modo algum devido a sua superioridade física, teria também fundamento.
Por outra parte, seria um grande engano supor que a magia foi uma técnica habitual só de Paulo. Os cristãos utilizaram com profusão a magia curativa, e ficam testemunhos indiscutíveis nos textos antigos. É provável que a mesma magia fora utilizada em certos episódios de circo, em presença das feras. Mas o pequeno número de iniciados nesta ciência, zelosamente conservada por seus escassos possuidores, no seio da massa anônima dos crentes, forçosamente tem feito escassear as manifestações deste tipo, e os ocultos se foram perdendo pouco a pouco.
Vejamos o que diz disso Orígens no Contra Celsum: "Existem determinadas doutrinas, ocultas às multidões, que não são reveladas, somente depois que forem repartidos os ensinos esotéricos. Isso não é exclusivo do cristianismo". (Op. cit.)
Vejamos ainda outros textos que demonstram sem dificuldade a ação misteriosa dos propagandistas cristãos sobre as mulheres, no seio das nações pagãs. O R. P. Festugiére, O. P., em seu quarto tomo de La Révelation d'Hermés Trismégiste, le Dieu Inconnu et la Gnose, sublinha que em bom número de Atos apócrifos: "Sempre a mesma história constitui um dos topos desta literatura apócrifa. Um chefe, um rei, parente do rei ou do magistrado local, está casado, vive em boa união com sua esposa, tem filhos. Aparece o apóstolo, converte à mulher: esta, então, rechaça os ardores de seu marido e decide permanecer casta". (Op. cit., P. 227.)
Pode citar-se a este respeito:
- O prefeito Agripa e suas quatro concubinas, nos Atos de Pedro (XXXIV):
- o pró-cônsul de Hierápolis e sua esposa Nicanora, nos Atos de Felipe (114);
- o magistrado Aigeates e Maximilia, nos Atos de André (3);
- Andránicos, estrategista de Éfeso, e Drusiana, nos Atos de João (63);
- Cansíos, parente do rei, e Migdonia, nos Atos de Tomás (ou);
- o rei Misdaios e Tertia, nos mesmos Atos de Tomás (134). Nos Atos de André, ao rechaçar Maximilia a seu marido Aigeates, corre a reunir-se com o apóstolo André na prisão onde o encerraram. E este sustenta com ela uma estranha linguagem, no que se vê aparecer algo distinto ao desejo de espiritualização da mulher, mas, ao contrário um ódio ao marido legítimo e o desejo de subjugar esta mulher:
"Suporta todas as torturas que inflige seu marido, e olhe um pouco para mim, e verá como se enche inteiro de atordoamento, e se murchará longe de si. Porque -sobretudo, me tinha passado,devo lhe dizer isso não conhecerei o descanso até que não veja cumprida a obra que vejo produzir-se em si. Sim, na verdade, vejo-a uma Eva arrependida, e em mim a um Adão voltando-se. Porque o que Eva sofreu por ignorância, agora, você, para quem eu tendo minha alma, você o endireita com sua conversão. O que o nous* sofreu quando foi abatido com Eva e escapou a si mesmo, eu o levanto contigo, do momento em que se reconhece recuperada". (Cf. Atos de André, XL.)
*[Nous: em grego significa o espírito.]
Se isto não se parecer com um malefício, as palavras não têm sentido! Nos Atos de Felipe encontramos a mesma má fama dos apóstolos: a de sedutores de mulheres. Uma vez mais citaremos ao R. P. Festugiéres: "O apóstolo Felipe está entrando na cidade de Nicatera, na Grécia, quando os cidadãos, e especialmente os judeus, revoltam-se. Felipe tem fama de separar aos maridos das mulheres; portanto, terá que jogá-lo antes de que se instale e comece a seduzir às mulheres". (Op. cit., P. 239.)
O mesmo acontece no caso de Carisios e Migdonia, nos Atos de Tomás. Diz-nos este autor: "Migdonia, depois de haver-se recusado a seu marido Carisios, tenta reunir-se com o apóstolo Felipe em sua prisão". (Op. cit., P. 240.)
É óbvio que nos textos cristãos ortodoxos esta atração das mulheres pelo apóstolo é sempre platônica. Mas não vemos por que deveria exercer-se de forma precisa e total em uma única mulher, enquanto o apóstolo não desperta entre todas as demais a não ser uma imensa comente de simpatia para a nova doutrina. Não vemos por que teria que ser indispensável separar a esta única mulher de seu legítimo marido, e suscitar nela o desejo absoluto e fascinante de não abandonar jamais nem por um instante ao chamado apóstolo, enquanto que todas as outras permanecem unidas a seu marido legal. Confessemos que em todas essas numerosas circunstâncias o Espírito Santo desempenha um estranho papel, habitualmente encomendado a personagens pouco recomendáveis. E no que fica aqui o famoso sacramento do matrimônio?
Se ainda duvidássemos disso, bastaria-nos tomando textos análogos de certos padres da Igreja, textos nos quais não vacilam em ser mais loquazes, simplesmente porque então se trata de notórios hereges. Citaremos ao Ireneu, em seu tratado célebre Contra as Heresias, no qual estigmatiza ao gnóstico Marcos: "Sobretudo é com as mulheres com as quais tem entendimentos, e preferentemente com as grandes damas, de alto berço e as mais ricas possíveis. Freqüentemente tenta seduzi-las sustentando com elas conversações de linguagem aduladora como esta: "Quero lhe dar parte de minha graça, já que o Pai de todas as coisas vê continuamente seu anjo frente a seu rosto (Mateus, 18, 10). É em nós onde tem lugar a Grandeza. Temos que nos fundir na Unidade. Recebe primeiro de mim e por minha Graça. Esteja disposta como uma recém casada a espera de seu jovem marido, para que você eu seja, e eu você seja. Instala em sua câmara nupcial o germe da Luz. Tira de minha mão ao jovem marido, lhe dê lugar em si, e encontra lugar nele. Vê? A Graça descendeu a si, abre a boca e profetiza". Se a mulher responde: "Eu não profetizei jamais, e não sei profetizar", ele, fazendo de novo certas invocações para deixar estupefata àquela a quem seduziu, diz: "Abre a boca e dá algo; profetizará". Ela então, inflada de orgulho, e apanhada na armadilha destas palavras, com o ânimo ardendo já ao simples pensamento de que vai profetizar, com o coração lhe palpitando em excesso, aviva-se e pronuncia frivolidades, algo, impudicas tolices, dignas do tolo espírito que a inflamou... A partir desse instante se vê à si mesmo como profetisa, cheia de agradecimento ao Marcos, que lhe comunicou sua Graça. Ela tenta recompensá-lo, não só lhe dando o que possui (daí procedem as imensas riquezas que acumulou), mas também lhe entregando seu corpo, já que arde em desejos de unir-se à ele em tudo, a fim de fundir-se, com ele, na Unidade". (Cf. Ireneu, Contra as heresias. I, xIII, 3.)
Pois bem, este Marcos, aliás Marcus, discípulo de Valentino, foi o fundador de uma grande igreja gnóstica em finais do século II, e não se tratava de uma seita minúscula, nem de um chefe não cristão. E ao demonstramos que Marcos seduzia às mulheres ricas em nome da nova religião, Ireneu não faz a não ser confirmar que as outras faziam o mesmo.
Em um texto redigido, conforme parece, por volta do ano 150, e intitulado O Pastor, o autor, um certo Hermas, considerado como um dos quatro "pais apostólicos", descreve-nos mais à frente: "...aqueles que estão cobertos de manchas são os diáconos prevaricadores, que roubaram o bem das viúvas e dos órfãos, e se enriqueceram nas funções que receberam..." (Op. cit., IX, 26.)
Acaso o próprio Saulo-Paulo não aconselhava: "Honra às viúvas que são verdadeiramente viúvas..." (I Epístola ao Timóteo, 5, 3)? Eugenio Sue, em seu Judeu errante, não inventou nada. Cometeria-se um grande engano caso que esta ação oculta sobre as massas femininas, polarizada mais particularmente sobre uma delas, começou posteriormente à morte de Jesus, no ano 34. Que o leitor se remeta ao capítulo 26 do volume precedente, intitulado "Jesus e as mulheres", e ficará bem informado. O exemplo vinha de acima.
Citemos simplesmente, para abreviar: "Havia também umas mulheres que olhavam de longe. Entre elas estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Santiago, o Menor, e de José, e Salomé, as quais, quando ele estava na Galiléia, seguiam-lhe e serviam-lhe, e outras muitas, que tinham subido com ele à Jerusalém...". (Marcos, 15, 40-41.)
Lucas (8, 3) diz-nos que essas mulheres "lhe assistiam com seus bens...", quer dizer, com seu dinheiro, já que abandonaram suas casas. Não se tratava já de hospitalidade.
E, se ainda duvidássemos, bastar-nos-ia relendo um evangelho apócrifo muito velho, de que possuímos um manuscrito do século IV, sobre um texto inicial de finais do século II, por volta dos anos 175-180: "Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem saiu para haver-se metido em minha cama e ter comido em minha mesa? E Jesus lhe disse: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua discípula!". (Cf. Evangelho de Tomás, capítulo 43, versículo 65, tradução do Jean Doure. Pión, Paris, 1959.)
Por outra parte, é seguro que o "ambiente" daqueles tempos alimentou o tesouro zelote em proporções consideráveis; demos entrevistas que o provam no volume precedente. Desde aí a conhecida frase de Jesus: "Na verdade lhes digo que os publicanos e as rameiras lhes precederão no reino dos céus...". (Mateus, 21, 31-32.)
As peças justificativas da condenação de Jesus pelo procurador Poncio Pilatos foram necessariamente enviadas à Roma, já que se tratava da execução de um "filho de David" que pretendia o trono de Israel, e a quem Tibério César, durante um tempo, tinha pensado em confiar uma tetrarquia. Estas peças, conservadas nos arquivos da Chancelaria imperial, em Roma, foram examinadas pelo imperador Juliano, sucessor de Constantino, e à elas se refere freqüentemente em suas polêmicas com os cristãos. E aqui temos uma alusão bastante clara no que diz respeito aos laços existentes entre o partido zelote e a prostituição, que tiramos de suas obras: "A Molessa recebeu ao Constantino meigamente, enlaçou-o entre seus braços, revestiu-o e o adornou com vestimentas , e logo lhe conduziu ao lenocínio... Assim o príncipe pôde encontrar-se também com Jesus, que freqüentava esses lugares, gritando a tudo o que chegava: "Que todo sedutor, que todo homicida, todo homem golpeado pela maldição e a infâmia se apresente com toda confiança! Banhando-se com esta água, voltarei imediatamente puro! E se voltar a recair nas mesmas faltas, quando lhe golpearem no peito e na cabeça, voltarei a conceder-lhes a pureza!"". (Cf. Julio César, Obras completas, tradução de J. Bidez, Ed. Les Belles-Lettres, Paris, 1932.)
Terá que dizer que Constantino, "o homem coberto de crimes" segundo os grandes bispos cristãos (fez assassinar a sua esposa, a seu filho e a numerosos parentes e amigos), foi também um dissoluto notável. Não obstante, no século IX lhe santificaram, a pedido de Carlos Magno*. Mas Juliano, que era amável, casto, aficionado às boas letras, que sabia perdoar a seus piores adversários, Juliano foi simplesmente injuriado e assassinado.
*[Carlomagno estava interessado na "santificação" de seu colega Constantino. Sua vida tinha sido muito pouco edificante. Além da matança de quatro mil e quinhentos; reféns no Werden, no ano 782, teve nove esposas ou concubinas (é bastante difícil nessa época estabelecer a diferença), mas, além disso, praticou o incesto com maestria. Seu cronista e biógrafo, o monge Eginhard, relata que este imperador se guardava bem de casar a suas filhas, já que "se servia carnalmente delas como de suas esposas". Isso não impediria à Igreja convertê-lo no santo padroeiro dos escolares! O Papa João XXIII o fez apagar do santoral, com um certo número de "glórias usurpadas" mais. Quanto ao Constantino, jamais gozou da aparição no céu do famoso Iabarum: "In signo vinces!". Seu biógrafo e panegirista Eusebio da Cesárea ignora tal milagre, ideado mais adiante por Lactancio. Este transpôs sem dúvida o fato de que Constantino, anteriormente, tinha tido uma visão em um templo de Apolo que ele visitava. Tinha "visto" como o deus Apolo estendia-lhe uma coroa. Lactancio arrumou a história...]
Um fato que naquela época teria suscitado uma violenta hostilidade popular e reações legais contra Saulo-Paulo e seus lugares-tenentes em Roma foi fazer participar às mulheres em uma "eucaristia", no curso da qual podiam beber vinho, quanto mais que esta "eucaristia" estava incluída em um "ágape" prévio no que o tonus elítico subia rapidamente, se dermos crédito aos protestos de Paulo. (Cf. I Epístola aos Coríntios, 11, 20-21, infra, P. 254.)
Com efeito, a conseqüência dos inauditos escândalos suscitados pelas orgias dionisíacas femininas, em princípio do século II antes de nossa era, um senatus-consulte datado do ano 186 A. C. da mesma reiterara em Roma a proibição dos bacanais em toda a Itália, recordando que, desde Rômulo, o vinho estava rigorosamente proibido às mulheres. Estava-lhes deste modo proibido pôr a mão sobre as chaves das cavas e as adegas. A embriaguez feminina, fosse qual fosse, obtida pelo vinho, bebidas fermentadas ou as fumigações, Rômulo a identificava ao adultério, já que se dizia que a mulher era possuída pelo deus de quem dependia o ingrediente assimilado. A única embriaguez tolerada na mulher era a do gozo sexual nos braços do legítimo marido.
O texto original de tal senatus-consulte figura em uma placa de bronze descoberta em Tiriola, na Calabria, e conserva-se em Viena, no antigo gabinete imperial.
Como se vê, para os judeus e as mulheres das diversas "províncias" submetidas a Roma e convertidas à nova religião, isto não expôs nenhum problema; mas para os romanos era muito distinto, e a absorção do vinho "eucarístico" no curso de ágapes freqüentemente desviados para outros objetivos, implicava sanções penais inevitáveis.
11- O "Quadrado de Amor" de São Ireneu
A desgraça mais grave que possa acontecer a uma criatura humana caída para o amor é ter ligado seu destino a um ser inferior. O perigo constitui na decadência que pode resultar para ela, e esse perigo pode estender-se ao longo de prolongados períodos de tempo.
Maurice Magre, L'Amour et la Haine
Sabe-se que entre as fórmulas mágicas da tradição do Ocidente figuram o que se conveio em denominar os palíndromos. São palavras, nomes, frases que, lidos da direita à esquerda ou da esquerda à direita, de cima para baixo ou de baixo para cima, dão invariavelmente os mesmos termos. Neste aspecto constituem, no campo literal, o que os quadrados mágicos constituem no campo numeral, mas estes últimos representam um grau mais elevado de conhecimento, e permitem o acesso a um esoterismo imensamente mais oculto. São, efetivamente, os quadrados mágicos os que constituem as "pranchas de extração" reais dos nomes de poder na magia prática, nomes de entidades verdadeiramente polarizadas, e ao mesmo tempo permitem estabelecer os célebres "selos planetários".
