O
Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
Segunda parte
8 - O verdadeiro caminho de Damasco
Todos os caminhos do sonho não levam ao Katmandú..
Michel Delpech , Je suis pour...
Os exegetas da crítica liberal têm descoberto numerosas interpolações
no canon neotestamentário. Existem diversas fórmulas destas.
Pode introduzir um texto, longo ou curto, em uma obra antiga, no curso de
uma nova cópia manuscrita, arrumando-lhe para que o leitor inexperiente
não possa dar-se conta.
O exegeta treinado discernirá facilmente esta interpolação
ao constatar que, a maior parte do tempo, o fio do discurso inicial se rompe,
e que aparece perturbada a harmonia do estilo. Citaremos como exemplo a
célebre passagem de Suetonio sobre o incêndio de Roma: "impuseram-se
limites ao luxo, reduziram-se os festins públicos a distribuições
de mantimentos; proibiu-se vender nas Tavernas nenhum manjar cozido, à
exceção das verduras e dos legumes, quando antes se servia
todo tipo de comida; entregou-se ao suplício os cristãos,
gente dada a uma superstição nova e perigosa; proibiram-se
os jogos dos condutores de quadrigas, aos que um antigo costume autorizava
a vagar por toda a cidade para divertir-se, e se relegaram de uma vez as
pantomimas e suas facções". (Cf. Suetonio, Vida dos doze
Césares: Nero, VI.)
É evidente que o estilo de Suetonio merecia mais que essa interpolação,
tão áspera como torpe. Como observa Marcel Jouhandeau, "esse
autor não perde de vista seu objetivo nem um segundo".
E com efeito, o que faz essa condenação dos cristãos
em meio da venda da alface cozida e das verduras, e das farras noturnas
dos condutores de carros? Por isso acreditam a maioria dos exegetas imparciais
que toda a parte que temos escrito em itálico em nossa entrevista
é uma interpolação estranha ao texto inicial de Suetonio.
Nos evangelhos canônicos, uma das interpolações mais
audazes que existem é indubitavelmente a que se refere às
célebres "chaves", e que afirma assim a primazia do bispo
de Roma sobre todos outros. Vejamos esse célebre texto. Jesus acaba
de perguntar a seus discípulos (seus irmãos, de fato) o que
pensam dele. Todos respondem que lhe acreditam cristo, filho do Deus vivo
(Mateus, 16, 13-20; Marcos, 8, 27-30; Lucas, 9, 18-21; por isso com respeito
à João, ignora a totalidade deste episódio).
Mas no capítulo de Mateus citado, depois do versículo 16 se
interpolou um novo texto, que se converteu nos versículos 17 e 18,
e que diz assim: "E Jesus, respondendo, disse: Bem-aventurado você,
Simão Bar Jona*, porque não é a carne nem o sangue
quem revelou isto, a não ser meu Pai, que está nos céus.
E eu digo-lhe que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei
eu minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra
ela". (Mateus, 16, 17-18.)
*[Barjonna: veja a palavra acádia, que significa "fora da lei,
anarquista". Veja-se Jesús o el secreto mortal de los templarios,
p. 72.]
Esta audaz interpolação é, necessariamente, posterior
ao século IV, dado que naquela época, como já dissemos,
por ordem de Constantino e sob a vigilância de doutores como Eusébio
da Cesaréia, unificavam-se os evangelhos oficiais, enviavam-se série
de cinqüenta exemplares aos diversos bispados do Império Romano
e recolhiam-se os antigos, que não estavam de acordo.
É perfeitamente evidente que se esta passagem o tivessem conhecido
os anônimos redatores e copistas, os manuscritos mais antigos de Marcos,
Lucas e João também o levariam. E não há nada
disso. Por outra parte, em nossa época ninguém teria a audácia
de introduzi-lo nas versões desses mesmos evangelhos, aos que entretanto
se chamam sinóticos.
De todas as sucessivas interpolações de que foram vítimas
os textos canônicos, esta foi sem lugar à dúvidas a
mais gratificante, e justifica a constatação de Leão
X citada em página anterior desta obra.
Vem a seguir o que se conveio em chamar a interpolação repetida.
Os manuscritos antigos eram cilindros compostos por tiras de papel ou por
páginas quadradas de papiro, grudadas umas depois de outras, a fim
de formar uma longa banda. Para introduzir um texto novo no manuscrito inicial
bastava separar duas páginas ou duas bandas, e intercalar entre elas,
grudando-a por sua vez, a fração de pele ou a página
de papiro que contivesse os novos textos.
De qualquer maneira, ao proceder assim, às vezes podia acontecer
ao interpolador a fatalidade de ver que uma frase cortada em duas. E então
era obrigado a terminar, em cima da fração introduzida, a
frase desventuradamente partida. Logo, na parte debaixo da última
página introduzida, tinha que colocar, como fora, um texto que enlaçasse
com o cabeçalho da antiga página imediatamente posterior.
Cada um desses dois fragmentos dava então origem a uma nova frase,
mas a segunda constituía um áspero "dublê"
da primeira. Repetia os termos e as letras. Daí o nome de "interpolação
repetida" que se aplica a esse artifício fraudulento dos escribas
anônimos dos primeiros séculos.
O teólogo alemão protestante Wendt foi o primeiro que descobriu
nos Atos dos Apóstolos dois casos patentes de interpolação
repetida. O primeiro exemplo está relacionado com a lapidação
de Estêvão:
"Eles, gritando em vozes altas, tamparam-se os ouvidos e jogaram-se
sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e o apedrejaram."
(Atos, 7, 57-58.)
"As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem
chamado Saulo."(Idem, 58.)
"E enquanto o lapidavam, Estêvão orava, e dizia: Senhor
Jesus, recebe meu espírito." (Idem, 59.)
A fim de introduzir um Saulo ainda menino na narração dos
Atos, o interpolador efetuou um corte entre os versículos 57 e 59.
Sem dúvida trata-se tão somente de uma pequena banda horizontal.
Mas esta interpolação resulta torpe, porque, como observa
divertido o abade Loisy: "Ao pobre Estêvão parece que
o tenham lapidado duas vezes".
Vejamos agora a segunda interpolação descoberta por Wendt.
Aqui o falsificador não se ateve com pequenas, porque compreende
nada menos que vários capítulos. Tomemos os Atos, capítulo
8, versículo 4: "Os que se dispersaram foram por toda parte
pregando a Palavra".
Saltemos agora todo o resto, quer dizer o assunto de Simão, o Mago,
enfrentando-se com o Simão-Pedro, logo a história do diácono
Felipe e do eunuco etíope da rainha Candaces de Etiópia. Detenhamo-nos
para rirmos um pouco pelo caminho, porque o diácono Felipe batiza
ao chamado eunuco pelo caminho de Jerusalém a Gaza. Quando aparece,
o Espírito Santo o eleva pelos ares, e nosso diácono se encontra,
assombrado, na cidade de Açoito, a uns quarenta quilômetros
dali, a vôo de pássaro, claro! (Açoito não é
outra coisa que o Ashdod bíblico -que em hebreu significa "pilhagem"-,
antiga cidade filistéia situada na mesma latitude de Jerusalém,
ao norte de Gaza.) Logo segue o relato da conversão de Saulo, a cura
de Ananías, a ressurreição (sim!) da Tabita graças
aos cuidados de Pedro, a conversão de Cornelio, o aviso que o Céu
deu ao Pedro de que abandonasse todos os tabus da Lei judia, etcétera.
E nosso ardiloso interpolador conclui (no século IV pelo menos):
"Para ouvir estas coisas, calaram e glorificaram a Deus, dizendo:
De maneira que também aos gentis outorga Deus a penitência
para alcançar a vida!". (Atos, 11, 18.)
Amém, diremos nós. E aqui voltamos a nos encontrar com a frase
do princípio: "Os que se dispersaram com motivo da perseguição
suscitada por Estêvão chegaram até Fenícia, a
ilha do Chipre e Antioquia, pregando a palavra somente aos judeus".
(Atos, 11, 19.)
É evidente que tudo o que se interpolou, desde 8, 4, até 11,
19, foi com a intenção de justificar ao Paulo, seu apostolado
entre os gentis, o acesso destes à nova comunidade, e o abandono
dos tabus alimentares judaicos, que, igual à circuncisão,
desagradavam aos pagãos e freavam sua conversão. E os relatos
nos quais abunda o sobrenatural estão destinados a fazer admitir
a autoridade daqueles que supostamente os viveram.
A data desta interpolação, uma das mais importantes do Novo
Testamento, pode situar-se nos arredores do ano 360, se recordarmos o que
assinalamos ao estudar a Confissão de São Cipriano.
E provavelmente é concomitante a essas "cópias conforme"
enviadas por séries de cinqüenta exemplares às igrejas
do Império Romano por ordem de Constantino, cópias efetuadas
sob a vigilância de seu panegirista Eusébio da Cesaréia
e logo repartidas, ao que seguiu, evidentemente, a recuperação
dos textos antigos. Não obstante, o que é seguro é
que esse mendaz acerto não esteve coordenado; o "nível
intelectual" dos destinatários não impunha aos escribas
anônimos do século IV muitas precauções ou controles.
Como prova temos as contradições observadas nos Atos dos Apóstolos,
obra que entretanto está atribuída, oficialmente, ao Lucas,
confidente e secretário de Saulo-Paulo, como autor único.
Julgue-se:
Em Atos, 9, 7, nos diz que a escolta de Saulo tinha permanecido de pé
e estupefata durante a aparição de Jesus. Em Atos, 26, 14,
lemos que os homens de Saulo caíram todos ao chão. .
Em Atos, 9, 7, esses mesmos homens armados ouviram a voz de Jesus dirigindo-se
ao Saulo, mas não viram ninguém. Em Atos, 22, 9, precisam-nos
que viram a misteriosa luz, mas que não ouviram a voz de Jesus.
Se, como afirmou recentemente a comissão vaticana autorizada, todo
católico tem a obrigação de admitir que Lucas é
o autor único dos Atos dos Apóstolos, o exegeta independente
e objetivo tem que tirar a conclusão de que o tal Lucas não
tinha as idéias muito claras...
Agora sabemos, pela Confissão de São Cipriano, relato composto
por volta dos anos 360-370, que naquela época os Atos dos Apóstolos
não mostravam o milagre acontecido à Saulo-Paulo no caminho
de Damasco pouco antes de entrar na cidade. Segundo esses mesmos Atos, a
conversão do chefe da polícia paralela judeu-romana se produziu
muito mais tarde (veja-se pág. 22).
Agora bem, Epífano (falecido em 403), em sua obra principal Adversus
Haereses, contribui-nos a tradição dos ebionitas. Esta seita,
uma das mais antigas citadas, junto com os nazarenos, reconhecia que o mundo
era obra de um Deus Supremo, mas no que se refere a Cristo, adotava a mesma
postura que Cerinto e Carpocras para esse eón gnóstico. Viviam
à maneira judaica ordinária, e pretendiam justificar-se pela
Lei. Segundo eles, foi praticando-a como Jesus se converteu em um justo,
no Ungido de Deus, pois ninguém entre os judeus tinha completa a
Lei. Mas segue-se o mesmo caminho, alguém se faz idêntico a
ele, e qualquer um pode converter-se por sua vez em um Cristo. "Porque,
diziam. Jesus era inicialmente um homem igual aos outros." (Cf. Hipólito
de Roma, Philosophumena.)
O interesse da tradição ebionita, neste caso, consiste em
que nos conta o verdadeiro motivo da conversão de Saulo-Paulo. São
Epífano nos diz que Saulo tinha nascido de pais pagãos. Aqui
encontramos a justificação de todos os argumentos que tiramos
de Flavio Josefo. Prendado da filha do supremo sacerdote Gamaliel, teria
se feito circuncidar para conseguir casar-se com ela, mas ao ver frustradas
suas esperanças, por despeito teria começado a pregar contra
a Lei e os tabus judaicos, e claro está, principalmente contra essa
mesma circuncisão. (Cf. Epífano, Adversas Haereses, XXX, 16.)
assim, o maravilhoso "caminho" de Damasco se teria limitado aos
harmoniosos "quadris" de uma formosa judia.
Por que não? "O amor é forte como a morte, seus ardores
são ardores de fogo, uma chama do Eterno, e as imensas águas
não podem apagá-lo..." (Cantar dos Cantares, 8, 6-7.)
Assim, consciente de seu caráter de estrangeiro à nação
judia, Saulo, não emprestando ouvidos a não ser a seu amor
pela filha de Gamaliel, fez-se circuncidar; sem isto, ele sabia que para
ela teria significado o rechaço da coletividade mística, já
que: "A filha de um supremo sacerdote casada com um estrangeiro não
comerá já das coisas santas oferecidas por elevação".
(Levítico, 21, 12.)
Esta conversão de tipo cirúrgico foi, desgraçadamente,
inútil. Ou o Sanedrim vetou semelhante união entre a filha
de um supremo sacerdote (não de um simples sacerdote) e um recém
convertido (objetando o caráter desprovido de todo misticismo de
semelhante conversão), ou a filha se negou a casar-se com ele. E
os matrimônios de conveniência estavam religiosamente proibidos
em Israel. De maneira que não a podia obrigar em modo algum a casar-se
com Saulo. Quanto mais que a Lei judia rechaçava àquele que
se fazia partidário por amor a uma mulher.
Agora bem, Saulo-Paulo não era um playboy, nem muito menos, se tivermos
que dar crédito à tradição herdada dos Padres
da Igreja.
Em primeiro lugar, estava afetado de uma grave enfermidade, que ele menciona,
sem dizer qual, em seu II Coríntios (12, 2-9). Monsenhor Ricciotti,
em seu Saint Paúl, apotre nos diz sobre ela: "Da passagem de
Paulo que citamos se infere de forma evidente que estabeleceu uma relação
estreita entre a enfermidade desconhecida e seu rapto ao terceiro céu
e ao paraíso, já que considerava seu mal como um remédio
que Deus lhe administrava para lhe impedir de orgulhar-se". (Op. cit.,
P. 168.)
Recordemos esta relação, porque é muito importante.
A tese de que se tratava de epilepsia clássica, proposta já
pelo K. L. Ziegler, foi sustentada pelo Krenkel em 1890 com argumentos muito
convincentes. Esta tese mantiveram-na muitos exegetas e médicos.
Recordou-se casos análogos, nos quais ao mal clássico se acrescentavam
manifestações histeriformes, de caráter místico-alucinatório.
Cita-se a Julio César, Mahomé, Cola de Rienzo, Fernando o
Católico, Cromwell, Pedro o Grande, Napoleão; todos eles tiveram
visões ou audições de caráter neuropático.
Dirigiremo-nos agora para outra explicação. Vimos já
que os príncipes nabateus e idumeus estavam ligados deste modo a
uma espécie de sacralização religiosa. O uso de drogas
alucinógenas achava-se muito difundido, precisamente devido a sua
relação com os "planos" ocultos. Todo o Oriente
Médio conhecia desde fazia séculos o haxixe; o Egito usava
já o ópio em tempos de Ramsés II, e gregos e romanos
não ignoravam os efeitos da adormidera, chamada em grego mekon. Israel,
em suas escolas de profetismo (I Samuel, 10 e 19), utilizava vinhos de ervas,
e Síria, Fenícia, Iduméia, Nabatea e Egito conheciam
também os efeitos do banj ou Bang, extraído de uma espécie
de beleno chamado pelos árabes sekaron, quer dizer "a embriagadora"
(cresce em todo o Egito e na península do Sinai; é o Hyosciamus
muticus, um alucinógeno ou um narcótico, segundo a dose).
Saulo pôde muito bem ser um drogado de maneira intermitente, já
que, como veremos, teve numerosas visões em seus périplos,
visões provavelmente provocadas, e delas tirava suas próprias
instruções apostólicas. Mas há algo ainda mais
grave!
Deixemos agora seu estado patológico. Como era fisicamente?
Os Atos de Paulo nos dizem dele: "...homem de pequena estatura, calvo,
de pernas arqueadas, de bom estado de saúde, sombrancelhas unidas,
de nariz bem grande, cheio de graça...".
Os Principes Apostolorum, atribuídos ao João Crisóstomo,
põem-lhe um metro e trinta de altura. Sem dúvida para sublinhar
sua pequena estatura, porque isso daria um homem de apenas um metro cinqüenta
no máximo, o que é manifiestamente exagerado.
No século VI, Juan Malala nos diz: "Em vida. Paulo foi de pequena
estatura, calvo, com a cabeça e a barba grisalhas, um formoso nariz,
olhos azul grisáceos, sobrancelhas juntas, pele branca, barba espessa,
sorridente...". (Cf. Juan Malala, Chronographia, X, no Migne, Patrologie
Grecque, 97.)
As pernas arqueadas podiam justificar-se por causa dos largos exercícios
a cavalo, coisa nada surpreendente em um príncipe herodiano. Mas
isso também pode significar uma degeneração, sublinhada
pela pequena estatura.
Dessas breves descrições surge um retrato robô de Paulo,
ao que se rodearam todos os pintores e escultores a partir do século
IV.
Consideremos agora outra questão. Admitindo que a circuncisão
livremente aceita por ele tivesse derivado do consentimento, por parte da
filha de Gamaliel para um eventual matrimônio, terei que suspeitar
que Saulo, utilizando seus conhecimentos ocultos, teria obtido o consentimento
da jovem por efeito de um sortilégio. Coisa que não seria
tão surpreendente, tendo em conta a época e o meio. Assim
se compreende a reação violenta do Sanedrim, e provavelmente
do próprio Gamaliel, já que a magia era rigorosamente perseguida
e condenada, tanto pela Lei judia como pela Lei das Doze Tábuas,
aplicada em Roma.
O que nos incita a ter em conta esta hipótese é a seguinte
passagem de Flavio Josefo: "Pouco depois do matrimônio da Drusila
com Aziz, esta união se rompeu pela razão seguinte: Félix,
procurador da Judéia, depois de ter visto a Drusila, a quem nenhuma
mulher igualava em beleza, foi inflamado pelo desejo de possui-la, e enviando
a ela um judeu seu amigo chamado Simão, cipriota de nascimento, que
se fazia passar por mago, esforçou-se por persuadi-la de que abandonasse
seu marido e se casasse com ele, prometendo-lhe que a faria feliz se ela
não o desdenhasse. Drusila, atuando mal, e querendo fugir do ciúmes
de sua irmã Berenice, que não a tratava bem por causa de sua
beleza, deixou-se persuadir para atuar contra as instituições
de seu povo e casar-se com Félix". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades
judaicas, VII, 2.)
Como vemos, a magia intervinha às vezes nos matrimônios.
O leitor já teria adivinhado que a expressão "cipriota
de nascimento" foi interpolada astutamente, a fim de separar do Simão,
o Mago, aliás Saulo-Paulo, a responsabilidade desse feitiço
de amor que permitiu ao Félix casar-se com Drusila. Não esqueçamos
que Flavio Josefo chegou até nós em manuscritos dos séculos
IX e XII, quer dizer, que foram obra de copistas da Idade Média.
E da cruzada contra os albigenses e da destruição da Ordem
dos Templários, a Igreja não ignora que entre os hereges sabem
muito bem a que se ater sobre as verdadeiras origens do cristianismo. Remetemos
ao leitor ao que dizemos sobre o "segredo da Igreja" em nossa
obra precedente.
Em caso afirmativo, e se Saulo-Paulo, aliás Simão o Mago,
foi o artífice do matrimônio da bela Drusila com o Antonio
Félix (antigo liberto da Antonia, mãe de Claudio César),
e isso por meio da velha bruxaria dos árabes nabateus, podemos supor
que a data seria posterior ao ano 52, já que até 52 não
nomeou o imperador Claudio procurador da Judéia ao Félix.
Agora bem, Aziz, rei de Emeso, primeiro marido de Drusila, morreu no ano
54, e sucedeu a seu irmão Soemas. Então, como pôde Saulo-Paulo
reprovar ao Félix e a Drusila sua união, se esta era viúva
desde ano 54? Porque nos Atos dos Apóstolos é o que se insinua:
"Passados alguns dias, veio Félix com sua mulher Drusila, que
era judia, e mandou que viesse Paulo, e lhe escutou a respeito da fé
em Cristo. E ao falar ele sobre a justiça, a continência e
o julgamento vindouro, Félix se encheu de terror, e lhe disse: É
bastante por hora. Retire-se Paulo, quando tiver tempo voltarei a chama-lo".
(Atos dos Apóstolos, 24, 24-25.)
Acima de tudo, observamos uma primeira inexatidão. Drusila não
é judia, e sim da Iduméia, da família de Herodes. Interessa-se,
como muitas mulheres cultas de seu tempo, tanto romanas como gregas, sírias
ou iduméias, pelos problemas filosóficos e religiosos. Mas
disso a fazer dela uma judia há uma grande distância.
Vejamos agora a segunda inexatidão. Adivinha-se que o escriba anônimo
que redigiu esta passagem dos Atos quis insinuar que Paulo queria moralizar
ao casal Félix-Drusila. Novo João Batista, considera a Drusila
como uma nova Herodías, e por isso os fala de justiça (não
se toma a mulher de outro) e de castidade (não se vive em estado
de adultério), porque se corre o risco de ser castigado em julgamento
vindouro. Não obstante, esta entrevista se situa no ano 58, na Cesaréia.
Portanto faz quatro anos que Drusila é viúva. De maneira que
já não pode viver em estado de adultério. Mas essas
passagens, visivelmente interpolados em versões mais antigas dos
Atos, reforçam a alusão ao "judeu, cipriota de nascimento",
porque é um mago judeu no Chipre; é comensal e conselheiro
do governador da ilha de Pafos, capital do Chipre (Atos, 13, 6-12). Mas
se chama Elimas Bar-Jesus, e não Simão.
De fato, a amizade testemunhada pelo procurador Félix para o Paulo
é o agradecimento do Antonio Félix ao Simão o Mago"
por lhe haver feito obter o amor da bela Drusila. Uma vez mais o amor rege
aos homens e às vezes suas ações mais importantes!
Assim, se o sortilégio de amor que uniu Drusila e Félix teve
a Saulo-Paulo como autor, não é desatinado supor que este
último fizesse uso de algum para obter à filha de Gamaliel.
Exponhamos os elementos do problema:
a) Saulo-Paulo não é fisicamente um Apolo;
b) não é judeu.
De maneira que se a filha de Gamaliel mostrou alguma inclinação
para ele e lhe disse que "sim", não foi o físico
de Saulo-Paulo que a seduziu.
E necessariamente disse que "sim", porque se houvesse dito que
"não", Saulo não se teria feito circuncidar, coisa
que, em idade adulta, não tem nada de agradável, tendo em
conta a cirurgia da época.
O "sim" da jovem teve que obtê-lo, pois, por outros meios.
E voltamos a encontrar aqui nossa hipótese: cedeu como conseqüência
de um feitiço de amor. Embora não consideramos os efeitos
da magia a não ser na perspectiva de uma física transcendental.
Cem mil experiências de hipnotismo, há quase um século,
estão aí para sublinhar a eficácia de todos esses procedimentos.
Também por isso, tendo em conta as confidências de diversos
"magnetizadores-hipnotizadores", desaconselhamos absolutamente
que uma mulher vá confiar-se a algum deles sem ir acompanhada de
algum familiar.
Por outro lado, não se pode negar a magia na vida de Paulo. Citaremos
simplesmente estas duas passagens das Epístolas: "Pois eu, ausente
em corpo, mas presente em espírito, condenei já, como se estivesse
presente, ao que isso tem feito: Em nome de nosso Senhor Jesus, entrego
esse homem a Satanás, para a destruição de sua carne".
(Cf. Coríntios, 5, 3-5.)
"Entre eles Himeneu e Alexandre, a quem entreguei a Satanás
para que aprendam a não blasfemar..." (Cf. I Timóteo,
1, 20.)
No primeiro caso se tratava de um homem jovem que se casou com a viúva
de seu pai, e por conseguinte sua madrasta. Ela devia ser muito jovem, segundo
o costume da época.
No segundo caso se tratava de cristãos ordinários, que passaram
à Gnosis, e portanto , abandonaram os grupos submetidos ao Paulo.
Como Satanás era, sob o nome de Samael, o anjo das provas e da tentação,
constatar-se-á que Paulo gosta de praticar a magia negra, já
que não se trata de outra coisa. De todo modo, terá que suportar
seus inconvenientes, pois o chamado Alexandre se converterá em testemunha
de cargo durante seu último processo, em Roma: "Alexandre, o
ferreiro, tem-me feito muito mal. O Senhor lhe dará pagamento segundo
suas obras. Guarde você também dele, porque mostrou forte oposição
à minhas palavras". (Cf. Paulo, II Timóteo, 4, 14.)
Além disso, o testemunho deste Alexandre, confirmado pelo original
-ou uma cópia- da "primeira carta ao Timóteo", implicará
para o Paulo, acusado já de um pouco mais terrível, que analisaremos
chegado o momento, a acusação também de magia negra.
E esta se achava já sancionada de antemão com a pena capital
pela implacável "Lei das Doze Tábuas" para quem
quer que praticasse "sortilégios, feitiços ou palavras
de encantamento, malefícios contra pessoas, animais ou colheitas".
Já sob Augusto procuraram cuidadosamente todos os livros de bruxaria
que pudesse haver no Império. Logo foram imediatamente queimados,
por ordem expressa do imperador. Tibério e Nero confirmaram com numerosos
decretos a vigência das antigas leis. Estas tinham levado a execução,
sob o consulado de Claudio Marcelo e de Valerio Flaco, a 170 bruxas, que
tinham arrojado malefícios sobre numerosas pessoas melando as portas
de suas casas (provavelmente os trincos) com ungüentos especiais. (Cf.
Leg. duodecim Tabular: art. 55, 68, 69, etc.)
O mesmo acontecia na Grécia, onde uma lei castigava a "todos
aqueles que, por encantamentos, palavras, ligadura, imagem de cera ou outro
malefício encantem ou enfeiticem a alguém, ou se dele sirvam
para fazer morrer a homens ou animais de curral, todos esses serão
castigados com a morte". (Cf. De Lamarre, Traite de la Pólice,
tomo I, título vII.)
Platão nos fala desta lei em seu De Legibus, livro II. E Pausanias,
em seu In Elia, livro V, relata uma aplicação: Lemnia, uma
bruxa, foi condenada a morte pela denúncia de uma faxineira. Se relacionarmos
este nome com o da lamia das lendas, que atraía aos jovens e lhes
tirava a vida pouco a pouco com voluptuosos enlaçamentos, devia-se
tratar de uma mulher que enfeitiçava aos homens que desejava.
Seja como for, agora vamos encontrar logo ao Paulo em sua obra de mago,
mas para ele do que se tratará é de constituir extensas redes
de cumplicidades femininas na grande empresa que tentará levar a
bom termo.
Fica por elucidar um ponto histórico.
Constatamos na Confissão de São Cipriano e na versão
dos Atos dos Apóstolos dessa época que Saulo-Paulo tinha efetuado
sua conversão muito depois do episódio de sua visita à
Damasco, no curso do qual o etnarca do rei nabateu Aretas IV quis lhe fazer
capturar. Ele mesmo nos conta como uns amigos que tinha na cidade lhe ajudaram
a baixar de noite, ao longo das muralhas, metido em um cesto de vime (tarsos).
Portanto tal conversão temos que procurá-la depois deste desatino
de Damasco.
Por outra parte, sabemos pelos manuscritos do mar Morto que a seita dos
sadocitas, os "filhos de Sadoc", um dia teve que fugir do lugar
e do monastério de Qumrán para refugiar-se em Damasco. Quando
teve lugar a volta deste exílio, uma fração da seita
ficou ali, embora sem deixar de estar em relação com os repatriados,
conforme nos diz o cardeal Jean Daniélou em seu livro Les Symboles
chrétiens primitifs. E aqui intervém um curioso dado que devemos
ao Lurie. Recorda que a seita sadocita não estava fixada em Damasco
mesmo (cf. Document de Damas, VIII, 21; XX, 12), mas quinze quilômetros
ao sudoeste, no caminho que levava à Galiléia, e em uma aldeia
chamada Kokba (cf. R. North, relatório sobre "Eretz Israel",
IV, no Verbum Domini, núm. 35, 1957).
Epífano, em sua obra Adversus Haereses (XXIX, VII, 7), menciona deste
modo aos nazarenos entre os refugiados na Kokba, quer dizer judeus-cristãos
ortodoxos que pertenciam ao ramo fundado por Santiago, o Maior, e aos arcónticos,
judeu-cristãos de caráter gnóstico (Pp. cit., XL, I,
5.) E Julio, o Africano, chamado pelo Eusébio da Cesaréia
em sua História eclesiástica (I, VII, 14), diz-nos que provavelmente
entre eles havia "parentes carnais do Senhor". Sobre esta questão,
veja-se H. J. Schoeps, El judeocristianismo.
Todo o qual conduz ao Dositeo. Este foi o Mestre de Simão, o Mago.
Tinha estado em relação com João Batista, e Epífano
o apresenta como saduceu (coisa que era, evidentemente, um engano); em realidade
era sadocita, levava uma vida muito ascética e praticava o sabbat
de forma muito estrita. Segundo os antigos heresiólogos, foi um gnóstico
no sentido absoluto do termo. Pois bem, segundo o Talmud (cf. R. North,
loe. cit., P. 49), vivia na Kokba.
E Jean Daniélou nos proporciona além disso, em seu livro Les
Symboles chrétiens primitifs, o seguinte dado, particularmente significativo:
"Outro detalhe curioso é a existência de uma tradição
segundo a qual a conversão de São Paulo teria tido lugar na
Kokba. Saulo teria tido ali um primeiro contato com helenistas, que a seguir
se encarregariam de sua instrução em Damasco". (Cf. J.
Daniélou, op. cit., VII, l'étoile de Jacob.)
Segundo monsenhor Ricciotti esta tradição seria muito antiga
(cf. Saint Paúl, apotre, P. 213). O historiador protestante Harnack
o confirma no Die Mission und Ausbreitung des Christentums, II, 636, assim
como S. Lósch em Deitas Jesu und Antike Apotheose.
"A gente pode perguntar-se deste modo -prossegue Jean Daniélou-
se a permanência na Arábia (cf. Epístola aos Gálatas,
1, 17) não designava simplesmente a Kokba. Naquela época a
região de Damasco se considerava como parte da Arábia."
Com efeito, formava parte do domínio do rei Aretas IV (e havia um
etnarca), toda essa parte da Síria era então do reino nabateu.
Recapitulemos, pois, nossas sucessivas conclusões:
1) Saulo-Paulo não é outro que Simão, o Mago, já
o vimos;
2) Simão, o Mago, foi antes discípulo de Dositeo;
3) Dositeo vivia em Kokba, a quinze quilômetros de Damasco;
4) Saulo-Paulo teria sido antes instruído pelos helenistas em Kokba,
onde vivia Dositeo.
O silogismo é fácil de estabelecer, tendo em conta o que precede,
já que a primeira e a segunda premissas são unânimes
em sua demonstração de que Saulo-Paulo e Simão o Mago
não são a não ser uma mesma pessoa.
Quanto à improbabilidade de uma viagem de Saulo-Paulo a pleno território
nabateo, quer dizer a seu capital Petra, confirmam-no dois detalhes:
a) A permanência na região de Damasco, território nabateo,
pode explicar a passagem da Epístola aos Gálatas, 1, 17, que
diz:
"Não subi a Jerusalém para ver os que me precederam no
apostolado, mas sim parti para a Arábia, de onde voltei outra vez
a Damasco".
b) Observar-se-á que Saulo-Paulo não retornou jamais à
Arábia nabatea no curso de suas numerosas viagens missionárias.
Porque, como príncipe das dinastias Iduméia (por via masculina)
e nabatea (por via feminina: sua bisavó Cypros I), e por haver-se
feito circuncidar para fazer-se judeu e casar-se com a filha do Gamaliel,
corria o risco de ser lapidado.
Em efeito, quando sua avó Salomé I decidiu casar-se pela terceira
vez, tinha tido um enredo no palácio de seu irmão Herodes
o Grande com um árabe nabateo chamado Silaios. Ante a indignação
das esposas de Herodes, o árabe, ao ver que suspeitavam dele, partiu,
mas retornou três meses mais tarde, para pedir em matrimônio
à Salomé. Era o administrador do rei da Arábia Obodas,
e era jovem e de aparência agradável. Salomé consentiu,
e Herodes também, mas apesar de tudo impôs uma condição:
para poder levar-se bem com a população judia, Silaios se
converteria ao judaísmo, ao menos aparentemente; sem isso, o matrimônio
seria impossível, declarou Herodes. Silaios recusou "dizendo
que, se o fazia, seria lapidado pelos árabes" (cf. Flavio Josefo,
Antigüidades judaicas, XVI, vII).
E esta é a razão, bastante válida, pela qual Saulo-Paulo
não retornou jamais, no transcurso de suas viagens missionárias,
à Arábia nabatea. O que contribui uma prova a mais à
suas origens principescos e árabes. Sua circuncisão "por
amor" teria validade também à ele, em território
nabateo, a lapidação que temia Silaios.
Porque, para o Saulo, toda esta aventura expunha problemas insolúveis.
Aos olhos da casa do Herodes, tinha abandonado os cultos ancestrais, tradicionais,
e isso não era o mais grave, a não ser o fato de que pertencia
à religião judia implicava uma naturalização
judaica. Já que em Israel religião e raça eram uma
só coisa; pertencer à comunidade mística era pertencer
ao povo eleito, a sua comunidade física.
Agora bem, uma e outra impunham deveres imperiosos, e esses deveres com
muita freqüência eram opostos ao que a dinastia herodiana considerava
como direitos. Converter-se em judeu não significava só desertar,
a não ser alinhar-se entre os adversários.
Sem dúvida, entre as mulheres cultas da aristocracia Iduméia
e romana, produziram-se com freqüência, se não conversões
oficiais, ao menos adesões interiores. Mas se limitavam a isso.
Entre os homens tornar-se judeu expunha outros problemas, imensamente mais
graves, já que o Império Romano via com muito maus olhos essas
conversões masculinas. Aconselhamos ao leitor que releia tudo o que
dizemos sobre o particular mais acima.
No que diz respeito a suas relações com as três potências
presentes, nosso Saulo se encontra, pois, na situação seguinte,
depois de sua conversão por interesse e da circuncisão que
o deixou marcado para sempre:
- Judaismo: considera-lhe um convertido não sincero, já que
movido inicialmente pelo corriqueiro desejo de uma mulher, jamais lhe viu
antes manifestar o mínimo interesse pela religião judia e
sua doutrina. Daí lhe rechacem.
- Herodismo: considera-lhe como um desertor, já que fazer-se judeu,
para um príncipe herodiano, supõe aderir-se a uma nação
que, unanimemente, é hostil aos incircuncisos em geral, e em numerosas
ocasiões tentou varrer (se era necessário efetuando grandes
matanças) aos membros da descendência do Herodes o Grande.
- Romanismo: passar de maneira total de uma família aliada de Roma
e amiga dos imperadores (veja-se o referente às relações
de Salomé I e da imperatriz Livia) a uma nação que,
em setenta e quatro anos, do 68 antes de nossa era até o 6 d. C.,
levantou trinta e seis vezes o estandarte da revolução (e
com que violência!), implica converter-se a sua vez em inimigo de
Roma.
Como se vê, a situação do Saulo era crítica.
Aparecia como suspeito para uns e para outros, era rechaçado por
todos, e ainda teria que enfrentar-se com um quarto adversário.
Voltemos para assunto de Damasco.
Saulo está circunciso, não obteve a mão da filha de
Gamaliel, mas continua sendo o chefe da tropa paralela. Essas funções
lhe impõem, se não deveres, ao menos sim atividades.
Estas últimas as exerce em especial em torno dos zelotes, esses integristas
judeus a quem a comunidade oficial qualificou de apóstatas. E a esses
integristas Saulo os odeia, porque um estado de ânimo semelhante foi
o que, ao suscitar o veto dos sanedritas, quebrou para sempre suas esperanças
sentimentais.
De maneira que redobra as perseguições e pesquisas contra
eles. Montará uma operação contra os de Damasco, porque
esta cidade é um centro zelote importante.
Só que, como já precisamos, Damasco é então
um enclave nabateo em Síria, e está governado por um etnarca,
que representa ali ao rei Aretas IV. Vejamos os dois textos, contraditórios,
da Epístola aos Gálatas e os Atos dos Apóstolos.
Como lemos na Confissão de São Cipriano, Paulo e seu grupo
de homens armados vão a Damasco a fim de efetuar ali uma batida geral
entre os hereges. Entretanto: "Em Damasco, o etnarca do rei Aretas
pôs guardas na cidade dos damascenos para me prender. Mas fui desprendido
por uma janela, em uma cesta, com o passar do muro, e assim escapei de suas
mãos". (Cf. II Coríntios, 11, 32-33.)
Por que quereria prender ao Saulo o etnarca do soberano nabateo? O assunto
se remonta a muito longe.
No ano 6 antes de nossa era, Herodes-Antipas, de volta de Roma, levou a
seu palácio do Tiberíades ao Herodías, esposa de Herodes
Filipo, seu irmão, e filha de ambos, Salomé II. Sua primeira
esposa, filha do Aretas III, apressou-se então a empreender a fuga
e refugiar-se em casa de seu pai. Este último, para vingar do insulto
infligido a sua casa, declarou a guerra a Herodes Antipas. Por último,
depois de numerosos momentos de calma aparente, de renovação
das hostilidades, etc., as tropas de Herodes Antipas resultaram vencidas.
Certas hostilidades duraram perto de quarenta anos. A intervenção
romana em favor do Herodes Antipas, por ordem do Tibério César,
no ano 36, não mudou nada. E aconteceu uma paz precária, que
Calígula, desejoso de consolidá-la por parte de Roma, acreditou
selar entregando livremente Damasco aos nabateus.
Mas ao pretender efetuar detenções ali, Saulo cometeu uma
imprudência. Este fato ultrajou a soberania do Aretas IV, filho do
precedente. E o etnarca deste último tentou então capturar
ao Saulo, tanto para castigá-lo para entregar a seu soberano um refém
de categoria, o sobrinho neto do Herodes o Grande em pessoa.
De modo que Saulo tentará ficar um tempo junto aos zelotes.
Como as arrumou? Quando nos diz que, depois de uma conversação
com o Ananías, "as escamas lhe caíram dos olhos e viu
claro" (cf. Atos, 9, 17-18), não vemos a utilidade de imaginar
a um Saulo fisicamente cego, com as pupilas cobertas de escamas, que cairão
ao chão quando ele receba o batismo. A frase deve entender-se em
sentido figurado, é óbvio.
Mas Saulo não é judeu nem está louco. Ele, como chefe
de guerra e príncipe herodiano, não ignora a enorme potência
militar de Roma. E os sonhos ideológicos dos zelotes, assim como
todas as esperanças messianistas judias, deixam-lhe frio, não
despertam nele, e com razão, nenhum eco.
Seu plano está, pois, montado. Orientará o messianismo político,
quer dizer o zelote, para uma postura especulativo, puramente mística.
Fazendo isto, não terá nada que temer de Roma, mas bem ao
contrário. Possivelmente esta inclusive lhe dará suporte,
já que assim lhes fará o jogo, ao romper a resistência
judia em suas raízes espirituais.
De todo modo, como o movimento zelote constituía um bloco muito unido,
dificilmente penetrável para um homem só e tão suspeito
por seu passado como Saulo, este se dedicaria primeiro a interessar aos
gentis na nova ideologia.
Quando tiver em suas mãos uma massa suficientemente numerosa de fiéis,
tentará fundir os dois messianismos. Fazendo isto, os que resultarão
anexados serão os zelotes, e não os gentis. E por isso não
retrocederá em seu empenho de que os primeiros renunciem pouco a
pouco aos costumes tradicionais judaicos mais importantes: circuncisão,
tabus alimentares, etcétera.
Então se alargará mais o fosso que os separa do judaísmo
oficial. E pouco a pouco a corrente zelote acabará por morrer na
massa da Gentilidade...
NOTAS COMPLEMENTARES
Para monsenhor Giuseppe Ricciotti, que evoca em seu livro Saint Paúl,
Apotre (trad. do italiano pelo F. Hayward, imprimatur 15 de maio de 1952,
Robert Laffont édit., Paris), a tradição ebionita contribuída
no século IV por São Epífano, "Paulo apaixonou-se
pela filha do supremo sacerdote, e para casar-se com ela, teria aceito a
circuncisão e o judaísmo. Mas ao não alcançar
seu objetivo, para vingar-se, teria passado à oposição,
e teria começado a lutar e a escrever contra a circuncisão,
o sabbat e a Lei". (Op. cit., P. 82.)
Para o abade Migne e seus colaboradores, na tradução latina
do grego antigo do Epífano, Paulo "... quando veio a Jerusalém
e fixou aqui sua residência, casou-se com a filha do pontífice.
Nesta ocasião se fez partidário e aceitou a circuncisão.
Mas como logo se divorciou, escreveu encolerizado contra a circuncisão,
o sabbat e a Lei". (Cf. Migne, Patrologie grecque, Epiphane: Adversus
Haereses, libero I, tomo II, III, 16, pp. 431-434, Paris, 1858.)
Quem tem razão? Monsenhor Ricciotti ou o abade Migne? Nós
acreditamos que o primeiro, que ao ser prelado romano, teve indubitavelmente
acesso à célebre Biblioteca do Vaticano e aos manuscritos
mais antigos de Epífano, enquanto que o segundo e seus colaboradores
se contentaram traduzindo a um excelente latim um manuscrito grego do século
XVI, gravado sobre madeira e impresso, das obras completas do mesmo Epífano.
E é muito provável, em efeito, que como sempre, as obras deste
último sofressem sérios retoques e variações,
ao desejo de cada monge copista dos séculos passados; daí
as diferenças entre os manuscritos.
Assim, parece mais plausível convir com monsenhor Ricciotti em que
Saulo-Paulo se encontrou com que lhe negavam a mão da jovem -daí
sua mudança de atitude-, em lugar de atribuir tal mudança
ao fato de que Saulo-Paulo tivesse repudiado à moça, porque
esta separação depois do matrimônio, segundo os termos
da lei judia, não podia correr a não ser a cargo do marido,
já que a esposa não possuía este direito.
O único modo de conciliar estes dois variantes seria admitir que
Saulo-Paulo e a jovem estiveram oficialmente prometidos, já que este
fato, em Israel antigo, equivalia a uma espécie de matrimônio
privado, do que o matrimônio oficial não constituía
mais que a conclusão legal. Assim, uma vez prometidos, as severas
leis sobre o adultério eram já aplicáveis aos noivos,
posto que o noivo podia viver já em casa de seu futuro sogro, e usar
dos direitos legítimos do matrimônio, e daí a frase
de Mateus, que não se entende a não ser nesse contexto: "O
homem abandonará a seu pai e a sua mãe e se unirá à
mulher" (Mateus, 19, 5). De modo que os recém casados não
foram viver à parte ou à casa dos pais do marido até
depois do matrimônio oficial e legal.
Pode supor-se, pois, que se rompeu o noivado de Saulo-Paulo por causa da
oposição do Sanedrim, e daí sua irritação.
Na hipótese inversa, se foi ele quem rompeu o acordo, depois de ter
feito uso dos direitos legítimos e ter abusado deste modo da confiança
da família e da jovem, é facilmente concebível o furor
dos judeus contra esse pagão de má fé.
E fica um último ponto, ou seja: quem era o pai da jovem? Era o pontífice
de Israel, quer dizer o supremo sacerdote, o cohen-ha-gadol, ou era Gamaliel,
o rabban, quer dizer o "professor dos professores", o "doutor
dos doutores", ou seja o próprio presidente do Sanedrim, o Hahan-ha-hahanim
(sábio dos sábios), possivelmente inclusive Rosch-Galouta
(príncipe do Exílio) ou Daion-di-baba (Juiz supremo)?
Pessoalmente, nos inclinamos pelo Gamaliel, já que os Atos dos Apóstolos
contribuem, apesar de tudo, uma lembrança, possivelmente deformada,
mas nada desdenhável, das relações entre Saulo-Paulo
e Gamaliel (Atos, 22, 3), assim como nos mostram o mesmo Saulo-Paulo na
incapacidade de reconhecer e de identificar ao pontífice. (Atos,
23, 1-5.)
9 - A família de Saulo-Paulo
A herança é como uma diligência em que viajassem todos
nossos antepassados. De vez em quando um deles tira a cabeça pela
portinhola e vem a nos causar todo tipo de complicações. O.
W. Holmes, seleção
Começamos já a enfocar suficientemente o personagem múltiplo
que se oculta sob os nomes sucessivos de Shaul, Saulo, Paulo para estar
agora em condições de abordar numerosos detalhes sobre sua
existência. E em primeiro lugar, quando e onde nasceu.
Tomamos cuidadosamente nota de que tinha sido educado com:
a) Menahem, neto de Judas da Gamala, de filiação davídica
e real, e que levantará o estandarte de uma nova revolução
judia no ano 64 de nossa era. Será o bisavô do Jonathan-Ben-Menahem,
intendente geral do Simão-Ben-Koseba, príncipe de Israel,
chefe da última revolução no ano 132;
b) Herodes, o Tetrarca, e é este último que nos permitirá
marcar datas importantes da vida de Saulo.
Trata-se, com efeito, de Herodes Agripa II, filho de Herodes Agripa I, rei
da Judéia e da Samaria, nascido no ano 10 antes de nossa era e morto
em 44 desta. Herodes Agripa II foi o irmão de Berenice, esposa de
Herodes do Calcis, e que, uma vez viúva, foi ao lado de seu irmão,
com quem sustentou, segundo os rumores públicos, umas relações
incestuosas. Sua segunda irmã era Drusila, que se casou com Aziz,
rei de Emeso (morto no ano 54), e o abandonara no 52 para viver com Antonio
Félix, procurador de Roma na Judéia, no ano 53.
Herodes Agripa II foi com toda certeza educado em princípio na Cesaréia
e em Tiberíades, na corte de seu pai. Nasceu no ano 27 de nossa era,
já que contava 17 anos de idade à morte deste, em Cesaréia,
em 44. Chamado à Roma por Claudio César, ao advento deste
imperador, quer dizer em princípio do ano 41. Não retornou
à Judéia até muito mais tarde, porque Claudio César
não quis confiar tais responsabilidades a um adolescente. Em sua
ausência, Judéia teve como procuradores, sucessivamente, a:
Marcelo (44), Cuspio Fado (45-46), Tibério Alexandre (46-48), Ventidio
Cumano (48-51) e Antonio Félix (51-58). Enquanto isso, no ano 51,
a tetrarquia da Traconítide fora concedida ao Herodes Agripa II,
daí seu nome de tetrarca. Mas, como vemos, não foi realmente
rei, e não reinou como seu pai sobre a Judéia e Samaria.
Teve que haver aí uma manifestação de desconfiança
por parte de Claudio César, porque sua saída de Roma coincidiu
com o decreto deste imperador expulsando aos judeus livres da capital do
Império. Ali não ficaram mais que os escravos e os que não
tinham alforria por completo ante o pretor.
Portanto, foi com Herodes Agripa II e com Menahem com quem foi criado Saulo.
Podemos admitir que este último fora algo maior. De todo modo, se
Estêvão foi realmente lapidado no ano 36, Saulo não
devia ter alcançado ainda a maioridade civil e religiosa do bar-mitzva
(aproximadamente aos doze anos), posto que não participou da lapidação,
e os judeus se limitaram a lhe confiar a vigilância de suas roupas
(Atos, 7, 58).
Mas, já que agora sabemos que não era judeu, a não
ser idumeu, o problema não se expõe sob este ângulo.
De todo modo, dizem que aprovou o assassinato legal de Estêvão
(Atos, 22, 20). Assim, estiveram obrigados a recorrer a uma aprovação,
ao menos tácita, de Saulo, o que implica que tinha já certa
autoridade. E com efeito, imediatamente depois do enterro de Estêvão,
vemo-lo penetrar nas moradias e arrancar delas homens e mulheres para colocá-los
na prisão (Atos, 8, 3); logo abandona Jerusalém para estender
suas pesquisas e suas batidas até Damasco, em Síria (Atos,
8, 1-2).
Semelhantes atividades, que implicam uma autoridade policial, não
são exclusivas da adolescência nos séculos passados.
Não esqueçamos que seu avô Herodes, o Grande, só
tinha vinte e sete anos quando capturou ao Ezequías, pai de Judas
da Gamala e avô de Jesus, e o fez crucificar no curso de suas campanhas
contra esse "filho de David" que fazia estragos em Síria,
à cabeça de seus partidários. E o próprio Herodes,
o Grande, recebera já de seu pai Antípater, amigo de César,
o governo da Galiléia, "embora fosse então extremamente
jovem" (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VIII). Durante muito
tempo será assim, e na França, por exemplo, chegou até
Capelos. Luis XI exercerá um mando militar efetivo aos quatorze anos,
e fomentará a revolta da Pragueria contra seu pai Carlos VII aos
dezessete anos. Então nomeia-lhe governador do Delfinado. Carlos
V foi regente do reino da França aos dezoito anos. Os reis, com efeito,
eram maiores de idade aos quatorze anos, e Luis XIII foi aos treze.
Por conseguinte, a juventude de Saulo quando lapidaram Estêvão,
e imediatamente depois seu papel na repressão do neomessianismo,
não fazem a não ser confirmar a inanidade da tese segundo
a qual não se tratava senão de um judeu comum, quando tudo
demonstra, pelo contrário, que era um príncipe herodiano,
que gozava de todos os privilégios de seu berço e de todas
as responsabilidades inerentes a esta.
Filiação da dinastia Iduméia
Saulo nasceu, portanto, entre os anos 23 e 25 de nossa era, e morreu aos
quarenta ou quarenta e cinco anos. Estes dados o fazem três ou quatro
anos maior que seu süntrophós Herodes o Tetrarca (Atos, 13,
1). Este termo grego significa "companheiro de juventude, amigo da
infância", e é a palavra que figura nos manuscritos gregos
dos Atos dos Apóstolos.
Assim, se se criou na Cesaréia e em Tiberíades, na corte de
Herodes Antipas, não pôde conhecer nem ter visto antes ao Jesus,
posto que este jamais pôs os pés em tais cidades, impuras para
um judeu integrista, a primeira por ser meio helenística, e a segunda
porque estava construída sobre um antigo cemitério. Herodes
Antipas tampouco nunca vira Jesus, porque foi Poncio Pilatos quem o enviou
à Jerusalém, depois de sua captura. E o evangelho de Lucas
nos diz: "Quando Herodes viu Jesus, teve uma grande alegria, já
que desde fazia tempo desejava vê-lo, pois tinha ouvido dizer muitas
coisas dele, e esperava lhe ver fazer algum milagre". (Lucas, 23, 8.)
Observe-se que Mateus, Marcos e João ignoram este comparecimento
de Jesus ante o Herodes Antipas.
Achamo-nos agora em situação de poder estabelecer a genealogia
de Saulo-Paulo:
Genealogia do Shaul-bar-Antípater
Primeiro grau: Herodes do Ascalón, sacerdote do templo do Apolo no
Ascalón. De sua união com o X... nasceu Antípater.
Segundo grau: Antípater, epimeleta da Palestina. De sua união
com Cypros I, pertencente a uma das mais ilustres famílias da Arábia
nabatea, nasceram quatro filhos, Fazael, Herodes o Grande, José e
Perora, e uma filha, Salomé I. Morreu no ano 43 antes de nossa era,
acredita-se que envenenado.
Terceiro grau: Salomé I, que esteve primeiro casada com um tal José,
do que não possuímos nenhuma informação, salvo
que foi assassinado por ordem de Herodes o Grande, assim como Mariana, esposa
deste último, no ano 29 antes de nossa era, depois de serem acusados
de adultério por Salomé I ante seu irmão. Esta se casou
a seguir com Costobaro I, íntimo amigo de Herodes o Grande, quem
antes de que tivesse lugar o enlace o nomeou governador da Iduméia
e da Gaza, no ano 37 antes de nossa era. Costobaro I procedia de uma das
maiores famílias da Iduméia, e seus antepassados nos tempos
dos príncipes-sacerdotes, tinham sido sacrificadores do deus Cosas
-divindade que as tribos Iduméias adoravam com grande devoção-,
antes de que Hircano os obrigasse a abraçar a religião judia,
se não sinceramente, ao menos na aparência. Como Costobaro
I conspirasse com Cleópatra, rainha do Egito, para separar Iduméia
do reino do Herodes a fim de fazer-se independente, este o mandou executar
por volta do ano 28 antes de nossa era. Logo Salomé I se casou pela
terceira vez com um tal Alexas.
De sua segunda união com Costobaro I, Salomé teve duas filhas.
De uma delas se ignora o nome; sabe-se que se casou com Caleas, filho de
Alexas, terceiro marido de Salomé I. A outra se chamava Berenice,
e se casou com Aristóbulo, filho de Herodes, o Grande. Salomé
I teve um filho, chamado Antípater, de que falaremos a seguir. Ela
morreu no ano 14 de nossa era.