No campo dos palíndromos citarão a célebre fórmula latina: ROMA TIBÍ SÚBITO MOTIBUS IBIT AMOR, que se lê igual em um sentido como no outro.
Não obstante, é menos conhecida que o célebre quadrado mágico que suscita justas encarniçadas entre eruditos, e que se apresenta abaixo dois aspectos:
SATOR ROTAS
AREPO OPERA
TENET TENET
OPERA AREPO
ROTAS SATOR
Por isso lhe dá o nome de "quadrado do Sator", ou do "Sator". Lida horizontal ou verticalmente, tanto de esquerda a direita como de direita a esquerda, esta frase também latina (ao menos na aparência) dá invariavelmente as cinco mesmas palavras.
O uso dos palíndromos, considerados como palavras de poder em magia prática, foi particularmente desenvolvido em um manuscrito do século XVIII, propriedade da Biblioteca do Arsenal, em Paris, e cópia de um documento mais antigo descoberto em Veneza pelo marquês do Paulmy d'Argenson, embaixador da França. Tem como título: "La Magie Sacrée que Dieu Donna Á Moyse, Aaron, David, Salomóm, et Á d'autres prophétes, et qui enseigne la Vraie Sapience Divine, laissée par Abraham fiís de Simón á son fiís Lamech, traduite de L'hébreu, Á Venise em 1458". (A Magia Sagrada que Deus deu ao Moisés, Aarón, David, Salomão, e a outros profetas, e que ensina a verdadeira Sabedoria Divina, deixada por Abraham filho de Simão a seu filho Lamech, traduzida do hebreu, em Veneza em 1458.)
Nós recopiamos, publicamos, prefaciamos, comentamos e cotamos. A ela remetemos ao leitor amante do mistério! *[R. AMBELAIN, La Magie Sacrée d'Abramelin le Mage, Niclaus éditeurs. Paris, 1959.]
Pois bem, uma fórmula muito parecida com o "Sator" figura no capítulo XIX, sob o número 9, página 230 da obra citada na nota 76, e é a seguinte:

S A L O M
A R E P O
L E M E L
O P E R A
M O L A S
Seu efeito consiste em procurar "o amor de uma donzela em geral" (sic), e o manuscrito precisa os nomes demoníacos associados à posta em marcha deste sortilégio, assim como todo o ritual preparatório.
Este palíndromo é uma mescla de palavras hebraicas, associadas aos termos do "Sator" precedente. Salom é uma abreviatura de Salomóm, e Lemel o é do Lemuel (ou Lamuel), chamado nos Provérbios, 31, 1-4, nome de um rei que não seria outro a não ser o próprio Salomóm (cf. Dictionnaire Rabbinique de Sander e Trenel, Paris, 1859), e que significa "eleito de Deus".
Pois bem, o significado de "Sator" tradicional é a seguinte:
- Sator: semeador, criador, pai, deus, os deuses (Virgilio);
- Arepo: arado, grade, lâmina agrária (em francês);
- Tenet: manter, dirigir, conduzir;
- Opera: trabalho, obra;
- Rotas: rodas, ciclos, círculos.
C. Wescher, que foi o primeiro em estudá-lo cientificamente, traduz assim: "O semeador está no arado, o trabalho ocupa as rodas...".



Anverso e reverso do pentáculo de "Sator". (Coleção Alex Bloch.)
No segundo tipo do Sator dado pelo Abramelin, a palavra Moa pode significar um molar de moinho em latim, ou uma deformação de Molechet, deidade feminina do céu em acadio. Pois bem, as rodas e as demola têm pontos em comum, e toda deidade celeste de tipo feminino evoca ou à Lua ou Vênus, com seus ciclos regulares. Como se vê, a idéia geral é a mesma.
Quanto à associação do semeador e da grade agrária, há uma imagem similar à penetração do homem na mulher. "Sua esposa é seu campo, lavra-o nos dois sentidos...", diz o velho axioma semítico (Corán, II, 223).
É evidente que esta frase chave, o "Sator", não possui a priori nenhum sentido místico, mas seu significado geral reveste um relevo particular se se tiver em conta sua aplicação no plano do erotismo, recordando que Eros representava ao deus do amor carnal, do desejo dos sentidos, enquanto que Ágape era a deidade do amor platônico, sentimental, espiritual.
Pois bem, o "Sator" possui em princípio, e em sua forma mais antiga, o mesmo significado erótico. Foi descoberto em Pompéia, em duplamente esboçado, sob a forma de "Rotas" (cf. R. P. Guillaume de Jerphanion, em Recherches de Sciences Religieuses, XXV, abril de 1935, pp. 188 e ss.). Os dois palíndromos estavam riscados sobre uma das colunas do templo do Amor, e este fato é significativo.
Um arqueólogo lionês, M. Amable Audin, assinalou no N.° 119, de outubro de 1965, do Bulletin du Cercle Ernest Renán, que "Sua posição, por debaixo de camadas de cinzas absolutamente virgens, demonstra de forma imperativa que devia ser anterior ao sepultamento sob as cinzas da erupção do Vesúvio".
Como esta teve lugar no ano 79 de nossa era, o traçado do duplo "Sator" foi efetuado muito antes. E por Tertuliano sabemos que não havia nenhuma comunidade cristã naquela época, nem em Pompéia nem em seus arredores (o que nos dá uma idéia da plausibilidade da célebre novela: Os últimos dias de Pompéia).
Posteriormente descobriremos esta inscrição misteriosa em Doura-Eropos, no Eufrates, em uma estância que servia de despacho aos actuarii das coortes auxiliares romanas, grafite com tinta vermelha sobre a muralha, sob a forma de "rotas".
Logo, no Egito, com um valor mágico e profilático, nos papyrii coptos 193 e 194 da coleção do arquiduque Renier: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS
A L P H A
L E O N
P H O N E
A P E R
Em um ostrakon do museu do Cairo pode-se ler acompanhada de palavras mágicas. Um amuleto de bronze de origem egípcia, descoberto na Ásia Menor, e conservado antes de 1945 no museu de Berlim, levava deste modo a fórmula do "Sator".
Logo se cristianizará. Os coptos darão a cada um dos cinco pregos da crucificação de Jesus cada uma das cinco palavras do "Sator". Em Bizancio convertem-nas em nomes dos pastores testemunhas do Natal! E a grande corrente esotérica medieval assimilará, acompanhada de nomes angélicos ou demoníacos, em seus livros de conjuros manuscritos.
E é aqui onde vamos encontrar tanto nas mãos dos cristãos de antigamente como nos de hoje.
Em 1954, nas escavações de Aquineum, o velho Buda, na Hungria, descobriu uma telha que levava em seu interior um hexagrama ou "selo de Salomão" com a inscrição fatídica. Esta última acompanhada do outro palíndromo já citado, mas desta vez se achava parcialmente apagado. Só podia ler-se: "ROMA TIBÍ... ITA...".
Entre tibí e ita há rastros de letras muito difíceis de identificar. O arqueólogo húngaro que o tinha descoberto e publicado, M. Szilagyi, estimou que devia traduzir-se corretamente, e conforme era costume: "ROMA TIBÍ SÚBITO MOTIBUS IBIT AMOR".
Pelo contrário, Jerônimo Carcopino, muito católico, queria a todo custo ler nele uma fórmula cristã: "Roma tibí salus ita", quer dizer: "Roma, aqui está sua salvação!". Passava por cima do fato de que o espaço que tinha ficado apagado era muito extenso para ter contido tão somente as cinco letras da palavra SALUS. Além disso, se se lia ao reverso, conforme era habitual, já não ficava nada que evocasse o cristianismo: "ati sulas ibit amor". O que provaria muitas coisas...
Por último, a estrela de seis pontas, ou "Selo de Salomão", é um símbolo mágico universal; em todo mundo a encontramos associada à magia mais materialista. Traçaram na confecção de certos "yantras" da bruxaria tântrica, na Índia. Basta folhear o Yantra Chintámani, ou "Jugo dos Yantras", para convencer-se; vejamos aqueles nos quais figura:
- 8.° yantra: "Criador de ilusões" (os credores carecerão de força e não reclamarão o que lhes é devido. Poderão oferecer dinheiro aos discípulos).
- 23.° yantra: "Flecha de Eros" (as mulheres mais orgulhosas e mais altivas enlouquecerão de desejos ardentes e serão totalmente dominadas).
- 28.° yantra: "Dom de Tripurá" (submissão da pessoa desejada, homem ou mulher).
- 68.° yantra: "Terror da Febre" (calma a febre).
- 75.° yantra: "Liberação" (libera dos laços vergonhosos).
É curioso constatar que de cinco yantras, três tratam do meio para submeter a outro, dois dos quais a desejos carnais. Então, quem pintaria aqui uma fórmula cristã?
Os partidários da origem cristã do "sator" não se deram por vencidos. É sabido que a este palíndromo dão o apelido de "quadrado de São Irineu". A este último o conhecemos por Eusébio da Cesaréia, quem disse que se tratava do sucessor de Potino à cabeça da Igreja de Lyon (cf. Eusébio da Cesaréia, História eclesiástica, V, 5), embora seu discípulo Hipólito o qualificasse só de presbítero (cf. Hipólito, Philosophumena, VI, 43).
Para Jerônimo Carcopino, em seus comunicados à Academia das Inscrições e das Belas Letras, esse "quadrado mágico" foi inventado em Lyon por Irineu, bispo de tal cidade, no dia seguinte da perseguição do ano 177. Para provar bastava o fato de que o anagrama de "sator arepo tenet opera rotas" dava "pater noster" repetido duas vezes e formando uma cruz. Quanto às duas letras restantes, A e O, tratava-se da alfa e a omega, símbolos de Cristo:
A
P
T
E
R
A P A T E R N O S T E R O
O
S
T
E
R
O
Este descobrimento era obra do professor Félix Grosser, de Chemnitz, em seu Ein neuer VorschÍag zur Deutung des Sator-Formel (no Archiv. F. Relig., 1926, XXIV, pp. 165-169). E este (que era pastor, não devemos esquecê-lo) fazia observar, além disso, que no "quadrado mágico" as letras que compunham a palavra central, tenet, formavam uma cruz. Assim, tratava-se de uma fórmula secreta de reconhecimento para os cristãos.
Numerosos eruditos responderam assinalando que toda construção de um palíndromo de número ímpar permite o mesmo resultado. Outros fizeram observar que a mesma frase podia dar outros anagramas muito diferentes, como por exemplo os que assinala o periódico italiano A Nazione em seu número de 21 de maio de 1968, assinados por Giorgio Batini, e reproduzidos pelo Bulletin du Cercle Ernest Renán em setembro do mesmo ano:
1) SATAN ORO TE PRO ARTE A TE SPERO.
2) SATAN TER ORO TE OPERA PRAESTO.
3) SATAN TER ORO TE REPARATO OPES.*
*[Eu te conjuro, Satanás, em favor do que espero!
Eu te conjuro, Satanás, por três vezes, a que cumpras o objetivo deste sacríficio!
Eu te conjuro. Satanás, por três vezes, a que me ajudes de novo!]
Estes anagramas, além disso, são como o do pater noster, não se pode encontrar o primeiro sentido lendo-o da direita para a esquerda.
Por outra parte, as palavras pater noster não são especificamente cristãs. No Antigo Testamento encontramos pelo menos uma dúzia de vezes. Citemos simplesmente: "Tu, Yavé, és nosso Pai, e, da Eternidade, dissestes nosso Salvador..." (Isaías, 63, 16), e "Entretanto, Yavé, és nosso Pai..." (Isaías, 64, 7).
E os autores pagãos não ignoram esta expressão:
"Tu és nosso Pai, Oh, Zeus..." (Estobeo, Antologia, Prece de Cleanto.)
"Oh, Zeus, Nosso pai!..." (Pitágoras, Para Doris.)
"Tu és nosso Pai..." (Aratos.)
Concluamos, pois, que é muito imprudente, por parte de nossos autores cristãos, reivindicar a misteriosa fórmula do "sator arepo tenet opera rotas", já que, como acabamos de demonstrar, é muito anterior ao cristianismo. Por outra parte, indiscutivelmente se trata de um "encantamento", de um "sortilégio" gráfico e vocal, mediante o qual se tentava subjugar às mulheres.
E se Irineu e seus colaboradores, todos eles procedentes da Ásia, e provavelmente de Esmirna, conheceram e utilizaram o "sator", não seria como símbolo para provar que pertenciam à nova seita, o cristianismo. Mas bem veríamos nisso a confirmação do que os textos antigos citados nas páginas precedentes nos sugeriram, ou seja: a ação dos propagandistas cristãos sobre as mulheres.
Convém, não obstante, observar, para desencargo do citado Irineu e seus ajudantes, que esta frase de caráter mágico indiscutível podia ter duplo sentido, e que o semeador podia significar a palavra cristã, ou o próprio Jesus.
Com efeito, nos textos neo-testamentários se compara com um semeador, e logo se guardará esta comparação referindo-se a ele:
"Um semeador saiu para semear..." (Mateus, 13, 4; Marcos, 4, 3; Lucas, 8, 5.)
"O semeador semeia a palavra..." (Marcos, 4, 14.)
"Conforme está escrito [...] que proporciona a semente ao semeador. .." (I Epístola aos Coríntios, 9, 10.)
"Que o semeador e o colhedor se alegrem juntos..." (João, 4, 36.)
Agora bem, esses enigmáticos e simbólicos semeador e colhedor aparecem já antes no Antigo Testamento: "Exterminem em Babilônia ao semeador e ao colhedor...". (Jeremias, 50, 16.)
Isto evoca extranhamente as palavras do Deuteronômio: "Um dependurado de uma árvore é objeto da maldição de Deus". (Deuteronômio 21, 23.)
Poderia acreditar-se que as vozes proféticas de Israel antigo tinham percebido adiantado tudo o que o messianismo lhe contribuiria em matéria de catástrofes.
12- A verdadeira morte de Estêvão
O primeiro dever do historiador consiste em restabelecer a verdade, destruindo a lenda.
Marcel Pagnol, Le Masque de Fer
Para R. P. Lucien Deiss, C. S. Sp., em seu livro Synopse des Evangiles, baseado nos Atos dos Apóstolos encontra-se um "documento semítico". E é evidente. Mas não poderia tratar-se de um judeu convertido, já que não se encontra a aspereza, a decisão, próprias do Antigo Testamento. Imaginar que fora um grego ou um latino é ainda mais impossível, já que este conjunto não está marcado pela harmonia helênica nem pela claridade latina. Portanto, não fica a não ser um árabe, e mais provavelmente um sírio da Antioquia, que chegou tardiamente ao cristianismo. A babozeira enjoativa e devota, a adulação de todo o romano, o ódio anti-semita (porque Síria era o branco das pilhagens galileus desde Ezequias, pai de Judas da Gamala e avô de Jesus, no ano 60 antes de nossa era), tudo assinala para esse tipo de homem que encontraremos freqüentemente nos cinco ou seis primeiros séculos.