Quarto grau: Antípater II, filho de Costobaro I e de Salomé
I, casou-se com Cypros II, filha de Herodes, o Grande, e de Mariana. Desta
união nasceram uma filha, Cypros III, que se casou com Alexias Helsius,
e dois filhos, Shaul e Costobaro II. Observar-se-á que o nome primitivo
de Saulo-Paulo era Shaul, posto que é o que os Atos dão no
capítulo 9, versículo 4, no episódio do caminho de
Damasco. Essa é a forma aramaica do nome, e Saulós era a forma
grega. Pois bem, o aramaico se falava na Palestina e na Síria, e
nesta época se estendeu do Sinai ao Taurus e mais à frente
do golfo Pérsico.
Aqui, o manuscrito grego das Antigüidades judaicas de Flavio Josefo
mostra uma importante lacuna. Os famosos monges copistas deram-lhe em mãos,
já que os originais desapareceram misteriosamente, e não possuímos
mais que transcrições medievais dos séculos IX e XIL.
A Igreja velou zelosamente pela ortodoxia das cópias das obras de
tal autor. Hoje em dia, na Biblioteca de Friburgo, encontra-se um manuscrito
de Flavio Josefo que, no século XV, era ainda propriedade privada
do arcebispo de Toulouse, Monsenhor Rieux, e que procedia possivelmente
das expropriações inquisitoriais entre os albigenses e os
cátaros, ou do processo contra a Ordem do Templo. A Igreja citou
ao arcebispo e seu manuscrito ante o Parlamento de Paris, a fim de que o
manuscrito fora examinado, e requisitado se era necessário, e o arcebispo
interrogado sobre sua ortodoxia. Esta lacuna na filiação da
dinastia Iduméia não deve, pois, nos surpreender; tratava-se
de fazer desaparecer da verdade histórica a esse príncipe
herodiano de origens muito significativos. Na obra de Flavio Josefo só
encontramos a seguinte referência:
Quinto grau: "Costobaro [II] e Shaul tinham também consigo grande
número de guerreiros, e o fato de que fossem príncipes de
sangue real e parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração.
Mas eram violentos, sempre dispostos a oprimir aos mais débeis."
(Flavio Josefo, op. cit.) Costobaro II formou parte da delegação
enviada ao rei Herodes Agripa II para lhe pedir que fora a Jerusalém
com tropas, a fim de sufocar a rebelião. Logo, durante a estância
de Nero César na Acaia, foi enviado a este por Cestio Galo, governador
de Síria, para que lhe explicasse os motivos de sua derrota.
Como vemos indiscutivelmente, Saulo-Paulo foi pois o autêntico neto
de Herodes, o Grande, graças ao matrimônio de seu pai Antípater
II com a filha daquele (Cypros II), e é também seu sobrinho-neto,
por ser neto da irmã de Herodes, Salomé I, mãe de Antípater
II.
De maneira que nos achamos muito longe desse casal de judeus desconhecidos,
deportados ao Tarso, dos quais inclusive se ignora o nome. Coisa que não
impedirá à certos críticos bem pensantes negar-se a
discutir nossos argumentos, embora sem contribuir eles com os seus.
Não obstante, observaremos que Saulo-Paulo não é cem
por cento idumeu, já que sua avó materna, Mariana (mãe
de Cypros II), era filha de Alexandre e de Alexandra, e portanto neta de
Hircano II, rei e supremo sacerdote, descendente direto de uma linhagem
de supremos sacerdotes de Israel que se remontava até o Matatias,
pai de Judas Macabeo, o herói da luta judia contra Antíoco
IV Epífanes (veja a árvore genealógica acima). Assim,
por esta avó judia, Saulo-Paulo tem 25% de sangue judeu (sua mãe,
Cypros II, tem 50%), e o resto, 75 %, de sangue Iduméia e nabatea.
Por outra parte, se isto lhe facilitar a circuncisão ulterior, o
fato de contar em sua ascendência materna com quatro supremos sacerdotes
de Israel (Hircano II, Alexandre Janeo, Juan Hircano I e Simão-bar-Matatias)
seria incitado a considerar como possível uma união com a
filha de Gamaliel.
Mas, além de que o valor moral desta circuncisão tardia foi
discutido pelo Sanedrim, a dinastia asmonea, procedente de Matatias e seus
filhos, deixara lembranças muito penosas e sangrentas nas memórias
judias para que o povo aceitasse tal união; de fato, ante a alternativa,
preferiam a filiação davídica.
E isso não podia a não ser agravar as más relações
posteriores entre Saulo-Paulo, asmoneo por parte de mãe e idumeu
por parte de pai, e Simão-Pedro, "filho de David", como
seu irmão maior Jesus, como seu pai Judas da Gamala e como seu avô
Ezequias, crucificado por Herodes, avô de Saulo-Paulo. Esses ódios
familiares explicarão muitos dramas, especialmente a crucificação
de Simão-Pedro e de Santiago, seu irmão, no ano 47 em Jerusalém,
por ordem de Tibério Alexandre, procurador de Roma.
Porque esta dupla execução tem lugar em plena nova revolução
judia, durante a enorme fome que assolou o Império romano naquela
época, anunciada pelo vidente Agabus (Atos, 11, 28), e que se produziu
ao término do primeiro "concílio" de Jerusalém,
verdadeiro conselho de guerra, onde se enfrentaram os adversários
dos tabus legais, e sobretudo da circuncisão, agrupados ao redor
de Saulo-Paulo e vindos da Gentilidade, e os judeus-cristãos tradicionalistas,
agrupados ao redor de Simão-Pedro, e procedentes, ou da corrente
zelote, ou da seita fariseu.
É provável que as origens principescas de Saulo-Paulo e suas
antigas funções o colocassem em situação de
poder alertar eficazmente às autoridades romanas contra o que ele
considerava como irredutíveis obstáculos a suas ambições
e a seus planos. Porque fica uma alusão muito clara a este drama:
"Pedro, quem, vítima de um injusto ciúmes, passou não
por uma, mas sim por numerosas provas, e quem, depois de ter sofrido assim
seu martírio, foi à glória que lhe estava devida...".
(Cf. Clemente de Roma, Epístola aos Coríntios, V, 4.)
E isso é o que vamos estudar agora.
Este estudo genealógico poderia parecemos fastidioso e inútil
se não nos pusesse em presença de uma verdade pasmosa, verdade
que, como efeito de uma bomba cega, permitir-nos-á compreender muitas
coisas. Que o leitor tenha a bondade de remeter-se aos quadros genealógicos
das páginas anteriores, que podem resumir-se como se indica no esquema
desta página.
Não faz falta ser um grande letrado para constatar que Saulo-Paulo
é o segundo primo do rei Herodes Agripa I, quem a sua vez é
primo em terceiro grau de seu filho Herodes Agripa II e de suas filhas,
as princesas Berenice (viúva de seu tio Herodes, rei do Calcis) e
Drusila (viúva do Aziz, rei do Emeso), e que por conseguinte, quando
esta última se casou com o Antonio Félix, procurador de Roma,
irmão do Palante (favorito do imperador Claudio), este matrimônio
converteu Félix e Paulo em primos por aliança.
Genitores Primos irmãos Primos segundos Primos em terceiro grau
Herodes, o Grande, casado com a Mariana;
Sua irmã é: Salomé I, casada com Costobaro I; de onde:
Antípater II, casado com Cypros II;
de onde:
Saulo-Paulo e Costobaro II
de onde:
Alexandre Aristóbulo, casado com Glafira;
de onde:
Herodes Agripa I, casado com X...;
de onde:
Herodes Agripa II, cujas irmãs são: Berenice e Drusila, casada
com Félix, o procurador romano
Assim se compreende facilmente por que Claudio Lisias, tribuno das coortes
e governador da Antonia, em Jerusalém, fez conduzir Saulo-Paulo à
Cesaréia Marítima, sob a proteção de quatrocentos
e setenta soldados, com várias montarias para o "prisioneiro
Paulo" (sic). Era para pô-lo sob o amparo de seu primo Félix.
Porque detrás deste último estava seu irmão Palante,
secretário de Claudio César, e o tribuno Lisias era tão
bom diplomático como perito soldado...
Referências Bibliográficas Flavio Josefo: Antigüidades
judaicas (manuscrito grego): XIV, XII; XV, XI; XVI, VII; XVII, I; XVII,
I; XVIII, V; XVIII, V; XX, VIII. Guerra dos judeus (manuscrito eslavo):
I, IX; I, XI; I, XVII; II, XXXI; II, XII.
As cifras romanas maiúsculas indicam o livro da obra, e as cifras
romanas minúsculas precisam os capítulos de tais livros.
Nota: Segundo costume em genealogia, e a fim de diferenciar aos personagens
do mesmo nome mas com graus diferentes de filiação, demos
um indicativo de ordem a cada um dos membros desta família: Salomé
I, Costobaro II, Cypros III, etc. Se se examina a árvore genealógica
da Casa dos Herodes se observará, em efeito, que há um uso
constante dos mesmos nomes. Trata-se de uma espécie de costume tribal.
Por outra parte, Shaul ou Saulo é um nome raramente utilizado no
Antigo Testamento. Primeiro está o de um dos filhos de Esaú,
um dos reis do Edom, adversários dos filhos de Israel (Gênesis,
36, 37). Há logo um Saúl, filho de Simão e de uma cananéia,
e neto de Jacob. Sua descendência constituiu um ramo à parte,
pelo mesmo fato desta aliança com uma mulher de raça estrangeira.
(Gênesis, 46, 10, e Números, 26, 13.) Está, por último,
o Saúl que precedeu ao David (I Samuel, II Samuel, I Crônicas).
Como vemos, isto confirma que Saúl não era um nome verdadeiramente
judeu, mas, ao contrário muito utilizado entre os árabes.
Os sacrilégios de Saulo-Paulo
Resulta que a desonra e a própria santidade, devidamente identificadas,
aconselham deste modo uma certa prudência, e representam, de cara
ao mundo, os dois pólos de um campo atemorizador.
R. Caillois, L'Homme elle Sacre
Nos Atos dos Apóstolos lêem o que segue: "E seguiu até
chegar ao Derbe e a Listra. E se encontrou ali com um discípulo chamado
Timóteo, filho de uma mulher judia crente e de pai grego, que tinha
a seu favor o testemunho dos irmãos que havia em Listra e em Iconio.
Quis Paulo que se fora com ele, e tomando, circundou-lhe por causa de quão
judeus havia naqueles lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego".
(Atos dos Apóstolos, 16, 1-5.)
O que quer dizer com isto? Porque o mesmo texto nos contribui a seguir sua
própria contradição: "Ao passar pelas cidades,
comunicava-lhes os decretos dados pelos apóstolos e anciões
de Jerusalém, lhes encarregando que os guardassem". (Atos dos
Apóstolos, 16, 4.)
Que decretos são esses? Aqui os temos: "Porque pareceu bom ao
Espírito Santo e a nós não lhes impor nenhuma outra
carga mais que estas necessárias: que lhes abstenham das carnes imoladas
aos ídolos, do sangue, dos animais estrangulados e da fornicação,
do qual farão bem em lhes guardar". (Atos dos Apóstolos,
15, 28-29.)
Aqui não se fala em nada de circuncisão... Porque do que aqui
se trata é da Lei de Noé, menos severo que a Lei de Moisés.
Logo voltaremos sobre este tema.
Por conseguinte, a operação efetuada sobre Timóteo
pelo próprio Paulo foi uma circuncisão clandestina, não
ritual, com o fim de enganar, e portanto mendaz e sacrílega.
Agora bem, ele não tinha nenhuma autoridade para efetuá-la,
por não ser judeu, e menos ainda sacrifícador. E se fosse
judeu. Paulo, a quem nos apresenta como chefe de uma tropa ao serviço
do Sanedrim, demonstrava com esta função puramente laica que
não era sacerdote. Porque é mais que incerto que Gamaliel,
doutor supremo de Israel, recebesse entre seus discípulos a um jovem
judeu destinado simplesmente a desempenhar o papel de jenízaro. Assim,
Paulo mentiu ao pretender ter sido educado "aos pés do Gamaliel"
(Atos dos Apóstolos, 22, 3).
Vejamos como se desenvolvia essa circuncisão ritual.
Exigia a presença de três mohelim (sacrifícadores),
e de sete testemunhas varões adultos. A circuncisão, que começava
com a faca ritual o primeiro mohel, terminava-se dentibus. A primeira aspiração
de sangue a tragava esse primeiro mohel, que representava a "Deus,
o primeiro servido". As duas aspirações seguintes as
cuspiam a seguir os outros dois mohelim em uma taça de vinho de bênção.
Com esse vinho consagrado se esfregava os lábios do jovem circunciso.
A taça circulava logo do pai aos convidados varões, e todos
bebiam dela. Tinha lugar assim a comunhão com Israel humano, e logo
vinha a comunhão com Deus. O resto do vinho passava à mãe,
que o mesclava com bolos e com geléias que eram distribuídas
em seguida entre os amigos da família. (Cf. León de Módena,
grande rabino de Veneza, Cérémonies & Coutumes juives,
p.131.)
Por último, durante esta tripla comunhão com Deus, os sacerdotes
e os laicos, cantava-se o salmo 16 de Ezequiel: "Revive em seu sangue!".
E esta era a única circunstância em que os judeus podiam ingerir
sangue, e mesmo assim se tratava de sangue humano, rigorosamente judeu,
o que elimina a abominável lenda dos crimes rituais imputados aos
judeus, e dos meninos cristãos sacrificados durante a Páscoa.
Como se vê por este relato; Paulo não tinha complexos, e para
tratar com semelhante desenvoltura o rito mais sagrado da Antiga Aliança,
tinha que ser totalmente alheio à raça judia, porque naquela
época um filho de Israel "educado os pés de Gamaliel"
jamais se atreveria a cometer tal impiedade.
Este constitui, pois, o primeiro sacrilégio de Saulo-Paulo, e é
fácil de conceber que suscitasse entre os judeus um forte ódio
quando fora conhecido por eles.
Vejamos agora o segundo: "Quando chegamos à Jerusalém,
fomos recebidos pelos irmãos com alegria. Ao dia seguinte, Paulo,
acompanhado de nós, visitou Santiago, e ali se reuniram todos os
anciões. Depois de havê-los saudado, contou uma por uma as
coisas que Deus tinha obrado entre os gentis por seu ministério.
Logo eles lhe disseram: Já vê, irmão, quantos milhares
de crentes há entre os judeus, e todos são zeladores da lei.
Mas ouviram que ensina aos judeus da dispersão que terá que
renunciar ao Moisés, e lhes diz que não circuncidem a seus
filhos e não sigam os costumes mosaicos. O que fazer, pois? Indubitavelmente
a gente se reunirá, porque saberão que veio! Por isso faz
o que vamos dizer: Há entre nós quatro homens que têm
feito voto. Toma-os contigo, purifica-se com eles e lhes pague os gastos
para que se raspem a cabeça. E assim todos conhecerão que
não há nada de quanto ouviram sobre si, mas sim você
também segue na observância da Lei. [...] Então Paulo,
tomando consigo aos varões, purificou-se, e entrou na manhã
seguinte no Templo com eles para anunciar que dia se cumpriria a purificação,
e a oferenda apresentada por cada um deles". (Atos dos Apóstolos,
21, 17-26.)
Os quatro homens que deviam cumprir essas cerimônias de purificação
eram judeus que tinham feito o voto do nazireato para um tempo dado. Essas
cerimônias implicavam gastos consideráveis; compreende-se,
pois, que ao tomar Paulo a seu cargo a estes, infiltrando-se entre eles
sem ter feito antes o voto prévio (e com razão!), cai no caso
de corrupção de quatro nazirim, crime muito grave, tanto para
ele como para eles, e no de falsa declaração de nazireato,
verdadeiro sacrilégio, já que profanava as cerimônias
de liberação desse estado.
E chegamos agora ao terceiro: Em Jerusalém, o tribuno Lisias convoca
ao Sanedrim e chama a sua presença Paulo, que vai sob o amparo dos
legionários. É então quando nosso Paulo tem a audácia
mendaz de declarar: "Varões irmãos, eu com toda boa consciência
procedi ante Deus até este dia" (Atos dos Apóstolos,
23, 1); o supremo sacerdote Ananías ordena a um dos que estão
a seu lado que lhe golpeiem na boca. Então Paulo declara, furioso:
"Deus golpeará a ti, parede branqueada!" (op. cit., 23,
3).
Com cal vivo branqueavam-se as soleiras, os pingentes as portas dos sepulcros
utilizados para alertar aos judeus e lhes evitar o contato com um lugar
impuro, no que se decompunha lentamente um cadáver. Os epítetos
de "sepulcro" e de "parede branqueada" equivaliam portanto
a tratar a alguém de podridão ou de carniça. (Jesus,
por certo, tampouco se privou de utilizá-los; veja-se Mateus, 22,
27, e Lucas, 11, 44.)
Paulo, dando-se conta então da magnitude da estupidez que tinha cometido,
replicou sem alterar-se aos judeus que lhe acusavam de ter insultado ao
"soberano pontífice de Deus" (Atos dos Apóstolos,
23, 4): "Não sabia, irmãos, que fora o pontífice.
Porque escrito está: Não injuriará ao príncipe
de seu povo". (Atos dos Apóstolos, 23, 5, citando o Êxodo,
22, 27.)
Isto constitui uma prova mais de que não era judeu, e que não
cresceu espiritualmente "aos pés de Gamaliel", como afirma.
Porque nesse caso conheceria o rosto daquele que lhe sucedeu, seu sucessor
direto; teria que lhe encontrar forçosamente, como simples cohén,
na casa de Gamaliel. Mas, sobretudo, conheceria suas roupas e ornamentos
rituais, e saberia, assim identificá-lo entre os sanedritas.
O que caberia pensar, por exemplo, de um sacerdote católico romano
que, em presença de um concílio, não soubesse distinguir
ao Papa por seus ornamentos particulares, seu posto, sua importância
e sua autoridade?
O judaísmo compreendia duas categorias de fiéis, e um só
se convertia verdadeiramente em filho de Israel ao final de duas etapas,
ou seja:
1) partidários de primeiro grau, chamados "temerosos deste Deus
observavam a Lei de Noé -daí seu nome de noacitas-, quer dizer
que não consumiam sangue, e por este motivo, nenhuma carne procedente
de animal morto (cf. Gênesis, 9, 1-7);
2) partidários de segundo grau, chamados "de justiça".
Observavam a Lei de Moisés com todo seu rigor: proibição
de sangue, de carnes consagradas e oferecidas em altares dedicados a outros
deuses, de carnes procedentes de animais mortos ou impuros, etc. (cf. Deuteronômio,
caps. 12-26).
É fácil tirar a conclusão de que Saulo-Paulo nem sequer
foi partidário de primeiro grau, um "temeroso de Deus",
porque ao ter que respeitar a Lei de Noé, que impunha a fecundidade
sexual (Gênesis, 9, 7), não poderia aconselhar seus seguidores:
"Quem casa a sua filha donzela faz bem. Mas quem não a casa
faz melhor". (Cf. I Epístola aos Coríntios, 7, 38.)
Quanto à circuncisão por complacência, aceita para poder
casar-se com uma das filhas do Gamaliel, é provável que fora
igual de irregular que a de seu discípulo Timóteo, e não
nos está proibido supor que nem sequer foi um cohén regular
o que a praticou.
Nota: Observar-se-á que no texto grego dos Atos, 13, 1: "...
e Menahem, que fora criado com Herodes, o Tetrarca, e Saulo...", o
escriba do século IV pôs este último nome em nominativo
(Saúlos), o que implica, em seu espírito, que Saulo não
foi criado com Menahem e Herodes, o Tetrarca, futuro Herodes Agripa I. Trata-se
de uma artimanha indiscutível, já que é evidente que,
muito mais que Menahem, membro de uma família rival da de Herodes,
o Saulo "príncipe de sangue real", como o qualifica Flavio
Josefo, esteve em situação de poder ser criado com seu primo
Herodes, o Tetrarca. Quanto mais que as obras deste autor nos mostram sem
cessar aos membros desta dinastia mesclados em uma espécie de vida
em comum, verdadeira corte reunida nos diversos palácios em torno
de um dos príncipes descendentes de Herodes, o Grande. De onde essas
múltiplas intrigas que marcam tragicamente a história de tal
família.
10 - Paulo e as mulheres
Se me amarem tanto como eu vos amo, nenhum mortal é, então,
tão amado como eu.
Gregorio VII Carta a Mathilda, duquesa da Toscana, sua concubina.
"Há uma raça nova de homens, nascidos ontem, sem pátria
nem tradições, unidos contra todas as instituições
civis e religiosas, perseguidos pela justiça, pontuados universalmente
de infâmia, mas que se vangloriam da abominação comum:
são os cristãos... Os perigos que os cristãos confrontam
por suas crenças, Sócrates soube encará-los por si
com um valor inquebrável e uma serenidade maravilhosa. Os preceitos
de sua moral, no que tem de melhor, ensinaram-nos os filósofos antes
deles. Suas críticas à idolatria, que consistem em dizer que
as estátuas realizadas por homens freqüentemente desprezíveis
não são deuses, foram repetidas inumeráveis vezes.
Heráclito, por exemplo, disse: "Dirigir orações
à imagens, sem saber o que são os deuses e os heróis
que representam, é o mesmo que falar com pedras".
"O poder que parecem possuir lhes vem de nomes misteriosos e da invocação
de certos demônios. Através da magia foi como seu Mestre realizou
tudo que de assombroso houve em suas ações. Logo pôs
grande cuidado em advertir à seus discípulos que se protegessem
daqueles que, ao conhecer os mesmos segredos, poderiam fazer quão
mesmo ele e fingir, igual a ele, que participassem do Poder Divino. Divertida
e escandalosa contradição! Porque se condena com razão
a quem imita, como não se voltar contra ele sua própria condenação?
E se ele não é nem impostor nem perverso por ter realizado
ditos prodígios, por que seus imitadores, pelo fato de levar a cabo
as mesmas coisas mediante os mesmos meios teriam que sê-lo mais que
ele?..." (Cf. Celso: Discurso da Verdade, 1-3.)
Antes nosso terrível autor assinala os círculos familiares
nos quais os cristãos tentam, preferencialmente, obter partidários:
"vêem-se cardadores de lã, sapateiros, tecelões,
gente da maior ignorância e desprovidos de toda educação,
que, em presença de seus professores, homens de experiência
e de julgamento, guardam-se bem de abrir a boca. Mas quando surpreendem
aos meninos da casa, ou inclusive às mulheres, que não têm
mais razão que eles mesmos, começam a lhes contar maravilhas!
É a eles sozinhos a quem terá que acreditar; o pai de família,
os preceptores, são loucos que ignoram o verdadeiro bem e são
incapazes de ensiná-lo. Só eles sabem como terá que
viver; os meninos farão bem de segui-los, e através deles
a felicidade visitará toda a família! Não obstante,
se enquanto eles pregavam aparece um dos preceptores, ou o próprio
pai de família, ou alguma pessoa séria, os mais tímidos
não se calam; os descarados não deixam de incitar aos meninos
a que sacudam o jugo, insinuando em surdina que não querem lhes ensinar
nada em presença de seu pai ou seu preceptor, para não expor-se
à brutalidade dessas gente corrompidas, e que lhes castigariam. Mas
que aqueles que desejem saber a verdade, suplantem ao pai e preceptor, e
vão com as mulheres e os meninos ao gineceu, ou à tenda do
sapateiro ou a do tecelão, para aprender a vida perfeita". (Op.
cit., tradução de Louis Rougier, Jean-Jacques Pauvert, éditeur.
Paris 1965.)
Vimos, indiscutivelmente, um quadro tomado ao vivo. Uma coisa assim não
se inventa. E Celso, amigo do imperador Juliano, seu companheiro de estudos
nas escolas de Atenas, a quem Juliano fez governador das províncias
da Capadocia, Cilícia, pretor da Bitinia, com toda segurança
teve que se ver com propagandistas cristãos.
Agora bem, vamos encontrar nos próprios textos cristãos esta
ação insidiosa entre as mulheres, e sobretudo as jovens. Freqüentemente
estas últimas eram "dadas em matrimônio" pelo pater
familias, sem preocupar-se o mínimo por suas inclinações
do momento (coisa que em Israel a Lei religiosa proibia fazer). Disso resultavam
feridas morais incuráveis, e se compreende facilmente que os pregadores
da nova religião encontrassem terreno abonado para lhes pregar a
castidade.
Pois bem, nos Atos de Paulo, chamados também Atos de Paulo e de Tecla,
cujas versões siríaca, eslava e árabe são do
século VI (existem fragmentos da versão grega em um pergaminho
do século VI), vamos encontrar provas formais desta ação
insidiosa de Paulo entre as mulheres. E esta ação, tendo em
conta as crenças daqueles tempos, revestirá um aspecto mágico
não menos seguro.
Por uma parte, Paulo aconselhará a quão jovens não
se casem. Por outra, aconselhará às jovens e às mulheres
o mesmo. Mas enquanto o efeito sobre os primeiros é menos tangível,
a ação, ou, como poderíamos dizer, a influência,
por volta das segundas, é total. Julgue-se:
"Afortunados aqueles que têm mulheres como se não tivessem,
porque terão a Deus como herança..." (Op. cit., V.)
"Enquanto Paulo assim falava em meio da assembléia, na mansão
de Onesiforo, uma virgem, cuja mãe se chamava Teoclia, e que estava
prometida a um jovem chamado Tamiris, sentada na janela mais próxima
a sua casa, escutava dia e noite a palavra de Deus anunciada por Paulo...
E não se movia da janela... Além disso, como via mulheres
e virgens ao lado de Paulo... Porque ela não tinha visto ainda nunca
as facções de Paulo, só tinha ouvido sua palavra."
(Op. cit., VII.)
"E Teoclia disse: Tenho detalhes novos para dar, Tamiris. Faz três
dias e três noites que sua prometida não se separa da janela,
nem para comer nem para beber, mas sim, como extraviada de gozo, aterra-se
de tal maneira a um homem estrangeiro que ensina palavras enganosas e artificiosas,
que estou surpreendida de que o tão grande pudor da jovem esteja
turbado de forma tão penosa." (Op. cit., VIII.)
"Tamiris, este homem transtorna a cidade dos iconianos, como a sua
própria pregação, já que todas as mulheres e
os jovens vão a ele... E minha filha também, encadeada como
uma aranha a sua janela pelo que ele diz, está dominada por um desejo
novo e por uma temível paixão... E a jovem está gostando
muito..." (Op. cit., IX.)