Por outra parte, quando vemos que a lei do Sinai não foi dada ao Moisés pelo Eterno, mas sim por um ou vários anjos (cf. Atos, 7, 30, 36, 38 e 53), é evidente que esta afirmação deriva de Saulo-Paulo em sua Epístola aos Gálatas (3, 19). Agora bem, essa mesma afirmação segundo a qual a lei do Sinai foi promulgada por anjos, os Atos a colocam na boca de Estêvão, o diácono, no instante em que vai ser lapidado pelos judeus, exasperados pelo que eles consideram blasfêmias. E Saulo-Paulo ainda não se converteu! E inclusive está ali, conforme parece, montando guarda diante das vestimentas dos executores (Atos, 7, 58). Sua Epístola aos Gálatas, portanto, ainda não está escrita. Mas nisto não pensou o escriba anônimo do século IV.
O mesmo acontece com o discurso de Estêvão. Tomemos o texto dos Atos ao princípio deste caso: "E a palavra do Senhor crescia, o número dos discípulos aumentava grandemente em Jerusalém, e uma multidão de sacerdotes obedeciam à fé. Estêvão, cheio de graça e de poder, operava grandes prodígios e sinais entre o povo. Então intervieram as pessoas da sinagoga chamando os Libertos, os Cirenenses, os Alexandrinos, e outras de Cilícia e da Ásia. Ficaram a discutir com Estêvão, mas não podiam fazer frente à sabedoria e ao espírito que lhe faziam falar. Pagaram a homens para que dissessem: "Ouvimo-lhe pronunciar blasfêmias contra Moisés e contra Deus". Amotinaram ao povo, aos anciões e aos escribas, e logo, acudindo de improviso, capturaram-no e levaram-no ante o Sanedrim. Ali contribuíram com falsos testemunhos que declaravam: "Este homem não cessa de falar contra este santo Lugar e contra a Lei. Ouvimo-lhe dizer que Jesus, esse nazareno, destruirá este Lugar e trocará os costumes que Moisés nos legou". Todos aqueles que estavam sentados no Sanedrim tinham os olhos fixos nele, e seu rosto lhes pareceu semelhante ao de um anjo... O supremo sacerdote perguntou:
"É, na verdade, assim?". E Estêvão respondeu: "Irmãos e pais, escutem..."". (Cf. Atos dos Apóstolos, 6, 7, a 7, 2.)
Agora vem um discurso interminável do tal Estêvão, que começa à saída de Abraham da Mesopotâmia, e enumera os acontecimentos principais da história da estirpe de Abraham até a vinda de Jesus. Vai do capítulo 7, versículo 3, até o 7, versículo 53. Nos manuscritos gregos mais antigos isso representa 127 linhas, a uma média de nove palavras cada uma, quer dizer, umas mil e duzentas palavras. Nem que estivesse lendo ao Flavio Josefo!
A quem poderia fazer-se acreditar que houve um escriba, judeu ou cristão, que conhecesse naquela época a taquigrafia para tomar nota de tal discurso? E como conhecia o redator dos Atos a tradição gnóstica dos anjos ditando a Lei do Sinai, se a gnosis ainda não existia?
De semelhantes incoerências e inverossimilhanças estão cheios os Atos dos Apóstolos. Como conhece o redator dos Atos o texto da carta confidencial que redige o tribuno das coortes Claudio Lisias ao procurador Antonio Feliz, quando lhe envia a Saulo-Paulo com uma escolta quase real? (Atos, 22, 26-30.)
Como pôde o Sanedrim mandar açoitar aos apóstolos com varas (Atos, 5, 40), quando a lei judia não conhecia a não ser o látego de couro, com o que jamais deviam propinar-se mais de 39 golpes para a sanção máxima de 40 (cf. Talmud, 5 Maccoth e Siffré Deuteronômio, 286, 125 a)? Pois simplesmente porque na época em que se redige os Atos a nação judia já não existe, está dispersada por todo o Império romano, com a proibição de aproximar-se do que foi Jerusalém. E os anônimos redatores dos Atos, ao ver passar aos leitores romanos com suas faces de varas, não foram procurar mais longe.
Nos Atos, capítulo 5, versículo 34, apresenta ao Gamaliel como um doutor da Lei, quando é o Daion di Baba, com jurisdição sobretudo Israel, incluída a Diáspora, e podendo de extradição, privilégio que lhe conservaram os romanos, igual à seus predecessores e sucessores, enquanto houve uma nação judia reconhecida por Roma.
Como Gamaliel, rabban do Israel, que possuía por direito todos os arquivos históricos de toda a nação judia, conservados no Templo, como pôde situar a revolução do Teudas, que teve lugar no ano 46, durante seu pontificado (morreu no ano 52 de nossa era), antes de Judas da Gamala, que se produziu no ano 6 de nossa era, quer dizer, quarenta anos antes, quando ele era ainda simples rabbfl. Entretanto, este é o engano que comete o chamado redator dos Atos, em 5, 36.
Oferecemos o cerimonial judicial da lapidação em um capítulo desta obra (supra). Que o leitor se remeta a ele, e verá que o condenado tinha que estar necessariamente estendido sobre suas costas antes de que lhe lançassem a primeira pedra, muito grossa, que, em princípio, tinha que ser mortal. Então, como pôde nos contar o autor dos Atos o seguinte?: "E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia: "Senhor Jesus, recebe meu espírito...". Logo se fincou de joelhos e gritou com forte voz: "Senhor, não lhes impute este pecado...". E dizendo isto, dormiu". (Atos dos Apóstolos, 7, 59-60.)
Poderia acreditar-se que a lapidação o deixava indiferente.
Assim, temos a prova de que todo este esbanjamento de imaginação incontrolada e sem nenhuma plausibilidade histórica joga uma irritante luz sobre a veracidade dos relatos apostólicos. E a partir do momento em que se desperta a suspeita, o historiador tem o dever e o direito de investigar, detrás da lenda interessada, em busca da verdade, quer dizer, pelo que realmente passou. Nós não deixaremos de fazê-lo.
Estêvão é Stephanus em latim e Stephanos em grego. Este nome significa "coroado". Segundo a Lenda dourada, foi condenado a morte pelo Sanedrim em 26 de dezembro do ano 35, e lapidado fora da cidade, em Jerusalém (Atos, 7, 58). Seu corpo foi milagrosamente descoberto em 415, milagrosamente conservado (como não!), e transportado à Constantinopla durante o reinado de Teodosio II.
Quem era este homem? Um judeu? Ou um "helenista", quer dizer, um judeu de cultura grega, aqueles desarraigados para quem tinha sido necessária uma tradução a esta língua do Antigo Testamento?
É bastante difícil pronunciar-se. Os judeus, da dinastia asmonea que surgiram dos Macabeos, e sobretudo depois de Jasón (Josué), irmão de Onías, haviam-se helenizado com entusiasmo, até tal ponto que, nos estádios, os jovens se deixavam ver nus, segundo o costume grego, e com falsos prepúcios. Todo judeu de raça possuía dois nomes, um de circuncisão, tipicamente judaico, e outro grego. Este costume tinha passado aos idumeus, já que Saulo, em aramaico Shaul, chamava-se também Paulo; quem levava o nome de Josué chamava-se Jasón; Eleazar passava a ser Alexandros, aliás André (Andrés); Jacob se convertia em lacobos (Jaime).
Para Estêvão, aliás Stephanos, não há nada que corresponda. Em hebreu coroa se diz kether, e ketheriel é o Anjo da Coroa Divina. E não há nenhum nome hebreu que se aproxime desta palavra, o mais aproximado seria Melchiel, chamado na Gênesis, 46, 17, em Números, 26, 45, e que significa "estabelecido por Deus", ou Melchisua, filho de Saúl, o rei, chamado em I Samuel, 14, 49. Todos estes nomes derivam de Malek: rei, em hebreu, e, por analogia, "o coroado".
Este Estêvão aparece chamado como o primeiro na lista dos "diáconos" a quem os apóstolos transmitiram certos "poderes" a fim de descarregar-se de suas múltiplas atividades: "E escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e a Felipe, e a Prócoro, e a Nicanor, e a Timão, e a Parmenas e a Nicolau, partidário de Antioquia". (Atos dos Apóstolos, 6, 5.)
Todos levam nomes gregos, mas isso não prova nada, pois precisam-nos que só Nicolau era um partidário. Portanto todos outros eram judeus, eleição justificada pela prudência dos apóstolos, todos eles procedentes da corrente zelote, e portanto acérrimos nacionalistas judeus.
E temos já uma primeira observação: ao Estêvão citam o primeiro. Por conseguinte o consideram já além de outros. É provável que fora o vigilante dos sete, igual a Simão-Pedro o é dos doze. Além disso, recebeu já o Espírito Santo, de modo que só se terá que conferir aos outros seis, conforme ao versículo 6 do capítulo 6 dos Atos. E vigilante se diz episcope, que se converterá em nosso bispo, mais tarde.
Se for vigilante, e chefe dos sete diáconos, poderão confiar-lhe missões particulares e de confiança. E mais adiante, quando houver uma praça vacante, poderá converter-se em um dos doze, por via de sucessão. Essa é a ordem.
Particularizemos aqui previamente o que seguirá agora. Um mesmo personagem pode entrar na história sob os nomes e as atividades diferentes. Tudo isso depende do cronista, de sua orientação ideológica e da finalidade que persiga. Vejamos um exemplo:
a) "Em 26 de outubro de 1440 morreu Gilles de Rais, marechal da França, grande oficial da Coroa, antigo companheiro de guerra de Joana D'Arc, chefe da nobreza da Bretanha. Foi exumado no convento Cármenes, em Nantes."
b) "Em 26 de outubro de 1440, às nove da manhã, no prado de Besse, situado nos limites da cidade de Nantes, mais acima das pontes e das bordas do Loira, foram enforcados e queimados três bruxos, assassinos sádicos de várias centenas de meninos. Chamavam-se Henriet, Poitou e Barba Azul."
Este último será, evidentemente, o mesmo personagem que Gille de Rais. Mas, enquanto seus servidores e cúmplices eram queimados vivos, porque eram plebeus, enforcaram-lhe primeiro, e logo submeteram seu corpo brevemente ao fogo que tinham aceso debaixo da forca: "antes de que o corpo se rache, abrasado pelo fogo, será retirado e levado em uma urna a uma igreja de Nantes que o condenado terá designado". Isto, em virtude da nobre condição do responsável por tantas atrocidades.
O cronista que ao cabo de mil anos se encontrasse em presença dos dois textos, aparentemente sem relação entre si, como o reconheceria, ante semelhantes contradições?
O mesmo acontece com Estêvão, e vamos ver. Tomemos a Guerra dos judeus, de Flavio Josefo, em seu manuscrito eslavo: "E uma desgraça se acrescentou à outra. Uns bandidos, no caminho de Beth-Horon, causaram ferimentos em um tal Stephanos. Cumano mandou soldados aos povos vizinhos e fez encadear seus habitantes: "por que não perseguistes aos bandidos, por que não os capturastes?". Ali um soldado encontrou um livro da Lei Santa, pisoteou-o e o atirou ao fogo. Os judeus, imaginando todo o país entregue às chamas, unidos por sua piedade como por cadeias, correram todos com uma mesma proclamação: "Ou morrer, ou matar ao soldado!". Todos reunidos, suplicaram ao procurador que não o deixasse impune depois de ter cometido semelhante pecado contra Deus e a Lei. Este, vendo que não se acalmariam se não obtinham satisfação, condenou-o a morte. Os judeus, vingados, foram-se". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, II, 5, tradução de Fierre Pascal, professor na Sorbone, Éditions du Rocher, Mônaco, 1964.)
Tomemos agora a mesma passagem, todavia, do manuscrito grego:
"Logo que tinha passado esta aflição, quando foi seguida por outra. Um criado do imperador, chamado Estêvão, que conduzia alguns móveis muito valiosos, foi assaltado perto do Beth-Horon. E Cumano, para descobrir quem tinham cometido esse roubo, enviou a que capturassem aos habitantes dos povos próximos. Um de quão soldados formavam parte de tal expedição, ao encontrar em um desses povos um livro no que estavam escritas nossas santas leis, rompeu-o e o queimou. Todos os judeus desta região não se sentiram menos irritados que se tivessem visto incendiar todo seu país. Reuniram-se em um momento e, impulsionados pelo zelo de sua religião, correram à Cesaréia para encontrar Cumano, para lhe rogar que não deixasse impune um tão grande ultraje contra Deus. Como o governador julgou que seria impossível acalmar a esse povo se não lhe dava satisfação, mandou prender e executar tal soldado em sua presença; e assim se apaziguou o tumulto". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito grego, II, XX, tradução de Amault d'Andilly, Éditions Lidis, Paris, 1968.)
Aqui observamos diversas contradições:
a) Cumano, o procurador, ordenou deter e encadear aos habitantes dos povos vizinhos por não ter ajudado ao tal Estêvão, a quem tinham atacado e feito mal (matado) uns bandidos? Ou os tratou assim por cumplicidade?
b) Quando se detinha, e especialmente quando se encadeava à população inteira de um povo, essa medida ia imediatamente seguida de sua deportação. Esse foi o caso dos habitantes da Giscala, pátria dos pseudo-familiares judeus de Saulo-Paulo. E nesse caso era devido a quem prestaram ajuda aos guerrilheiros zelotes. E o termo de "bandidos" utilizado por Flavio Josefo, sempre se aplica à estes. Então, se os aldeãos se negaram a intervir, ou possivelmente inclusive ajudaram e encobriram aos citados bandidos, é que não se tratava de criminosos de direito comum. Sem lugar a dúvidas devia tratar-se de um bando zelote.
c) Não obstante, sabemos pelos Atos dos Apóstolos (7, 58, e 8, 1) que Saulo-Paulo tinha participado do assassinato de Estêvão. E as Antigüidades judaicas nos mostram desempenhando o papel e as atividades de um feudal que vivia do banditismo: "Costobaro e Saulo reuniam também ao redor uma multidão de gente perversa; eles eram de raça real e muito apreciados por causa de seu parentesco com o rei Agripa, mas eram violentos e estavam dispostos a apoderar-se dos bens dos mais débeis". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, manuscrito grego, XX, 214.)
Este Saulo é, pois, o dos Atos, que "tinha sido criado pelo Herodes o Tetrarca" (13, 1), e sobre quem já demos todas as explicações neste particular. Portanto foi ele quem fez matar ao Estêvão, aliás Stephanos, por seus homens, e não os zelotes. E isto aconteceu no caminho que vai de Jerusalém à Lydda, mais exatamente para o Beth-Horon, cidade dupla, situada a 20 Km. de Jerusalém.
Esta cidade se dividia em dois grupos urbanos diferentes: a Alta Beth-Horon e a Baixa Beth-Horon. Ambas estavam situadas na antiga fronteira dos reinos de Judá e de Israel, e ambas foram construídas pela Sera, filha da Beria, filho de Efraim, nos tempos das doze tribos (I Crônicas, 7, 24). A Baixa Beth-Horon, que foi destruída no curso das guerras, foi reconstruída por Salomão (I Reis, 9, 17). Antes, como eram cidades filisteas, tinham sido totalmente pagãs. As ruínas se encontram na atualidade em Jordânia, a uns poucos quilômetros do Emaús, ao nordeste.
Foi, pois, a poucos quilômetros de Jerusalém, no caminho que vai para o Beth-Horon, onde ao Estêvão "causaram dano" uns bandidos mandados pelo Saulo, príncipe herodiano de sangue real e "salteador de caminhos", à maneira de alguns de nossos feudais medievais. Desgraçados os judeus de Jerusalém, e seu Sanedrim, não tiveram nada a ver com sua morte. Mas na época em que o escriba, provavelmente sírio, redige os Atos, e em especial este episódio, quer dizer no século IV, o Império romano é cristão, tanto se quiser como se não, e seus imperadores não brincam com a ortodoxia, e menos com a sua. Os judeus se dispersaram por todo o Império desde Adriano e a derrota de Simão-bar-Koseba no ano 135. E lhes pode atribuir todos os crimes imagináveis. Entre Saulo-Paulo, árabe idumeu, e os judeus, nossos escribas árabes sírios não vacilam. A milenária animosidade continua.
Mas este Estêvão, aliás Stephanos, era realmente um criado do imperador, quer dizer, de Claudio César? Em caso afirmativo, devemos nos expor ainda algumas questões molestas:
1) Neste caso não pode tratar-se mas sim de um liberto. E então tem, pelo menos, dois nomes: o praenomen, quer dizer seu nome distintivo, e o nomen, o nome da família, e possivelmente o cognomen, que é o nome que relaciona o indivíduo com uma coletividade. Os libertos acrescentavam a seu praenomen o nome do "amo" que os tinha liberado. Se mais adiante tinham a honra de converter-se em cidadãos romanos (civis romanus), acrescentavam o praenomen do imperador que reinava. Esses eram os tria nomes romanos.
Por exemplo, Palante, o célebre liberto, que foi um dos amantes de Agripina, chamava-se Claudii libertas Pallas. Narciso, a sua vez, chamava-se Claudii libertus Narcissus. No caso da cidadania romana, tomava deste modo o nome do imperador que reinava. O tribuno Lisias se chamava, por exemplo, Claudios Lysias.

Mapa da Palestina Século I
No caso de nosso Stephanus (e não Stephanos, se era criado do César), ignoramos seus outros nomes. Neste suposto, é plausível que o imperador que reinava, Claudio César, enviasse a Judéia a um servidor de seu palácio imperial, para que lhe levasse uns móveis, quando uma simples carta ao governador da província de Síria, transmitida ao procurador da Judéia, seu subordinado direto, e uma ordem deste a um oficial ordinário, teriam permitido enviar ao imperador, sem nenhuma dificuldade, os móveis solicitados?
2) Quais eram esses estranhos e luxuosos móveis que só a Judéia podia proporcionar ao imperador? Perderíamo-nos inutilmente em conjeturas a respeito, porque em Roma havia tudo que era necessário. Quanto mais que a palavra empregada por Flavio Josefo significa, em grego, tanto móveis como valiosos vasos.
3) por que o manuscrito eslavo ignora todos estes detalhes? A resposta é fácil. Os manuscritos de Flavio Josefo de que dispomos são todos da Idade Média, não há nada antes. É evidente que os escribas que os copiaram nesta época, ao atuar muito longe uns dos outros, com suas censuras, interpolações e extrapolações, não falando a mesma língua, não conhecendo sequer, ao transcrever, corrigir, suprimir, em épocas diferentes, sem tão somente conhecer os trabalhos análogos de seus colegas longínquos, de seus predecessores, não puderam sincronizar seus "acertos". Agora é isso o que os perde e revela seus enganos. Se tivéssemos a sorte de encontrar um original de Flavio Josefo, não faltariam as surpresas.
A conclusão de tudo isto é muito singela.
Saulo-Paulo e seu irmão Costobaro, "príncipes de sangue real", são não só um pouco bandidos se se apresentar a ocasião, como vimos, mas sim, além disso, Saulo é também o chefe de uma polícia paralela, sob as ordens de Herodes Agripa I. Isto é o que se deduz da leitura atenta dos Atos dos Apóstolos, como já mostramos acima.
Inteirou-se da missão de um tal Stephanos, homem de confiança e subordinado oficial de Simão-Pedro e dos ajudantes de Jesus, na região de Beth-Horon, ou inclusive mais longe, para Lydda. Sabia que este Stephanos era um agitador. Foi a seu encontro, ou lhe perseguiu. Stephanos já se encontrava no lugar, ou tinha uma escolta. Teve tempo de voltar, ou ele mesmo, com a ajuda de prodígios pseudo-mágicos, ou seus próprios subordinados, à população de um ou dois povos próximos ao Beth-Horon. E Saulo-Paulo se teve que enfrentar com uma autêntica sublevação camponesa. Ao retornar a Jerusalém, poria à corrente ao procurador Cumano, quem enviaria várias centúrias de legionários a reprimir a tentativa de rebelião zelote.
Enquanto isso, ao Stephanos ou lhe decapitariam no mesmo lugar e enviariam sua cabeça ao Cumano, conforme era costume entre os romanos, ou o capturariam, conduziriam-no à Jerusalém, e a seguir seria crucificado, como se costumava fazer com os militantes zelotes que eram feitos prisioneiros. Esta execução não se situa em modo algum nos anos 33 ou 36, como pretende falsamente o escriba anônimo dos Atos, ao situar a morte de Estêvão-Stephanos imediatamente depois da morte de Jesus.
Porque Ventidio Cumano foi procurador em finais do ano 47; sucedeu ao Tibério Alexandre, até o ano 51, ano em que foi substituído por Antonio Félix. A morte de Estêvão situa-se, pois, como muito em breve em finais do ano 47. E no mesmo ano 47, mas alguns meses antes, sob o Tibério Alexandre como procurador, foram crucificados em Jerusalém Simão-Pedro e Jacobo-Santiago. Sobre o período que viu o trágico fim dos irmãos e ajudantes de Jesus-bar-Juda, remetemos à próxima obra, cujo manuscrito está quase terminado, e que porá ordem nas lendas "interessadas"...
Tudo isto se situa no período de agitação zelote que coroa o famoso sínodo de Jerusalém, e no curso do qual os mais humildes sofreram da fome que açoitou não "toda a terra", como se faz dizer Flavio Josefo, a não ser somente a Palestina, a conseqüência das inumeráveis insurreições: "Naquele tempo açoitou a Judéia uma grande fome, durante a qual a rainha Helena comprou muito caro o trigo ao Egito e o distribuiu àqueles que o necessitavam". (Cf. Flavio Josefo. Antigüidades judaicas, XX, 101; XXX, XV, 3, e XX, II, 6.) A rainha da Abdiadena, Helena, converteu-se ao judaísmo.
Mas todos os historiadores reconhecem que é muito difícil situar os acontecimentos deste período. Nem sequer estão de acordo nas datas do exercício dos diferentes procuradores.
Alguns, como é lógico, nos vão perguntar onde está a prova, no texto de Flavio Josefo, da presença de Saulo, príncipe herodiano, chefe da polícia paralela, no caminho de Jerusalém ao Beth-Horon, o dia em que se causou ferimentos em Stephanos-Estêvão.
Os Atos dos Apóstolos nos dizem (8, 1) que Saulo tinha aprovado esse assassinato. Portanto, desempenhou um papel decisivo neste caso, quando teve que determinar a morte de Estêvão. Por último resolveu a questão sobre a sorte que lhe esperava.
Pois bem, as Antigüidades judaicas de Flavio Josefo e os Atos dos Apóstolos se confirmam e se esclarecem mutuamente no referente ao papel e à importância de Saulo-Paulo: "Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, VIII.)
"Saulo devastava a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e mulheres e os fazia encarcerar... Não obstante, Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote pedindo-lhe cartas de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava a quem seguisse esse caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém." (Cf. Atos dos Apóstolos, 8, 3, e 9, 1-2.)
Terei que ter muita má fé para não reconhecer aqui a um só e mesmo personagem. Por outra parte, ao Estêvão matam "fora da cidade" de Jerusalém (Atos, 7, 58), e ao Stephanos causam ferimentos "no caminho do Beth-Horon", segundo o manuscrito eslavo, e "perto do Beth-Horon", segundo o manuscrito grego de Flavio Josefo. Entre Jerusalém e Beth-Horon há 20 quilômetros no máximo.
Ao Estêvão, nos Atos dos Apóstolos, lhe chama Stephanos nos manuscritos gregos originais destes. E agora sabemos que Saulo-Paulo é responsável por sua morte. Como não reconhecer aí simplesmente uma história em duas versões diferentes?
E se o Stephanos dos Atos tem ao Saulo como responsável por sua morte, fora de Jerusalém, o Stephanos das Antigüidades judaicas tem ao mesmo Saulo como chefe dos assassinos, fora de Jerusalém, no caminho de Beth-Horon.
E portanto, a repressão romana que sucedeu a sua execução demonstra que o tal Estêvão era um agitador zelote. E todas essas execuções, repitamo-lo uma vez mais, inserem-se no período que vai do ano 44 aos 63 de nossa era, a maior parte das quais foram entre o 44 e o 47. Um depois de outro, os irmãos e os ajudantes de Jesus, seus filhos, seus sobrinhos, irão desaparecendo, decapitados ou crucificados. A quem poderá fazer-se acreditar que Roma, tão tolerante em matéria religiosa, tão respeitosa inclusive com o culto judaico, não levou a cabo simplesmente uma repressão desumana contra um movimento de insurreição que, evidentemente, era-o, mas que se justificava pelo próprio excesso das requisições romanas, os impostos, os tributos, quer dizer, um verdadeiro banditismo administrativo, perfeitamente organizado?
Mas a morte de Estêvão continua constituindo uma chave que nos vai permitir chegar à umas constatações ainda mais importantes que a retificação histórica objeto deste capítulo. Com efeito, indiretamente nos confirmará tudo o que já descobrimos em relação à verdadeira personalidade de Saulo-Paulo.
O descobrimento do combate em Beth-Horon nos contribui uma prova a mais das incoerências, para não dizer das mentiras, que servem de trama geral aos pseudo Atos dos Apóstolos. Raciocinemos um pouco.
Segundo esses mesmos Atos, Saulo está em Jerusalém no ano 36 de nossa era, e ali assiste à lapidação de Estêvão. Então é um jovem adolescente (adolescente: Atos, 7, 59) É aluno de Gamaliel (cf. Atos, 22, 3), e muito anti-cristão (pp. cit., 8, 1-3).
Como admitir então que não conhecesse Jesus, e especialmente, que não tivesse assistido a sua crucificação, se esta teve lugar no ano precedente nessa mesma cidade de Jerusalém?
Mas é óbvio que Saulo jamais tinha visto Jesus, basta lendo suas Epístolas e os Atos dos Apóstolos para convencer-se, e nenhum apócrifo do Corpus paulinum fala jamais de tal encontro.
Por conseguinte, vemo-nos induzidos a concluir que:
1) a morte de Estêvão não teve lugar em Jerusalém no ano 36;
2) nesse mesmo ano 36 Saulo não era aluno de Gamaliel, em Jerusalém. Então tem uns treze anos e vive em Tiberíades ou em Cesaréia Marítima, no seio de sua família herodiana, com o Herodes Agripa II e Menahem;
3) no ano 36, como já se disse, Estêvão teria morrido sob Pilatos ou Marcelo, procuradores, em troca morreu sob o Cumano, que foi procurador no ano 47, quer dizer, onze anos mais tarde;
4) se nos anos 36-37, como se diz, estivesse a mando de uma tropa supletiva sob as ordens do grande rabino Gamaliel (Atos, 8, 3, e 9, 1), Saulo necessariamente teria participado com sua tropa no Monte das Oliveiras e na captura de Jesus. Entretanto, jamais ninguém sustentou tal coisa;
5) não é possível que os judeus tivessem no ano 36 o direito de condenar a morte ao Estêvão por ter blasfemado, já que não tinham esse direito com Jesus, no ano 34, para o mesmo tipo de acusação: "Os judeus responderam ao Pilatos: "Não nos está permitido dar morte a ninguém"". (João, 18, 31.) Com efeito, o jus gladii foi retirado no ano 30, no âmbito religioso, e logo que chegaram os primeiros procuradores, no ano 9, também foi no âmbito do direito comum.
Não deixa de ser surpreendente o fato de que os exegetas das grandes igrejas oficiais jamais chegassem a tais constatações, ou, de fazê-las, que acreditassem que seu dever era calarem-nas. A menos que tais constatações tivessem desembocado em última instância à solução de Leão X, que citamos como epígrafe ao começo da presente obra!
Segunda parte
Paulo, que criou Cristo
Eu, eu sou o eterno, e fora de mim não existe nenhum salvador.
Isaías, 43, 11
Se junto consigo surge um profeta, que mostre um sinal ou um prodígio e, havendo-se completo o sinal ou o prodígio, diga: "Sigamos a outros deuses" que seus pais não conheceram, não escute a esse profeta.
Deuteronômio, 13, 1-3
13 - A RELIGIÃO PAULINA*
*[Algum crítico "racionalista" e partidário da inexistência de Jesus, ao nos reprovar -coisa curiosa- que tivéssemos evocado alguns aspectos de um Jesus guerrilheiro, declara: "Ao senhor Ambelain lhe faltou nos explicar como lhe pôde emprestar um ensino moral, assimilá-lo ao Logos e ao "pão da vida", etc. Esses problemas são escamoteados, e isso é burlar do leitor".
Aí vai nossa resposta...]
Para que uma religião seja apreciada pelas massas, necessariamente tem que guardar algo do gosto à superstição" G.-C. Lichtenberg, Aforismos
É seguro que Saulo-Paulo jamais estudou a religião judia "aos pés de Gamaliel", o doutor supremo, tal como ele pretende -ou como lhe faz dizer- nos Atos dos Apóstolos (22, 3). Ignora completamente suas sutilezas. Quando declara, depreciativo: "Acaso Deus se ocupa dos bois?" (cf. I Epístola aos Coríntios, 9, 9), raciocina como bom idumeu, como árabe, mas não como filho de Israel. Senão, recordaria as prescrições de Moisés em relação aos animais, prescrições cheias de uma piedade e uma doçura totalmente estranhas à época em que foram ditadas e aos povos que eram então vejam-nos inimigos de Israel. Citemos simplesmente, para não sobrecarregar este capítulo: Gênesis, 9, 9; Êxodo, 23, 5, 12 e 19; Deuteronômio, 22, 10, etc. E o animal ao que se sacrifica ou ao que se imola não deve sentir a morte, para isso, o fio da faca não tem que ter defeito algum, já que o animal não deve sofrer absolutamente. Do contrário, a carne é impura e não é apta para o consumo.
Convenhamos que, para a época de sua promulgação, semelhante lei implicava um avanço moral considerável em relação às leis em vigor. Esta benevolência para nossos irmãos inferiores a herda Moisés do antigo o Egito. O cristianismo, ao ser paulino de origem, ignorará tudo isso...
Do exame dos textos atribuídos a Saulo-Paulo resulta que jamais conheceu as Escrituras judias de outro modo que não fora através de sua versão grega, chamada dos Setenta, utilizada pelos Gentis que se aderiram à religião judia, quer dizer, os partidários, os "temerosos de Deus". Agora bem, se estudassem, e durante longo tempo, claro está, "aos pés de Gamaliel", rabino do Israel, os cursos de teologia teriam tido lugar em aramaico, sobre textos hebreus. Charles Guignebert analisou perfeitamente o significativo comportamento de Saulo-Paulo: "Quando voltar a ficar em contato com palestinos puros, embora sejam cristianizantes, reinará a incompreensão mútua e a desavença. Isto também é significativo. E minha impressão global sobre sua cultura judia é, em definitivo, a mesma que, parece resultar de sua cultura grega: o rabinismo de Paulo é superficial, e nem sequer lhe inculcou esse respeito à ciência sagrada que era sua própria razão de ser. Dir-se-ia que aos verdadeiros rabinos, aos fariseus puros, só os vê através de um prisma que os deforma, e não me surpreenderia que fora, em efeito, assim". (Cf. Ch. Guignebert, O Cristo, V.)