"E todos choravam amargamente, Tamiris porque perdia a sua futura esposa,
Teoclia a sua filha, os jovens escravos a sua ama. Reinava, pois, na casa
uma grande e geral confusão de pesar. E enquanto isso, Tecla não
mudava, e permanecia sempre atenta ao verbo de Paulo." (Op cit., X.)
"Tamiris, quando ouviu isto, ficou com ciúmes e cólera.
Logo que amanheceu se levantou e foi à casa de Onesiforo com magistrados,
funcionários, e um grupo bastante numeroso armado de fortificações,
e disse ao Paulo: "seduziste à cidade dos iconianos e a minha
prometida, de modo que esta já não quer casar-se comigo; vamos
ante o governador Cestilio". E o grupo inteiro disse: "leve este
bruxo, porque seduziu todas nossas esposas"; e a multidão era
desta mesma opinião." (Op. cit., XV.)
"Tamiris, diante do tribunal, disse aos gritos: "pró-cônsul,
não sabemos de onde vem este homem que impede de casar-se às
jovens. Que diga ante ti por que ensina essas coisas"..." (Op.
cit., XVI.)
Ao revelar o interrogatório de Paulo que este era cristão,
o governador ordenou prendê-lo e colocá-lo na prisão,
esperando que, ao ter mais tempo livre, pudesse escutá-lo mais a
fundo.
"Mas Tecla, durante a noite, tirou os braceletes e os deu ao porteiro,
e quando teve aberta a porta, encaminhou-se para a prisão. Deu de
presente ao carcereiro um espelho de prata, entrou junto ao Paulo e, depois
de sentar-se a seus pés, escutou a grandeza de Deus. E Paulo não
temia nada e se conduzia com a liberdade de Deus, e sua fé recobrou
firmeza nela, enquanto lhe beijava as algemas." (Op. cit., XVIII.)
A liberdade de Deus ou a liberdade dos filhos de Deus? O que pretende isto
dizer? Porque essa expressão em desuso designa o fato de efetuar
não importa que ação, na ignorância do bem e
do mal!
Aqui abriremos um parêntese. A tradução deste velho
apócrifo (a versão copta é do século V, mas
aparece citado no ano 200 por Tertuliano) é do abade Vouaux, catedrático
de universidade, professor no Collége de Malgrange. O imprimatur
é de Paris, de 1912, e foi editado pela Librairie Letouzey et Ané.
Agora bem, em relação ao último versículo citado
acima, o tradutor toma a precaução de assinalar: "A observação
acautela de todo escândalo, mas este seria muito similar em tais circunstâncias,
e possivelmente mais valeria calar-se, e não desflorar essa ingenuidade
assinalando de forma muito vigorosa. Humildade no amor puro, essa é
a comovedora virtude da pecadora arrependida (Lucas, 7, 38), e essa é
também a de Tecla...". (Op. cit., notas da página 181.)
Observar-se-á que se os Atos de Paulo e de Tecla estão classificados
entre os apócrifos, e se o Papa Leão e Toribio da Astorga
(por volta de 450) condenam a estes últimos por terem utilizados
seitas heréticas, só o foram por este motivo, já que:
"...sem nenhum gênero de dúvidas, essas maravilhas e esses
milagres descritos nos apócrifos, ou são dos santos apóstolos,
ou puderam ser deles". Coisa que nos dá a razão!
Quisemos oferecer estes comentários do abade Vouaux para demonstrar
que se tratava de uma atração de ordem sentimental, que foi
justificada a seguir em função de uma conversão final.
Agora bem, o aspecto físico de Paulo não justifica uma influência
semelhante sobre as mulheres, como já vimos Or-ffav outra coisa,
que logo abordaremos. Mas prossigamos, porque o texto vale a pena:
"Enquanto isso Tecla era procurada por seus familiares e por Tamiris.
Acreditando-a perdida, foram em sua busca pelas ruas. Mas um dos escravos,
companheiro do porteiro, declarou que tinha saído durante a noite.
Então perguntaram ao porteiro, e este lhes disse que tinha ido encontrar-se
com o estrangeiro na prisão. Seguindo esta indicação,
foram ali, e encontraram-na, por assim dizê-lo, encadeada pelo amor.
Saíram então da prisão, arrastaram às multidões
atrás deles, e revelaram ao governador o que tinha acontecido."
(Op. cit., XIX.)
"Este ordenou que conduzissem Paulo diante de seu tribunal. Mas Tecla
rodava pelo chão, no lugar exato em que, sentado na prisão,
tinha-a instruído Paulo. E o governador ordenou que a levassem-na
também diante do tribunal. Ela, cheia de alegria, saiu prazerosa.
Mas quando traziam já de retorno Paulo, as multidões gritavam
com mais violência: É um bruxo, matem! Mas o governador escutava
agradando ao Paulo, que falava de suas obras santas; logo, depois de reunir
a seu conselho, chamou Tecla e lhe disse: "por que não se casa
com Tamiris, segundo a lei dos iconianos?" Mas ela olhava entusiasmada
ao Paulo. E como não respondia, sua mãe interrompeu neste
grito: "Queima esta perversa; queima a esta inimizade no meio do teatro,
para que todas as mulheres instruídas por este homem cobrem medo"."
(Op. cit., XX.)
"O governador sofreu atrozmente, mas mandou flagelar ao Paulo e o expulsou
da cidade, e condenou Tecla à fogueira. Imediatamente se levantou
e foi ao teatro, e todo o povo foi contemplar este castigo, legalmente imposto.
Mas Tecla, igual ao cordeiro no deserto olhou por todos lados em busca do
pastor, do mesmo modo procurava Tecla ao Paulo! E quando passou seu olhar
pela multidão, viu um senhor sentado, com os traços de Paulo.
Ela disse: "Como se eu pudesse fraquejar, Paulo veio a me contemplar".
E o olhou fixamente, encantada. Mas ele ascendeu de novo aos céus."
(Op. cit., XXI.)
Continuando, um motim levado a cabo por mulheres tenta opor-se ao suplício
de Tecla. Conseguem-no, e Tecla irá a pé, vestida de homem,
mesclada com um grupo de meninos e garotas jovens, em busca de seu querido
Paulo, ao Myras, aliás Antioquia de Pisidia.
Deixemos de lado todo o sobrenatural abundantemente aumentado, como está
mandado em todos estes textos apócrifos. O que fica é que
a história de Tecla "teve uma grande acolhida e alta veneração
em toda a Igreja", como nos diz o abade Vouaux, tradutor da versão
grega citada.
Assim, o "encanto" do qual fazia uso Saulo-Paulo para com as mulheres,
a fim de lhe permitir fazer delas elementos propagandísticos da doutrina
de que era autor, esse "encanto" é inegável, e segue
sem explicação racional. Evidentemente, nos objetará
que era obra do Espírito Santo. Mas que o Espírito Santo faça
que uma moça se derrube pelo chão no lugar que ocupasse seu
querido Paulo em um calabouço, que a deixe muda de admiração
ao contemplá-lo, que distribua suas jóias para ir a seu encontro
tão longe, a mais de cem quilômetros de sua residência
familiar, tudo isso causará cepticismo em todo leitor com sentido
comum.
E isso não faz a não ser reforçar nossa primeira hipótese,
ou seja, que o judeu chamado Simão, que conseguiu mediante seus sortilégios
que a princesa Drusila abandonasse a seu marido Aziz, rei do Emeso, para
viver com um antigo escravo liberto, o procurador Félix, esse Simão
poderia muito bem ser Simão, o Mago, aliás Paulo, aliás
Saulo, antigo príncipe herodiano...
E a segunda hipótese, segundo a qual Saulo teria obtido o "sim"
da filha de Gamaliel (coisa que lhe decidiu a praticar-se previamente a
circuncisão) unicamente graças a um sortilégio, e em
modo algum devido a sua superioridade física, teria também
fundamento.
Por outra parte, seria um grande engano supor que a magia foi uma técnica
habitual só de Paulo. Os cristãos utilizaram com profusão
a magia curativa, e ficam testemunhos indiscutíveis nos textos antigos.
É provável que a mesma magia fora utilizada em certos episódios
de circo, em presença das feras. Mas o pequeno número de iniciados
nesta ciência, zelosamente conservada por seus escassos possuidores,
no seio da massa anônima dos crentes, forçosamente tem feito
escassear as manifestações deste tipo, e os ocultos se foram
perdendo pouco a pouco.
Vejamos o que diz disso Orígens no Contra Celsum: "Existem determinadas
doutrinas, ocultas às multidões, que não são
reveladas, somente depois que forem repartidos os ensinos esotéricos.
Isso não é exclusivo do cristianismo". (Op. cit.)
Vejamos ainda outros textos que demonstram sem dificuldade a ação
misteriosa dos propagandistas cristãos sobre as mulheres, no seio
das nações pagãs. O R. P. Festugiére, O. P.,
em seu quarto tomo de La Révelation d'Hermés Trismégiste,
le Dieu Inconnu et la Gnose, sublinha que em bom número de Atos apócrifos:
"Sempre a mesma história constitui um dos topos desta literatura
apócrifa. Um chefe, um rei, parente do rei ou do magistrado local,
está casado, vive em boa união com sua esposa, tem filhos.
Aparece o apóstolo, converte à mulher: esta, então,
rechaça os ardores de seu marido e decide permanecer casta".
(Op. cit., P. 227.)
Pode citar-se a este respeito:
- O prefeito Agripa e suas quatro concubinas, nos Atos de Pedro (XXXIV):
- o pró-cônsul de Hierápolis e sua esposa Nicanora,
nos Atos de Felipe (114);
- o magistrado Aigeates e Maximilia, nos Atos de André (3);
- Andránicos, estrategista de Éfeso, e Drusiana, nos Atos
de João (63);
- Cansíos, parente do rei, e Migdonia, nos Atos de Tomás (ou);
- o rei Misdaios e Tertia, nos mesmos Atos de Tomás (134). Nos Atos
de André, ao rechaçar Maximilia a seu marido Aigeates, corre
a reunir-se com o apóstolo André na prisão onde o encerraram.
E este sustenta com ela uma estranha linguagem, no que se vê aparecer
algo distinto ao desejo de espiritualização da mulher, mas,
ao contrário um ódio ao marido legítimo e o desejo
de subjugar esta mulher:
"Suporta todas as torturas que inflige seu marido, e olhe um pouco
para mim, e verá como se enche inteiro de atordoamento, e se murchará
longe de si. Porque -sobretudo, me tinha passado,devo lhe dizer isso não
conhecerei o descanso até que não veja cumprida a obra que
vejo produzir-se em si. Sim, na verdade, vejo-a uma Eva arrependida, e em
mim a um Adão voltando-se. Porque o que Eva sofreu por ignorância,
agora, você, para quem eu tendo minha alma, você o endireita
com sua conversão. O que o nous* sofreu quando foi abatido com Eva
e escapou a si mesmo, eu o levanto contigo, do momento em que se reconhece
recuperada". (Cf. Atos de André, XL.)
*[Nous: em grego significa o espírito.]
Se isto não se parecer com um malefício, as palavras não
têm sentido! Nos Atos de Felipe encontramos a mesma má fama
dos apóstolos: a de sedutores de mulheres. Uma vez mais citaremos
ao R. P. Festugiéres: "O apóstolo Felipe está
entrando na cidade de Nicatera, na Grécia, quando os cidadãos,
e especialmente os judeus, revoltam-se. Felipe tem fama de separar aos maridos
das mulheres; portanto, terá que jogá-lo antes de que se instale
e comece a seduzir às mulheres". (Op. cit., P. 239.)
O mesmo acontece no caso de Carisios e Migdonia, nos Atos de Tomás.
Diz-nos este autor: "Migdonia, depois de haver-se recusado a seu marido
Carisios, tenta reunir-se com o apóstolo Felipe em sua prisão".
(Op. cit., P. 240.)
É óbvio que nos textos cristãos ortodoxos esta atração
das mulheres pelo apóstolo é sempre platônica. Mas não
vemos por que deveria exercer-se de forma precisa e total em uma única
mulher, enquanto o apóstolo não desperta entre todas as demais
a não ser uma imensa comente de simpatia para a nova doutrina. Não
vemos por que teria que ser indispensável separar a esta única
mulher de seu legítimo marido, e suscitar nela o desejo absoluto
e fascinante de não abandonar jamais nem por um instante ao chamado
apóstolo, enquanto que todas as outras permanecem unidas a seu marido
legal. Confessemos que em todas essas numerosas circunstâncias o Espírito
Santo desempenha um estranho papel, habitualmente encomendado a personagens
pouco recomendáveis. E no que fica aqui o famoso sacramento do matrimônio?
Se ainda duvidássemos disso, bastaria-nos tomando textos análogos
de certos padres da Igreja, textos nos quais não vacilam em ser mais
loquazes, simplesmente porque então se trata de notórios hereges.
Citaremos ao Ireneu, em seu tratado célebre Contra as Heresias, no
qual estigmatiza ao gnóstico Marcos: "Sobretudo é com
as mulheres com as quais tem entendimentos, e preferentemente com as grandes
damas, de alto berço e as mais ricas possíveis. Freqüentemente
tenta seduzi-las sustentando com elas conversações de linguagem
aduladora como esta: "Quero lhe dar parte de minha graça, já
que o Pai de todas as coisas vê continuamente seu anjo frente a seu
rosto (Mateus, 18, 10). É em nós onde tem lugar a Grandeza.
Temos que nos fundir na Unidade. Recebe primeiro de mim e por minha Graça.
Esteja disposta como uma recém casada a espera de seu jovem marido,
para que você eu seja, e eu você seja. Instala em sua câmara
nupcial o germe da Luz. Tira de minha mão ao jovem marido, lhe dê
lugar em si, e encontra lugar nele. Vê? A Graça descendeu a
si, abre a boca e profetiza". Se a mulher responde: "Eu não
profetizei jamais, e não sei profetizar", ele, fazendo de novo
certas invocações para deixar estupefata àquela a quem
seduziu, diz: "Abre a boca e dá algo; profetizará".
Ela então, inflada de orgulho, e apanhada na armadilha destas palavras,
com o ânimo ardendo já ao simples pensamento de que vai profetizar,
com o coração lhe palpitando em excesso, aviva-se e pronuncia
frivolidades, algo, impudicas tolices, dignas do tolo espírito que
a inflamou... A partir desse instante se vê à si mesmo como
profetisa, cheia de agradecimento ao Marcos, que lhe comunicou sua Graça.
Ela tenta recompensá-lo, não só lhe dando o que possui
(daí procedem as imensas riquezas que acumulou), mas também
lhe entregando seu corpo, já que arde em desejos de unir-se à
ele em tudo, a fim de fundir-se, com ele, na Unidade". (Cf. Ireneu,
Contra as heresias. I, xIII, 3.)
Pois bem, este Marcos, aliás Marcus, discípulo de Valentino,
foi o fundador de uma grande igreja gnóstica em finais do século
II, e não se tratava de uma seita minúscula, nem de um chefe
não cristão. E ao demonstramos que Marcos seduzia às
mulheres ricas em nome da nova religião, Ireneu não faz a
não ser confirmar que as outras faziam o mesmo.
Em um texto redigido, conforme parece, por volta do ano 150, e intitulado
O Pastor, o autor, um certo Hermas, considerado como um dos quatro "pais
apostólicos", descreve-nos mais à frente: "...aqueles
que estão cobertos de manchas são os diáconos prevaricadores,
que roubaram o bem das viúvas e dos órfãos, e se enriqueceram
nas funções que receberam..." (Op. cit., IX, 26.)
Acaso o próprio Saulo-Paulo não aconselhava: "Honra às
viúvas que são verdadeiramente viúvas..." (I Epístola
ao Timóteo, 5, 3)? Eugenio Sue, em seu Judeu errante, não
inventou nada. Cometeria-se um grande engano caso que esta ação
oculta sobre as massas femininas, polarizada mais particularmente sobre
uma delas, começou posteriormente à morte de Jesus, no ano
34. Que o leitor se remeta ao capítulo 26 do volume precedente, intitulado
"Jesus e as mulheres", e ficará bem informado. O exemplo
vinha de acima.
Citemos simplesmente, para abreviar: "Havia também umas mulheres
que olhavam de longe. Entre elas estavam Maria de Magdala, Maria, mãe
de Santiago, o Menor, e de José, e Salomé, as quais, quando
ele estava na Galiléia, seguiam-lhe e serviam-lhe, e outras muitas,
que tinham subido com ele à Jerusalém...". (Marcos, 15,
40-41.)
Lucas (8, 3) diz-nos que essas mulheres "lhe assistiam com seus bens...",
quer dizer, com seu dinheiro, já que abandonaram suas casas. Não
se tratava já de hospitalidade.
E, se ainda duvidássemos, bastar-nos-ia relendo um evangelho apócrifo
muito velho, de que possuímos um manuscrito do século IV,
sobre um texto inicial de finais do século II, por volta dos anos
175-180: "Salomé disse: "E você quem é, homem?
De quem saiu para haver-se metido em minha cama e ter comido em minha mesa?
E Jesus lhe disse: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é
seu igual. Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu:
"Sou sua discípula!". (Cf. Evangelho de Tomás, capítulo
43, versículo 65, tradução do Jean Doure. Pión,
Paris, 1959.)
Por outra parte, é seguro que o "ambiente" daqueles tempos
alimentou o tesouro zelote em proporções consideráveis;
demos entrevistas que o provam no volume precedente. Desde aí a conhecida
frase de Jesus: "Na verdade lhes digo que os publicanos e as rameiras
lhes precederão no reino dos céus...". (Mateus, 21, 31-32.)
As peças justificativas da condenação de Jesus pelo
procurador Poncio Pilatos foram necessariamente enviadas à Roma,
já que se tratava da execução de um "filho de
David" que pretendia o trono de Israel, e a quem Tibério César,
durante um tempo, tinha pensado em confiar uma tetrarquia. Estas peças,
conservadas nos arquivos da Chancelaria imperial, em Roma, foram examinadas
pelo imperador Juliano, sucessor de Constantino, e à elas se refere
freqüentemente em suas polêmicas com os cristãos. E aqui
temos uma alusão bastante clara no que diz respeito aos laços
existentes entre o partido zelote e a prostituição, que tiramos
de suas obras: "A Molessa recebeu ao Constantino meigamente, enlaçou-o
entre seus braços, revestiu-o e o adornou com vestimentas , e logo
lhe conduziu ao lenocínio... Assim o príncipe pôde encontrar-se
também com Jesus, que freqüentava esses lugares, gritando a
tudo o que chegava: "Que todo sedutor, que todo homicida, todo homem
golpeado pela maldição e a infâmia se apresente com
toda confiança! Banhando-se com esta água, voltarei imediatamente
puro! E se voltar a recair nas mesmas faltas, quando lhe golpearem no peito
e na cabeça, voltarei a conceder-lhes a pureza!"". (Cf.
Julio César, Obras completas, tradução de J. Bidez,
Ed. Les Belles-Lettres, Paris, 1932.)
Terá que dizer que Constantino, "o homem coberto de crimes"
segundo os grandes bispos cristãos (fez assassinar a sua esposa,
a seu filho e a numerosos parentes e amigos), foi também um dissoluto
notável. Não obstante, no século IX lhe santificaram,
a pedido de Carlos Magno*. Mas Juliano, que era amável, casto, aficionado
às boas letras, que sabia perdoar a seus piores adversários,
Juliano foi simplesmente injuriado e assassinado.
*[Carlomagno estava interessado na "santificação"
de seu colega Constantino. Sua vida tinha sido muito pouco edificante. Além
da matança de quatro mil e quinhentos; reféns no Werden, no
ano 782, teve nove esposas ou concubinas (é bastante difícil
nessa época estabelecer a diferença), mas, além disso,
praticou o incesto com maestria. Seu cronista e biógrafo, o monge
Eginhard, relata que este imperador se guardava bem de casar a suas filhas,
já que "se servia carnalmente delas como de suas esposas".
Isso não impediria à Igreja convertê-lo no santo padroeiro
dos escolares! O Papa João XXIII o fez apagar do santoral, com um
certo número de "glórias usurpadas" mais. Quanto
ao Constantino, jamais gozou da aparição no céu do
famoso Iabarum: "In signo vinces!". Seu biógrafo e panegirista
Eusebio da Cesárea ignora tal milagre, ideado mais adiante por Lactancio.
Este transpôs sem dúvida o fato de que Constantino, anteriormente,
tinha tido uma visão em um templo de Apolo que ele visitava. Tinha
"visto" como o deus Apolo estendia-lhe uma coroa. Lactancio arrumou
a história...]
Um fato que naquela época teria suscitado uma violenta hostilidade
popular e reações legais contra Saulo-Paulo e seus lugares-tenentes
em Roma foi fazer participar às mulheres em uma "eucaristia",
no curso da qual podiam beber vinho, quanto mais que esta "eucaristia"
estava incluída em um "ágape" prévio no que
o tonus elítico subia rapidamente, se dermos crédito aos protestos
de Paulo. (Cf. I Epístola aos Coríntios, 11, 20-21, infra,
P. 254.)
Com efeito, a conseqüência dos inauditos escândalos suscitados
pelas orgias dionisíacas femininas, em princípio do século
II antes de nossa era, um senatus-consulte datado do ano 186 A. C. da mesma
reiterara em Roma a proibição dos bacanais em toda a Itália,
recordando que, desde Rômulo, o vinho estava rigorosamente proibido
às mulheres. Estava-lhes deste modo proibido pôr a mão
sobre as chaves das cavas e as adegas. A embriaguez feminina, fosse qual
fosse, obtida pelo vinho, bebidas fermentadas ou as fumigações,
Rômulo a identificava ao adultério, já que se dizia
que a mulher era possuída pelo deus de quem dependia o ingrediente
assimilado. A única embriaguez tolerada na mulher era a do gozo sexual
nos braços do legítimo marido.
O texto original de tal senatus-consulte figura em uma placa de bronze descoberta
em Tiriola, na Calabria, e conserva-se em Viena, no antigo gabinete imperial.
Como se vê, para os judeus e as mulheres das diversas "províncias"
submetidas a Roma e convertidas à nova religião, isto não
expôs nenhum problema; mas para os romanos era muito distinto, e a
absorção do vinho "eucarístico" no curso
de ágapes freqüentemente desviados para outros objetivos, implicava
sanções penais inevitáveis.
11- O "Quadrado de Amor" de São Ireneu
A desgraça mais grave que possa acontecer a uma criatura humana caída
para o amor é ter ligado seu destino a um ser inferior. O perigo
constitui na decadência que pode resultar para ela, e esse perigo
pode estender-se ao longo de prolongados períodos de tempo.
Maurice Magre, L'Amour et la Haine
Sabe-se que entre as fórmulas mágicas da tradição
do Ocidente figuram o que se conveio em denominar os palíndromos.
São palavras, nomes, frases que, lidos da direita à esquerda
ou da esquerda à direita, de cima para baixo ou de baixo para cima,
dão invariavelmente os mesmos termos. Neste aspecto constituem, no
campo literal, o que os quadrados mágicos constituem no campo numeral,
mas estes últimos representam um grau mais elevado de conhecimento,
e permitem o acesso a um esoterismo imensamente mais oculto. São,
efetivamente, os quadrados mágicos os que constituem as "pranchas
de extração" reais dos nomes de poder na magia prática,
nomes de entidades verdadeiramente polarizadas, e ao mesmo tempo permitem
estabelecer os célebres "selos planetários".
No campo dos palíndromos citarão a célebre fórmula
latina: ROMA TIBÍ SÚBITO MOTIBUS IBIT AMOR, que se lê
igual em um sentido como no outro.
Não obstante, é menos conhecida que o célebre quadrado
mágico que suscita justas encarniçadas entre eruditos, e que
se apresenta abaixo dois aspectos:
SATOR ROTAS
AREPO OPERA
TENET TENET
OPERA AREPO
ROTAS SATOR
Por isso lhe dá o nome de "quadrado do Sator", ou do "Sator".
Lida horizontal ou verticalmente, tanto de esquerda a direita como de direita
a esquerda, esta frase também latina (ao menos na aparência)
dá invariavelmente as cinco mesmas palavras.
O uso dos palíndromos, considerados como palavras de poder em magia
prática, foi particularmente desenvolvido em um manuscrito do século
XVIII, propriedade da Biblioteca do Arsenal, em Paris, e cópia de
um documento mais antigo descoberto em Veneza pelo marquês do Paulmy
d'Argenson, embaixador da França. Tem como título: "La
Magie Sacrée que Dieu Donna Á Moyse, Aaron, David, Salomóm,
et Á d'autres prophétes, et qui enseigne la Vraie Sapience
Divine, laissée par Abraham fiís de Simón á
son fiís Lamech, traduite de L'hébreu, Á Venise em
1458". (A Magia Sagrada que Deus deu ao Moisés, Aarón,
David, Salomão, e a outros profetas, e que ensina a verdadeira Sabedoria
Divina, deixada por Abraham filho de Simão a seu filho Lamech, traduzida
do hebreu, em Veneza em 1458.)
Nós recopiamos, publicamos, prefaciamos, comentamos e cotamos. A
ela remetemos ao leitor amante do mistério! *[R. AMBELAIN, La Magie
Sacrée d'Abramelin le Mage, Niclaus éditeurs. Paris, 1959.]
Pois bem, uma fórmula muito parecida com o "Sator" figura
no capítulo XIX, sob o número 9, página 230 da obra
citada na nota 76, e é a seguinte:
S A L O M
A R E P O
L E M E L
O P E R A
M O L A S
Seu efeito consiste em procurar "o amor de uma donzela em geral"
(sic), e o manuscrito precisa os nomes demoníacos associados à
posta em marcha deste sortilégio, assim como todo o ritual preparatório.
Este palíndromo é uma mescla de palavras hebraicas, associadas
aos termos do "Sator" precedente. Salom é uma abreviatura
de Salomóm, e Lemel o é do Lemuel (ou Lamuel), chamado nos
Provérbios, 31, 1-4, nome de um rei que não seria outro a
não ser o próprio Salomóm (cf. Dictionnaire Rabbinique
de Sander e Trenel, Paris, 1859), e que significa "eleito de Deus".
Pois bem, o significado de "Sator" tradicional é a seguinte:
- Sator: semeador, criador, pai, deus, os deuses (Virgilio);
- Arepo: arado, grade, lâmina agrária (em francês);
- Tenet: manter, dirigir, conduzir;
- Opera: trabalho, obra;
- Rotas: rodas, ciclos, círculos.
C. Wescher, que foi o primeiro em estudá-lo cientificamente, traduz
assim: "O semeador está no arado, o trabalho ocupa as rodas...".
Anverso e reverso do pentáculo de "Sator". (Coleção
Alex Bloch.)
No segundo tipo do Sator dado pelo Abramelin, a palavra Moa pode significar
um molar de moinho em latim, ou uma deformação de Molechet,
deidade feminina do céu em acadio. Pois bem, as rodas e as demola
têm pontos em comum, e toda deidade celeste de tipo feminino evoca
ou à Lua ou Vênus, com seus ciclos regulares. Como se vê,
a idéia geral é a mesma.
Quanto à associação do semeador e da grade agrária,
há uma imagem similar à penetração do homem
na mulher. "Sua esposa é seu campo, lavra-o nos dois sentidos...",
diz o velho axioma semítico (Corán, II, 223).
É evidente que esta frase chave, o "Sator", não
possui a priori nenhum sentido místico, mas seu significado geral
reveste um relevo particular se se tiver em conta sua aplicação
no plano do erotismo, recordando que Eros representava ao deus do amor carnal,
do desejo dos sentidos, enquanto que Ágape era a deidade do amor
platônico, sentimental, espiritual.
Pois bem, o "Sator" possui em princípio, e em sua forma
mais antiga, o mesmo significado erótico. Foi descoberto em Pompéia,
em duplamente esboçado, sob a forma de "Rotas" (cf. R.
P. Guillaume de Jerphanion, em Recherches de Sciences Religieuses, XXV,
abril de 1935, pp. 188 e ss.). Os dois palíndromos estavam riscados
sobre uma das colunas do templo do Amor, e este fato é significativo.
Um arqueólogo lionês, M. Amable Audin, assinalou no N.°
119, de outubro de 1965, do Bulletin du Cercle Ernest Renán, que
"Sua posição, por debaixo de camadas de cinzas absolutamente
virgens, demonstra de forma imperativa que devia ser anterior ao sepultamento
sob as cinzas da erupção do Vesúvio".
Como esta teve lugar no ano 79 de nossa era, o traçado do duplo "Sator"
foi efetuado muito antes. E por Tertuliano sabemos que não havia
nenhuma comunidade cristã naquela época, nem em Pompéia
nem em seus arredores (o que nos dá uma idéia da plausibilidade
da célebre novela: Os últimos dias de Pompéia).
Posteriormente descobriremos esta inscrição misteriosa em
Doura-Eropos, no Eufrates, em uma estância que servia de despacho
aos actuarii das coortes auxiliares romanas, grafite com tinta vermelha
sobre a muralha, sob a forma de "rotas".
Logo, no Egito, com um valor mágico e profilático, nos papyrii
coptos 193 e 194 da coleção do arquiduque Renier: SATOR AREPO
TENET OPERA ROTAS
A L P H A
L E O N
P H O N E
A P E R
Em um ostrakon do museu do Cairo pode-se ler acompanhada de palavras mágicas.
Um amuleto de bronze de origem egípcia, descoberto na Ásia
Menor, e conservado antes de 1945 no museu de Berlim, levava deste modo
a fórmula do "Sator".
Logo se cristianizará. Os coptos darão a cada um dos cinco
pregos da crucificação de Jesus cada uma das cinco palavras
do "Sator". Em Bizancio convertem-nas em nomes dos pastores testemunhas
do Natal! E a grande corrente esotérica medieval assimilará,
acompanhada de nomes angélicos ou demoníacos, em seus livros
de conjuros manuscritos.
E é aqui onde vamos encontrar tanto nas mãos dos cristãos
de antigamente como nos de hoje.
Em 1954, nas escavações de Aquineum, o velho Buda, na Hungria,
descobriu uma telha que levava em seu interior um hexagrama ou "selo
de Salomão" com a inscrição fatídica. Esta
última acompanhada do outro palíndromo já citado, mas
desta vez se achava parcialmente apagado. Só podia ler-se: "ROMA
TIBÍ... ITA...".
Entre tibí e ita há rastros de letras muito difíceis
de identificar. O arqueólogo húngaro que o tinha descoberto
e publicado, M. Szilagyi, estimou que devia traduzir-se corretamente, e
conforme era costume: "ROMA TIBÍ SÚBITO MOTIBUS IBIT
AMOR".
Pelo contrário, Jerônimo Carcopino, muito católico,
queria a todo custo ler nele uma fórmula cristã: "Roma
tibí salus ita", quer dizer: "Roma, aqui está sua
salvação!". Passava por cima do fato de que o espaço
que tinha ficado apagado era muito extenso para ter contido tão somente
as cinco letras da palavra SALUS. Além disso, se se lia ao reverso,
conforme era habitual, já não ficava nada que evocasse o cristianismo:
"ati sulas ibit amor". O que provaria muitas coisas...
Por último, a estrela de seis pontas, ou "Selo de Salomão",
é um símbolo mágico universal; em todo mundo a encontramos
associada à magia mais materialista. Traçaram na confecção
de certos "yantras" da bruxaria tântrica, na Índia.
Basta folhear o Yantra Chintámani, ou "Jugo dos Yantras",
para convencer-se; vejamos aqueles nos quais figura:
- 8.° yantra: "Criador de ilusões" (os credores carecerão
de força e não reclamarão o que lhes é devido.
Poderão oferecer dinheiro aos discípulos).
- 23.° yantra: "Flecha de Eros" (as mulheres mais orgulhosas
e mais altivas enlouquecerão de desejos ardentes e serão totalmente
dominadas).
- 28.° yantra: "Dom de Tripurá" (submissão da
pessoa desejada, homem ou mulher).
- 68.° yantra: "Terror da Febre" (calma a febre).
- 75.° yantra: "Liberação" (libera dos laços
vergonhosos).
É curioso constatar que de cinco yantras, três tratam do meio
para submeter a outro, dois dos quais a desejos carnais. Então, quem
pintaria aqui uma fórmula cristã?
Os partidários da origem cristã do "sator" não
se deram por vencidos. É sabido que a este palíndromo dão
o apelido de "quadrado de São Irineu". A este último
o conhecemos por Eusébio da Cesaréia, quem disse que se tratava
do sucessor de Potino à cabeça da Igreja de Lyon (cf. Eusébio
da Cesaréia, História eclesiástica, V, 5), embora seu
discípulo Hipólito o qualificasse só de presbítero
(cf. Hipólito, Philosophumena, VI, 43).
Para Jerônimo Carcopino, em seus comunicados à Academia das
Inscrições e das Belas Letras, esse "quadrado mágico"
foi inventado em Lyon por Irineu, bispo de tal cidade, no dia seguinte da
perseguição do ano 177. Para provar bastava o fato de que
o anagrama de "sator arepo tenet opera rotas" dava "pater
noster" repetido duas vezes e formando uma cruz. Quanto às duas
letras restantes, A e O, tratava-se da alfa e a omega, símbolos de
Cristo:
A
P
T
E
R
A P A T E R N O S T E R O
O
S
T
E
R
O
Este descobrimento era obra do professor Félix Grosser, de Chemnitz,
em seu Ein neuer VorschÍag zur Deutung des Sator-Formel (no Archiv.
F. Relig., 1926, XXIV, pp. 165-169). E este (que era pastor, não
devemos esquecê-lo) fazia observar, além disso, que no "quadrado
mágico" as letras que compunham a palavra central, tenet, formavam
uma cruz. Assim, tratava-se de uma fórmula secreta de reconhecimento
para os cristãos.
Numerosos eruditos responderam assinalando que toda construção
de um palíndromo de número ímpar permite o mesmo resultado.
Outros fizeram observar que a mesma frase podia dar outros anagramas muito
diferentes, como por exemplo os que assinala o periódico italiano
A Nazione em seu número de 21 de maio de 1968, assinados por Giorgio
Batini, e reproduzidos pelo Bulletin du Cercle Ernest Renán em setembro
do mesmo ano:
1) SATAN ORO TE PRO ARTE A TE SPERO.
2) SATAN TER ORO TE OPERA PRAESTO.
3) SATAN TER ORO TE REPARATO OPES.*
*[Eu te conjuro, Satanás, em favor do que espero!
Eu te conjuro, Satanás, por três vezes, a que cumpras o objetivo
deste sacríficio!
Eu te conjuro. Satanás, por três vezes, a que me ajudes de
novo!]
Estes anagramas, além disso, são como o do pater noster, não
se pode encontrar o primeiro sentido lendo-o da direita para a esquerda.
Por outra parte, as palavras pater noster não são especificamente
cristãs. No Antigo Testamento encontramos pelo menos uma dúzia
de vezes. Citemos simplesmente: "Tu, Yavé, és nosso Pai,
e, da Eternidade, dissestes nosso Salvador..." (Isaías, 63,
16), e "Entretanto, Yavé, és nosso Pai..." (Isaías,
64, 7).
E os autores pagãos não ignoram esta expressão:
"Tu és nosso Pai, Oh, Zeus..." (Estobeo, Antologia, Prece
de Cleanto.)
"Oh, Zeus, Nosso pai!..." (Pitágoras, Para Doris.)
"Tu és nosso Pai..." (Aratos.)
Concluamos, pois, que é muito imprudente, por parte de nossos autores
cristãos, reivindicar a misteriosa fórmula do "sator
arepo tenet opera rotas", já que, como acabamos de demonstrar,
é muito anterior ao cristianismo. Por outra parte, indiscutivelmente
se trata de um "encantamento", de um "sortilégio"
gráfico e vocal, mediante o qual se tentava subjugar às mulheres.
E se Irineu e seus colaboradores, todos eles procedentes da Ásia,
e provavelmente de Esmirna, conheceram e utilizaram o "sator",
não seria como símbolo para provar que pertenciam à
nova seita, o cristianismo. Mas bem veríamos nisso a confirmação
do que os textos antigos citados nas páginas precedentes nos sugeriram,
ou seja: a ação dos propagandistas cristãos sobre as
mulheres.
Convém, não obstante, observar, para desencargo do citado
Irineu e seus ajudantes, que esta frase de caráter mágico
indiscutível podia ter duplo sentido, e que o semeador podia significar
a palavra cristã, ou o próprio Jesus.
Com efeito, nos textos neo-testamentários se compara com um semeador,
e logo se guardará esta comparação referindo-se a ele:
"Um semeador saiu para semear..." (Mateus, 13, 4; Marcos, 4, 3;
Lucas, 8, 5.)
"O semeador semeia a palavra..." (Marcos, 4, 14.)
"Conforme está escrito [...] que proporciona a semente ao semeador.
.." (I Epístola aos Coríntios, 9, 10.)
"Que o semeador e o colhedor se alegrem juntos..." (João,
4, 36.)
Agora bem, esses enigmáticos e simbólicos semeador e colhedor
aparecem já antes no Antigo Testamento: "Exterminem em Babilônia
ao semeador e ao colhedor...". (Jeremias, 50, 16.)
Isto evoca extranhamente as palavras do Deuteronômio: "Um dependurado
de uma árvore é objeto da maldição de Deus".
(Deuteronômio 21, 23.)
Poderia acreditar-se que as vozes proféticas de Israel antigo tinham
percebido adiantado tudo o que o messianismo lhe contribuiria em matéria
de catástrofes.
12- A verdadeira morte de Estêvão
O primeiro dever do historiador consiste em restabelecer a verdade, destruindo
a lenda.
Marcel Pagnol, Le Masque de Fer
Para R. P. Lucien Deiss, C. S. Sp., em seu livro Synopse des Evangiles,
baseado nos Atos dos Apóstolos encontra-se um "documento semítico".
E é evidente. Mas não poderia tratar-se de um judeu convertido,
já que não se encontra a aspereza, a decisão, próprias
do Antigo Testamento. Imaginar que fora um grego ou um latino é ainda
mais impossível, já que este conjunto não está
marcado pela harmonia helênica nem pela claridade latina. Portanto,
não fica a não ser um árabe, e mais provavelmente um
sírio da Antioquia, que chegou tardiamente ao cristianismo. A babozeira
enjoativa e devota, a adulação de todo o romano, o ódio
anti-semita (porque Síria era o branco das pilhagens galileus desde
Ezequias, pai de Judas da Gamala e avô de Jesus, no ano 60 antes de
nossa era), tudo assinala para esse tipo de homem que encontraremos freqüentemente
nos cinco ou seis primeiros séculos.
Por outra parte, quando vemos que a lei do Sinai não foi dada ao
Moisés pelo Eterno, mas sim por um ou vários anjos (cf. Atos,
7, 30, 36, 38 e 53), é evidente que esta afirmação
deriva de Saulo-Paulo em sua Epístola aos Gálatas (3, 19).
Agora bem, essa mesma afirmação segundo a qual a lei do Sinai
foi promulgada por anjos, os Atos a colocam na boca de Estêvão,
o diácono, no instante em que vai ser lapidado pelos judeus, exasperados
pelo que eles consideram blasfêmias. E Saulo-Paulo ainda não
se converteu! E inclusive está ali, conforme parece, montando guarda
diante das vestimentas dos executores (Atos, 7, 58). Sua Epístola
aos Gálatas, portanto, ainda não está escrita. Mas
nisto não pensou o escriba anônimo do século IV.
O mesmo acontece com o discurso de Estêvão. Tomemos o texto
dos Atos ao princípio deste caso: "E a palavra do Senhor crescia,
o número dos discípulos aumentava grandemente em Jerusalém,
e uma multidão de sacerdotes obedeciam à fé. Estêvão,
cheio de graça e de poder, operava grandes prodígios e sinais
entre o povo. Então intervieram as pessoas da sinagoga chamando os
Libertos, os Cirenenses, os Alexandrinos, e outras de Cilícia e da
Ásia. Ficaram a discutir com Estêvão, mas não
podiam fazer frente à sabedoria e ao espírito que lhe faziam
falar. Pagaram a homens para que dissessem: "Ouvimo-lhe pronunciar
blasfêmias contra Moisés e contra Deus". Amotinaram ao
povo, aos anciões e aos escribas, e logo, acudindo de improviso,
capturaram-no e levaram-no ante o Sanedrim. Ali contribuíram com
falsos testemunhos que declaravam: "Este homem não cessa de
falar contra este santo Lugar e contra a Lei. Ouvimo-lhe dizer que Jesus,
esse nazareno, destruirá este Lugar e trocará os costumes
que Moisés nos legou". Todos aqueles que estavam sentados no
Sanedrim tinham os olhos fixos nele, e seu rosto lhes pareceu semelhante
ao de um anjo... O supremo sacerdote perguntou:
"É, na verdade, assim?". E Estêvão respondeu:
"Irmãos e pais, escutem..."". (Cf. Atos dos Apóstolos,
6, 7, a 7, 2.)
Agora vem um discurso interminável do tal Estêvão, que
começa à saída de Abraham da Mesopotâmia, e enumera
os acontecimentos principais da história da estirpe de Abraham até
a vinda de Jesus. Vai do capítulo 7, versículo 3, até
o 7, versículo 53. Nos manuscritos gregos mais antigos isso representa
127 linhas, a uma média de nove palavras cada uma, quer dizer, umas
mil e duzentas palavras. Nem que estivesse lendo ao Flavio Josefo!
A quem poderia fazer-se acreditar que houve um escriba, judeu ou cristão,
que conhecesse naquela época a taquigrafia para tomar nota de tal
discurso? E como conhecia o redator dos Atos a tradição gnóstica
dos anjos ditando a Lei do Sinai, se a gnosis ainda não existia?
De semelhantes incoerências e inverossimilhanças estão
cheios os Atos dos Apóstolos. Como conhece o redator dos Atos o texto
da carta confidencial que redige o tribuno das coortes Claudio Lisias ao
procurador Antonio Feliz, quando lhe envia a Saulo-Paulo com uma escolta
quase real? (Atos, 22, 26-30.)
Como pôde o Sanedrim mandar açoitar aos apóstolos com
varas (Atos, 5, 40), quando a lei judia não conhecia a não
ser o látego de couro, com o que jamais deviam propinar-se mais de
39 golpes para a sanção máxima de 40 (cf. Talmud, 5
Maccoth e Siffré Deuteronômio, 286, 125 a)? Pois simplesmente
porque na época em que se redige os Atos a nação judia
já não existe, está dispersada por todo o Império
romano, com a proibição de aproximar-se do que foi Jerusalém.
E os anônimos redatores dos Atos, ao ver passar aos leitores romanos
com suas faces de varas, não foram procurar mais longe.
Nos Atos, capítulo 5, versículo 34, apresenta ao Gamaliel
como um doutor da Lei, quando é o Daion di Baba, com jurisdição
sobretudo Israel, incluída a Diáspora, e podendo de extradição,
privilégio que lhe conservaram os romanos, igual à seus predecessores
e sucessores, enquanto houve uma nação judia reconhecida por
Roma.
Como Gamaliel, rabban do Israel, que possuía por direito todos os
arquivos históricos de toda a nação judia, conservados
no Templo, como pôde situar a revolução do Teudas, que
teve lugar no ano 46, durante seu pontificado (morreu no ano 52 de nossa
era), antes de Judas da Gamala, que se produziu no ano 6 de nossa era, quer
dizer, quarenta anos antes, quando ele era ainda simples rabbfl. Entretanto,
este é o engano que comete o chamado redator dos Atos, em 5, 36.
Oferecemos o cerimonial judicial da lapidação em um capítulo
desta obra (supra). Que o leitor se remeta a ele, e verá que o condenado
tinha que estar necessariamente estendido sobre suas costas antes de que
lhe lançassem a primeira pedra, muito grossa, que, em princípio,
tinha que ser mortal. Então, como pôde nos contar o autor dos
Atos o seguinte?: "E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão
orava, e dizia: "Senhor Jesus, recebe meu espírito...".
Logo se fincou de joelhos e gritou com forte voz: "Senhor, não
lhes impute este pecado...". E dizendo isto, dormiu". (Atos dos
Apóstolos, 7, 59-60.)
Poderia acreditar-se que a lapidação o deixava indiferente.
Assim, temos a prova de que todo este esbanjamento de imaginação
incontrolada e sem nenhuma plausibilidade histórica joga uma irritante
luz sobre a veracidade dos relatos apostólicos. E a partir do momento
em que se desperta a suspeita, o historiador tem o dever e o direito de
investigar, detrás da lenda interessada, em busca da verdade, quer
dizer, pelo que realmente passou. Nós não deixaremos de fazê-lo.
Estêvão é Stephanus em latim e Stephanos em grego. Este
nome significa "coroado". Segundo a Lenda dourada, foi condenado
a morte pelo Sanedrim em 26 de dezembro do ano 35, e lapidado fora da cidade,
em Jerusalém (Atos, 7, 58). Seu corpo foi milagrosamente descoberto
em 415, milagrosamente conservado (como não!), e transportado à
Constantinopla durante o reinado de Teodosio II.
Quem era este homem? Um judeu? Ou um "helenista", quer dizer,
um judeu de cultura grega, aqueles desarraigados para quem tinha sido necessária
uma tradução a esta língua do Antigo Testamento?
É bastante difícil pronunciar-se. Os judeus, da dinastia asmonea
que surgiram dos Macabeos, e sobretudo depois de Jasón (Josué),
irmão de Onías, haviam-se helenizado com entusiasmo, até
tal ponto que, nos estádios, os jovens se deixavam ver nus, segundo
o costume grego, e com falsos prepúcios. Todo judeu de raça
possuía dois nomes, um de circuncisão, tipicamente judaico,
e outro grego. Este costume tinha passado aos idumeus, já que Saulo,
em aramaico Shaul, chamava-se também Paulo; quem levava o nome de
Josué chamava-se Jasón; Eleazar passava a ser Alexandros,
aliás André (Andrés); Jacob se convertia em lacobos
(Jaime).
Para Estêvão, aliás Stephanos, não há
nada que corresponda. Em hebreu coroa se diz kether, e ketheriel é
o Anjo da Coroa Divina. E não há nenhum nome hebreu que se
aproxime desta palavra, o mais aproximado seria Melchiel, chamado na Gênesis,
46, 17, em Números, 26, 45, e que significa "estabelecido por
Deus", ou Melchisua, filho de Saúl, o rei, chamado em I Samuel,
14, 49. Todos estes nomes derivam de Malek: rei, em hebreu, e, por analogia,
"o coroado".
Este Estêvão aparece chamado como o primeiro na lista dos "diáconos"
a quem os apóstolos transmitiram certos "poderes" a fim
de descarregar-se de suas múltiplas atividades: "E escolheram
Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo,
e a Felipe, e a Prócoro, e a Nicanor, e a Timão, e a Parmenas
e a Nicolau, partidário de Antioquia". (Atos dos Apóstolos,
6, 5.)
Todos levam nomes gregos, mas isso não prova nada, pois precisam-nos
que só Nicolau era um partidário. Portanto todos outros eram
judeus, eleição justificada pela prudência dos apóstolos,
todos eles procedentes da corrente zelote, e portanto acérrimos nacionalistas
judeus.
E temos já uma primeira observação: ao Estêvão
citam o primeiro. Por conseguinte o consideram já além de
outros. É provável que fora o vigilante dos sete, igual a
Simão-Pedro o é dos doze. Além disso, recebeu já
o Espírito Santo, de modo que só se terá que conferir
aos outros seis, conforme ao versículo 6 do capítulo 6 dos
Atos. E vigilante se diz episcope, que se converterá em nosso bispo,
mais tarde.
Se for vigilante, e chefe dos sete diáconos, poderão confiar-lhe
missões particulares e de confiança. E mais adiante, quando
houver uma praça vacante, poderá converter-se em um dos doze,
por via de sucessão. Essa é a ordem.
Particularizemos aqui previamente o que seguirá agora. Um mesmo personagem
pode entrar na história sob os nomes e as atividades diferentes.
Tudo isso depende do cronista, de sua orientação ideológica
e da finalidade que persiga. Vejamos um exemplo:
a) "Em 26 de outubro de 1440 morreu Gilles de Rais, marechal da França,
grande oficial da Coroa, antigo companheiro de guerra de Joana D'Arc, chefe
da nobreza da Bretanha. Foi exumado no convento Cármenes, em Nantes."
b) "Em 26 de outubro de 1440, às nove da manhã, no prado
de Besse, situado nos limites da cidade de Nantes, mais acima das pontes
e das bordas do Loira, foram enforcados e queimados três bruxos, assassinos
sádicos de várias centenas de meninos. Chamavam-se Henriet,
Poitou e Barba Azul."
Este último será, evidentemente, o mesmo personagem que Gille
de Rais. Mas, enquanto seus servidores e cúmplices eram queimados
vivos, porque eram plebeus, enforcaram-lhe primeiro, e logo submeteram seu
corpo brevemente ao fogo que tinham aceso debaixo da forca: "antes
de que o corpo se rache, abrasado pelo fogo, será retirado e levado
em uma urna a uma igreja de Nantes que o condenado terá designado".
Isto, em virtude da nobre condição do responsável por
tantas atrocidades.
O cronista que ao cabo de mil anos se encontrasse em presença dos
dois textos, aparentemente sem relação entre si, como o reconheceria,
ante semelhantes contradições?
O mesmo acontece com Estêvão, e vamos ver. Tomemos a Guerra
dos judeus, de Flavio Josefo, em seu manuscrito eslavo: "E uma desgraça
se acrescentou à outra. Uns bandidos, no caminho de Beth-Horon, causaram
ferimentos em um tal Stephanos. Cumano mandou soldados aos povos vizinhos
e fez encadear seus habitantes: "por que não perseguistes aos
bandidos, por que não os capturastes?". Ali um soldado encontrou
um livro da Lei Santa, pisoteou-o e o atirou ao fogo. Os judeus, imaginando
todo o país entregue às chamas, unidos por sua piedade como
por cadeias, correram todos com uma mesma proclamação: "Ou
morrer, ou matar ao soldado!". Todos reunidos, suplicaram ao procurador
que não o deixasse impune depois de ter cometido semelhante pecado
contra Deus e a Lei. Este, vendo que não se acalmariam se não
obtinham satisfação, condenou-o a morte. Os judeus, vingados,
foram-se". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo,
II, 5, tradução de Fierre Pascal, professor na Sorbone, Éditions
du Rocher, Mônaco, 1964.)
Tomemos agora a mesma passagem, todavia, do manuscrito grego:
"Logo que tinha passado esta aflição, quando foi seguida
por outra. Um criado do imperador, chamado Estêvão, que conduzia
alguns móveis muito valiosos, foi assaltado perto do Beth-Horon.
E Cumano, para descobrir quem tinham cometido esse roubo, enviou a que capturassem
aos habitantes dos povos próximos. Um de quão soldados formavam
parte de tal expedição, ao encontrar em um desses povos um
livro no que estavam escritas nossas santas leis, rompeu-o e o queimou.
Todos os judeus desta região não se sentiram menos irritados
que se tivessem visto incendiar todo seu país. Reuniram-se em um
momento e, impulsionados pelo zelo de sua religião, correram à
Cesaréia para encontrar Cumano, para lhe rogar que não deixasse
impune um tão grande ultraje contra Deus. Como o governador julgou
que seria impossível acalmar a esse povo se não lhe dava satisfação,
mandou prender e executar tal soldado em sua presença; e assim se
apaziguou o tumulto". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito
grego, II, XX, tradução de Amault d'Andilly, Éditions
Lidis, Paris, 1968.)
Aqui observamos diversas contradições:
a) Cumano, o procurador, ordenou deter e encadear aos habitantes dos povos
vizinhos por não ter ajudado ao tal Estêvão, a quem
tinham atacado e feito mal (matado) uns bandidos? Ou os tratou assim por
cumplicidade?
b) Quando se detinha, e especialmente quando se encadeava à população
inteira de um povo, essa medida ia imediatamente seguida de sua deportação.
Esse foi o caso dos habitantes da Giscala, pátria dos pseudo-familiares
judeus de Saulo-Paulo. E nesse caso era devido a quem prestaram ajuda aos
guerrilheiros zelotes. E o termo de "bandidos" utilizado por Flavio
Josefo, sempre se aplica à estes. Então, se os aldeãos
se negaram a intervir, ou possivelmente inclusive ajudaram e encobriram
aos citados bandidos, é que não se tratava de criminosos de
direito comum. Sem lugar a dúvidas devia tratar-se de um bando zelote.
c) Não obstante, sabemos pelos Atos dos Apóstolos (7, 58,
e 8, 1) que Saulo-Paulo tinha participado do assassinato de Estêvão.
E as Antigüidades judaicas nos mostram desempenhando o papel e as atividades
de um feudal que vivia do banditismo: "Costobaro e Saulo reuniam também
ao redor uma multidão de gente perversa; eles eram de raça
real e muito apreciados por causa de seu parentesco com o rei Agripa, mas
eram violentos e estavam dispostos a apoderar-se dos bens dos mais débeis".
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, manuscrito grego, XX, 214.)