Por outra parte, suas origens sociais elevadas, pertencente à aristocracia Iduméia dos Herodes, têm-lhe feito considerar o Império romano de maneira muito distinta como o fazia um judeu autêntico, quem via na ocupação romana, nas exações de seus procuradores, nesse banditismo administrativamente organizado, uma prova desejada por Deus, e portanto passageira, mas insuportável, imposta ao povo eleito por Deus para servir de modelo às nações pagãs.
Esta pesada ocupação não lhe incomoda, pois para ele o Império romano é uma potência positiva, que proporcionou a fortuna a sua família; e também, quando escravo hebreu tinham que lhe deixar obrigatoriamente em liberdade ao cabo de sete anos de serviços (Êxodo 21, 2), já que o sétimo lhe contribuía a liberdade, Saulo-Paulo não teve uma só palavra de condenação para esse açoite social que é a escravidão. E mais, expõe como princípio que toda autoridade, seja a que for, foi decidida por Deus (Epístola aos romanos, 13, 1-7). Tudo que constitui função das autoridades, magistrados, tudo isso é vontade de Deus, e "para isso pagam impostos!". Alguém se imagina sem dificuldade às reações dos desgraçados judeus, explorados e espremidos por Roma, ante tão cínicas afirmações.
Por outra parte, suas origens principescas, sua qualidade de cidadão romano, suas anteriores atividades de rapina feudal, bandido quando se apresentava a ocasião, suas antigas funções de chefe de polícia supletiva, fazem-lhe desprezar ao povo judeu, disposto a rebelar-se contra o ocupante romano. Como se sentia secretamente odiado e desprezado pelas massas judias, suas simpatias se inclinavam para os gentis.
De tudo isto se ressentirá a doutrina que pouco a pouco irá formulando, de cara à realização de um plano que acaricia profundamente e que logo abordaremos. Além disso, sua formação religiosa é inicialmente pagã em sua infância. Embora a Iduméia estivesse integrada na província da Judéia dos reis asmoneos, só é judia na imaginação daqueles. Ali abundam os templos pagãos, e é testemunho o de Ascalón, em que era sacerdote um de seus antepassados diretos. De maneira que para Saulo-Paulo essa doutrina que começa a formular em si mesmo refletirá, inconscientemente, suas passadas crenças. Não pode assimilar o estrito monoteísmo de Israel. E assim, também inconscientemente, transporá o trinitarismo pagão dos velhos cultos de Nabatea contemporânea, ainda latente na Iduméia, em um trinitarismo bem próprio.
Embora carecia de uma cultura inicial, fez um descobrimento que revestiu importância para ele: conheceu as obras de Filón de Alexandria. Filón era tio de Tibério Alexandre, procurador romano no ano 47, na Judéia. Recordemos que foi ele quem estava em funções em Jerusalém no momento em que teve lugar o primeiro sínodo em tal cidade; foi ele quem fez crucificar Simão-Pedro e Jacobo-Santiago naquela época. Além disso, Paulo se familiarizou com os rudimentos da gnosis através de Dositeo, que então se achava em Kokba, pouco antes de Damasco.
Saulo-Paulo viu o resultado das mesclas político-religiosas com a tragédia zelote. Não ganhava nada atacando Roma no plano material. E tampouco tinha nenhum interesse, mas bem ao contrário. Em troca, com uma doutrina sedutora, que recolhesse os temas que até então tinham atraído sempre aos pagãos cultos, pregando uma doutrina que recordasse a dos "mistérios" aos que estavam acostumados os gentis, descartando tudo aquilo que pudesse fazer levantarem-se contra os poderes temporários, obrigando aos fiéis a viver como indivíduos submetidos e dóceis, tinha-se a possibilidade de reunir muita gente. Fazendo-o assim, podia criar um verdadeiro império "espiritual", com uma capital, províncias regidas por governadores também "espirituais", e que vigiassem uns missi domini perfeitamente sérios. Tal império existia já, e era o da Diáspora judia, sobre o que reinava o supremo sacerdote de Israel, quem não somente dispunha de poder de jurisdição, mas também de extradição, e que recebia desde muito longe os impostos e os dízimos. E para Saulo-Paulo esse era o único refúgio. Com efeito, ao fazer-se circuncidar e ao converter-se oficialmente ao judaísmo, cortou com suas origens árabes. O exemplo de Silaios, o intendente geral de Aretas, rei de Nabatea, ao recusar deixar-se circuncidar, como lhe pedia astutamente Herodes, para poder casar-se com Salomé I, irmã deste último, porque temia que lhe lapidassem seus compatriotas prova-o. Por outra parte, e como já vimos, Roma não admitia a circuncisão para quão gentis abraçavam o judaísmo. Continuando, e em virtude da Lex Cornelia, imperadores como Adriano e Antonino o Piedoso, proibiram formalmente tal rito mediante a publicação de decretos. Aos homens livres que se fizessem circuncidar lhes esperavam penas diversas, como expulsão, confisco dos bens ou pena capital. Nos tempos de Saulo-Paulo ainda não regia tanta severidade, mas os romanos já mostravam um rechaço formal para todo latino ou grego que passou ao judaísmo. De maneira que encontramos a nosso homem não só separado do mundo idumeu e nabateo, mas também do romano e do grego. O que podia fazer? Integrar-se aos zelotes, entre os messianistas, dirigidos pelos "filhos de David"? Nem pensar. Não tinha nenhum futuro! Os primeiros postos estariam sempre reservados aos verdadeiros "filhos da Aliança", aos escolhidos de Yavé. De modo que Saulo-Paulo só fará que lhe admitam momentaneamente. Desta decisão nascerão contatos episódicos, que só durarão algum tempo, com Simão-Pedro e Jacobo-Santiago, tal como nos contam isso os Atos dos Apóstolos. Logo, quando os chefes messianistas forem progressivamente eliminados pelas legiões romanas da maneira que agora sabemos, nosso homem poderá ao fim voar com suas próprias asas. No período preparatório terá tempo de introduzir-se, de familiarizar-se com os princípios e as tradições da nova corrente "cristã".
Fica o problema de uma doutrina que lhe permita apresentar-se como portador de uma mensagem de salvação. Já dissemos antes que teve conhecimento da obra de Filón de Alexandria, um extenso trabalho no qual o autor apresenta uma interpretação alegórica do Pentateuco, especialmente em seu Nomon hieron allegoriai. Sobretudo tem a originalidade, sendo judeu de nascimento, de atrever-se a afirmar que Deus não estabelece nenhuma diferença entre os homens, que não é o nascimento o que confere a nobreza, a não ser a sabedoria e a virtude. Todos os que se separam da idolatria para ir ao verdadeiro Deus são membros do autêntico Israel, que não é o da carne e o nascimento. E para Filón, que expressava pela primeira vez este ensino secreto dos doutores da Lei, esta espécie de cosmopolitismo do judaísmo é a garantia de que constitui a verdadeira e a melhor das religiões.
E isto encherá de gozo a nosso Saulo-Paulo. Sua concepção de Jesus-Messias, que estranha em especial aos zelotes, como ao Simão-Pedro, quem nas Homilias Clementinas lhe replica que Jesus jamais se pretendeu Deus, poderá elevar-se, graças à Filón, ao nível do Logos platônico, do Verbo divino, e lhe permitirá relegar o Metatrón-saar-ha-Panim dos cabalistas a segundo plano. Porque Saulo-Paulo não inventou nada neste terreno; quando prega o Verbo é Filón quem fala. Agora vamos poder julgá-lo.
Para Filón, o Logos emana de Deus, não é uma criatura como o Metatron. É a primeira criatura de Deus (uios prologónos), é sua imagem (eikon), sua cópia (apeikoniosma), outro deus, sua réplica (eteros Oeos, deuteros Oeos). É o porta-voz e o mensageiro do Altíssimo (Logophoros, aggelos).
Por outra parte, esse Logos é além disso o mediador entre os homens e Deus, é o supremo sacerdote, o suplicante (iketés) do Mundo, e é nesse papel como lhe representa diante de Deus. É também o arquétipo inicial sobre o que foi concebido o homem terrestre, o Homem em Si, feito à imagem divina (o' kat' eixona ánaropos, a arétupos toü aitiou).
Além disso, para Filón o mal não vem de Deus, contrariamente à teologia rabínica. Procede da Matéria, dos poderes espirituais inferiores, dos logoi secundários, necessariamente imperfeitos, que o configuram por ordem de Deus. Nesta Matéria, informe e inerte, plasticidade coeterna a Deus, infundiram o espírito de vida (o noús), para organizá-lo.
Reconheceremos que tudo isto se encontra integralmente nos ensinos paulinos.
Por último, ao lado de Filón da Alexandria, Saulo-Paulo justaporá uma teoria da salvação que adotará do orfismo. Antes de passar a um breve estudo deste, convém precisar que nosso apóstolo ocasional causará escândalo, um escândalo enorme entre os judeus, que enuncia com a glorificação da cruz patibular em que morreu Jesus-bar-Juda.
Em nossa obra precedente já tínhamos demonstrado que jamais se fez alusão alguma, no Antigo Testamento, a um salvador espiritual diferente do próprio Deus, mas bem ao contrário, pois semelhante crença era já formalmente desmentida de antemão. E afirmar que esse salvador, que plagiava a obra de Yavé, tinha descendido aos mais baixos limites da última degradação, constituía para os judeus ortodoxos uma autêntica blasfêmia. Porque no Deuteronômio lemos o seguinte: "Quando em um homem há um pecado que o faça réu de morte, seja condenado a morte e pendura-o numa árvore; não deixará seu cadáver toda a noite na árvore, mas sim o sepultará o mesmo dia, porque um enforcado é uma maldição de Deus, e você não deve poluir a terra que Yavé, seu Deus, vai dar por herança". (Deuteronômio, 21, 22-23.)
Terá que recordar que o enforcado libera seu sêmen. E os bruxos e bruxas foram recolher essas mandrágoras preciosas que cresciam ao pé dos patíbulos, já que estavam impregnadas do esperma dos pendurados. E logo se serviam dele para seus malefícios. Por outra parte, os crucificados, tanto se estavam atados como se estavam cravados a sua cruz, manchavam o bosque, seus membros inferiores e o chão, com seus excrementos sólidos e líquidos. Por conseguinte, imaginar que um "liberador" terminasse assim sua vida era algo impensável.
E agora podemos voltar para orfismo.
Para Saulo-Paulo, Jesus, filho de David, morto na cruz por sentença romana como condenação a diversos atos considerados delitivos em grau supremo pelas leis romanas, ofereceu-se ele mesmo como sacrifício para acalmar a cólera de seu Pai Celestial Yavé. Isto devia assombrar grandemente aos meios apostólicos iniciais, e aos irmãos de Jesus em particular. Porque jamais no curso dos evangelhos, jamais tal Jesus declarou que sua morte (que ele sabia que era inevitável e dolorosa, e que devia ter lugar em Jerusalém) tivesse por objetivo liberar à humanidade de uma dívida para seu Pai celestial e acalmar sua cólera.
E isto Saulo-Paulo o tira dos mistérios órficos. Já que se fosse realmente judeu, educado "aos pés de Gamaliel", não ignoraria esta condenação pronunciada de antemão contra os sacrifícios humanos pelos profetas e em nome do Eterno, mesmo que tais sacrifícios se realizassem em sua honra:
"Os filhos de Judá construíram a altura do Tofet, que se encontra no vale do Ben-Hinnón, para queimar no fogo a seus filhos e filhas, coisa que eu não mandei e que jamais me passou pela mente." (Jeremias, 7, 31.)
"Apresentaram suas oferendas, que me irritaram... Ao apresentar suas oferendas e ao fazer passar através do fogo a seus filhos lhes poluem..." (Ezequiel, 20, 28-31.)
"... nem profanarão mais meu santo nome com seus dons e com seus ídolos..." (Ezequiel, 20, 39.)
"Não me são gratos seus holocaustos e não me agradam seus sacrifícios..." (Jeremias, 6, 20.)
"por que me oferecem tantos sacrifícios? Diz Yavé. Estou farto dos holocaustos de carneiros e do óleo dos bezerros; o sangue dos touros, cordeiros e bodes não me são gratos. Quando vêem meu rosto, quem solicita tais coisas de vós, que pisoteiem meus átrios?... Suas mãos jorram sangue! lhes lave e lhes purifiquem..." (Isaías, 1, 11-16.)
"Porque eu quero amor, não sacrifícios..., e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos..." (Oseas, 6, 6.)
O que pensar então de um sacrifício humano?
Objetar-se-á que, não obstante, segundo o ritual judaico se perpetravam no Templo sacrifícios sangrentos de animais. É certo. Mas esquecemos de recordar que essa foi uma das causas da fundação da seita essênia, que os condenava. Por outra parte, a casta sacerdotal estava em grande parte em mãos dos saduceus, fração rica da população, materialista como é natural (rechaçava a crença em um destino post mortem para a alma), e semelhantes sacrifícios representavam para os sacerdotes saídos dela uma bonita margem de proveitos.
Paralelamente, tais sacrifícios sangrentos não incomodavam absolutamente a Saulo-Paulo. Eram normais na maioria dos cultos pagãos. E na Arábia nabatea, vizinha imediata de sua pátria, Iduméia, a trindade divina adorada pelos árabes nabateus os incluía, especialmente seu Dusares, idêntico ao Dionisos, durante os Actia Dusaria, essas grandes festas no curso das quais cativos e escravos viam regularmente e em datas fixas impregnar com seu sangue os altares de tal trindade: Dusares, entre suas duas companheiras deusas, Ouzza, desdobramento de Ateneu e Afrodite. Acima deles reinava Beel-Samin, o pai celestial, o senhor dos céus. Segundo testemunho de Epífano (cf. Panarion), Dusares nascia em 25 de dezembro de uma virgem mãe chamada Kaabou.
Tudo isto, quer dizer, o füonismo, o dusarismo e o orfismo constituíram uma abundante corrente sincretista no espírito de Saulo-Paulo. E vamos agora estudar este último, já que nosso amigo condottiere, doutor em teologia por causa de uma pena amorosa, o que faltava a um encontrava em outro. O que lhe permitia poder apresentar sempre um aspecto válido de seu "evangelho" aos gentis de todas as nacionalidades. Exceto aos judeus de boa classe, claro está.
O orfismo nos apresenta em duas épocas que mostram uma indiscutível mutação progressiva. Já no século V antes de nossa era Herodes faz alusão a isso; logo é Platão, no século IV A. C., e Aristóteles, na mesma época, e por último o peripatético Eudemio. Mas a única certeza que nós possuímos é o testemunho de dois papiros do Egito, bastante mutilados por certo, que datam um do século III e outro do II antes de nossa era, e que nos contribuem o primeiro fragmento de um ritual órfico, e o segundo uma versão de um relato ritual relativo ao seqüestro de Perséfone.