Este Saulo é, pois, o dos Atos, que "tinha sido criado pelo
Herodes o Tetrarca" (13, 1), e sobre quem já demos todas as
explicações neste particular. Portanto foi ele quem fez matar
ao Estêvão, aliás Stephanos, por seus homens, e não
os zelotes. E isto aconteceu no caminho que vai de Jerusalém à
Lydda, mais exatamente para o Beth-Horon, cidade dupla, situada a 20 Km.
de Jerusalém.
Esta cidade se dividia em dois grupos urbanos diferentes: a Alta Beth-Horon
e a Baixa Beth-Horon. Ambas estavam situadas na antiga fronteira dos reinos
de Judá e de Israel, e ambas foram construídas pela Sera,
filha da Beria, filho de Efraim, nos tempos das doze tribos (I Crônicas,
7, 24). A Baixa Beth-Horon, que foi destruída no curso das guerras,
foi reconstruída por Salomão (I Reis, 9, 17). Antes, como
eram cidades filisteas, tinham sido totalmente pagãs. As ruínas
se encontram na atualidade em Jordânia, a uns poucos quilômetros
do Emaús, ao nordeste.
Foi, pois, a poucos quilômetros de Jerusalém, no caminho que
vai para o Beth-Horon, onde ao Estêvão "causaram dano"
uns bandidos mandados pelo Saulo, príncipe herodiano de sangue real
e "salteador de caminhos", à maneira de alguns de nossos
feudais medievais. Desgraçados os judeus de Jerusalém, e seu
Sanedrim, não tiveram nada a ver com sua morte. Mas na época
em que o escriba, provavelmente sírio, redige os Atos, e em especial
este episódio, quer dizer no século IV, o Império romano
é cristão, tanto se quiser como se não, e seus imperadores
não brincam com a ortodoxia, e menos com a sua. Os judeus se dispersaram
por todo o Império desde Adriano e a derrota de Simão-bar-Koseba
no ano 135. E lhes pode atribuir todos os crimes imagináveis. Entre
Saulo-Paulo, árabe idumeu, e os judeus, nossos escribas árabes
sírios não vacilam. A milenária animosidade continua.
Mas este Estêvão, aliás Stephanos, era realmente um
criado do imperador, quer dizer, de Claudio César? Em caso afirmativo,
devemos nos expor ainda algumas questões molestas:
1) Neste caso não pode tratar-se mas sim de um liberto. E então
tem, pelo menos, dois nomes: o praenomen, quer dizer seu nome distintivo,
e o nomen, o nome da família, e possivelmente o cognomen, que é
o nome que relaciona o indivíduo com uma coletividade. Os libertos
acrescentavam a seu praenomen o nome do "amo" que os tinha liberado.
Se mais adiante tinham a honra de converter-se em cidadãos romanos
(civis romanus), acrescentavam o praenomen do imperador que reinava. Esses
eram os tria nomes romanos.
Por exemplo, Palante, o célebre liberto, que foi um dos amantes de
Agripina, chamava-se Claudii libertas Pallas. Narciso, a sua vez, chamava-se
Claudii libertus Narcissus. No caso da cidadania romana, tomava deste modo
o nome do imperador que reinava. O tribuno Lisias se chamava, por exemplo,
Claudios Lysias.
Mapa da Palestina Século I
No caso de nosso Stephanus (e não Stephanos, se era criado do César),
ignoramos seus outros nomes. Neste suposto, é plausível que
o imperador que reinava, Claudio César, enviasse a Judéia
a um servidor de seu palácio imperial, para que lhe levasse uns móveis,
quando uma simples carta ao governador da província de Síria,
transmitida ao procurador da Judéia, seu subordinado direto, e uma
ordem deste a um oficial ordinário, teriam permitido enviar ao imperador,
sem nenhuma dificuldade, os móveis solicitados?
2) Quais eram esses estranhos e luxuosos móveis que só a Judéia
podia proporcionar ao imperador? Perderíamo-nos inutilmente em conjeturas
a respeito, porque em Roma havia tudo que era necessário. Quanto
mais que a palavra empregada por Flavio Josefo significa, em grego, tanto
móveis como valiosos vasos.
3) por que o manuscrito eslavo ignora todos estes detalhes? A resposta é
fácil. Os manuscritos de Flavio Josefo de que dispomos são
todos da Idade Média, não há nada antes. É evidente
que os escribas que os copiaram nesta época, ao atuar muito longe
uns dos outros, com suas censuras, interpolações e extrapolações,
não falando a mesma língua, não conhecendo sequer,
ao transcrever, corrigir, suprimir, em épocas diferentes, sem tão
somente conhecer os trabalhos análogos de seus colegas longínquos,
de seus predecessores, não puderam sincronizar seus "acertos".
Agora é isso o que os perde e revela seus enganos. Se tivéssemos
a sorte de encontrar um original de Flavio Josefo, não faltariam
as surpresas.
A conclusão de tudo isto é muito singela.
Saulo-Paulo e seu irmão Costobaro, "príncipes de sangue
real", são não só um pouco bandidos se se apresentar
a ocasião, como vimos, mas sim, além disso, Saulo é
também o chefe de uma polícia paralela, sob as ordens de Herodes
Agripa I. Isto é o que se deduz da leitura atenta dos Atos dos Apóstolos,
como já mostramos acima.
Inteirou-se da missão de um tal Stephanos, homem de confiança
e subordinado oficial de Simão-Pedro e dos ajudantes de Jesus, na
região de Beth-Horon, ou inclusive mais longe, para Lydda. Sabia
que este Stephanos era um agitador. Foi a seu encontro, ou lhe perseguiu.
Stephanos já se encontrava no lugar, ou tinha uma escolta. Teve tempo
de voltar, ou ele mesmo, com a ajuda de prodígios pseudo-mágicos,
ou seus próprios subordinados, à população de
um ou dois povos próximos ao Beth-Horon. E Saulo-Paulo se teve que
enfrentar com uma autêntica sublevação camponesa. Ao
retornar a Jerusalém, poria à corrente ao procurador Cumano,
quem enviaria várias centúrias de legionários a reprimir
a tentativa de rebelião zelote.
Enquanto isso, ao Stephanos ou lhe decapitariam no mesmo lugar e enviariam
sua cabeça ao Cumano, conforme era costume entre os romanos, ou o
capturariam, conduziriam-no à Jerusalém, e a seguir seria
crucificado, como se costumava fazer com os militantes zelotes que eram
feitos prisioneiros. Esta execução não se situa em
modo algum nos anos 33 ou 36, como pretende falsamente o escriba anônimo
dos Atos, ao situar a morte de Estêvão-Stephanos imediatamente
depois da morte de Jesus.
Porque Ventidio Cumano foi procurador em finais do ano 47; sucedeu ao Tibério
Alexandre, até o ano 51, ano em que foi substituído por Antonio
Félix. A morte de Estêvão situa-se, pois, como muito
em breve em finais do ano 47. E no mesmo ano 47, mas alguns meses antes,
sob o Tibério Alexandre como procurador, foram crucificados em Jerusalém
Simão-Pedro e Jacobo-Santiago. Sobre o período que viu o trágico
fim dos irmãos e ajudantes de Jesus-bar-Juda, remetemos à
próxima obra, cujo manuscrito está quase terminado, e que
porá ordem nas lendas "interessadas"...
Tudo isto se situa no período de agitação zelote que
coroa o famoso sínodo de Jerusalém, e no curso do qual os
mais humildes sofreram da fome que açoitou não "toda
a terra", como se faz dizer Flavio Josefo, a não ser somente
a Palestina, a conseqüência das inumeráveis insurreições:
"Naquele tempo açoitou a Judéia uma grande fome, durante
a qual a rainha Helena comprou muito caro o trigo ao Egito e o distribuiu
àqueles que o necessitavam". (Cf. Flavio Josefo. Antigüidades
judaicas, XX, 101; XXX, XV, 3, e XX, II, 6.) A rainha da Abdiadena, Helena,
converteu-se ao judaísmo.
Mas todos os historiadores reconhecem que é muito difícil
situar os acontecimentos deste período. Nem sequer estão de
acordo nas datas do exercício dos diferentes procuradores.
Alguns, como é lógico, nos vão perguntar onde está
a prova, no texto de Flavio Josefo, da presença de Saulo, príncipe
herodiano, chefe da polícia paralela, no caminho de Jerusalém
ao Beth-Horon, o dia em que se causou ferimentos em Stephanos-Estêvão.
Os Atos dos Apóstolos nos dizem (8, 1) que Saulo tinha aprovado esse
assassinato. Portanto, desempenhou um papel decisivo neste caso, quando
teve que determinar a morte de Estêvão. Por último resolveu
a questão sobre a sorte que lhe esperava.
Pois bem, as Antigüidades judaicas de Flavio Josefo e os Atos dos Apóstolos
se confirmam e se esclarecem mutuamente no referente ao papel e à
importância de Saulo-Paulo: "Costobaro e Saulo tinham também
consigo grande número de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue
real e parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração.
Mas eram violentos e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis."
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, VIII.)
"Saulo devastava a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e
mulheres e os fazia encarcerar... Não obstante, Saulo, respirando
ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-se
ao supremo sacerdote pedindo-lhe cartas de recomendação para
as sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava a quem seguisse esse
caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém."
(Cf. Atos dos Apóstolos, 8, 3, e 9, 1-2.)
Terei que ter muita má fé para não reconhecer aqui
a um só e mesmo personagem. Por outra parte, ao Estêvão
matam "fora da cidade" de Jerusalém (Atos, 7, 58), e ao
Stephanos causam ferimentos "no caminho do Beth-Horon", segundo
o manuscrito eslavo, e "perto do Beth-Horon", segundo o manuscrito
grego de Flavio Josefo. Entre Jerusalém e Beth-Horon há 20
quilômetros no máximo.
Ao Estêvão, nos Atos dos Apóstolos, lhe chama Stephanos
nos manuscritos gregos originais destes. E agora sabemos que Saulo-Paulo
é responsável por sua morte. Como não reconhecer aí
simplesmente uma história em duas versões diferentes?
E se o Stephanos dos Atos tem ao Saulo como responsável por sua morte,
fora de Jerusalém, o Stephanos das Antigüidades judaicas tem
ao mesmo Saulo como chefe dos assassinos, fora de Jerusalém, no caminho
de Beth-Horon.
E portanto, a repressão romana que sucedeu a sua execução
demonstra que o tal Estêvão era um agitador zelote. E todas
essas execuções, repitamo-lo uma vez mais, inserem-se no período
que vai do ano 44 aos 63 de nossa era, a maior parte das quais foram entre
o 44 e o 47. Um depois de outro, os irmãos e os ajudantes de Jesus,
seus filhos, seus sobrinhos, irão desaparecendo, decapitados ou crucificados.
A quem poderá fazer-se acreditar que Roma, tão tolerante em
matéria religiosa, tão respeitosa inclusive com o culto judaico,
não levou a cabo simplesmente uma repressão desumana contra
um movimento de insurreição que, evidentemente, era-o, mas
que se justificava pelo próprio excesso das requisições
romanas, os impostos, os tributos, quer dizer, um verdadeiro banditismo
administrativo, perfeitamente organizado?
Mas a morte de Estêvão continua constituindo uma chave que
nos vai permitir chegar à umas constatações ainda mais
importantes que a retificação histórica objeto deste
capítulo. Com efeito, indiretamente nos confirmará tudo o
que já descobrimos em relação à verdadeira personalidade
de Saulo-Paulo.
O descobrimento do combate em Beth-Horon nos contribui uma prova a mais
das incoerências, para não dizer das mentiras, que servem de
trama geral aos pseudo Atos dos Apóstolos. Raciocinemos um pouco.
Segundo esses mesmos Atos, Saulo está em Jerusalém no ano
36 de nossa era, e ali assiste à lapidação de Estêvão.
Então é um jovem adolescente (adolescente: Atos, 7, 59) É
aluno de Gamaliel (cf. Atos, 22, 3), e muito anti-cristão (pp. cit.,
8, 1-3).
Como admitir então que não conhecesse Jesus, e especialmente,
que não tivesse assistido a sua crucificação, se esta
teve lugar no ano precedente nessa mesma cidade de Jerusalém?
Mas é óbvio que Saulo jamais tinha visto Jesus, basta lendo
suas Epístolas e os Atos dos Apóstolos para convencer-se,
e nenhum apócrifo do Corpus paulinum fala jamais de tal encontro.
Por conseguinte, vemo-nos induzidos a concluir que:
1) a morte de Estêvão não teve lugar em Jerusalém
no ano 36;
2) nesse mesmo ano 36 Saulo não era aluno de Gamaliel, em Jerusalém.
Então tem uns treze anos e vive em Tiberíades ou em Cesaréia
Marítima, no seio de sua família herodiana, com o Herodes
Agripa II e Menahem;
3) no ano 36, como já se disse, Estêvão teria morrido
sob Pilatos ou Marcelo, procuradores, em troca morreu sob o Cumano, que
foi procurador no ano 47, quer dizer, onze anos mais tarde;
4) se nos anos 36-37, como se diz, estivesse a mando de uma tropa supletiva
sob as ordens do grande rabino Gamaliel (Atos, 8, 3, e 9, 1), Saulo necessariamente
teria participado com sua tropa no Monte das Oliveiras e na captura de Jesus.
Entretanto, jamais ninguém sustentou tal coisa;
5) não é possível que os judeus tivessem no ano 36
o direito de condenar a morte ao Estêvão por ter blasfemado,
já que não tinham esse direito com Jesus, no ano 34, para
o mesmo tipo de acusação: "Os judeus responderam ao Pilatos:
"Não nos está permitido dar morte a ninguém"".
(João, 18, 31.) Com efeito, o jus gladii foi retirado no ano 30,
no âmbito religioso, e logo que chegaram os primeiros procuradores,
no ano 9, também foi no âmbito do direito comum.
Não deixa de ser surpreendente o fato de que os exegetas das grandes
igrejas oficiais jamais chegassem a tais constatações, ou,
de fazê-las, que acreditassem que seu dever era calarem-nas. A menos
que tais constatações tivessem desembocado em última
instância à solução de Leão X, que citamos
como epígrafe ao começo da presente obra!
Segunda parte
Paulo, que criou Cristo
Eu, eu sou o eterno, e fora de mim não existe nenhum salvador.
Isaías, 43, 11
Se junto consigo surge um profeta, que mostre um sinal ou um prodígio
e, havendo-se completo o sinal ou o prodígio, diga: "Sigamos
a outros deuses" que seus pais não conheceram, não escute
a esse profeta.
Deuteronômio, 13, 1-3
13 - A RELIGIÃO PAULINA*
*[Algum crítico "racionalista" e partidário da inexistência
de Jesus, ao nos reprovar -coisa curiosa- que tivéssemos evocado
alguns aspectos de um Jesus guerrilheiro, declara: "Ao senhor Ambelain
lhe faltou nos explicar como lhe pôde emprestar um ensino moral, assimilá-lo
ao Logos e ao "pão da vida", etc. Esses problemas são
escamoteados, e isso é burlar do leitor".
Aí vai nossa resposta...]
Para que uma religião seja apreciada pelas massas, necessariamente
tem que guardar algo do gosto à superstição" G.-C.
Lichtenberg, Aforismos
É seguro que Saulo-Paulo jamais estudou a religião judia "aos
pés de Gamaliel", o doutor supremo, tal como ele pretende -ou
como lhe faz dizer- nos Atos dos Apóstolos (22, 3). Ignora completamente
suas sutilezas. Quando declara, depreciativo: "Acaso Deus se ocupa
dos bois?" (cf. I Epístola aos Coríntios, 9, 9), raciocina
como bom idumeu, como árabe, mas não como filho de Israel.
Senão, recordaria as prescrições de Moisés em
relação aos animais, prescrições cheias de uma
piedade e uma doçura totalmente estranhas à época em
que foram ditadas e aos povos que eram então vejam-nos inimigos de
Israel. Citemos simplesmente, para não sobrecarregar este capítulo:
Gênesis, 9, 9; Êxodo, 23, 5, 12 e 19; Deuteronômio, 22,
10, etc. E o animal ao que se sacrifica ou ao que se imola não deve
sentir a morte, para isso, o fio da faca não tem que ter defeito
algum, já que o animal não deve sofrer absolutamente. Do contrário,
a carne é impura e não é apta para o consumo.
Convenhamos que, para a época de sua promulgação, semelhante
lei implicava um avanço moral considerável em relação
às leis em vigor. Esta benevolência para nossos irmãos
inferiores a herda Moisés do antigo o Egito. O cristianismo, ao ser
paulino de origem, ignorará tudo isso...
Do exame dos textos atribuídos a Saulo-Paulo resulta que jamais conheceu
as Escrituras judias de outro modo que não fora através de
sua versão grega, chamada dos Setenta, utilizada pelos Gentis que
se aderiram à religião judia, quer dizer, os partidários,
os "temerosos de Deus". Agora bem, se estudassem, e durante longo
tempo, claro está, "aos pés de Gamaliel", rabino
do Israel, os cursos de teologia teriam tido lugar em aramaico, sobre textos
hebreus. Charles Guignebert analisou perfeitamente o significativo comportamento
de Saulo-Paulo: "Quando voltar a ficar em contato com palestinos puros,
embora sejam cristianizantes, reinará a incompreensão mútua
e a desavença. Isto também é significativo. E minha
impressão global sobre sua cultura judia é, em definitivo,
a mesma que, parece resultar de sua cultura grega: o rabinismo de Paulo
é superficial, e nem sequer lhe inculcou esse respeito à ciência
sagrada que era sua própria razão de ser. Dir-se-ia que aos
verdadeiros rabinos, aos fariseus puros, só os vê através
de um prisma que os deforma, e não me surpreenderia que fora, em
efeito, assim". (Cf. Ch. Guignebert, O Cristo, V.)
Por outra parte, suas origens sociais elevadas, pertencente à aristocracia
Iduméia dos Herodes, têm-lhe feito considerar o Império
romano de maneira muito distinta como o fazia um judeu autêntico,
quem via na ocupação romana, nas exações de
seus procuradores, nesse banditismo administrativamente organizado, uma
prova desejada por Deus, e portanto passageira, mas insuportável,
imposta ao povo eleito por Deus para servir de modelo às nações
pagãs.
Esta pesada ocupação não lhe incomoda, pois para ele
o Império romano é uma potência positiva, que proporcionou
a fortuna a sua família; e também, quando escravo hebreu tinham
que lhe deixar obrigatoriamente em liberdade ao cabo de sete anos de serviços
(Êxodo 21, 2), já que o sétimo lhe contribuía
a liberdade, Saulo-Paulo não teve uma só palavra de condenação
para esse açoite social que é a escravidão. E mais,
expõe como princípio que toda autoridade, seja a que for,
foi decidida por Deus (Epístola aos romanos, 13, 1-7). Tudo que constitui
função das autoridades, magistrados, tudo isso é vontade
de Deus, e "para isso pagam impostos!". Alguém se imagina
sem dificuldade às reações dos desgraçados judeus,
explorados e espremidos por Roma, ante tão cínicas afirmações.
Por outra parte, suas origens principescas, sua qualidade de cidadão
romano, suas anteriores atividades de rapina feudal, bandido quando se apresentava
a ocasião, suas antigas funções de chefe de polícia
supletiva, fazem-lhe desprezar ao povo judeu, disposto a rebelar-se contra
o ocupante romano. Como se sentia secretamente odiado e desprezado pelas
massas judias, suas simpatias se inclinavam para os gentis.
De tudo isto se ressentirá a doutrina que pouco a pouco irá
formulando, de cara à realização de um plano que acaricia
profundamente e que logo abordaremos. Além disso, sua formação
religiosa é inicialmente pagã em sua infância. Embora
a Iduméia estivesse integrada na província da Judéia
dos reis asmoneos, só é judia na imaginação
daqueles. Ali abundam os templos pagãos, e é testemunho o
de Ascalón, em que era sacerdote um de seus antepassados diretos.
De maneira que para Saulo-Paulo essa doutrina que começa a formular
em si mesmo refletirá, inconscientemente, suas passadas crenças.
Não pode assimilar o estrito monoteísmo de Israel. E assim,
também inconscientemente, transporá o trinitarismo pagão
dos velhos cultos de Nabatea contemporânea, ainda latente na Iduméia,
em um trinitarismo bem próprio.
Embora carecia de uma cultura inicial, fez um descobrimento que revestiu
importância para ele: conheceu as obras de Filón de Alexandria.
Filón era tio de Tibério Alexandre, procurador romano no ano
47, na Judéia. Recordemos que foi ele quem estava em funções
em Jerusalém no momento em que teve lugar o primeiro sínodo
em tal cidade; foi ele quem fez crucificar Simão-Pedro e Jacobo-Santiago
naquela época. Além disso, Paulo se familiarizou com os rudimentos
da gnosis através de Dositeo, que então se achava em Kokba,
pouco antes de Damasco.
Saulo-Paulo viu o resultado das mesclas político-religiosas com a
tragédia zelote. Não ganhava nada atacando Roma no plano material.
E tampouco tinha nenhum interesse, mas bem ao contrário. Em troca,
com uma doutrina sedutora, que recolhesse os temas que até então
tinham atraído sempre aos pagãos cultos, pregando uma doutrina
que recordasse a dos "mistérios" aos que estavam acostumados
os gentis, descartando tudo aquilo que pudesse fazer levantarem-se contra
os poderes temporários, obrigando aos fiéis a viver como indivíduos
submetidos e dóceis, tinha-se a possibilidade de reunir muita gente.
Fazendo-o assim, podia criar um verdadeiro império "espiritual",
com uma capital, províncias regidas por governadores também
"espirituais", e que vigiassem uns missi domini perfeitamente
sérios. Tal império existia já, e era o da Diáspora
judia, sobre o que reinava o supremo sacerdote de Israel, quem não
somente dispunha de poder de jurisdição, mas também
de extradição, e que recebia desde muito longe os impostos
e os dízimos. E para Saulo-Paulo esse era o único refúgio.
Com efeito, ao fazer-se circuncidar e ao converter-se oficialmente ao judaísmo,
cortou com suas origens árabes. O exemplo de Silaios, o intendente
geral de Aretas, rei de Nabatea, ao recusar deixar-se circuncidar, como
lhe pedia astutamente Herodes, para poder casar-se com Salomé I,
irmã deste último, porque temia que lhe lapidassem seus compatriotas
prova-o. Por outra parte, e como já vimos, Roma não admitia
a circuncisão para quão gentis abraçavam o judaísmo.
Continuando, e em virtude da Lex Cornelia, imperadores como Adriano e Antonino
o Piedoso, proibiram formalmente tal rito mediante a publicação
de decretos. Aos homens livres que se fizessem circuncidar lhes esperavam
penas diversas, como expulsão, confisco dos bens ou pena capital.
Nos tempos de Saulo-Paulo ainda não regia tanta severidade, mas os
romanos já mostravam um rechaço formal para todo latino ou
grego que passou ao judaísmo. De maneira que encontramos a nosso
homem não só separado do mundo idumeu e nabateo, mas também
do romano e do grego. O que podia fazer? Integrar-se aos zelotes, entre
os messianistas, dirigidos pelos "filhos de David"? Nem pensar.
Não tinha nenhum futuro! Os primeiros postos estariam sempre reservados
aos verdadeiros "filhos da Aliança", aos escolhidos de
Yavé. De modo que Saulo-Paulo só fará que lhe admitam
momentaneamente. Desta decisão nascerão contatos episódicos,
que só durarão algum tempo, com Simão-Pedro e Jacobo-Santiago,
tal como nos contam isso os Atos dos Apóstolos. Logo, quando os chefes
messianistas forem progressivamente eliminados pelas legiões romanas
da maneira que agora sabemos, nosso homem poderá ao fim voar com
suas próprias asas. No período preparatório terá
tempo de introduzir-se, de familiarizar-se com os princípios e as
tradições da nova corrente "cristã".
Fica o problema de uma doutrina que lhe permita apresentar-se como portador
de uma mensagem de salvação. Já dissemos antes que
teve conhecimento da obra de Filón de Alexandria, um extenso trabalho
no qual o autor apresenta uma interpretação alegórica
do Pentateuco, especialmente em seu Nomon hieron allegoriai. Sobretudo tem
a originalidade, sendo judeu de nascimento, de atrever-se a afirmar que
Deus não estabelece nenhuma diferença entre os homens, que
não é o nascimento o que confere a nobreza, a não ser
a sabedoria e a virtude. Todos os que se separam da idolatria para ir ao
verdadeiro Deus são membros do autêntico Israel, que não
é o da carne e o nascimento. E para Filón, que expressava
pela primeira vez este ensino secreto dos doutores da Lei, esta espécie
de cosmopolitismo do judaísmo é a garantia de que constitui
a verdadeira e a melhor das religiões.
E isto encherá de gozo a nosso Saulo-Paulo. Sua concepção
de Jesus-Messias, que estranha em especial aos zelotes, como ao Simão-Pedro,
quem nas Homilias Clementinas lhe replica que Jesus jamais se pretendeu
Deus, poderá elevar-se, graças à Filón, ao nível
do Logos platônico, do Verbo divino, e lhe permitirá relegar
o Metatrón-saar-ha-Panim dos cabalistas a segundo plano. Porque Saulo-Paulo
não inventou nada neste terreno; quando prega o Verbo é Filón
quem fala. Agora vamos poder julgá-lo.
Para Filón, o Logos emana de Deus, não é uma criatura
como o Metatron. É a primeira criatura de Deus (uios prologónos),
é sua imagem (eikon), sua cópia (apeikoniosma), outro deus,
sua réplica (eteros Oeos, deuteros Oeos). É o porta-voz e
o mensageiro do Altíssimo (Logophoros, aggelos).
Por outra parte, esse Logos é além disso o mediador entre
os homens e Deus, é o supremo sacerdote, o suplicante (iketés)
do Mundo, e é nesse papel como lhe representa diante de Deus. É
também o arquétipo inicial sobre o que foi concebido o homem
terrestre, o Homem em Si, feito à imagem divina (o' kat' eixona ánaropos,
a arétupos toü aitiou).
Além disso, para Filón o mal não vem de Deus, contrariamente
à teologia rabínica. Procede da Matéria, dos poderes
espirituais inferiores, dos logoi secundários, necessariamente imperfeitos,
que o configuram por ordem de Deus. Nesta Matéria, informe e inerte,
plasticidade coeterna a Deus, infundiram o espírito de vida (o noús),
para organizá-lo.
Reconheceremos que tudo isto se encontra integralmente nos ensinos paulinos.
Por último, ao lado de Filón da Alexandria, Saulo-Paulo justaporá
uma teoria da salvação que adotará do orfismo. Antes
de passar a um breve estudo deste, convém precisar que nosso apóstolo
ocasional causará escândalo, um escândalo enorme entre
os judeus, que enuncia com a glorificação da cruz patibular
em que morreu Jesus-bar-Juda.
Em nossa obra precedente já tínhamos demonstrado que jamais
se fez alusão alguma, no Antigo Testamento, a um salvador espiritual
diferente do próprio Deus, mas bem ao contrário, pois semelhante
crença era já formalmente desmentida de antemão. E
afirmar que esse salvador, que plagiava a obra de Yavé, tinha descendido
aos mais baixos limites da última degradação, constituía
para os judeus ortodoxos uma autêntica blasfêmia. Porque no
Deuteronômio lemos o seguinte: "Quando em um homem há
um pecado que o faça réu de morte, seja condenado a morte
e pendura-o numa árvore; não deixará seu cadáver
toda a noite na árvore, mas sim o sepultará o mesmo dia, porque
um enforcado é uma maldição de Deus, e você não
deve poluir a terra que Yavé, seu Deus, vai dar por herança".
(Deuteronômio, 21, 22-23.)
Terá que recordar que o enforcado libera seu sêmen. E os bruxos
e bruxas foram recolher essas mandrágoras preciosas que cresciam
ao pé dos patíbulos, já que estavam impregnadas do
esperma dos pendurados. E logo se serviam dele para seus malefícios.
Por outra parte, os crucificados, tanto se estavam atados como se estavam
cravados a sua cruz, manchavam o bosque, seus membros inferiores e o chão,
com seus excrementos sólidos e líquidos. Por conseguinte,
imaginar que um "liberador" terminasse assim sua vida era algo
impensável.
E agora podemos voltar para orfismo.
Para Saulo-Paulo, Jesus, filho de David, morto na cruz por sentença
romana como condenação a diversos atos considerados delitivos
em grau supremo pelas leis romanas, ofereceu-se ele mesmo como sacrifício
para acalmar a cólera de seu Pai Celestial Yavé. Isto devia
assombrar grandemente aos meios apostólicos iniciais, e aos irmãos
de Jesus em particular. Porque jamais no curso dos evangelhos, jamais tal
Jesus declarou que sua morte (que ele sabia que era inevitável e
dolorosa, e que devia ter lugar em Jerusalém) tivesse por objetivo
liberar à humanidade de uma dívida para seu Pai celestial
e acalmar sua cólera.
E isto Saulo-Paulo o tira dos mistérios órficos. Já
que se fosse realmente judeu, educado "aos pés de Gamaliel",
não ignoraria esta condenação pronunciada de antemão
contra os sacrifícios humanos pelos profetas e em nome do Eterno,
mesmo que tais sacrifícios se realizassem em sua honra:
"Os filhos de Judá construíram a altura do Tofet, que
se encontra no vale do Ben-Hinnón, para queimar no fogo a seus filhos
e filhas, coisa que eu não mandei e que jamais me passou pela mente."
(Jeremias, 7, 31.)
"Apresentaram suas oferendas, que me irritaram... Ao apresentar suas
oferendas e ao fazer passar através do fogo a seus filhos lhes poluem..."
(Ezequiel, 20, 28-31.)
"... nem profanarão mais meu santo nome com seus dons e com
seus ídolos..." (Ezequiel, 20, 39.)
"Não me são gratos seus holocaustos e não me agradam
seus sacrifícios..." (Jeremias, 6, 20.)
"por que me oferecem tantos sacrifícios? Diz Yavé. Estou
farto dos holocaustos de carneiros e do óleo dos bezerros; o sangue
dos touros, cordeiros e bodes não me são gratos. Quando vêem
meu rosto, quem solicita tais coisas de vós, que pisoteiem meus átrios?...
Suas mãos jorram sangue! lhes lave e lhes purifiquem..." (Isaías,
1, 11-16.)
"Porque eu quero amor, não sacrifícios..., e o conhecimento
de Deus mais que os holocaustos..." (Oseas, 6, 6.)
O que pensar então de um sacrifício humano?
Objetar-se-á que, não obstante, segundo o ritual judaico se
perpetravam no Templo sacrifícios sangrentos de animais. É
certo. Mas esquecemos de recordar que essa foi uma das causas da fundação
da seita essênia, que os condenava. Por outra parte, a casta sacerdotal
estava em grande parte em mãos dos saduceus, fração
rica da população, materialista como é natural (rechaçava
a crença em um destino post mortem para a alma), e semelhantes sacrifícios
representavam para os sacerdotes saídos dela uma bonita margem de
proveitos.
Paralelamente, tais sacrifícios sangrentos não incomodavam
absolutamente a Saulo-Paulo. Eram normais na maioria dos cultos pagãos.
E na Arábia nabatea, vizinha imediata de sua pátria, Iduméia,
a trindade divina adorada pelos árabes nabateus os incluía,
especialmente seu Dusares, idêntico ao Dionisos, durante os Actia
Dusaria, essas grandes festas no curso das quais cativos e escravos viam
regularmente e em datas fixas impregnar com seu sangue os altares de tal
trindade: Dusares, entre suas duas companheiras deusas, Ouzza, desdobramento
de Ateneu e Afrodite. Acima deles reinava Beel-Samin, o pai celestial, o
senhor dos céus. Segundo testemunho de Epífano (cf. Panarion),
Dusares nascia em 25 de dezembro de uma virgem mãe chamada Kaabou.
Tudo isto, quer dizer, o füonismo, o dusarismo e o orfismo constituíram
uma abundante corrente sincretista no espírito de Saulo-Paulo. E
vamos agora estudar este último, já que nosso amigo condottiere,
doutor em teologia por causa de uma pena amorosa, o que faltava a um encontrava
em outro. O que lhe permitia poder apresentar sempre um aspecto válido
de seu "evangelho" aos gentis de todas as nacionalidades. Exceto
aos judeus de boa classe, claro está.
O orfismo nos apresenta em duas épocas que mostram uma indiscutível
mutação progressiva. Já no século V antes de
nossa era Herodes faz alusão a isso; logo é Platão,
no século IV A. C., e Aristóteles, na mesma época,
e por último o peripatético Eudemio. Mas a única certeza
que nós possuímos é o testemunho de dois papiros do
Egito, bastante mutilados por certo, que datam um do século III e
outro do II antes de nossa era, e que nos contribuem o primeiro fragmento
de um ritual órfico, e o segundo uma versão de um relato ritual
relativo ao seqüestro de Perséfone.
Para a segunda época do orfismo estamos muito melhor dotados, já
que os documentos são muito mais numerosos, e abrangem desde princípios
do século II de nossa era a finais do IV, época em que as
religiões pagãs ficam fora da lei, os templos são fechados,
as escolas iniciáticas proibidas, sob pena de castigos muito graves.
Vamos, pois, resumir em poucas linhas os ensinos órficos.
As afinidades do orfismo com o cristianismo paulino são, com efeito,
bastante numerosas e bastante surpreendentes. É uma religião
revelada, que tem seus profetas, seus livros sagrados. O deus a cujo redor
gira o ensino esotérico sofre, morre e ressuscita, glorioso, junto
ao Deus Supremo, seu pai. Garante à seus fiéis a redenção
de uma mancha original, e uma união perfeita, em total comunhão
neumatológica, com a divindade salvadora. Os não iniciados
são ameaçados, em função de quão pecados
não purgaram, com intermináveis suplícios no outro
mundo.
O orfismo prega uma vida de pureza e de ascetismo, e considera a existência
terrestre como uma prova dolorosa, que a alma deve atravessar purificando-se
mediante a observação de uma moral rigorosa e de ritos ao
mesmo tempo culturais e catárticos. Como sempre em tais campos, o
orfismo possui uma esoteriologia. Vejamos aqui um resumo, que expõe
muito mais longamente aos mystes órficos o tradicional hieros logos,
ou discurso sagrado, de todas as religiões com mistérios do
mundo antigo.
A filha de Deméter e de Zeus, Perséfone, foi raptada pelo
Hades. Liberada em parte por seu pai Zeus, teve com ele, em uma união
sagrada (hierogamia), um filho, um jovem deus chamado Dionisos-Zagreus.
A este filho divino lhe prometeu o governo do Universo. Mas uns deuses inferiores,
os Titãs, conseguiram apoderar-se do Zagreus menino, e repartiram
sua carne a fim de divinizar-se ainda mais. Como castigo a semelhante crime,
Zeus fulminou aos Titãs, mas de suas cinzas, nas quais subsistia
um último germe divino, nasceram os primeiros homens. Esses homens
participam, pois, da natureza divina, pela faísca que adormece neles,
e da natureza demoníaca, por isso lhes vinha dos Titãs fulminados.
Esta natureza titânica, segundo o termo utilizado por Platão,
é a que incita aos homens para o mal, enquanto a faísca divina
os impulsiona ao bem. Esse crime dos Titãs, pois, mancha a todo o
conjunto da humanidade.
Não obstante, no Hieros logos se diz que o coração
do Zagreus tinha escapado aos assassinos do divino menino. Desse coração
tirou Zeus o princípio de ressurreição do jovem deus
assassinado, e logo, sempre segundo a doutrina órfica, confiou-lhe
o governo do mundo: "Zeus o colocou sobre o trono real, pôs-lhe
o cetro na mão, e o fez soberano de todos os deuses do universo".
(Cf. Proclos, Sobre o Cratilo do Platão.)
Compare-se com o que diz Saulo-Paulo: "Deus, depois de ter ressuscitado
a Cristo dentre os mortos, sentou-o à direita nos céus, por
cima de todo principado, potestade, poder e dominação".
(Cf. Epístola aos Efesios, 1, 20-21.)
Indubitavelmente o comentário sobre o Cratilo de Platão, por
parte de Proclos, é um texto pitagórico, posterior à
Epístola aos Efesios; mas o texto de Platão assim comentado
é anterior em vários séculos à epístola
paulina. E a lenda iniciática de Zagreus não é quão
único sustenta tal mito esotérico. Que o leitor se remeta
ao que dizemos do de Mitra em nossa obra precedente, e ficará bem
informado.
Por último, Saulo-Paulo se deu um papel idêntico ao de Orfeu
na nova religião que se esforça por divulgar pelo velho mundo.
Orfeu recebeu esses ensinos, evidentemente, de Perséfone, a deusa
iniciadora, durante sua descida aos Infernos, onde ela reina seis meses
ao ano, ao lado de Hades, seu marido. Esta descida ele o faz por amor. Mas,
ao ser fiel ao Eurídice, as mulheres da Tracia o despedaçarão
por despeito, ao lhe ver rechaçar toda participação
em sua orgia ritual. Pois bem, Saulo-Paulo não foi procurar sua própria
revelação aos Infernos, mas sim pretende havê-la recebido,
quando subiu ao terceiro céu, do próprio Jesus. (Cf. II Epístola
aos Coríntios, 12, 2.) Isto, evidentemente, vai dar no mesmo. Um
homem é eleito pela divindade para chegar até ela, receber
um ensino iniciático e difundi-lo entre os homens. Como conseqüência
de sua missão, aqueles a quem contribui a mensagem lhe dão
morte. O tema é sempre o mesmo, aparece sem cessar nas religiões
de "mistérios". E a de Saulo-Paulo constitui uma mais.
Consulte o mapa das viagens de Saulo-Paulo e se constatará, como
observa muito acertadamente nosso amigo Jean Desmoulins, que estes se desenvolveram
sempre em regiões do Império romano em que floresciam os cultos
a mistérios com sacrifícios, as religiões em que o
deus morre para renascer gloriosamente. Paulo tinha ali um terreno favorável
para seus temas favoritos.
O fato de que o orfismo e o filonismo impregnassem por sua vez a Saulo-Paulo
(já que sua cultura metafísica e teológica era em princípio
bastante frouxa) demonstra-se pelos rastros que se encontram deles em suas
expressões favoritas.
No orfismo, o cabrito era o símbolo do iniciado nos mistérios.
Nesta religião, o mistério se identificava ao Zagreus, e uma
das apelações rituais era justamente Erifos, em grego "cabrito",
que se aplicava ao deus. No ritual constituía uma palavra de passe,
que se devia pronunciar ante as divindades do mundo subterrâneo (Campos
Elíseos e Infernos) para poder ter liberdade de passagem. Este rito
é comum à gnosis, à cabala, à franco-maçonaria
esotérica. A frase chave é: "Cabrito, tenho caído
dentro de leite...".
E o leite é o primeiro alimento do recém-nascido. Nas religiões
de "mistérios" pode escrever-se "recém-nascido"...
Porque a iniciação é um renascimento a um mundo novo,
uma mudança de "plano", o acesso a outro nível de
"consciência". E esta expressão utilizará
Saulo-Paulo várias vezes:
"Dava-lhes a beber leite, não lhes dava comida porque ainda
não a admitiam..." (Cf. I Epístola aos Coríntios,
3, 2.)
"Pois os que depois de tanto tempo deveriam ser professores necessitam
que alguém lhes ensine de novo os primeiros rudimentos dos oráculos
divinos, e lhes tornem tais, que têm necessidade de leite em vez de
manjar sólido..." (Cf. Epístola aos Hebreus, 5, 12.)
Como se vê por tudo o que antecede, e como concluiu V. Macchiero em
seu livro Orfismo e Paolinismo, o passado do cristianismo judaico ao cristianismo
helênico, do fato histórico de Jesus ao fato místico
do Cristo, de um personagem real que viveu na Judéia a um personagem
mítico, espécie de arquétipo detectado ou imaginado,
operou-se graças ao orfismo, não é a cristologia de
Saulo-Paulo outra coisa que "uma transposição do orfismo"
(op. cit., P. 18).
Aqui, de fato, o mito helênico não é mais que a representação
imaginada de um estado real de consciência, quer dizer, uma experiência.
Por conseguinte, estabelecer que os elementos míticos de Cristo de
Saulo-Paulo derivam do orfismo equivale a procurar até que ponto
a ressurreição mística no cristianismo deriva da do
orfismo. Segundo a linguagem contemporânea, trata-se da repetição
adaptada de um psicodrama.
Além disso, as indagações interessadas de um Tertuliano
contra a liturgia de Mitra, ou as de um apologista como Justino contra a
do orfismo, limitam-se a repetir a infantil explicação dos
doutrinários cristãos dessa época, ou seja, que é
o diabo quem, de antemão, elaborou e inspirou aos homens esses preparos
do cristianismo. O diabo é o grande recurso dos parvos, constatamo-lo
inumeráveis vezes, inclusive à nossas costas! De maneira que
deixaremos à nossos demonômanos, tanto os antigos como os modernos,
com suas infantis elucubrações. E nos encontraremos com um
estranho crucifixo, que eles não deixarão de qualificar de
"blasfematório".
Antes de nada, existem dois aspectos da cruz. Está a cruz cósmica,
que vamos estudar, e a cruz patibular, instrumento de suplício. Esta
já foi descrita no volume precedente, e é melhor não
perder mais tempo com ela.
Ao princípio, os primeiros cristãos, confusamente envergonhados
pela ignomínia do suplício (já que o tinham com freqüência
ante seus olhos como castigo a crimes maiores), negavam-se a apresentar
ao Jesus crucificado. Até o século V não se decidiram
a fazê-lo, e ainda de forma bastante discreta. Em troca a cruz grega,
de braços iguais, era-lhes familiar, e utilizavam-na com fins puramente
talismânicos. Vejamos o que diz a respeito o cardeal Daniélou:
"Não só os cristãos riscam com seu polegar o sinal
da cruz sobre sua frente, mas também possuímos testemunhos
que testemunham a prática de verdadeiras tatuagens. O uso de tais
tatuagens é conhecida nos cultos pagãos ao Dionisos e a Mitra".
(Cf. Jean Daniélou, Les Symboles chrétiens primitifs, IX.)
Esse caráter talismânico da crux, ou do sphragis (selo), usava-se
para a vida espiritual, mas também para a vida profana: "Um
tesouro que não esteja marcado com o selo (sphragis) está
a mercê dos ladrões, uma ovelha sem sinal está a mercê
de todas as armadilhas". (Cf. Séverien de Gabala, Sul o baptéme;
Patrologie grecque, XXXI, C.432.)
E Marcos o Diácono, no século V, cita na Vida de Porfirio
da Gaza a três meninos que caíram em um poço e aos quais
a cruz grafite de vermelho no meio de sua testa preservou da morte. Também
Agustín recorda que os pagãos reconhecem aos cristãos
por suas vestimentas, seus penteados e a cruz grafite em sua frente. O que
prova que o cristianismo não estava em modo algum açoitado
e que seus seguidores não se viam na obrigação de ocultar-se.
Às vezes inclusive a cruz estava em grafite ou tatuada "sobre
o rosto", o que implica que devia está-lo em meio das bochechas
ou no queixo. Justino e as Odes de Salomão fazem alusão a
isso em pleno século II. Este costume subsistiu longo tempo, já
que um conto persa inserido nas Mil e Uma Noites nos diz o seguinte: "Mas
Seharkan, aproveitando o momento em que o cristão tirava o chapéu,
lançou-lhe uma segunda lança que o alcançou na frente,
no lugar mesmo em que tinha uma cruz tatuada.". (Cf. As Mil e Uma Noites,
"História do rei Omar-al-Neman", noite núm. 90.)
Pois bem, esta recopilação de contos começou no século
X.
E efetivamente, a cruz de braços iguais, o sphragis ou selo divino,
era símbolo pagão antes de ser símbolo cristão.
E sob o nome de staurós, o piedoso, marcava na gnosis pagã
o limite entre o mundo divino de Pleromio e o mundo demoníaco de
Kenomio. O mesmo termo de staurós era o que designava a uma entidade
do panteão gnóstico, e o eón tinha como missão
proibir aos daimons titânicos o acesso ao mundo divino (trocadilho
entre staurós, o piedoso, o limite, e hóros, o mesmo sentido).
Em Timeo, Platão nos apresenta a Alma Universal, intermediária
entre o Deus Supremo e o Cosmos, sob o aspecto de uma cruz inclinada, cuja
cabeça estava no céu e a base na terra. Devido a sua inclinação
se apresentava, pois, como um "X", uma ji grega. Muito mais tarde
os neoplatônicos representarão esta Alma Universal, o demiurgo,
com uma cruz grega rodeada de um círculo. (Cf. Proclus, Sobre o Timeo,
111, 216.)
Por conseguinte, muito antes do cristianismo se considera à cruz
como símbolo iniciático nas religiões dos "mistérios".
Às vezes se acompanha de um deus cruciforme -incluso de um deus crucificado-.
Para o primeiro caso, Porfírio nos transmitiu a descrição
que Bardesana faz do deus criador da Índia: segundo ele, Brahma estendia
os braços em cruz; sobre estes, figuravam inumeráveis deidades,
a Natureza, o Mundo. Na mão direita tinha o Sol, na esquerda a Lua.
Charles Guignebert, em Probléme de Jesus, diz-nos que, em um ritual
à Osíris, os braços estendidos da cruz simbolizam a
regeneração mística, e em alguns amuletos antigos figuram,
na cruz de Osíris, numerosos braços humanos.
No orfismo, que existia já no século VI antes de nossa era,
o mensageiro do deus salvador era, indubitavelmente, Orfeu, que trouxera
de sua descida aos Infernos o Hieros logos, a elocução iniciática
reservada aos místicos. E uma gema gnóstica do século
II, propriedade do Museu de Berlim, reproduzida por A. Boulanger em seu
Orphée, página 7, mostra-nos um Orfeu crucificado. Trata-se
de um selo de anel de oligisto, pedra marrom avermelhada (óxido férrico
natural), em que está gravada a imagem de um homem sobre uma cruz
vertical, com os braços estendidos (não se vê o sinal
dos pregos, mas se trata de um crucificado real). A cruz está apoiada
em sua base sobre duas grossas cavilhas em cunha, e rematada por uma espécie
de bola (falismo?) coroada por um quarto crescente com as pontas para cima.
Em cima da cruz há um arco de sete estrelas. Uma, inscrição,
gravada de forma bastante tosca, mostra orfeus bak-kikos, por orfeus bakkikos
ou bakkioakos. Este objeto é do último terço do século
II, quer dizer dos anos 170 a 200 de nossa era. Trata-se pois, sem lugar
a dúvidas, de Orfeu associado aos "mistérios" de
Dionisos-Zagreus, aquele a quem despedaçaram as bacantes.
Por outro lado, o mito do Orfeu não era desconhecido entre os cristãos,
já que Clemente de Roma, em suas Homilias Clementinas, oferece-nos
um resumo dele. (Op. cit., Homilia VI.)
De fato a cruz, tanto se for grega como se é a ji (cruz em "X"),
designa os quatro elementos que constituem o mundo material:
Terra, Água, Ar e Fogo. Esses quatro elementos aparecem marcados
em cima da cruz patibular de Jesus, nas iniciais do célebre I.N.R.I,
que significa, evidentemente, Iesus Nazarenas Rex Iudaeorum. Esquece-se
que esta frase latina não podia pertencer aos manuscritos originais
dos evangelhos, já que estes foram redigidos em grego, além
disso, só figura no de João (19, 20), e nos outros três,
sinóticos, a frase é diferente, e nem em grego nem em latim
podiam dar a sigla INRI. Para João, em grego, dá IONOBTI:
Iesus o Nazaraios o Basileus ton Ioudaion. De maneira que se montou expressamente
a frase latina a fim de obter INRI. E temos o significado esotérico
dessa sigla através do hebreu, já que I é Iebeschah
em hebreu: Terra; Nour é o Fogo; Ruah é o Ar; e Iammin são
as Águas.
Não pode confessar-se já mais abertamente que, no espírito
dos mitólogos que "construíram" o cristianismo sobre
bases mais antigas, assimilou-se Jesus, o homem histórico crucificado
por Roma, ao Cristo Cósmico, ao Adão Kadmon da cabala, e a
todos os deuses-salvadores "crucificados", quer dizer, dispersados
no seio dos quatro Elementos do Mundo que constituem a Matéria.
Aqui é onde convém recordar aquela confissão de Clemente
da Alexandria: "Os Mistérios se divulgam sob uma forma mística
a fim de que seja possível a transmissão oral. Mas esta transmissão
se efetuará menos por palavras que por seu sentido oculto. As notas
que temos aqui são muito pouca coisa... Mas ao menos servirão
de imagem que recordará o Arquétipo ao homem tocado pelo tirso".
(Cf. Clemente de Alexandria, Stromatos, I, I, 13.)
Orfeu crucificado
Pois bem, o
tirso era uma varinha terminada em seu extremo por um dente, e rodeada de
hera. E era justamente o cetro de Dionisos-Zagreus...
E na alquimia tradicional (e sua indiscutível capital, Alexandria
do Egito, está muito perto), a cruz de braços iguais é
o símbolo do crisol. Pôr matéria prima da Obra no crisol
se diz que é crucificar.
Por conseguinte, na alquimia mística, o deus-salvador, seja qual
for seu nome quando se encarna e se sacrifica, mescla-se aos quatro Elementos
do Mundo; como em um crisol, crucifica-se, (cf. Fulcanelli, O mistério
das catedrais), para converter-se a seguir no Crisopeo espiritual.
Por isso, ao tomar como eixo de seu sistema ao Jesus, filho de Judas da
Gamala, crucificado pelos romanos, cujos ajudantes e irmãos afirmavam
que tinha ressuscitado depois de sua morte, Saulo-Paulo tinha a partida
já quase ganha, porque:
a) perpetuava um tema familiar entre os meios helenísticos cultos,
tema que tinha chegado até os meios populares e que estes se apressaram,
ipsofacto, a cristalizar de forma real, em um personagem que bastava só
lhes oferecendo;
b) esse personagem existia, era Jesus-bar-Juda, chefe dos messianistas zelotes,
e seus partidários fizeram já a Saulo-Paulo a metade do trabalho
preparatório, ao montar a lenda da ressurreição.
A nosso homem não bastava já afirmando que, igual ao deus-salvador
desmembrado na cruz celeste dos Elementos encarnou-se em homem de carne
e osso, esta mesma cruz celeste tivera seu reflexo material, tangível,
na cruz patibular em que morrera tal homem. Saulo-Paulo não se privará
disso, mas além disso será o único em sua época
e durante longo tempo que, frente à vergonha cristã geral
ante a cruz, construirá a base de uma verdadeira mística do
"escândalo da cruz"; julgue-se:
"Que não me enviou Cristo a batizar, a não ser anunciar
o evangelho (o seu), e não com sábia dialética, a fim
de que não se desvirtue a cruz de Cristo. Porque a doutrina da cruz
é uma insensatez para os que perecem, mas para nós, que estamos
salvos (faz disso uma certeza), é um poder de Deus." (Cf. I
Epístola aos Coríntios, 1, 17-18.)
"Logo se acabou o escândalo da cruz?..." (Cf. Epístola
aos Gálatas, 5, 11.)
"Quanto a mim, jamais me glorificarei em outra coisa a não ser
na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado
para mim e eu para o mundo." (Cf. Epístola aos Gálatas,
6, 14.)
"Para fazer em si mesmo dos dois (antigos) um só homem novo,
e estabelecendo a paz, e reconciliando-os a ambos em um só corpo
com Deus, pela cruz, dando morte por ela à inimizade (antiga)."
(Cf. Epístola aos Efesios, 2, 15-16.)
É certo que na Epístola aos Filipenses (2, 8, e 3, 18), na
Epístola aos Colossenses (1, 20, e 2, 14), e na Epístola aos
Hebreus (12, 2) faz uma alusão direta ao instrumento material do
suplício de Jesus. Mas não é seguro que não
lhe emprestasse um sentido imensamente mais gnóstico. Recordemos
a seu primeiro iniciador, Dositeo. Releiamos, com este fim, essas passagens
de duplo sentido: "Apagou a ata cujas prescrições nos
condenavam e que era contra nós, e a tirou do meio, cravando-a na
cruz. Despojou aos Principados e às Potestades, exibiu-os à
vista do mundo, triunfando deles pela cruz". (Cf. Epístola aos
Colossenses, 2, 14-15.)
O que, no espírito de Saulo-Paulo, significa que se lembra dos ensinos
de seu Mestre Dositeo: para os gnósticos cristãos, os Arkontes
(Potestades e Dominações secundárias, segunda causa
do Cosmos) reinavam antes inteiramente sobre o mundo material, sobre o Kenomio.
Pelo sangrento sacrifício da cruz, diz-se que Jesus apaziguou a seu
Pai celestial, e agora são os Arkontes quem, destronados, estão
prisioneiros no seio dos quatro Elementos (a cruz cósmica).