Para a segunda época do orfismo estamos muito melhor dotados, já que os documentos são muito mais numerosos, e abrangem desde princípios do século II de nossa era a finais do IV, época em que as religiões pagãs ficam fora da lei, os templos são fechados, as escolas iniciáticas proibidas, sob pena de castigos muito graves. Vamos, pois, resumir em poucas linhas os ensinos órficos.
As afinidades do orfismo com o cristianismo paulino são, com efeito, bastante numerosas e bastante surpreendentes. É uma religião revelada, que tem seus profetas, seus livros sagrados. O deus a cujo redor gira o ensino esotérico sofre, morre e ressuscita, glorioso, junto ao Deus Supremo, seu pai. Garante à seus fiéis a redenção de uma mancha original, e uma união perfeita, em total comunhão neumatológica, com a divindade salvadora. Os não iniciados são ameaçados, em função de quão pecados não purgaram, com intermináveis suplícios no outro mundo.
O orfismo prega uma vida de pureza e de ascetismo, e considera a existência terrestre como uma prova dolorosa, que a alma deve atravessar purificando-se mediante a observação de uma moral rigorosa e de ritos ao mesmo tempo culturais e catárticos. Como sempre em tais campos, o orfismo possui uma esoteriologia. Vejamos aqui um resumo, que expõe muito mais longamente aos mystes órficos o tradicional hieros logos, ou discurso sagrado, de todas as religiões com mistérios do mundo antigo.
A filha de Deméter e de Zeus, Perséfone, foi raptada pelo Hades. Liberada em parte por seu pai Zeus, teve com ele, em uma união sagrada (hierogamia), um filho, um jovem deus chamado Dionisos-Zagreus.
A este filho divino lhe prometeu o governo do Universo. Mas uns deuses inferiores, os Titãs, conseguiram apoderar-se do Zagreus menino, e repartiram sua carne a fim de divinizar-se ainda mais. Como castigo a semelhante crime, Zeus fulminou aos Titãs, mas de suas cinzas, nas quais subsistia um último germe divino, nasceram os primeiros homens. Esses homens participam, pois, da natureza divina, pela faísca que adormece neles, e da natureza demoníaca, por isso lhes vinha dos Titãs fulminados. Esta natureza titânica, segundo o termo utilizado por Platão, é a que incita aos homens para o mal, enquanto a faísca divina os impulsiona ao bem. Esse crime dos Titãs, pois, mancha a todo o conjunto da humanidade.
Não obstante, no Hieros logos se diz que o coração do Zagreus tinha escapado aos assassinos do divino menino. Desse coração tirou Zeus o princípio de ressurreição do jovem deus assassinado, e logo, sempre segundo a doutrina órfica, confiou-lhe o governo do mundo: "Zeus o colocou sobre o trono real, pôs-lhe o cetro na mão, e o fez soberano de todos os deuses do universo". (Cf. Proclos, Sobre o Cratilo do Platão.)
Compare-se com o que diz Saulo-Paulo: "Deus, depois de ter ressuscitado a Cristo dentre os mortos, sentou-o à direita nos céus, por cima de todo principado, potestade, poder e dominação". (Cf. Epístola aos Efesios, 1, 20-21.)
Indubitavelmente o comentário sobre o Cratilo de Platão, por parte de Proclos, é um texto pitagórico, posterior à Epístola aos Efesios; mas o texto de Platão assim comentado é anterior em vários séculos à epístola paulina. E a lenda iniciática de Zagreus não é quão único sustenta tal mito esotérico. Que o leitor se remeta ao que dizemos do de Mitra em nossa obra precedente, e ficará bem informado.
Por último, Saulo-Paulo se deu um papel idêntico ao de Orfeu na nova religião que se esforça por divulgar pelo velho mundo. Orfeu recebeu esses ensinos, evidentemente, de Perséfone, a deusa iniciadora, durante sua descida aos Infernos, onde ela reina seis meses ao ano, ao lado de Hades, seu marido. Esta descida ele o faz por amor. Mas, ao ser fiel ao Eurídice, as mulheres da Tracia o despedaçarão por despeito, ao lhe ver rechaçar toda participação em sua orgia ritual. Pois bem, Saulo-Paulo não foi procurar sua própria revelação aos Infernos, mas sim pretende havê-la recebido, quando subiu ao terceiro céu, do próprio Jesus. (Cf. II Epístola aos Coríntios, 12, 2.) Isto, evidentemente, vai dar no mesmo. Um homem é eleito pela divindade para chegar até ela, receber um ensino iniciático e difundi-lo entre os homens. Como conseqüência de sua missão, aqueles a quem contribui a mensagem lhe dão morte. O tema é sempre o mesmo, aparece sem cessar nas religiões de "mistérios". E a de Saulo-Paulo constitui uma mais.
Consulte o mapa das viagens de Saulo-Paulo e se constatará, como observa muito acertadamente nosso amigo Jean Desmoulins, que estes se desenvolveram sempre em regiões do Império romano em que floresciam os cultos a mistérios com sacrifícios, as religiões em que o deus morre para renascer gloriosamente. Paulo tinha ali um terreno favorável para seus temas favoritos.
O fato de que o orfismo e o filonismo impregnassem por sua vez a Saulo-Paulo (já que sua cultura metafísica e teológica era em princípio bastante frouxa) demonstra-se pelos rastros que se encontram deles em suas expressões favoritas.
No orfismo, o cabrito era o símbolo do iniciado nos mistérios. Nesta religião, o mistério se identificava ao Zagreus, e uma das apelações rituais era justamente Erifos, em grego "cabrito", que se aplicava ao deus. No ritual constituía uma palavra de passe, que se devia pronunciar ante as divindades do mundo subterrâneo (Campos Elíseos e Infernos) para poder ter liberdade de passagem. Este rito é comum à gnosis, à cabala, à franco-maçonaria esotérica. A frase chave é: "Cabrito, tenho caído dentro de leite...".
E o leite é o primeiro alimento do recém-nascido. Nas religiões de "mistérios" pode escrever-se "recém-nascido"... Porque a iniciação é um renascimento a um mundo novo, uma mudança de "plano", o acesso a outro nível de "consciência". E esta expressão utilizará Saulo-Paulo várias vezes:
"Dava-lhes a beber leite, não lhes dava comida porque ainda não a admitiam..." (Cf. I Epístola aos Coríntios, 3, 2.)
"Pois os que depois de tanto tempo deveriam ser professores necessitam que alguém lhes ensine de novo os primeiros rudimentos dos oráculos divinos, e lhes tornem tais, que têm necessidade de leite em vez de manjar sólido..." (Cf. Epístola aos Hebreus, 5, 12.)
Como se vê por tudo o que antecede, e como concluiu V. Macchiero em seu livro Orfismo e Paolinismo, o passado do cristianismo judaico ao cristianismo helênico, do fato histórico de Jesus ao fato místico do Cristo, de um personagem real que viveu na Judéia a um personagem mítico, espécie de arquétipo detectado ou imaginado, operou-se graças ao orfismo, não é a cristologia de Saulo-Paulo outra coisa que "uma transposição do orfismo" (op. cit., P. 18).
Aqui, de fato, o mito helênico não é mais que a representação imaginada de um estado real de consciência, quer dizer, uma experiência. Por conseguinte, estabelecer que os elementos míticos de Cristo de Saulo-Paulo derivam do orfismo equivale a procurar até que ponto a ressurreição mística no cristianismo deriva da do orfismo. Segundo a linguagem contemporânea, trata-se da repetição adaptada de um psicodrama.
Além disso, as indagações interessadas de um Tertuliano contra a liturgia de Mitra, ou as de um apologista como Justino contra a do orfismo, limitam-se a repetir a infantil explicação dos doutrinários cristãos dessa época, ou seja, que é o diabo quem, de antemão, elaborou e inspirou aos homens esses preparos do cristianismo. O diabo é o grande recurso dos parvos, constatamo-lo inumeráveis vezes, inclusive à nossas costas! De maneira que deixaremos à nossos demonômanos, tanto os antigos como os modernos, com suas infantis elucubrações. E nos encontraremos com um estranho crucifixo, que eles não deixarão de qualificar de "blasfematório".
Antes de nada, existem dois aspectos da cruz. Está a cruz cósmica, que vamos estudar, e a cruz patibular, instrumento de suplício. Esta já foi descrita no volume precedente, e é melhor não perder mais tempo com ela.
Ao princípio, os primeiros cristãos, confusamente envergonhados pela ignomínia do suplício (já que o tinham com freqüência ante seus olhos como castigo a crimes maiores), negavam-se a apresentar ao Jesus crucificado. Até o século V não se decidiram a fazê-lo, e ainda de forma bastante discreta. Em troca a cruz grega, de braços iguais, era-lhes familiar, e utilizavam-na com fins puramente talismânicos. Vejamos o que diz a respeito o cardeal Daniélou: "Não só os cristãos riscam com seu polegar o sinal da cruz sobre sua frente, mas também possuímos testemunhos que testemunham a prática de verdadeiras tatuagens. O uso de tais tatuagens é conhecida nos cultos pagãos ao Dionisos e a Mitra". (Cf. Jean Daniélou, Les Symboles chrétiens primitifs, IX.)
Esse caráter talismânico da crux, ou do sphragis (selo), usava-se para a vida espiritual, mas também para a vida profana: "Um tesouro que não esteja marcado com o selo (sphragis) está a mercê dos ladrões, uma ovelha sem sinal está a mercê de todas as armadilhas". (Cf. Séverien de Gabala, Sul o baptéme; Patrologie grecque, XXXI, C.432.)
E Marcos o Diácono, no século V, cita na Vida de Porfirio da Gaza a três meninos que caíram em um poço e aos quais a cruz grafite de vermelho no meio de sua testa preservou da morte. Também Agustín recorda que os pagãos reconhecem aos cristãos por suas vestimentas, seus penteados e a cruz grafite em sua frente. O que prova que o cristianismo não estava em modo algum açoitado e que seus seguidores não se viam na obrigação de ocultar-se. Às vezes inclusive a cruz estava em grafite ou tatuada "sobre o rosto", o que implica que devia está-lo em meio das bochechas ou no queixo. Justino e as Odes de Salomão fazem alusão a isso em pleno século II. Este costume subsistiu longo tempo, já que um conto persa inserido nas Mil e Uma Noites nos diz o seguinte: "Mas Seharkan, aproveitando o momento em que o cristão tirava o chapéu, lançou-lhe uma segunda lança que o alcançou na frente, no lugar mesmo em que tinha uma cruz tatuada.". (Cf. As Mil e Uma Noites, "História do rei Omar-al-Neman", noite núm. 90.) Pois bem, esta recopilação de contos começou no século X.
E efetivamente, a cruz de braços iguais, o sphragis ou selo divino, era símbolo pagão antes de ser símbolo cristão. E sob o nome de staurós, o piedoso, marcava na gnosis pagã o limite entre o mundo divino de Pleromio e o mundo demoníaco de Kenomio. O mesmo termo de staurós era o que designava a uma entidade do panteão gnóstico, e o eón tinha como missão proibir aos daimons titânicos o acesso ao mundo divino (trocadilho entre staurós, o piedoso, o limite, e hóros, o mesmo sentido).
Em Timeo, Platão nos apresenta a Alma Universal, intermediária entre o Deus Supremo e o Cosmos, sob o aspecto de uma cruz inclinada, cuja cabeça estava no céu e a base na terra. Devido a sua inclinação se apresentava, pois, como um "X", uma ji grega. Muito mais tarde os neoplatônicos representarão esta Alma Universal, o demiurgo, com uma cruz grega rodeada de um círculo. (Cf. Proclus, Sobre o Timeo, 111, 216.)
Por conseguinte, muito antes do cristianismo se considera à cruz como símbolo iniciático nas religiões dos "mistérios". Às vezes se acompanha de um deus cruciforme -incluso de um deus crucificado-. Para o primeiro caso, Porfírio nos transmitiu a descrição que Bardesana faz do deus criador da Índia: segundo ele, Brahma estendia os braços em cruz; sobre estes, figuravam inumeráveis deidades, a Natureza, o Mundo. Na mão direita tinha o Sol, na esquerda a Lua.
Charles Guignebert, em Probléme de Jesus, diz-nos que, em um ritual à Osíris, os braços estendidos da cruz simbolizam a regeneração mística, e em alguns amuletos antigos figuram, na cruz de Osíris, numerosos braços humanos.
No orfismo, que existia já no século VI antes de nossa era, o mensageiro do deus salvador era, indubitavelmente, Orfeu, que trouxera de sua descida aos Infernos o Hieros logos, a elocução iniciática reservada aos místicos. E uma gema gnóstica do século II, propriedade do Museu de Berlim, reproduzida por A. Boulanger em seu Orphée, página 7, mostra-nos um Orfeu crucificado. Trata-se de um selo de anel de oligisto, pedra marrom avermelhada (óxido férrico natural), em que está gravada a imagem de um homem sobre uma cruz vertical, com os braços estendidos (não se vê o sinal dos pregos, mas se trata de um crucificado real). A cruz está apoiada em sua base sobre duas grossas cavilhas em cunha, e rematada por uma espécie de bola (falismo?) coroada por um quarto crescente com as pontas para cima. Em cima da cruz há um arco de sete estrelas. Uma, inscrição, gravada de forma bastante tosca, mostra orfeus bak-kikos, por orfeus bakkikos ou bakkioakos. Este objeto é do último terço do século II, quer dizer dos anos 170 a 200 de nossa era. Trata-se pois, sem lugar a dúvidas, de Orfeu associado aos "mistérios" de Dionisos-Zagreus, aquele a quem despedaçaram as bacantes.
Por outro lado, o mito do Orfeu não era desconhecido entre os cristãos, já que Clemente de Roma, em suas Homilias Clementinas, oferece-nos um resumo dele. (Op. cit., Homilia VI.)
De fato a cruz, tanto se for grega como se é a ji (cruz em "X"), designa os quatro elementos que constituem o mundo material:
Terra, Água, Ar e Fogo. Esses quatro elementos aparecem marcados em cima da cruz patibular de Jesus, nas iniciais do célebre I.N.R.I, que significa, evidentemente, Iesus Nazarenas Rex Iudaeorum. Esquece-se que esta frase latina não podia pertencer aos manuscritos originais dos evangelhos, já que estes foram redigidos em grego, além disso, só figura no de João (19, 20), e nos outros três, sinóticos, a frase é diferente, e nem em grego nem em latim podiam dar a sigla INRI. Para João, em grego, dá IONOBTI: Iesus o Nazaraios o Basileus ton Ioudaion. De maneira que se montou expressamente a frase latina a fim de obter INRI. E temos o significado esotérico dessa sigla através do hebreu, já que I é Iebeschah em hebreu: Terra; Nour é o Fogo; Ruah é o Ar; e Iammin são as Águas.
Não pode confessar-se já mais abertamente que, no espírito dos mitólogos que "construíram" o cristianismo sobre bases mais antigas, assimilou-se Jesus, o homem histórico crucificado por Roma, ao Cristo Cósmico, ao Adão Kadmon da cabala, e a todos os deuses-salvadores "crucificados", quer dizer, dispersados no seio dos quatro Elementos do Mundo que constituem a Matéria.
Aqui é onde convém recordar aquela confissão de Clemente da Alexandria: "Os Mistérios se divulgam sob uma forma mística a fim de que seja possível a transmissão oral. Mas esta transmissão se efetuará menos por palavras que por seu sentido oculto. As notas que temos aqui são muito pouca coisa... Mas ao menos servirão de imagem que recordará o Arquétipo ao homem tocado pelo tirso". (Cf. Clemente de Alexandria, Stromatos, I, I, 13.)



Orfeu crucificado

Pois bem, o tirso era uma varinha terminada em seu extremo por um dente, e rodeada de hera. E era justamente o cetro de Dionisos-Zagreus...
E na alquimia tradicional (e sua indiscutível capital, Alexandria do Egito, está muito perto), a cruz de braços iguais é o símbolo do crisol. Pôr matéria prima da Obra no crisol se diz que é crucificar.
Por conseguinte, na alquimia mística, o deus-salvador, seja qual for seu nome quando se encarna e se sacrifica, mescla-se aos quatro Elementos do Mundo; como em um crisol, crucifica-se, (cf. Fulcanelli, O mistério das catedrais), para converter-se a seguir no Crisopeo espiritual.
Por isso, ao tomar como eixo de seu sistema ao Jesus, filho de Judas da Gamala, crucificado pelos romanos, cujos ajudantes e irmãos afirmavam que tinha ressuscitado depois de sua morte, Saulo-Paulo tinha a partida já quase ganha, porque:
a) perpetuava um tema familiar entre os meios helenísticos cultos, tema que tinha chegado até os meios populares e que estes se apressaram, ipsofacto, a cristalizar de forma real, em um personagem que bastava só lhes oferecendo;
b) esse personagem existia, era Jesus-bar-Juda, chefe dos messianistas zelotes, e seus partidários fizeram já a Saulo-Paulo a metade do trabalho preparatório, ao montar a lenda da ressurreição.
A nosso homem não bastava já afirmando que, igual ao deus-salvador desmembrado na cruz celeste dos Elementos encarnou-se em homem de carne e osso, esta mesma cruz celeste tivera seu reflexo material, tangível, na cruz patibular em que morrera tal homem. Saulo-Paulo não se privará disso, mas além disso será o único em sua época e durante longo tempo que, frente à vergonha cristã geral ante a cruz, construirá a base de uma verdadeira mística do "escândalo da cruz"; julgue-se:
"Que não me enviou Cristo a batizar, a não ser anunciar o evangelho (o seu), e não com sábia dialética, a fim de que não se desvirtue a cruz de Cristo. Porque a doutrina da cruz é uma insensatez para os que perecem, mas para nós, que estamos salvos (faz disso uma certeza), é um poder de Deus." (Cf. I Epístola aos Coríntios, 1, 17-18.)
"Logo se acabou o escândalo da cruz?..." (Cf. Epístola aos Gálatas, 5, 11.)
"Quanto a mim, jamais me glorificarei em outra coisa a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo." (Cf. Epístola aos Gálatas, 6, 14.)
"Para fazer em si mesmo dos dois (antigos) um só homem novo, e estabelecendo a paz, e reconciliando-os a ambos em um só corpo com Deus, pela cruz, dando morte por ela à inimizade (antiga)." (Cf. Epístola aos Efesios, 2, 15-16.)
É certo que na Epístola aos Filipenses (2, 8, e 3, 18), na Epístola aos Colossenses (1, 20, e 2, 14), e na Epístola aos Hebreus (12, 2) faz uma alusão direta ao instrumento material do suplício de Jesus. Mas não é seguro que não lhe emprestasse um sentido imensamente mais gnóstico. Recordemos a seu primeiro iniciador, Dositeo. Releiamos, com este fim, essas passagens de duplo sentido: "Apagou a ata cujas prescrições nos condenavam e que era contra nós, e a tirou do meio, cravando-a na cruz. Despojou aos Principados e às Potestades, exibiu-os à vista do mundo, triunfando deles pela cruz". (Cf. Epístola aos Colossenses, 2, 14-15.)
O que, no espírito de Saulo-Paulo, significa que se lembra dos ensinos de seu Mestre Dositeo: para os gnósticos cristãos, os Arkontes (Potestades e Dominações secundárias, segunda causa do Cosmos) reinavam antes inteiramente sobre o mundo material, sobre o Kenomio. Pelo sangrento sacrifício da cruz, diz-se que Jesus apaziguou a seu Pai celestial, e agora são os Arkontes quem, destronados, estão prisioneiros no seio dos quatro Elementos (a cruz cósmica).
Mas também aqui, na mente de Saulo-Paulo, o Jesus histórico cede o posto a um personagem imaginário, o Cristo Celeste, quem se sacrifica pelo Homem cansado, e, ao incorporar-se a sua essência, transmuta-o e o deifica. Coisas todas elas que o homem condenado por Pilatos jamais tinha projetado, e argumentos soteriológicos que se buscariam em vão no Antigo Testamento.
Compreende-se que ante tais ensinos heréticos o judaísmo ortodoxo reservasse a nosso novo apóstolo uma acolhida bastante má. E compreende-se que o mundo helênico, com o que comportava já de tradicional nos mitos pagãos anteriores, aceitasse discutir sobre o tema. O tempo tem feito o resto, e especialmente a chegada ao poder de imperadores cristãos.
E não é seguro que o simbolismo do coração de Zagreus, esquecido pela raiva cega dos Titãs e do que Zeus fez renascer ao deus sacrificado, não servisse de trama longínqua ao do Sagrado Coração, para o que se construiu toda uma teologia. Esse Sagrado Coração que, por sua misericórdia potencial, faz renascer (ou nascer) ao homem cansado. Permanência quase eterna dos grandes mitos sagrados! E os versos de nosso saudoso amigo Fernand Divoire nos vêm à memória: [Cf. FERDINAND DIVOIRE, Orphée, 36.]
Cendres du lourd passé oü brille para parcelles La substance du dieu, de Dyonisos mourant, Ah! Dégage-toi, o Substance immortelle! O Coeur, échappe-toi, et renais, Dieu-enfant
(Cinzas do passado, onde a retalhos brilha A substância divina de Dionisos moribundo, Ai! Desprenda-se já, OH imortal substância! OH Coração! Escapa, e renasce, menino Deus!)
14 - As visões de Paulo e suas contradições
Quando a gente não tem uma vida de verdade, substitui-a por miragens.
A.-P. CHÉJOV, A gaivota
As visões de Paulo, como vimos anteriormente, constituem seu principal argumento quanto à legitimidade de seu apostolado pessoal, que contribui um evangelho pessoal. Em diversas ocasiões "viu" Jesus, e este lhe deu suas instruções. Mas o que não sabe é que estas freqüentemente estão em contradição com as que ele deu em vida a seus irmãos, os apóstolos. E isso é algo muito molesto.
Não obstante, quando ao final se deu conta, tentou afinar os violinos ficando em contato com aqueles que lhe conheceram: "Logo, ao cabo de quatorze anos, subi outra vez a Jerusalém acompanhado de Bernabé e levando comigo ao Tito. Subi em virtude de uma revelação, e lhes expus o evangelho que prego entre os gentis, e em particular aos que figuravam, para que me dissessem se eu corria ou tinha deslocado em vão". (Cf. Gálatas, 2, 1-2.)
Assim, tem medo de pregar um evangelho não de acordo, e tem interesse em fazer concordar "seu" evangelho (Romanos, 2, 16, e 16, 25) com o que possuem aqueles que viveram com Jesus e receberam outro em vida. O que significa isto?
Se o próprio Jesus lhe comunicou um evangelho pessoal. Paulo não teria que ter dúvidas. Acaso não nos diz o seguinte?: "Sei de um homem em Cristo que faz quatorze anos -se no corpo, não sei; se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus sabe- foi arrebatado até o terceiro céu e ouviu palavras inefáveis que um homem não deve repetir". (Cf. Paulo, II Coríntios, 12, 2-4.)
Por outra parte, aqui temos uma segunda contradição, já que se o que foi comunicado não deve repeti-lo, não se trata de uma mensagem a difundir entre as nações. Em troca, em sua primeira Epístola aos Coríntios, declara isto: "Porque eu recebi do Senhor o que lhes transmiti". (Cf. Paulo, I Coríntios, 11, 23.)
Continuemos, pois, nossos controles, porque são gratificantes:
"Quando voltei para Jerusalém, orando no Templo tive um êxtase, e vi Jesus, que me dizia: "Tenha pressa e sai logo de Jerusalém, porque não receberão seu testemunho a respeito de mim". Eu respondi: "Senhor, eles sabem que era eu o que encarcerava e açoitava nas sinagogas aos que acreditavam em ti, e quando foi derramado o sangue de sua testemunha Estêvão, eu estava presente, e me gozava e guardava os vestidos dos que lhe matavam...". Mas ele me disse: "Vê, porque eu quero o enviar à nações longínquas".". (Cf. Atos dos Apóstolos, 22, 17-21.)
De maneira que Paulo, em presença de uma aparição de Jesus, na atmosfera angustiosa do Templo, permite-se lhe contradizer e discutir as ordens da aparição? Incrível!
Além disso, em sua argumentação, tende a explicar à Jesus (que supõe que o ignora), que dadas suas ações anteriores contra os discípulos não tem nada que temer dos judeus. Em troca, um pouco antes, no capítulo 21 dos mesmos Atos, mostra a estes tentando linchar ao Paulo, e que este agradeceu sua salvação exclusivamente à intervenção imediata do tribuno das coortes Claudio Lisias: "E enquanto tratavam de lhe matar chegou a notícia ao tribuno da coorte de que toda Jerusalém estava amotinada. E tomando imediatamente os soldados e os centuriões, precipitou-se sobre os manifestantes. Estes, à vista do tribuno e os soldados, cessaram de golpear ao Paulo". (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 31-32.)
Aqui temos, pois, outra contradição. E há ainda outra mais. Porque Jesus declarou numerosas vezes que seu papel de messias liberador pretendia reservá-lo unicamente em benefício de Israel:
"Não fui enviado a não ser às ovelhas perdidas da casa de Israel." (Cf. Mateus, 15, 24.)
"Não vão aos gentis nem penetrem em cidade de samaritanos; vão melhor às ovelhas perdidas da casa de Israel." (Cf. Mateus, 10, 5.)
E nesta passagem confia ao Paulo uma missão contrária. Pois se Jesus for Deus, como Deus pode mudar suas decisões, eternas? É inconcebível.
Além disso, Paulo faz o que lhe passa pela cabeça. Igual segue as instruções do Espírito Santo, como as passa por cima. Igual obedece ao primeiro sonho que tem, como recusa escutar a um profeta. Julgue-se: "Em todas as cidades o Espírito Santo me adverte, dizendo que me esperam cadeias e tribulações. Mas eu não faço nenhuma estima de minha vida, com tal de acabar minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus". (Cf. Atos dos Apóstolos, 20, 22-24.)
Terá que ver neste desprezo da existência uma espécie de renúncia ascética, que não lhe pede, como se vê, a não ser ao contrário, ou um desespero secreto, uma ferida incurável: a lembrança da filha de Gamaliel.
Esta fuga longe de Jerusalém, durante quatorze anos, tenderia a confirmar esta hipótese. E então Paulo iria deliberadamente e por uma espécie de suicídio secreto, para uma morte desejada desde fazia longo tempo. Vejamos algo que o confirma:
"E desembarcamos em Tiro, porque é ali onde tinha que deixar sua carga a nave. Como ali descobrimos discípulos, permanecemos sete dias. Eles, movidos pelo Espírito Santo, diziam ao Paulo que não subisse à Jerusalém. Mas, passados aqueles dias, saímos." (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 3-5.)
"Havendo ficado ali vários dias, desceu da Judéia um profeta chamado Agabo, o qual, chegando-se a nós, tomou o cinto do Paulo e, atando-os pés e as mãos com ele, disse: "Isto diz o Espírito Santo: assim atarão os judeus em Jerusalém ao varão de quem é este cinto, e lhe entregarão em poder dos gentis"." (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 10-11.)
Mas Paulo não quer escutar: "depois disto, providos do necessário, subimos à Jerusalém". (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 15.)
Por certo que esta visão de Agabo não foi interpretada corretamente, já que se os judeus assaltaram ao Paulo, foram os judeus da Ásia os que, depois de havê-lo reconhecido no Templo, avisaram aos outros, e não só Paulo não foi entregue por eles aos romanos, mas também foram estes últimos os que lhe liberaram, lhe salvando assim a vida. (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 31-36.)
No referente à enigmas e contradições, aqui temos outras passagens sobre as visões de Paulo: "Uma noite, em uma visão, disse o Senhor ao Paulo: "Não tema, continua falando, não cale! Eu estou contigo e ninguém tentará te fazer mau, porque tenho já nesta cidade um povo numeroso". Passou ali um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus". (Cf. Atos dos Apóstolos, 18, 9-10.)
Esta cidade é Corinto, cidade voluptuosa, que possuía uma escola de cortesãs célebre, e famosa pelo relaxamento de seus costumes, de onde a expressão significativa de "viver a corintia". Era, de fato, a Capua da Acaia. Pois bem, na II Epístola aos Coríntios (1, 19) diz-se que a Igreja de Corinto foi fundada pelo Paulo e seus dois colaboradores, Silas e Timóteo, e os Atos nos confirmam isso: "Mas logo que chegaram da Macedônia Silas e Timóteo, Paulo deu tudo a pregação da Palavra, atestando a quão judeus Jesus era o Messias. Como estes resistiam e blasfemavam, sacudindo suas vestimentas lhes disse...". (Cf. Atos dos Apóstolos, 18, 5-6.)
Para ver "um povo numeroso nessa cidade". Jesus tinha que ser muito otimista, quanto mais que sem a intervenção do pró-cônsul Galión, irmão de Séneca e "amigo de César", Paulo teria passado um quarto de hora muito mal (cf. Atos dos Apóstolos, 18, 12-18), e quando finalmente se embarca para Síria, a Igreja de Corinto não deve ser muito importante.
Recapitulemos. Paulo fracassou rotundamente entre os judeus. Obteve a conversão de um tal Justo, homem que adorava a Deus" (cf. Atos dos Apóstolos, 18, 7), quer dizer de um pagão, inicialmente partidário do judaísmo, logo a de Crispo, chefe da Sinagoga, com todos os seus (cf. Atos, 18, 8), quem, por outra parte, alguns versículos mais tarde se chama Sustenes (cf. Atos, 18, 17).
E logo nos diz que: "E muitos Coríntios, ouvindo a Palavra, acreditavam e se batizavam". (Cf. Atos, 18, 8.) batizavam-se? vamos ver.
Aqui se trata unicamente de pagãos aos quais Paulo convertera à sua doutrina religiosa. Para qualquer que conheça o clima que reinava até então em Corinto, onde preponderava o elemento romano e latino, onde toda regra de vida derivava do gozo de existir, e tendia ao amor, onde vários milhares de "servidoras de Afrodite" gravitavam ao redor de seu templo, dominando a cidade, como tentações vivas, famosas por sua beleza e sua ciência das carícias, a hipótese de um êxito entre "muitos Coríntios" é uma pura bravata.