Mas também aqui, na mente de Saulo-Paulo, o Jesus histórico
cede o posto a um personagem imaginário, o Cristo Celeste, quem se
sacrifica pelo Homem cansado, e, ao incorporar-se a sua essência,
transmuta-o e o deifica. Coisas todas elas que o homem condenado por Pilatos
jamais tinha projetado, e argumentos soteriológicos que se buscariam
em vão no Antigo Testamento.
Compreende-se que ante tais ensinos heréticos o judaísmo ortodoxo
reservasse a nosso novo apóstolo uma acolhida bastante má.
E compreende-se que o mundo helênico, com o que comportava já
de tradicional nos mitos pagãos anteriores, aceitasse discutir sobre
o tema. O tempo tem feito o resto, e especialmente a chegada ao poder de
imperadores cristãos.
E não é seguro que o simbolismo do coração de
Zagreus, esquecido pela raiva cega dos Titãs e do que Zeus fez renascer
ao deus sacrificado, não servisse de trama longínqua ao do
Sagrado Coração, para o que se construiu toda uma teologia.
Esse Sagrado Coração que, por sua misericórdia potencial,
faz renascer (ou nascer) ao homem cansado. Permanência quase eterna
dos grandes mitos sagrados! E os versos de nosso saudoso amigo Fernand Divoire
nos vêm à memória: [Cf. FERDINAND DIVOIRE, Orphée,
36.]
Cendres du lourd passé oü brille para parcelles La substance
du dieu, de Dyonisos mourant, Ah! Dégage-toi, o Substance immortelle!
O Coeur, échappe-toi, et renais, Dieu-enfant
(Cinzas do passado, onde a retalhos brilha A substância divina de
Dionisos moribundo, Ai! Desprenda-se já, OH imortal substância!
OH Coração! Escapa, e renasce, menino Deus!)
14 - As visões de Paulo e suas contradições
Quando a gente não tem uma vida de verdade, substitui-a por miragens.
A.-P. CHÉJOV, A gaivota
As visões de Paulo, como vimos anteriormente, constituem seu principal
argumento quanto à legitimidade de seu apostolado pessoal, que contribui
um evangelho pessoal. Em diversas ocasiões "viu" Jesus,
e este lhe deu suas instruções. Mas o que não sabe
é que estas freqüentemente estão em contradição
com as que ele deu em vida a seus irmãos, os apóstolos. E
isso é algo muito molesto.
Não obstante, quando ao final se deu conta, tentou afinar os violinos
ficando em contato com aqueles que lhe conheceram: "Logo, ao cabo de
quatorze anos, subi outra vez a Jerusalém acompanhado de Bernabé
e levando comigo ao Tito. Subi em virtude de uma revelação,
e lhes expus o evangelho que prego entre os gentis, e em particular aos
que figuravam, para que me dissessem se eu corria ou tinha deslocado em
vão". (Cf. Gálatas, 2, 1-2.)
Assim, tem medo de pregar um evangelho não de acordo, e tem interesse
em fazer concordar "seu" evangelho (Romanos, 2, 16, e 16, 25)
com o que possuem aqueles que viveram com Jesus e receberam outro em vida.
O que significa isto?
Se o próprio Jesus lhe comunicou um evangelho pessoal. Paulo não
teria que ter dúvidas. Acaso não nos diz o seguinte?: "Sei
de um homem em Cristo que faz quatorze anos -se no corpo, não sei;
se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus sabe- foi arrebatado até
o terceiro céu e ouviu palavras inefáveis que um homem não
deve repetir". (Cf. Paulo, II Coríntios, 12, 2-4.)
Por outra parte, aqui temos uma segunda contradição, já
que se o que foi comunicado não deve repeti-lo, não se trata
de uma mensagem a difundir entre as nações. Em troca, em sua
primeira Epístola aos Coríntios, declara isto: "Porque
eu recebi do Senhor o que lhes transmiti". (Cf. Paulo, I Coríntios,
11, 23.)
Continuemos, pois, nossos controles, porque são gratificantes:
"Quando voltei para Jerusalém, orando no Templo tive um êxtase,
e vi Jesus, que me dizia: "Tenha pressa e sai logo de Jerusalém,
porque não receberão seu testemunho a respeito de mim".
Eu respondi: "Senhor, eles sabem que era eu o que encarcerava e açoitava
nas sinagogas aos que acreditavam em ti, e quando foi derramado o sangue
de sua testemunha Estêvão, eu estava presente, e me gozava
e guardava os vestidos dos que lhe matavam...". Mas ele me disse: "Vê,
porque eu quero o enviar à nações longínquas".".
(Cf. Atos dos Apóstolos, 22, 17-21.)
De maneira que Paulo, em presença de uma aparição de
Jesus, na atmosfera angustiosa do Templo, permite-se lhe contradizer e discutir
as ordens da aparição? Incrível!
Além disso, em sua argumentação, tende a explicar à
Jesus (que supõe que o ignora), que dadas suas ações
anteriores contra os discípulos não tem nada que temer dos
judeus. Em troca, um pouco antes, no capítulo 21 dos mesmos Atos,
mostra a estes tentando linchar ao Paulo, e que este agradeceu sua salvação
exclusivamente à intervenção imediata do tribuno das
coortes Claudio Lisias: "E enquanto tratavam de lhe matar chegou a
notícia ao tribuno da coorte de que toda Jerusalém estava
amotinada. E tomando imediatamente os soldados e os centuriões, precipitou-se
sobre os manifestantes. Estes, à vista do tribuno e os soldados,
cessaram de golpear ao Paulo". (Cf. Atos dos Apóstolos, 21,
31-32.)
Aqui temos, pois, outra contradição. E há ainda outra
mais. Porque Jesus declarou numerosas vezes que seu papel de messias liberador
pretendia reservá-lo unicamente em benefício de Israel:
"Não fui enviado a não ser às ovelhas perdidas
da casa de Israel." (Cf. Mateus, 15, 24.)
"Não vão aos gentis nem penetrem em cidade de samaritanos;
vão melhor às ovelhas perdidas da casa de Israel." (Cf.
Mateus, 10, 5.)
E nesta passagem confia ao Paulo uma missão contrária. Pois
se Jesus for Deus, como Deus pode mudar suas decisões, eternas? É
inconcebível.
Além disso, Paulo faz o que lhe passa pela cabeça. Igual segue
as instruções do Espírito Santo, como as passa por
cima. Igual obedece ao primeiro sonho que tem, como recusa escutar a um
profeta. Julgue-se: "Em todas as cidades o Espírito Santo me
adverte, dizendo que me esperam cadeias e tribulações. Mas
eu não faço nenhuma estima de minha vida, com tal de acabar
minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus". (Cf.
Atos dos Apóstolos, 20, 22-24.)
Terá que ver neste desprezo da existência uma espécie
de renúncia ascética, que não lhe pede, como se vê,
a não ser ao contrário, ou um desespero secreto, uma ferida
incurável: a lembrança da filha de Gamaliel.
Esta fuga longe de Jerusalém, durante quatorze anos, tenderia a confirmar
esta hipótese. E então Paulo iria deliberadamente e por uma
espécie de suicídio secreto, para uma morte desejada desde
fazia longo tempo. Vejamos algo que o confirma:
"E desembarcamos em Tiro, porque é ali onde tinha que deixar
sua carga a nave. Como ali descobrimos discípulos, permanecemos sete
dias. Eles, movidos pelo Espírito Santo, diziam ao Paulo que não
subisse à Jerusalém. Mas, passados aqueles dias, saímos."
(Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 3-5.)
"Havendo ficado ali vários dias, desceu da Judéia um
profeta chamado Agabo, o qual, chegando-se a nós, tomou o cinto do
Paulo e, atando-os pés e as mãos com ele, disse: "Isto
diz o Espírito Santo: assim atarão os judeus em Jerusalém
ao varão de quem é este cinto, e lhe entregarão em
poder dos gentis"." (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 10-11.)
Mas Paulo não quer escutar: "depois disto, providos do necessário,
subimos à Jerusalém". (Cf. Atos dos Apóstolos,
21, 15.)
Por certo que esta visão de Agabo não foi interpretada corretamente,
já que se os judeus assaltaram ao Paulo, foram os judeus da Ásia
os que, depois de havê-lo reconhecido no Templo, avisaram aos outros,
e não só Paulo não foi entregue por eles aos romanos,
mas também foram estes últimos os que lhe liberaram, lhe salvando
assim a vida. (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 31-36.)
No referente à enigmas e contradições, aqui temos outras
passagens sobre as visões de Paulo: "Uma noite, em uma visão,
disse o Senhor ao Paulo: "Não tema, continua falando, não
cale! Eu estou contigo e ninguém tentará te fazer mau, porque
tenho já nesta cidade um povo numeroso". Passou ali um ano e
seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus". (Cf. Atos dos
Apóstolos, 18, 9-10.)
Esta cidade é Corinto, cidade voluptuosa, que possuía uma
escola de cortesãs célebre, e famosa pelo relaxamento de seus
costumes, de onde a expressão significativa de "viver a corintia".
Era, de fato, a Capua da Acaia. Pois bem, na II Epístola aos Coríntios
(1, 19) diz-se que a Igreja de Corinto foi fundada pelo Paulo e seus dois
colaboradores, Silas e Timóteo, e os Atos nos confirmam isso: "Mas
logo que chegaram da Macedônia Silas e Timóteo, Paulo deu tudo
a pregação da Palavra, atestando a quão judeus Jesus
era o Messias. Como estes resistiam e blasfemavam, sacudindo suas vestimentas
lhes disse...". (Cf. Atos dos Apóstolos, 18, 5-6.)
Para ver "um povo numeroso nessa cidade". Jesus tinha que ser
muito otimista, quanto mais que sem a intervenção do pró-cônsul
Galión, irmão de Séneca e "amigo de César",
Paulo teria passado um quarto de hora muito mal (cf. Atos dos Apóstolos,
18, 12-18), e quando finalmente se embarca para Síria, a Igreja de
Corinto não deve ser muito importante.
Recapitulemos. Paulo fracassou rotundamente entre os judeus. Obteve a conversão
de um tal Justo, homem que adorava a Deus" (cf. Atos dos Apóstolos,
18, 7), quer dizer de um pagão, inicialmente partidário do
judaísmo, logo a de Crispo, chefe da Sinagoga, com todos os seus
(cf. Atos, 18, 8), quem, por outra parte, alguns versículos mais
tarde se chama Sustenes (cf. Atos, 18, 17).
E logo nos diz que: "E muitos Coríntios, ouvindo a Palavra,
acreditavam e se batizavam". (Cf. Atos, 18, 8.) batizavam-se? vamos
ver.
Aqui se trata unicamente de pagãos aos quais Paulo convertera à
sua doutrina religiosa. Para qualquer que conheça o clima que reinava
até então em Corinto, onde preponderava o elemento romano
e latino, onde toda regra de vida derivava do gozo de existir, e tendia
ao amor, onde vários milhares de "servidoras de Afrodite"
gravitavam ao redor de seu templo, dominando a cidade, como tentações
vivas, famosas por sua beleza e sua ciência das carícias, a
hipótese de um êxito entre "muitos Coríntios"
é uma pura bravata.
Por outro lado, Paulo a única coisa que fazia era ensinar, ele não
batizava, e ele mesmo o quis sublinhar: "Eu não fui enviado
para batizar, a não ser para pregar o evangelho...". (Cf. Paulo,
I Coríntios, 1, 17.) Coisa que, recordemo-lo, é uma prova
mais de que não recebera os famosos poderes apostólicos que
Simão-Pedro negou ao Simão o Mago, aliás Saulo, aliás
Paulo (veja-se mais acima).
E esse escrúpulo, essa vacilação, fazem que se abata
uma dúvida sobre a realidade da missão que Jesus supostamente
lhe confiou. Se não, por que este último, depois de ressuscitar
em carne e osso, corpo glorioso, em três dimensões, que comia
e bebia como vocês e como eu, ia ver-se na impossibilidade de infundir
com as palavras e os gestos clássicos, esse Espírito Santo
necessário para a fundação de toda Igreja? Porque esse
Espírito Santo jamais o recebeu nas formas sacramentais acostumadas
nos tempos apostólicos. Jamais obteve a não ser um simples
acordo, concretizado por um simbólico apertão de mãos,
que já estava em uso nas sociedades secretas dos "mistérios":
"Santiago, Cefas e João [.. ] deram-nos para mim e ao Bernabé
a mão em sinal de comunhão". (Cf. Paulo, Gálatas,
2, 9.)
Assim -coisa que ninguém parece ter prestado atenção-
nenhum bispo pode vangloriar-se de ter uma filiação apostólica
que se remonta até São Paulo. O que, tendo em conta o fato
de que Pedro jamais esteve em Roma converte em um mistério a identidade
do verdadeiro fundador apostólico desse bispado, a menos que se enfoque
o assunto segundo a explicação que será objeto do capítulo
seguinte.
Ao começo do presente capítulo sublinhamos a ausência
de todo princípio nas decisões do Paulo, que eram conseqüência
de suas visões. Às vezes não faz caso das "mensagens"
recebidas, e às vezes fica em marcha acreditando só em um
simples sonho. Julgue-se:
"Havia ali [em Listra, na Liconia] um discípulo chamado Timóteo,
filho de uma mulher judia crente e de pai grego [...] Paulo decidiu levá-lo
consigo. Tomou, pois, e o circuncidou, à causa dos judeus que havia
naqueles lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego [...] Percorreram
a Frigia e o país da Galacia, pois o Espírito Santo lhes proibiu
pregar na Ásia. Chegaram à Misia e tentaram dirigir-se a Bitinia,
mas tampouco o permitiu o Espírito de Jesus. Atravessaram, pois,
Misia e baixaram ao Tróade". (Cf. Atos dos Apóstolos,
16, 1-8.)
Aqui agarramos Saulo-Paulo com as mãos na massa! Porque não
tinha absolutamente nenhum direito a efetuar essa operação
ritual, que era realizada sucessivamente por três mohelim (operadores)
em presença do shamoch (notário), e com menos seis testemunhas
maiores. Esta circuncisão sacrílega é uma falsidade
mais a acrescentar no ativo do Paulo. Mas continuemos: Primeira observação:
umas vezes é o Espírito Santo, e outras o Espírito
de Jesus o que se comunica com o Paulo.
Sustentar depois disto que se trata de um deus único nos parece muito
audaz. Observar-se-á, além disso, que o Pai, por sua vez,
continua ignorando ao Paulo. Está melhor na parte dos judeus. Vêem-se
contradições assim dentro das famílias, cada qual tem
suas preferências.
Segunda observação: apoiando-se em que critérios reconhecia
Paulo se as via com um ou com outro? Sob que forma se manifestava o Espírito
Santo?
Terceira observação: depois de sua "ressurreição"
se diz que Jesus apareceu em carne e osso, com três dimensões,
comendo e bebendo, atravessando paredes, e nos precisa que não se
tratava de "um espírito, que não tem nem carne nem ossos".
(Cf. Lucas, 24, 39.)
Pois bem, um quarto de século depois dessa ressurreição,
parece que perdera aquele extraordinário privilégio, e contentava-se
em não ser mais que um espírito, como os que tinham todos
os mortos segundo as crenças daquele tempo. A menos que na época
da redação dos Atos dos Apóstolos a ressurreição
em carne e osso ainda não se inventou.
Mas continuemos lendo o que segue: "De noite. Paulo teve uma visão.
Um varão macedônio se pôs diante, e lhe rogando dizia:
"Passa a Macedônia e nos ajude". Imediatamente depois desta
visão, procuramos como passar a Macedônia, coligindo que Deus
nos chamava a lhes evangelizar". (Cf. Atos dos Apóstolos, 16,
9-10.)
Seria difícil negar que Paulo era um neuropata, já que um
homem que anda vagando assim através de todo o Império romano,
emprestando ouvidos sonhos ou a visões, sem método e sem um
plano bem maturado, não pode ser outra coisa que isso.
E aqui vamos parar à misteriosa enfermidade da qual já falamos
anteriormente.
Porque agora os fenômenos oníricos seguirão manifestando-se
e a perambulação irracional vai continuar: "No dia seguinte,
de noite, lhe apareceu o Senhor e lhe disse: "Tenha ânimo, porque
como deste testemunho de mim em Jerusalém, assim também tem
que dá-lo em Roma!"". (Cf. Atos dos Apóstolos, 23,
11.)
Sua confiança se vai exacerbando, até dar passo a uma autoridade
em aumento. Na viagem por mar que conduzirá a Roma, o navio cai em
uma tempestade. Mas Paulo tranqüiliza a todo mundo: "Esta noite
me apareceu um anjo de Deus a quem pertenço e a quem sirvo, que me
há dito: "Não tema, Paulo, tem que comparecer ante o
César, e Deus concede a vida de todos os que navegam contigo"".
(Cf. Atos dos Apóstolos, 27, 23.)
Os céticos dirão que havia uma possibilidade entre dois de
que este sonho coincidisse com a realidade. Nos contentaremos fazendo observar
que os neuropatas são freqüentemente excelentes médiums.
É bem sabido que uma tara psíquica freqüentemente está
compensada por uma faculdade paranormal, e isto terá que reconhecê-lo.
Paulo, quer dizer, o iniciado na magia nabatea que nos oculta sob o pseudônimo
de Simão o Mago, possuía o duplo dom da clarividência
e a clariaudiência. Daí mesclar nisso a Deus Pai, Deus Filho
ou Deus Espírito Santo vai muito. Isso representaria lhes dar a paternidade
iniciática de muitos sonâmbulos extralúcidos, dos que
saem nas últimas páginas dos jornais, depois da imprensa do
"coração".
Acabamos de pronunciar as palavras tara psíquica, e convém
que nos expliquemos.
Voltemos para Flavio Josefo, ao episódio referente às fases
sucessivas que precederam à morte de Herodes o Grande, no ano 6 antes
de nossa era: "Sofria de uma febre lenta que não manifestava
tanto seu ardor ao contato com a mão como no interior de quão
tecidos destroçava. Experimentava deste modo uns violentos desejos
de tomar mantimentos, e era impossível não condescender. Acrescente-a
ulceração dos intestinos, e em especial do cólon, que
lhe causava atrozes sofrimentos. Nos pés, uma inflamação
úmida e transparente, e o mesmo ao redor do abdômen, logo a
gangrena das partes genitais, que engendrava vermes. A respiração
era fatigante quando estava incorporado, e era desagradável pela
fetidez de seu fôlego e o precipitado do hálito. Por último,
sofria convulsões espasmódicas, de uma violência insuportável".
(Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, VI.)
É indiscutível que todos esses sintomas apontam para uma sífilis
em estado terciário, em suas últimas manifestações.
E nessa época, no Oriente Médio, tratava-se da sífilis
mutilante, que se converteu na sífilis nervosa de nossa época
na Europa. Mas nessas mesmas regiões continua sendo ainda multilante
às vezes, sobretudo no Extremo Oriente (Índia, Paquistão,
etc.).
Pois bem, Saulo-Paulo é o neto de Herodes o Grande por parte de sua
avó Mariana e sua filha Cypros II, mãe de Saulo e de seu irmão
Costobaro II. Portanto é através de sua mãe por onde
lhe chegou a triste condição de sifilítico hereditário.
Esta valeu ao Saulo um clima psíquico aberto de antemão a
diversas formas alucinatórias, uma distrofia ocular (nos diz que
entortava os olhos), e óssea, que geralmente afeta aos membros inferiores
e produz mornas em forma de "folha de sabre" (tinha as pernas
torcidas, como também nos diz).
Esta herança sifilítica não explica tudo. É
certo que nessas regiões e naquela época um guerreiro, como
era inicialmente Saulo, estava exposto a toda sorte de aventuras, e o desenfreio
e inclusive as violações, próprios dos soldados profissionais,
levavam em si mesmos seu elevado e penoso preço. Na vida de nosso
herói houve uma sífilis adquirida, e não só
já uma hereditária. Isto não é contraditório.
A herança sifilítica confere uma certa imunização,
mas esta pode apagar-se com o tempo, e se citam casos de homens que, apesar
de haver-se confirmado que eram sifilíticos hereditários,
sofreram uma grave afecção sifilítica nos limites da
idade adulta. Este foi provavelmente o caso de Saulo-Paulo.
E em seu estádio secundário provoca já uma esplenomegalia
moderada por hipertrofia do baço. O doente sofre lesões cutâneas
e mucosas, a mais corrente é a roseóla, e transtornos das
faneras, como a queda dos cabelos (ficou calvo em idade precoce). No estado
terciário a sífilis apresenta gomos, duros e indolores, ulcerações
profundas da derme, acidentes mucosos, sobretudo na boca (gomos, manchas
brancas). O doente é repelente. E o próprio Saulo-Paulo nos
diz que foi vítima de uma enfermidade que causava asco: "Bem
sabem que estava doente de doença corporal quando pela primeira vez
lhes anunciei o evangelho, e postos a prova por minha enfermidade, não
me desdenharam nem fizeram ascos de mim, antes me receberam como um anjo
de Deus". (Cf. Epístola aos Gálatas, 4, 13-14.)
Agora bem, no mundo antigo, e no Oriente Médio (e na Índia
ainda em nossos dias, em determinadas regiões), o doente afetado
de sífilis era considerado como sujeito divino. Porque não
se ignora que em suas fases últimas a enfermidade contribuía
consigo um estranho fenômeno.
Em efeito, de dez a vinte anos depois da sífilis primária,
às vezes inclusive trinta anos mais tarde, aparece o tabes, ou ataxia
locomotriz (não foi este o caso de Saulo-Paulo), ou transtornos psíquicos
ligados a uma forma que se conhece com o nome de paralisia geral. Esta pode
traduzir-se simplesmente por uma afecção sifilítica
difusa nas meninges e o encéfalo, com manifestações
mentais e neurológicas. Estas últimas se traduzem às
vezes por um delírio de grandeza, o doente acredita ser Deus ou em
relação com Deus; está sujeito a alucinações
ou a crise de excitação (cf. professor A. Molinier). É
o caso de Saulo-Paulo, em quem segue a esplenomegalia da sífilis
secundária. Esta forma da terrível enfermidade permanece ignorada
durante longo tempo. Além disso, o paludismo é um poderoso
fator que atrasa esta última afecção.
Quanto às "audições" de vozes diversas, não
esqueçamos que no caso de lesões sifilíticas que se
produzem no aparelho auditivo (labirinto, caracol), o doente é objeto
de alucinações auditivas que vêm a acrescentar-se às
alucinações visuais. O delírio de grandezas se converte
então em teomania, e o doente se toma por um novo profeta ou pela
reencarnação de um apóstolo, ou inclusive do próprio
Deus. Por pouco que estejam compensadas as lesões cerebrais pela
aparição de faculdades paranormais, coisa que é freqüente,
encontrará fiéis, e se formará uma seita a seu redor.
Nós pensamos, pois, que a grave enfermidade que intriga tanto aos
exegetas como aos historiadores do paulinismo, não foi nem a malária
nem a epilepsia. Foi simplesmente um pouco mais comum, tendo em conta a
região e a época, assim como o modo de vida inicial de Saulo-Paulo:
a sífilis, enfermidade muito extensa naquela época. Se foi
também palúdico (coisa que tampouco é impossível
naqueles lugares), esse detalhe explica e justifica as manifestações
tardias da enfermidade em seu estágio terciário, associado
com a herança que, como já assinalamos, atrasa igualmente
ao paludismo os efeitos da sífilis adquirida.
Este foi, acreditamos nós, o "aguilhão na carne"
cuja presença reconhece ter nele Saulo-Paulo (II Epístola
aos Coríntios, 12, 2-9). Mas ele utiliza o termo grego de akóloph
para designar este aguilhão, e akóloph não designa
um aguilhão, a não ser "um conjunto de aguilhões",
algo que se situaria entre os espinheiros e a pele arrepiada de pelos de
animal chamado precisamente "ouriço", conforme nos diz
monsenhor Ricciotti em seu Saint Paúl, apotre. Aí tratava-se
de sífilis secundária, caracterizada por sifílides
de um tipo eruptivo generalizado, e que afeta precisamente a este aspecto.
Pudemos descobrir que o maravilhoso "caminho de Damasco" não
foi outra coisa que a marcha cadenciosa de um formoso judeu. Agora vemos
que as "comunicações" recebidas por Saulo-Paulo
não tiveram outra fonte que uma simples enfermidade venérea,
muito intensa. Embora o reino do fantástico não ganhe nada
com isto, a história ao menos recupera seu verdadeiro rosto.
NOTA: A sífilis foi identificada com quase total certeza nas descrições
de autores antigos; agora se sabe que essa enfermidade, que foi durante
tanto tempo tão temida, não a trouxeram para a Europa os marinheiros
de Cristóvão Colombo a sua volta das ilhas do Caribe, mas
sim foi exportada por eles.
Os defensores de uma fonte americana não efetuaram controles cronológicos.
Faremo-los, pois, nós em seu lugar:
1) Carlos VIII partiu para sua primeira campanha da Itália em 1493.
Durou até 1496. Numerosos soldados de todos os graus retornaram dela
poluídos, sobretudo de Nápoles, que foi tomada em 1495. O
mesmo aconteceu com as tropas de Luis XII, no curso da segunda campanha,
que durou de 1499 a 1504.
2) Em 3 de agosto de 1492, Cristóvão Colombo e suas três
pequenas tripulações saíram de Palos de Moguer (Andaluzia),
e retornaram a Europa, a Lisboa, em 4 de março de 1494. Voltaram
a empreender a marcha, desta vez com quatorze tripulações
mais, em 25 de setembro do mesmo ano de 1494, e não retornaram até
1496.
Como poderiam, em só seis meses que durou sua volta, poluir os marinhos
de Santa Maria, a Pinta e a Nina, primeiro desde Lisboa, logo de Madrid
e por último de Barcelona, a tão grande quantidade de gente
na Itália, onde jamais puseram os pés durante esse período
de tempo, e simultaneamente à expedição francesa? Quanto
mais que este terrível gérmem de sífilis, se os franceses
o imputaram às belas italianas, violadas ou conquistadas, estas,
por sua parte, pretendiam havê-la contraído dos mesmos franceses!
Seja o que for, o "mal de Nápoles" segundo uns, ou o "mal
francês" segundo outros, não deixam passo a um "mal
caribenho", e se se destaca à Itália daquela época
como um dos focos que irradiavam a sífilis, não se diz em
troca nada da Espanha e de Portugal, que deveriam ser os primeiros Estados
ameaçados. E como um número tão pequeno de marinheiros,
o que implica um número ainda menor de sifilíticos, poderia
difundir a sífilis de maneira tão virulenta, e em tão
poucas semanas? As "canas ao ar" das escalas têm, apesar
de tudo, seus limites, e a virilidade masculina também.
CONTINUA