Por outro lado, Paulo a única coisa que fazia era ensinar, ele não batizava, e ele mesmo o quis sublinhar: "Eu não fui enviado para batizar, a não ser para pregar o evangelho...". (Cf. Paulo, I Coríntios, 1, 17.) Coisa que, recordemo-lo, é uma prova mais de que não recebera os famosos poderes apostólicos que Simão-Pedro negou ao Simão o Mago, aliás Saulo, aliás Paulo (veja-se mais acima).
E esse escrúpulo, essa vacilação, fazem que se abata uma dúvida sobre a realidade da missão que Jesus supostamente lhe confiou. Se não, por que este último, depois de ressuscitar em carne e osso, corpo glorioso, em três dimensões, que comia e bebia como vocês e como eu, ia ver-se na impossibilidade de infundir com as palavras e os gestos clássicos, esse Espírito Santo necessário para a fundação de toda Igreja? Porque esse Espírito Santo jamais o recebeu nas formas sacramentais acostumadas nos tempos apostólicos. Jamais obteve a não ser um simples acordo, concretizado por um simbólico apertão de mãos, que já estava em uso nas sociedades secretas dos "mistérios": "Santiago, Cefas e João [.. ] deram-nos para mim e ao Bernabé a mão em sinal de comunhão". (Cf. Paulo, Gálatas, 2, 9.)
Assim -coisa que ninguém parece ter prestado atenção- nenhum bispo pode vangloriar-se de ter uma filiação apostólica que se remonta até São Paulo. O que, tendo em conta o fato de que Pedro jamais esteve em Roma converte em um mistério a identidade do verdadeiro fundador apostólico desse bispado, a menos que se enfoque o assunto segundo a explicação que será objeto do capítulo seguinte.
Ao começo do presente capítulo sublinhamos a ausência de todo princípio nas decisões do Paulo, que eram conseqüência de suas visões. Às vezes não faz caso das "mensagens" recebidas, e às vezes fica em marcha acreditando só em um simples sonho. Julgue-se:
"Havia ali [em Listra, na Liconia] um discípulo chamado Timóteo, filho de uma mulher judia crente e de pai grego [...] Paulo decidiu levá-lo consigo. Tomou, pois, e o circuncidou, à causa dos judeus que havia naqueles lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego [...] Percorreram a Frigia e o país da Galacia, pois o Espírito Santo lhes proibiu pregar na Ásia. Chegaram à Misia e tentaram dirigir-se a Bitinia, mas tampouco o permitiu o Espírito de Jesus. Atravessaram, pois, Misia e baixaram ao Tróade". (Cf. Atos dos Apóstolos, 16, 1-8.)
Aqui agarramos Saulo-Paulo com as mãos na massa! Porque não tinha absolutamente nenhum direito a efetuar essa operação ritual, que era realizada sucessivamente por três mohelim (operadores) em presença do shamoch (notário), e com menos seis testemunhas maiores. Esta circuncisão sacrílega é uma falsidade mais a acrescentar no ativo do Paulo. Mas continuemos: Primeira observação: umas vezes é o Espírito Santo, e outras o Espírito de Jesus o que se comunica com o Paulo.
Sustentar depois disto que se trata de um deus único nos parece muito audaz. Observar-se-á, além disso, que o Pai, por sua vez, continua ignorando ao Paulo. Está melhor na parte dos judeus. Vêem-se contradições assim dentro das famílias, cada qual tem suas preferências.
Segunda observação: apoiando-se em que critérios reconhecia Paulo se as via com um ou com outro? Sob que forma se manifestava o Espírito Santo?
Terceira observação: depois de sua "ressurreição" se diz que Jesus apareceu em carne e osso, com três dimensões, comendo e bebendo, atravessando paredes, e nos precisa que não se tratava de "um espírito, que não tem nem carne nem ossos". (Cf. Lucas, 24, 39.)
Pois bem, um quarto de século depois dessa ressurreição, parece que perdera aquele extraordinário privilégio, e contentava-se em não ser mais que um espírito, como os que tinham todos os mortos segundo as crenças daquele tempo. A menos que na época da redação dos Atos dos Apóstolos a ressurreição em carne e osso ainda não se inventou.
Mas continuemos lendo o que segue: "De noite. Paulo teve uma visão. Um varão macedônio se pôs diante, e lhe rogando dizia: "Passa a Macedônia e nos ajude". Imediatamente depois desta visão, procuramos como passar a Macedônia, coligindo que Deus nos chamava a lhes evangelizar". (Cf. Atos dos Apóstolos, 16, 9-10.)
Seria difícil negar que Paulo era um neuropata, já que um homem que anda vagando assim através de todo o Império romano, emprestando ouvidos sonhos ou a visões, sem método e sem um plano bem maturado, não pode ser outra coisa que isso.
E aqui vamos parar à misteriosa enfermidade da qual já falamos anteriormente.
Porque agora os fenômenos oníricos seguirão manifestando-se e a perambulação irracional vai continuar: "No dia seguinte, de noite, lhe apareceu o Senhor e lhe disse: "Tenha ânimo, porque como deste testemunho de mim em Jerusalém, assim também tem que dá-lo em Roma!"". (Cf. Atos dos Apóstolos, 23, 11.)
Sua confiança se vai exacerbando, até dar passo a uma autoridade em aumento. Na viagem por mar que conduzirá a Roma, o navio cai em uma tempestade. Mas Paulo tranqüiliza a todo mundo: "Esta noite me apareceu um anjo de Deus a quem pertenço e a quem sirvo, que me há dito: "Não tema, Paulo, tem que comparecer ante o César, e Deus concede a vida de todos os que navegam contigo"". (Cf. Atos dos Apóstolos, 27, 23.)
Os céticos dirão que havia uma possibilidade entre dois de que este sonho coincidisse com a realidade. Nos contentaremos fazendo observar que os neuropatas são freqüentemente excelentes médiums. É bem sabido que uma tara psíquica freqüentemente está compensada por uma faculdade paranormal, e isto terá que reconhecê-lo. Paulo, quer dizer, o iniciado na magia nabatea que nos oculta sob o pseudônimo de Simão o Mago, possuía o duplo dom da clarividência e a clariaudiência. Daí mesclar nisso a Deus Pai, Deus Filho ou Deus Espírito Santo vai muito. Isso representaria lhes dar a paternidade iniciática de muitos sonâmbulos extralúcidos, dos que saem nas últimas páginas dos jornais, depois da imprensa do "coração".
Acabamos de pronunciar as palavras tara psíquica, e convém que nos expliquemos.
Voltemos para Flavio Josefo, ao episódio referente às fases sucessivas que precederam à morte de Herodes o Grande, no ano 6 antes de nossa era: "Sofria de uma febre lenta que não manifestava tanto seu ardor ao contato com a mão como no interior de quão tecidos destroçava. Experimentava deste modo uns violentos desejos de tomar mantimentos, e era impossível não condescender. Acrescente-a ulceração dos intestinos, e em especial do cólon, que lhe causava atrozes sofrimentos. Nos pés, uma inflamação úmida e transparente, e o mesmo ao redor do abdômen, logo a gangrena das partes genitais, que engendrava vermes. A respiração era fatigante quando estava incorporado, e era desagradável pela fetidez de seu fôlego e o precipitado do hálito. Por último, sofria convulsões espasmódicas, de uma violência insuportável". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, VI.)
É indiscutível que todos esses sintomas apontam para uma sífilis em estado terciário, em suas últimas manifestações. E nessa época, no Oriente Médio, tratava-se da sífilis mutilante, que se converteu na sífilis nervosa de nossa época na Europa. Mas nessas mesmas regiões continua sendo ainda multilante às vezes, sobretudo no Extremo Oriente (Índia, Paquistão, etc.).
Pois bem, Saulo-Paulo é o neto de Herodes o Grande por parte de sua avó Mariana e sua filha Cypros II, mãe de Saulo e de seu irmão Costobaro II. Portanto é através de sua mãe por onde lhe chegou a triste condição de sifilítico hereditário. Esta valeu ao Saulo um clima psíquico aberto de antemão a diversas formas alucinatórias, uma distrofia ocular (nos diz que entortava os olhos), e óssea, que geralmente afeta aos membros inferiores e produz mornas em forma de "folha de sabre" (tinha as pernas torcidas, como também nos diz).
Esta herança sifilítica não explica tudo. É certo que nessas regiões e naquela época um guerreiro, como era inicialmente Saulo, estava exposto a toda sorte de aventuras, e o desenfreio e inclusive as violações, próprios dos soldados profissionais, levavam em si mesmos seu elevado e penoso preço. Na vida de nosso herói houve uma sífilis adquirida, e não só já uma hereditária. Isto não é contraditório. A herança sifilítica confere uma certa imunização, mas esta pode apagar-se com o tempo, e se citam casos de homens que, apesar de haver-se confirmado que eram sifilíticos hereditários, sofreram uma grave afecção sifilítica nos limites da idade adulta. Este foi provavelmente o caso de Saulo-Paulo.
E em seu estádio secundário provoca já uma esplenomegalia moderada por hipertrofia do baço. O doente sofre lesões cutâneas e mucosas, a mais corrente é a roseóla, e transtornos das faneras, como a queda dos cabelos (ficou calvo em idade precoce). No estado terciário a sífilis apresenta gomos, duros e indolores, ulcerações profundas da derme, acidentes mucosos, sobretudo na boca (gomos, manchas brancas). O doente é repelente. E o próprio Saulo-Paulo nos diz que foi vítima de uma enfermidade que causava asco: "Bem sabem que estava doente de doença corporal quando pela primeira vez lhes anunciei o evangelho, e postos a prova por minha enfermidade, não me desdenharam nem fizeram ascos de mim, antes me receberam como um anjo de Deus". (Cf. Epístola aos Gálatas, 4, 13-14.)
Agora bem, no mundo antigo, e no Oriente Médio (e na Índia ainda em nossos dias, em determinadas regiões), o doente afetado de sífilis era considerado como sujeito divino. Porque não se ignora que em suas fases últimas a enfermidade contribuía consigo um estranho fenômeno.
Em efeito, de dez a vinte anos depois da sífilis primária, às vezes inclusive trinta anos mais tarde, aparece o tabes, ou ataxia locomotriz (não foi este o caso de Saulo-Paulo), ou transtornos psíquicos ligados a uma forma que se conhece com o nome de paralisia geral. Esta pode traduzir-se simplesmente por uma afecção sifilítica difusa nas meninges e o encéfalo, com manifestações mentais e neurológicas. Estas últimas se traduzem às vezes por um delírio de grandeza, o doente acredita ser Deus ou em relação com Deus; está sujeito a alucinações ou a crise de excitação (cf. professor A. Molinier). É o caso de Saulo-Paulo, em quem segue a esplenomegalia da sífilis secundária. Esta forma da terrível enfermidade permanece ignorada durante longo tempo. Além disso, o paludismo é um poderoso fator que atrasa esta última afecção.
Quanto às "audições" de vozes diversas, não esqueçamos que no caso de lesões sifilíticas que se produzem no aparelho auditivo (labirinto, caracol), o doente é objeto de alucinações auditivas que vêm a acrescentar-se às alucinações visuais. O delírio de grandezas se converte então em teomania, e o doente se toma por um novo profeta ou pela reencarnação de um apóstolo, ou inclusive do próprio Deus. Por pouco que estejam compensadas as lesões cerebrais pela aparição de faculdades paranormais, coisa que é freqüente, encontrará fiéis, e se formará uma seita a seu redor.
Nós pensamos, pois, que a grave enfermidade que intriga tanto aos exegetas como aos historiadores do paulinismo, não foi nem a malária nem a epilepsia. Foi simplesmente um pouco mais comum, tendo em conta a região e a época, assim como o modo de vida inicial de Saulo-Paulo: a sífilis, enfermidade muito extensa naquela época. Se foi também palúdico (coisa que tampouco é impossível naqueles lugares), esse detalhe explica e justifica as manifestações tardias da enfermidade em seu estágio terciário, associado com a herança que, como já assinalamos, atrasa igualmente ao paludismo os efeitos da sífilis adquirida.
Este foi, acreditamos nós, o "aguilhão na carne" cuja presença reconhece ter nele Saulo-Paulo (II Epístola aos Coríntios, 12, 2-9). Mas ele utiliza o termo grego de akóloph para designar este aguilhão, e akóloph não designa um aguilhão, a não ser "um conjunto de aguilhões", algo que se situaria entre os espinheiros e a pele arrepiada de pelos de animal chamado precisamente "ouriço", conforme nos diz monsenhor Ricciotti em seu Saint Paúl, apotre. Aí tratava-se de sífilis secundária, caracterizada por sifílides de um tipo eruptivo generalizado, e que afeta precisamente a este aspecto.
Pudemos descobrir que o maravilhoso "caminho de Damasco" não foi outra coisa que a marcha cadenciosa de um formoso judeu. Agora vemos que as "comunicações" recebidas por Saulo-Paulo não tiveram outra fonte que uma simples enfermidade venérea, muito intensa. Embora o reino do fantástico não ganhe nada com isto, a história ao menos recupera seu verdadeiro rosto.
NOTA: A sífilis foi identificada com quase total certeza nas descrições de autores antigos; agora se sabe que essa enfermidade, que foi durante tanto tempo tão temida, não a trouxeram para a Europa os marinheiros de Cristóvão Colombo a sua volta das ilhas do Caribe, mas sim foi exportada por eles.
Os defensores de uma fonte americana não efetuaram controles cronológicos. Faremo-los, pois, nós em seu lugar:
1) Carlos VIII partiu para sua primeira campanha da Itália em 1493. Durou até 1496. Numerosos soldados de todos os graus retornaram dela poluídos, sobretudo de Nápoles, que foi tomada em 1495. O mesmo aconteceu com as tropas de Luis XII, no curso da segunda campanha, que durou de 1499 a 1504.
2) Em 3 de agosto de 1492, Cristóvão Colombo e suas três pequenas tripulações saíram de Palos de Moguer (Andaluzia), e retornaram a Europa, a Lisboa, em 4 de março de 1494. Voltaram a empreender a marcha, desta vez com quatorze tripulações mais, em 25 de setembro do mesmo ano de 1494, e não retornaram até 1496.
Como poderiam, em só seis meses que durou sua volta, poluir os marinhos de Santa Maria, a Pinta e a Nina, primeiro desde Lisboa, logo de Madrid e por último de Barcelona, a tão grande quantidade de gente na Itália, onde jamais puseram os pés durante esse período de tempo, e simultaneamente à expedição francesa? Quanto mais que este terrível gérmem de sífilis, se os franceses o imputaram às belas italianas, violadas ou conquistadas, estas, por sua parte, pretendiam havê-la contraído dos mesmos franceses! Seja o que for, o "mal de Nápoles" segundo uns, ou o "mal francês" segundo outros, não deixam passo a um "mal caribenho", e se se destaca à Itália daquela época como um dos focos que irradiavam a sífilis, não se diz em troca nada da Espanha e de Portugal, que deveriam ser os primeiros Estados ameaçados. E como um número tão pequeno de marinheiros, o que implica um número ainda menor de sifilíticos, poderia difundir a sífilis de maneira tão virulenta, e em tão poucas semanas? As "canas ao ar" das escalas têm, apesar de tudo, seus limites, e a virilidade masculina também.

CONTINUA